sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Contos do Folclore Brasileiro (A rainha que saiu do mar)

(Folclore do Rio de Janeiro)
HOUVE UM REI QUE DESEJAVA se casar com a moça mais bonita que houvesse no seu reino. Já se tinham corrido todas as casas, e chamado todos os pais de família para apresentarem suas filhas, e nenhuma tinha agradado ao rei.

Fazia oito dias que tinha assentado praça um recruta abobado num batalhão, e neste dia tinham de ser apresentadas as filhas de um lavrador, que eram as únicas moças que o rei ainda não tinha visto, e neste dia tinham de ir à missa os batalhões.

Logo que entrou na igreja o batalhão em que tinha assentado praça o tal abobado, pôs-se este a chorar, o que vendo o comandante do batalhão lhe perguntou o que tinha. Respondeu ele que “nada sofria, mas que tendo visto aquela imagem (apontando para uma imagem muito formosa que havia na igreja) tinha ficado com saudades de sua irmã, que muito se parecia com aquela santa.”

Ficaram todos duvidosos e zombando do pobre soldado; mas chegando aquilo aos ouvidos do rei, este mandou chamar o rapaz e lhe indagou da verdade, ao que ele respondeu ser exato ter uma irmã muito formosa e parecida com a imagem que havia na igreja.

Perguntando o rei onde morava ela, respondeu: “Nas gargantas do Monte Escarpado, a dez mil léguas por terra e cinco mil por mar.”

O rei mandou logo preparar uma esquadra e enviar uma delegação ao pai daquela moça, pedindo-a em casamento. O recruta também foi com a comissão.

Logo que chegaram ao Monte Escarpado avistaram a moça na janela e ficaram todos embasbacados ao ver tanta beleza junta.

O almirante entregou ao pai da moça a carta do rei, e o velho enviou a sua filha. Chegando a esquadra na volta do Monte Escarpado, o mar era muito forte, e a gente saltou para terra, indo com a moça ter à casa de uma velha, que ali morava.

A velha, que era um desmancha prazeres, indagou para onde iam e de onde vinham, e sabendo de tudo convidou a moça para ir dar um passeio pela horta e lá atirou ela dentro de um poço.

Ora já sendo de noite, quando tiveram os da esquadra de embarcar não deram por falta da moça, porque a velha pôs em lugar dela a sua filha, que era um monstro de feia.

Quando os  navios largaram e se fizeram ao largo, a velha foi ao poço, tirou a moça para fora, cortou-lhe os cabelos, furou-lhe os olhos, e botou-a num caixão e atirou no mar.

Foi o caixão parar ao reino primeiro que os navios. Um pescador o achou e levou para casa, e julgando ter dinheiro, pôs-se a gabar-se, dizendo que tinha dinheiro para combater com o rei. Foi chamado o pescador e confessou ter achado um caixão cheio de dinheiro, foi um guarda do palácio para examinar o caso. Aberto o caixão deram com a moça dentro, ficando todos penalizados com aquilo por verem uma moça tão bonita com os olhos furados e os cabelos cortados.

Voltou o guarda para palácio, conduzindo a moça. Quando lá chegou, já tinha também chegado a comissão com a filha da velha. O almirante, muito triste, disse ao rei: “Não fui como vim; fui alegre e volto triste; mas me sujeito à pena que rei, meu senhor, me quiser dar.”

O rei respondeu: “Nada tenho a fazer, senão casar-me com esta feia mulher, que me chegou.” Houve o casamento, mas o rei se conservou sempre triste e vestido de luto.

Apresentando-se-lhe a moça dos olhos furados, ainda mais triste ficou o rei. Sendo ela reconhecida por seu irmão e pelos da comissão, mandou o rei buscar a velha em cuja casa estiveram de passagem.

A velha negou tudo e até desconheceu a sua própria filha. O rei reconhecendo que os traços da velha eram os mesmos da moça com quem se tinha casado, despediu esta e mandou furar os olhos da velha e cortar-lhe os cabelos.

Logo que isto fizeram, os olhos da moça, que foi achada no mar, tornaram a ficar perfeitos e cresceram-lhe os cabelos. Houve então o novo casamento com a rainha, que veio do mar, sendo nele jogada a velha.


Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público.

Estante de Livros (Dia de São Nunca à tarde, de Roberto Drummond)


Dia de São Nunca à Tarde foi a primeira obra do jornalista Roberto Drummond, autor de sucessos como Inês é morta, A Morte de DJ em Paris, Hilda Furacão, que foi publicada postumamente. O livreto contém menos de 100 páginas, escritas com uma sensibilidade e uma profundidade impressionantes.

A obra conta a história de Gabriel, o menino prodígio no time de futebol do colégio interno de padres; Gabriela, sua irmã gêmea idêntica; Frei Vicente, que faz milagres; Frei Tanajura, um homem intransigente e que tem pavor a uma certa tribo indígena; os alunos do internato e os padres fantasmas que vivem ali.

No colégio, há uma aura de apreensão porque o campeonato de futebol está prestes a começar, e Gabriel não retornou das férias na casa da mãe. Passam-se dias, até que ele chega, sendo trazido pela mãe - descrita como uma mulher extremamente sensual e perfumada, que desperta sensações intensas, e pela irmã, por quem um dos padres fantasmas é apaixonado.

Gabriel e Gabriela decidem trocar de lugar um com o outro - uma brincadeira que serve para que eles possam se colocar na pele um do outro, e assim entender melhor como é estar no lugar do outro. Então, no colégio, quem acaba ficando é Gabriela, que acaba dando início a um romance com os dois melhores amigos de seu irmão.

O livro descreve de forma sucinta, mas não menos cheia de detalhes e sensações, as cenas de cada momento da história. A forma de narrar do autor nos leva a crer que tudo o que estamos lendo faz parte de um sonho que ele teve em uma noite qualquer, fruto de um sono pesado e revigorante.

Em suma, é uma leitura prazerosa e rápida, capaz de despertar em nós diversas sensações, de nos levar para viagens na imaginação, e de nos tirar brevemente da realidade.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Trova ao Vento – 001

 

Mensagem na garrafa – 13 -

CAROLINA RAMOS

Santos/SP

O homem e o cão

Já que o assunto abraça a figura do "melhor amigo do homem", um continho, ainda inédito, fareja aqui por perto à espera de um chamado para saltar no meu colo. Que venha:

O HOMEM E O CÃO

Não era um homem bom, nem mau. Se pendia mais para lá do que para cá, difícil saber. As opiniões dividiam-se. Era antes de tudo um solitário. Um ser estranho. Embora residisse há largo tempo no mesmo local, muito pouco se sabia dele.

“– No fundo, é bom!" - diziam os puros, ao vê-lo acariciar a cabeça de uma criança, ao passar por ela em suas idas e vindas diárias. “– Quem é capaz de sentir ternura pelos pequeninos não pode sertão mau assim!"

Por outro lado, os mais pessimistas e menos crédulos classificavam-no de "coisa ruim", porque não gostava de animais e porque os cachorros mostravam também não gostar dele.

E não dava outra! Cada vez que dobrava a esquina, começava a zoeira. Apareciam cachorros de todos os lados como se a esperar pela sua chegada para dar início à barulheira. Obediente à batuta de um maestro invisível, mal o via, a cachorrada, indócil e impertinente, começava a latir como se Ali-Babá e seus quarenta ladrões resolvessem adentrar o bairro pacato, com disposição de tripudiar sobre a tranquilidade dos moradores.

Vicente, ou Vicentão, decididamente, não gostava de cães. Nem tampouco os cães gostavam dele - premissa que ninguém conseguiria negar. Ele mesmo não fazia questão de disfarçar a idiossincrasia. Era só pôr o pé na rua, para que todo o quarteirão ficasse em polvorosa. Um número crescente de vira-latas logo fazia questão de provar a antipatia canina que o cercava. Quem entenderia? - Um começava a latir. Outro o acompanhava. Mais outro... E assim ia num crescendo até que aquilo acabava num coral onde não faltavam sopranos, contraltos, tenores e nem barítonos, numa gama ensurdecedora de latidos, uivos e grunhidos difíceis de serem calados. Sua chegada, ou saída do bairro, jamais era pacata e despercebida, questão de adrenalina liberada de ambos os lados.

E diariamente a cena se repetia por mais de uma vez.

Enfurecido, Vicentão abaixava-se, apanhava um seixo ou pedra, e acertava o focinho dos mais afoitos que recuavam a respeitável distância, sem deixar de emitir seus impropérios caninos.

O pior de todos eles era aquele cão pastor alemão, belo capa preta, que vinha sempre à frente, latindo mais alto que os demais e acatado como líder.

Um dia, a coisa extrapolou. Um descuido e um vira-latas mais atrevido, abocanhou-lhe a mão. E a raiva incontida daquele homem acuado lançou estilhaços para todos os lados.

Vicentão furioso, a amparar a mão que pingava sangue, abriu violentamente a porta da casa. Saiu dela portando uma espingarda. Visou a malta que ladrava ao portão. Atirou a esmo, mas atirou para acertar.

Num segundo, apenas o líder restava. Os demais, atemorizados, fugiram logo após o primeiro estampido, rabo entre as pernas. O capa preta gania junto à sarjeta, com a pata esfacelada pelo tiro.

Encararam-se - vítima e agressor.

Não havia mágoa nem raiva nos olhos do cão, apenas dor. Vicentão ergueu a arma para tirar uma segunda vez. O ódio acumulado não era mais difuso. Concentrava-se agora, por inteiro, naquele jovem cão de presas alvas e ameaçadoras que agora se arrastava sem agressividade até seus pés como a pedir ajuda.

Sem aparentar ressentimentos, a vítima lambia-lhe os sapatos, ganindo baixinho, dolorosamente. O rastro de sangue da vítima mesclou-se ao sangue que pingava da mão ferida do agressor.

A visão daquele cão rastejante, que sequer fugia à mira tangeu as cordas mais sensíveis daquele homem. Baixou a arma.

Seria fácil... tão fácil liquidar aquele animal, encostando-lhe a arma diretamente na cabeça sem possibilidade de erro. Mas... a coragem deu de ré. Duas lágrimas rolaram pelo rosto curtido daquele homem que ninguém sabia se era bom ou se era mau.

Vicentão voltou-se rápido, retornando sem a arma e trazendo consigo um estojo de primeiros socorros.

O cão deixou-se medicar lambendo, dócil e agradecido, a mão que lhe amenizara a dor.

Por algum tempo, Vicentão teve hóspede em casa, tratado com carinho e regalias. Afeiçoou-se a ele. Afeição recíproca. Chamava-o de amigão e era atendido com efusivos abanos de cauda e lambidelas profusas.

Doía-lhe saber que o cão raçudo teria de ser logo devolvido. Era um exemplar de exposição, com "pedigree", ganhador de algumas medalhas, como afirmavam os anúncios dos jornais que prometiam recompensas a quem o encontrasse.

A nenhum desses anúncios Vicentão dera resposta. Só devolveria o cão quando estivesse perfeitamente restabelecido. Ponto de Honra!

Os cuidados apressaram a cura. O momento da entrega do animal ao legítimo dono, inadiável.

Nem tudo, porém, sairia dentro do desejável. Aquele tiro deixara inevitáveis sequelas.

Sem perda do porte altivo e o olhar de campeão, o capa preta não podia evitar de mancar - a pata ferida perdera altura e uma certa mobilidade.

Em poucas palavras, Vicentão relatou o acontecido ao proprietário do animal, desculpando-se pela demora em devolvê-lo.

- "De que me serve esse cão manquitola?! Acha que gastei pouco para adquiri-lo?! Já que o inutilizou, leve-o de volta. Se o deixar por aqui, mandarei sacrifica-lo. Chega de despesas!"

Vicentão ouvia perplexo. Sentia as proporções do egoísmo humano. O pobre cão, apesar das credenciais, não passava de um objeto descartável, inútil e desprezível, tão só por ser defeituoso. Nada de afeto, nada de considerações, nem mesmo pelas vitórias anteriores.

Graças às circunstâncias, Vicente viera preparado para enfrentar qualquer reação menos branda, já que atentara contra a vida do animal, sendo responsável pelo aleijão. Porém, não contava com o repúdio! Coisa que feria sua sensibilidade de homem, ainda que rude! Concluiu com desgosto que seu amigão bem que merecia outro dono.

Sem conter a emoção, abaixou-se abraçando com ternura o pescoço fidalgo. Levou-o, agora, de volta para casa - todo seu e de alma em festa!

Sim... Agora pertenciam-se. Completavam-se. O nome ligado ao "pedigree" foi relegado. Substituído, simplesmente por Amigão, agora definitivo e com maiúscula.

Vicentão por sua vez, passou a não mais odiar os cães. Nem havia motivos para tal, os demais eram conservados à distância pelas presas ameaçadoras daquele cão pastor manco, mas ainda líder. Aos poucos, todos se integraram à nova família.

Não mais hostilizado, nem solitário, agora mais Vicente do que Vicentão, aquele homem passou a ser aguardado com latidos festivos e escoltado por uma alvoroçada matilha de vira-latas das mais variadas cores e tamanhos.

O amor bem pode levar ao ódio. Por sua vez, poderá o ódio levar ao amor? Personagens espontâneos de um poema já nascido rimado, Vicentão e Amigão por aí andam, e, provam que sim!

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 94

Ninguém é mais do que ninguém. Somos todos iguais seres vivos. Alguém pode me dizer por que está neste mundo? Veio de onde? Vai para onde? Brigas, escaramuças, correrias . . . Para que? E nossas companhias, seres outros, o que fazem?

Em bonança, em contemplação!

Muitos de nós gostamos tanto de buscar, pensar quase constantemente. E eu pergunto: Será a melhor ideia ? "Pensar cansa", - disse o psicólogo Mathias Pessiglione, - "o trabalho mental exaustivo resulta em uma alteração fisiológica real".

Precisamos parar e descansar. A vida serena em contemplação será sempre necessária e dadivosa - um pôr do sol no horizonte,as glicínias floridas, a cantoria-algazarra do casal joão-de-barro. o riacho cantarolando. E as estrelas? Abrir os olhos, descortinar sem pensar. Que cenários para contemplarmos!

O velho mestre Lao Tsé dizia que "nada é impossível a quem pratica a contemplação. Com ela tornamo-nos senhores do mundo". Ele que ensinava para a vida simples e a obtenção de paz absoluta.

Fonte: Texto enviado pelo autor

Francisco José Pessoa (Chuva, sorriso e lágrimas)

A vida se nos apresenta sempre em dupla via, quando o sim e o não fazem mesuras e nos dão passagem.

Quando é noite em tempo de inverno, e a lua se esconde por detrás de densas nuvens, nós, poetas, nos sentimos órfãos. Foi-se com ela a nossa inspiração. Os namorados, ao contrário, não se queixam, pois, versejam aos seus modos, agasalhando-se um ao outro, sob o negrume do céu... para nós, sem graça.

Alegria do sertanejo, a chuva é o pranto alegre de Deus por nos fazer felizes. Nem tanto nem tão pouco.

No sertão, o chão responde vicejando. O córrego se enche das lágrimas divinas e batiza-se de riacho, que vai derramar seu pranto no rio seco que hiberna. Este, vivificado, corre em busca do mar na tentativa de adocicá-lo.

O citadino, com morada próxima do mar, tendo o vento leste como abanador, não se queixa tanto do mormaço que lhe calça os pés. Na periferia da cidade, pedaços de chão esquecidos onde habitam os esquecidos. A chuva, antes alegria liquefeita, torna-se lágrima triste de Deus que chora por seus filhos discriminados.

Proliferam mazelas. Os barracos ribeirinhos são molduras que retratam a realidade de um povo triste. Sofrido, Enganado. Valorizado.

Chuva no sertão.,. Na cidade... E rosa e espinho. É sorriso e pranto. É choro, é canto. É cova, é ninho!

"Hoje, eu vou fazer uma prece a Deus Nosso Senhor, para a chuva parar de molhar o meu divino amor".

"Meu Deus, perdoe esse pobre coitado que reza pra chuva cair sem parar".

E a chuva, dádiva de Deus, a mostrar suas duas faces, mesura e nos dá passagem!

Fonte: Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013. Enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Poesia em pílulas)

 
Se vivesse hoje entre nós, será que Castro Alves escreveria o “Navio Negreiro”? Talvez até sim, e tão bonito quanto. O difícil seria encontrar leitor para tão longo e magistral poema, visto que tudo é tão corrido nestes tempos loucos.


Daí que a tendência é concentrar poesia em textos curtinhos, como se faz na trova ou no haicai. A trova tem quatro versos, correspondendo a 28 notas musicais. O haicai tem três versos, correspondendo a 17 notas. Uma trova se diz em oito segundos, um haicai em apenas seis.

Na trova tenho mais experiência. No haicai há certas normas que só os bambambans conseguem seguir ao pé da letra, porém arrisco fazer uns versinhos à minha moda. Cito alguns exemplos. Sugiro ler devagarinho, para fruir bem cada um.

· Assanhadas rosas.
Disputam a preferência
de um raio de sol.

· Chocados os ovos,
há o choque dos seres novos.
E a vida prossegue.

· Flores na enxurrada.
Vão ter afinal bom hálito
as bocas de lobo.

· Os passantes param.
Carregadinhos de flores
os jacarandás.

· Klash klash klash.
Brincando de pula-pula
no laguinho as rãs.

· De novo nas ruas
o encanto das pernas nuas.
Viva a primavera.

· Pombo sobre pomba.
Virão logo fazer ninho
em minha janela.

· Suaves passeios.
O vô leva o neto ao bosque
para ouvir gorjeios.

· Mão de jardineiro.
Num leve toque de artista
faz do esterco a flor.

· Florzinha silvestre
no jardim do shopping-center.
Êxodo rural.

· Almocinho a dois.
Tico-tico come um tico
do fubá da tica.

· Sabiá caçando.
Nem só de gorjeios vive,
mas também de insetos.

· Deixa o beija-flor
um selinho em cada rosa.
E elas gostam... ahhhh.

· Abelha se aninha
no colo do girassol.
Vai ter mel quentinho.

· Mosca na parede.
Avisem à lagartixa
que o jantar chegou.

· Gari, no capricho,
colhe pétalas no asfalto.
São flores, não lixo.

· No meio do pasto
um ponto de exclamação.
Último coqueiro.

· Outrora cantavam
de tardezinha as cigarras.
Onde mora o outrora?

· A pombinha desce
numa imagem de Jesus.
Pousa a paz na luz.

· Teste de audição.
Canta ao longe um pintassilgo
e eu escuto, oba.

Sujaram meu rio.
Ele, que lavava as gentes,
não lavou as mentes.

· Zunzunzum... zunzum...
É um pernilongo brincando
de fórmula um.

· Casal de velhinhos
na janela olhando a Lua.
Tão longe a de mel...

· Tanta coisa boa
virou coisa do passado.
Por exemplo: nós.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 19-10-2023)

Fonte: Texto enviado pelo autor

Contos do Paraná ("Falcão", de Nilson Monteiro)


Que magias trouxe em suas asas carijós, que romperam 25 mil quilômetros à procura do sol? Que mistérios lhes foram reservados em meio às espécies para merecer dos imperadores chineses extrema consideração, símbolo de prestígios e poder, intocável, que provoca decapitação a quem lhe atravesse a tirar a vida?

Os milhares de olhos grudaram no topo do edifício Associação Rural, no coração de Londrina, à procura da majestade, indiferente, exposta às lambidas do sol na cidade verânica, feito lagarto.

Posudo, estrela, transformado em brilho municipal. Mais procurado que manchete, provocou torcicolo em criança e adultos. Assanhou. Solitário, desde quando despediu-se do gélido Hemisfério Norte. Solitárío, no pano azul do céu londrinense. Solitário, no temor às outras aves. Seu voo é certeiro em direção às vitimas - pombas, pardais e outras aves anarquistas nas frondosas     árvores da praça.

Impiedoso: mata. Feito carcará no sertão nordestino. Fome na favela do O.K. Porém nem tudo é prepotência.

Os pequenos pássaros vingam-se de sua beleza pela própria natureza, comendo insetos envenenados por inseticida. Ele, ao alimentar-se dos pássaros, destrói sua realeza, extingue sua espécie.

Para se manter, é necessário voar mundo. No ano passado, na mesma época, também encantou Londrina, com suas penas carijós, e só a abandonou quando o inverno veio chegando, manso, cinza.

"Espécie esquisita", resmungou Valdevino Cruz, zelador do edifício onde a majestade fez sua morada.

Ele, peregrino, a nova atração desta aventureira cidade de pouco mais de meio século, parece rejeitar o adjetivo. Posa, sim, como a ave mais perfeita do mundo. Este, o que pousou na curiosidade londrinense, parece certo disso. Outros de sua raça, parece lembrar, vivem em palácios como os da rainha Elizabeth ou do então primeiro-ministro soviético Tchernenko ou de reis da Arábia Saudita.

Paradão, com suas asas recolhidas, parece endossar o valor que os homens estabeleceram para sua espécie, Quem olha para sua beleza sabe porque os Papas, na Idade Média, o preservavam tanto, chegando a crucificar atrevidos que sonhassem em matar um deles.

Paradão, parece debochar de armadilhas, arapucas, gaiolas, estilingues, setas, cadeias quaisquer. Ninguém consegue passar ileso ao belo. Há até o caso de um velhinho, no Centro Comercial, que deixou de procurar pernas carnudas com seu binóculo para fixar suas vistas, já fracas, nas penas. Fique sabendo até que algumas lojas, asfixiadas pela recessão, receberam um novo sopro de vida com a venda maiúscula, de binóculos. Ontem cedo, porém, nuvens carrancudas atrapalharam o espetáculo: definitivamente, o peregrino não gosta de frio e não veio para posar em seu palco. Escondeu-se?

Frustrou a quem queria endoidar com a sua beleza. Bateu asas à procura do Sol? Foi raptado por ornitólogos? Quem perdeu, perdeu, vaticinou Valdevino. É provável que volte, quem sabe? Quem sabe deste cigano? Ano que vem, talvez, a cidade repita uma pergunta surrada neste dia: "Já viu???"
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Nilson Monteiro, jornalista e poeta.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.
Imagem por JFeldman

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capítulo 19: Um pouco mais de causos

No fim de tarde, depois da lida, os peões se prepararam para o churrasco do armazém do seu Feliciano. Escolheram a melhor roupa, pois estavam sempre à espreita de arranjarem uma china bonita para encerrar a noite.

A noite estava fria, o céu escuro, mas gaúcho não teme friagem alguma.

- Boa noite, Feliciano.

- Boa noite, Pedro.

- Me serve um trago.

Os outros foram chegando atrás e o responsável pelo fogo de chão naquela noite foi o Juca. E estava acompanhado de sua esposa.  

- Não disse, quando não é noite de lua ele aparece, cochichou Juca ao pé do ouvido de Juliano.

No balcão, seu Feliciano ia servindo os clientes entre uma ajeitada e outra de seus largos bigodes.

Arlindo, peão de Boitatá, apareceu com a namorada, uma loira de cabelos cacheados, desconhecida na região.

Simão, se dizia enamorado, mas andava sempre sozinho. Não chegava a ser um alcoólatra, mas às sextas-feiras de churrascos no armazém, era o que mais bebia.

Para alegrar a noite sem lua, seu Feliciano começou a cantarolar umas músicas tradicionalistas e logo todos se alegraram e começaram a puxar prosa. E como gostavam de causos.

Simão, já empolgado, começou a contar a Arlindo que numa noite de caça nas terras vizinhas, teve de enfrentar a terrível cobra de fogo, Boitatá.

- Vocês gostam dessas invencionices, ora é causo sobre lobisomem, ora é causo de cobra de fogo. Já disse que não acredito em nada disso. – disse Arlindo.

- Verdade, amigo. Tava perdido no meio do mato escuro, quando de repente senti uma luz vindo em direção às minhas costas. Ao olhar para trás, quase morri de completo susto. A bicha era enorme, mais luminosa que um raio e veio na minha direção. Saí correndo, tropecei num tronco, caí, e ao levantar a cabeça, dei de cara com a Vó Gorda. “O que a senhora está fazendo por aqui?” perguntei, surpreso. Ela começou a dizer umas palavras estranhas e a fazer uns gestos mais estranhos ainda com as mãos, com o olhar fixo sobre a serpente de fogo. Olhei pra trás novamente, o clarão cessou, olhei pra frente, a Vô havia sumido. Pensei: “será que é possível ficar louco, assim, do nada? Só depois entendi: era a alma dela que foi me salvar da cobra maldita.”  

- Alma? Que alma, tchê?  A Vô não tá morta pra ficar por aí fazendo aparição. Foi a cachaça que te fez ter essas visagens – disse Arlindo.

Todos riram. E até quem acreditava no sobrenatural, achou a história meio estranha...

- Vão rindo... Deve ter um sentido daquele pedaço de chão se chamar Boitatá. Depois fiquei sabendo de outros casos piores, envolvendo essa cobra. E tudo no mesmo lugar. Mas nem vou contar. Deixa pra lá...   

As horas foram passando, a boa carne sendo degustada. Mais tarde, veio uma surpresa: seu Feliciano havia contratado umas chinas da cidade para que não faltasse par para um arrasta pé. E eis que junto das moças, surgiu ele, senhor Antônio.

E o baile prosseguiu até o raiar do dia.

Fonte: Texto enviado pela autora.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Varal de Trovas n. 589

 

Mensagem na garrafa – 12 -


Alexandra Dias Ribeiro


O TEMPO E OS OLHOS QUE FALAM POR SI
    
Sou uma mulher como outra qualquer. Como consequência adoro um espelho! Em algumas ocasiões fujo deles, temo a resposta à fatal pergunta: “Espelho, espelho meu…”.

Nesta noite foi diferente de todas as passadas. Após rever antigas fotografias, resolvi tirar a prova dos nove. Busquei por mim mesma vestígios daquela menina de quinze anos com a atual.

Em uma mão a foto antiga, amarelada pelo tempo. Parada em frente ao espelho tudo o que vi foi uma estranha, que assim como a foto trazia marcas do tempo. Apenas uma coisa aquelas duas pessoas tinham em comum… Os olhos. Não é por menos que dizem que nossos olhos são o espelho da alma.

O fato é que pela primeira vez em muitos anos enxerguei-me. Aquele rosto pareciam pertencer a outra pessoa, no fundo eu ainda era aquela menina de outrora.

A foto acabou esquecida em minha mão. Os olhos da estranha me olhavam profundamente desvendando segredos que eu achava que estavam esquecidos. Que bobagem a minha, quando acreditei por tanto tempo que era imutável ao tempo! Gozado, os anos deixaram marcas profundas em minha pele, mas não afetaram aqueles olhos.

Passou-se algum tempo e continuei olhando aquele fantasma diante de mim. Agora percebia que durante muito tempo procurara o espelho, mas apenas via o que deseja ver, não a realidade. Naquele momento surge do nada uma borboleta, bela por sinal, dessas coloridas que enfeitam o jardim, havendo uma coincidência. Logo atrás de mim havia pendurado um quadro. Não fora pintado por ninguém famoso, e a imagem era muito clara para se ter interpretações. Era simplesmente uma borboleta. Pintada de maneira tão realista que mais parecia uma que realmente estivesse pousado ali. Suas asas eram de um colorido vibrante, como o arco íris, contornado de um grafite. Nunca soube ao certo o porquê de minha fascinação por aquele quadro. Passei a mão na figura sentindo sua textura, acompanhando seu relevo. Difícil dizer quanto tempo fiquei ali, talvez minutos ou horas. Mas independente do tempo, foi o suficiente para eu entender o motivo daquela fascinação pelo o quadro. Sem perceber comparei-me com ela. Primeiro é simplesmente uma lagarta, depois se recolhe em seu casulo e quando volta para ver o sol o milagre aconteceu… É uma borboleta. Eu também apesar de que por pontos diferentes também já estive em um casulo, ou melhor, ainda estava.

Voltei àquela estranha no espelho… Ela continuava lá. Espreitando-me, como se perguntasse “E aí chegou alguma conclusão?”. Só que havia algo naquele olhar que eu não havia reparado antes, estavam risonhos.

Diante disso sorri, mostrando para aqueles notáveis olhos que compreendia e eles pareciam concordar… Somos como um saboroso vinho… quanto mais tempo tem a safra, se é melhor. Já dizia alguém: Mais vale a experiência, do que quantos aniversários se comemorou.

Adeus casulo.

Machado de Assis (Fulano)

Venha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão. Conheceu-o? Era um homem de cerca de sessenta anos. Morreu ontem, dois de janeiro de 1884, às onze horas e trinta minutos da noite. Não imagina a força de ânimo que mostrou em toda a moléstia. Caiu na véspera de finados, e a princípio supúnhamos que não fosse nada; mas a doença persistiu, e ao fim de dois meses e poucos dias a morte o levou.

Eu confesso-lhe que estou curioso de ouvir o testamento. Há de conter por força algumas determinações de interesse geral e honrosas para ele. Antes de 1863 não seria assim, porque até então era um homem muito metido consigo, reservado, morando no caminho do Jardim Botânico, para onde ia de ônibus ou de mula. Tinha a mulher e o filho vivos, a filha solteira, com treze anos. Foi nesse ano que ele começou a ocupar-se com outras coisas, além da família, revelando um espírito universal e generoso. Nada posso afirmar-lhe sobre a causa disto. Creio que foi uma apologia de amigo, por ocasião dele fazer quarenta anos. Fulano Beltrão leu no “Jornal do Comércio”, no dia cinco de março de 1864, um artigo anônimo em que se lhe diziam coisas belas e exatas:--bom pai, bom esposo, amigo pontual, cidadão digno, alma levantada e pura. Que se lhe fizesse justiça, era muito; mas anonimamente, era raro.

– Você verá, disse Fulano Beltrão à mulher, você verá que isto é do Xavier ou do Castro; logo rasgaremos o capote.

Castro e Xavier eram dois habituados da casa, parceiros constantes do voltarete e velhos amigos do meu amigo. Costumavam dizer coisas amáveis, no dia cinco de março, mas era ao jantar, na intimidade da família, entre quatro paredes; impressos, era a primeira vez que ele se benzia com elogios. Pôde ser que me engane; mas estou que o espetáculo da justiça, a prova material de que as boas qualidades e as boas ações não morrem no escuro, foi o que animou o meu amigo a dispersar-se, a aparecer, a divulgar-se, a dar à coletividade humana um pouco das virtudes com que nasceu. Considerou que milhares de pessoas estariam lendo o artigo, à mesma hora em que o lia também; imaginou que o comentavam, que interrogavam, que confirmavam, ouviu mesmo, por um fenômeno de alucinação que a ciência há de explicar, e que não é raro, ouviu distintamente algumas vozes do público. Ouviu que lhe chamavam homem de bem, cavalheiro distinto, amigo dos amigos, laborioso, honesto, todos os qualificativos que ele vira empregados em outros, e que na vida de bicho do mato em que ia, nunca presumiu que lhe fossem -tipograficamente – aplicados.

– A imprensa é uma grande invenção, disse ele à mulher.

Foi ela, D. Maria Antonia, quem rasgou o capote; o artigo era do Xavier. Declarou este que só em atenção à dona da casa confessava a autoria; e acrescentou que a manifestação não saíra completa, porque a ideia dele era que o artigo fosse dado em todos os jornais, não o tendo feito por havê-lo acabado às sete horas da noite. Não houve tempo de tirar cópias. Fulano Beltrão emendou essa falta, se falta se lhe podia chamar, mandando transcrever o artigo no “Diário do Rio” e o “Correio Mercantil”.

Quando mesmo, porém, este fato não desse causa à mudança de vida do nosso amigo, fica uma coisa de pé, a saber, que daquele ano em diante, e propriamente do mês de março, é que ele começou a aparecer mais. Era até então um casmurro, que não ia ás assembleias das companhias, não votava nas eleições políticas, não frequentava teatros, nada, absolutamente nada. Já naquele mês de março, a vinte e dos ou vinte ou vinte e três, presenteou a Santa Casa da Misericórdia com um bilhete da grande loteria de Espanha, e recebeu uma honrosa carta do provedor, agradecendo em nome dos pobres. Consultou a mulher e os amigos, se devia publicar a carta ou guarda-la, parecendo-lhe que não a publicar era uma desatenção. Com efeito, a carta foi dada a vinte e seis de março, em todas as folhas, fazendo uma delas comentários desenvolvidos acerca da piedade do doador. Das pessoas que leram esta noticia, muitas naturalmente ainda se lembravam do artigo do Xavier, e ligaram as duas ocorrências: «Fulano Beltrão é aquele mesmo que, etc.» primeiro alicerce da reputação de um homem.

É tarde, temos de ir ouvir o testamento, não posso estar a contar-lhe tudo. Digo-lhe sumariamente que as injustiças da rua começaram a ter nele um vingador ativo e discursivo; que as misérias, principalmente as misérias dramáticas, filhas de um incêndio ou inundação, acharam no meu amigo a iniciativa dos socorros que, em tais casos, devem ser prontos e públicos. Ninguém como ele para um desses movimentos. Assim também com as alforrias de escravos. Antes da lei de 28 de setembro de 1871, era muito comum aparecerem na Praça do Comércio crianças escravas, para cuja liberdade se pedia o favor dos negociantes. Fulano Beltrão iniciava três quartas partes das subscrições, com tal êxito, que em poucos minutos ficava o preço coberto.

A justiça que se lhe fazia, animava-o, e até lhe trazia lembranças que, sem ela, é possível que nunca lhe tivessem acudido. Não falo do baile que ele deu para celebrar a vitória de Riachuelo, porque era um baile planeado antes de chegar a noticia da batalha, e ele não fez mais do que atribuir-lhe um motivo mais alto do que a simples recreação de família, meter o retrato do almirante Barroso no meio de um troféu de armas navais e bandeiras no salão de honra, em frente ao retrato do imperador, e fazer, à ceia, alguns brindes patrióticos, como tudo consta dos jornais de 1865.

Mas aqui vai, por exemplo, um caso bem característico da influência que a justiça dos outros pode ter no nosso procedimento. Fulano Beltrão vinha um dia do tesouro, aonde tinha ido tratar de umas décimas. Ao passar pela igreja da Lampadosa, lembrou-se que fora ali batizado; e nenhum homem tem uma recordação destas, sem remontar o curso dos anos e dos acontecimentos, deitar-se outra vez no colo materno, rir e brincar, como nunca mais se ri nem brinca. Fulano Beltrão não escapou a este efeito; atravessou o adro (vestíbulo), entrou na igreja, tão singela, tão modesta, e para ele tão rica e linda. Ao sair, tinha uma resolução feita, que pôs por obra dentro de poucos dias: mandou de presente à Lampadosa um soberbo castiçal de prata, com duas datas, além do nome do doador– a data da doação e a do batizado. Todos os jornais deram esta noticia, e até a receberam em duplicata, porque a administração da igreja entendeu (com muita razão) que também lhe cumpria divulga-la aos quatro ventos.

No fim de três anos, ou menos, entrara o meu amigo nas cogitações públicas; o nome dele era lembrado, mesmo quando nenhum sucesso recente vinha sugeri-lo, e não só lembrado como adjetivado. Já se lhe notava a ausência em alguns lugares. Já o iam buscar para outros. D. Maria Antonia via assim entrar-lhe no Éden a serpente bíblica, não para tenta-la, mas para tentar a Adão. Com efeito, o marido ia a tantas partes, cuidava de tantas coisas, mostrava-se tanto na rua do Ouvidor, à porta do Bernardo, que afrouxou a convivência antiga da casa. D. Maria Antonia disse-lhe. Ele concordou que era assim, mas demonstrou-lhe que não podia ser de outro modo, e, em todo caso, se mudara de costumes, não mudara de sentimentos. Tinha obrigações morais com a sociedade; ninguém se pertence exclusivamente; daí um pouco de dispersão dos seus cuidados. A verdade é que tinham vivido demasiadamente reclusos; não era justo nem bonito. Não era mesmo conveniente; a filha caminhava para a idade do matrimônio, e casa fechada cria morrinha (catinga) de convento; por exemplo, um carro, porque é que não teriam um carro? D. Maria Antonia sentiu um arrepio de prazer, mas curto; protestou logo, depois de um minuto de reflexão.

--Não; carro para que? Não; deixemo-nos de carro.

--Já está comprado, mentiu o marido.

Mas aqui chegamos ao juízo da provedoria. Não veio ainda ninguém; esperemos à porta. Tem pressa? São vinte minutos no máximo. Pois é verdade, comprou uma linda vitória; e, para quem, só por modéstia, andou tantos anos ás costas de mula ou apertado num ônibus, não era fácil acostumar-se logo ao novo veiculo. A isso atribuo eu as atitudes salientes e inclinadas com que ele andava, nas primeiras semanas, os olhos que estendia a um lado e outro, à maneira de pessoa que procura alguém ou uma casa. Afinal acostumou-se; passou a usar das atitudes reclinadas, embora sem um certo sentimento de indiferença ou despreocupação, que a mulher e a filha tinham muito bem, talvez por serem mulheres. Elas, aliás, não gostavam de sair de carro; mas ele teimava tanto que saíssem, que fossem a toda a parte, e até a parte nenhuma, que não tinham remédio senão obedecer-lhe; e, na rua, era sabido, mal vinha ao longe a ponta do vestido de duas senhoras, e na almofada um certo cocheiro, toda a gente dizia logo:--aí vem a família de Fulano Beltrão. E isto mesmo, sem que ele talvez o pensasse, tornava-o mais conhecido.

No ano de 1868 deu entrada na política. Sei do ano porque coincidiu com a queda dos liberais e a subida dos conservadores. Foi em março ou abril de 1868 que ele declarou aderir à situação, não à socapa, mas estrepitosamente. Este foi, talvez, o ponto mais fraco da vida do meu amigo. Não tinha ideias políticas; quando muito, dispunha de um desses temperamentos que substituem as ideias, e fazem crer que um homem pensa, quando simplesmente transpira. Cedeu, porém, a uma alucinação de momento. Viu-se na câmara vibrando um à parte, ou inclinado sobre a balaustrada, em conversa com o presidente do conselho, que sorria para ele, numa intimidade grave de governo. E aí é que a galeria, na exata acepção do termo, tinha de o contemplar. Fez tudo o que pode para entrar na câmara; a meio caminho caiu a situação. Voltando do atordoamento, lembrou-se de afirmar ao Itaboraí o contrario do que dissera ao Zacarias, ou antes a mesma coisa; mas perdeu a eleição, e deu de mão à política. Muito mais acertado andou, metendo-se na questão da maçonaria com os prelados. Deixara-se estar quedo, a princípio; por um lado, era maçon; por outro, queria respeitar os sentimentos religiosos da mulher. Mas o conflito tomou tais proporções que ele não podia ficar calado; entrou nele com o ardor, a expansão, a publicidade que metia em tudo; celebrou reuniões em que falou muito da liberdade de consciência e do direito que assistia ao maçon de enfiar uma opa (manto); assinou protestos, representações, felicitações, abriu a bolsa e o coração, escancaradamente.

Morreu-lhe a mulher em 1878. Ela pediu-lhe que a enterrasse sem aparato, e ele assim o fez, porque a amava deveras e tinha a sua última vontade como um decreto do céu. Já então perdera o filho; e a filha, casada, achava-se na Europa. O meu amigo dividiu a dor com o público; e, se enterrou a mulher sem aparato, não deixou de lhe mandar esculpir na Itália um magnífico mausoléu, que esta cidade admirou exposto, na rua do Ouvidor, durante perto de um mês. A filha ainda veio assistir à inauguração. Deixei de os ver uns quatro anos. Ultimamente surgiu a doença, que no fim de pouco mais de dois meses o levou desta para a melhor. Note que, até começar a agonia, nunca perdeu a razão nem a força da alma. Conversava com as visitas, mandava-as relacionar, não esquecia mesmo noticiar às que chegavam, as que acabavam de sair; coisa inútil, porque uma folha amiga publicava-as todas. Na manhã do dia em que morreu ainda ouviu ler os jornais, e num deles uma pequena comunicação relativamente à sua moléstia, o que de algum modo pareceu reanima-lo. Mas para a tarde enfraqueceu um pouco; à noite expirou.

– Vejo que está aborrecido. Realmente demoram-se... Espere; creio que são eles. São; entremos. Cá está o nosso magistrado, que começa a ler o testamento. Está ouvindo? Não era preciso esta minuciosa genealogia, excedente das práticas tabeliãs; mas isto mesmo de contar a família desde o quarto avô prova o espírito exato e paciente do meu amigo. Não esquecia nada. O cerimonial do saimento é longo e complicado, mas bonito. Começa agora a lista dos legados. São todos peões; alguns industriais. Vá vendo a alma do meu amigo. Trinta contos...

Trinta contos para que? Para servir de começo a uma subscrição pública destinada a erigir uma estátua a Pedro Alvares Cabral. «Cabral, diz ali o testamento, não pode ser olvidado dos brasileiros, foi o precursor do nosso império». Recomenda que a estátua seja de bronze, com quatro medalhões no pedestal, a saber, o retrato do bispo Coutinho, presidente da Constituinte, o de Gonzaga, chefe da conjuração mineira, e o de dois cidadãos da presente geração «notáveis por seu patriotismo e liberalidade» á escolha da comissão, que ele mesmo nomeou para levar a empresa a cabo.

Que ela se realize, não sei; falta-nos a perseverança do fundador da verba. Dado, porém, que a comissão se desempenhe da tarefa, e que este sol americano ainda veja erguer-se a estátua de Cabral, é da nossa honra que ele contemple num dos medalhões o retrato do meu finado amigo. Não lhe parece? Bem, o magistrado acabou, vamos embora.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =
Originalmente publicado em Gazeta de Notícias, em 1884

Fonte: Machado de Assis. Histórias sem data. Publicado em 1884. Disponível em Domínio Público. (Convertido para o português atual por J. Feldman) 

Caldeirão Poético LXIX (O livro em versos)


Alberto Martins

(Santos/SP)

O EDITOR

Passa o dia entre livros
Que não existem, ainda estão por ser escritos
Ou nunca chegarão a ser impressos.
Não trabalha no campo
Mas tem as mãos escalavradas:
A pele dos dedos descama feito pergaminho.
De noite voltam para casa
Ele e sua sombra – enxertada de palavras.
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Alphonsus de Guimaraens Filho
(Mariana, 1918 – 2008, Rio de Janeiro/RJ)

DEVORAR

Devorar esses livros como quem
Come folhas de alface. Devorá-los,
De muitos condimentos salpicá-los,
Para que afinal nos saibam bem.

Não feri-los, roê-los, esmagá-los.
Devorá-los com a fome que nos vem
Da esperança talvez de iluminá-los,
De revelá-los sem tristeza, sem.

Não impulso de papirofagia,
Ou de quem come cinza. Tão-somente
Ir ao cerne da noite que os retém.

Devorá-los com certa nostalgia,
Em nós fundi-los derradeiramente,
E então deixá-los como lhes convém.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

Eugénio de Andrade
(Fundão/Portugal, 1923 – 2005, Porto/Portugal)

OS LIVROS

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais,
tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

Jean De La Rivière
(França, 1338 – 1365)

HOMEM...

Homem, para viver satisfeito,
Para aprender a viver, leia!
E não perca seu tempo,
Procurando defeitos nos livros.
Nenhum livro é tão perfeito
Que nele algo não possa ser criticado.
Mas também nenhum é tão mal feito
Que nele algo não possa ser aproveitado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

João Pedro Mésseder
(Porto/Portugal)

UM LIVRO

Levou-me um livro em viagem
não sei por onde é que andei.
Corri o Alasca, o deserto
andei com o sultão no Brunei?
Pra falar verdade, não sei.

Com um livro cruzei o mar,
não sei com quem naveguei.
Com marinheiros, corsários,
tremendo de febres e medo?
Pra falar verdade não sei.

Um livro levou-me p’ra longe
não sei por onde é que andei.
Por cidades devastadas
no meio da fome e da guerra?
Pra falar verdade não sei.

Um livro levou-me com ele
até ao coração de alguém
e aí me enamorei –
de uns olhos ou de uns cabelos?
Pra falar verdade não sei.

Um livro num passe de mágica
tocou-me com o seu feitiço:
Deu-me a paz e deu-me a guerra,
mostrou-me as faces do homem
– porque um livro é tudo isso.

Levou-me um livro com ele
pelo mundo a passear.
Não me perdi nem me achei
– porque um livro é afinal…
um pouco da vida, bem sei.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

Paulo Leminski
(Curitiba/PR, 1944 – 1989)

LEITE, LEITURA

letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

Ricardo Azevedo
(São Paulo/SP)

AULA DE LEITURA

A leitura é muito mais
do que decifrar palavras.
Quem quiser parar pra ver
pode até se surpreender:
vai ler nas folhas do chão,
se é outono ou se é verão;
nas ondas soltas do mar,
se é hora de navegar;
e no jeito da pessoa,
se trabalha ou se é à-toa;
na cara do lutador,
quando está sentindo dor;
vai ler na casa de alguém
o gosto que o dono tem;
e no pelo do cachorro,
se é melhor gritar socorro;
e na cinza da fumaça,
o tamanho da desgraça;
e no tom que sopra o vento,
se corre o barco ou vai lento;
também na cor da fruta,
e no cheiro da comida,
e no ronco do motor,
e nos dentes do cavalo,
e na pele da pessoa,
e no brilho do sorriso,
vai ler nas nuvens do céu,
vai ler na palma da mão,
vai ler até nas estrelas
e no som do coração.
Uma arte que dá medo
é a de ler um olhar,
pois os olhos têm segredos
difíceis de decifrar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

Tony Roberson de Mello Rodrigues
(São José/SC)

SAUDADE

Aqui em casa,
Que falta nos faz Cecília:
Seus poemas eram lidos
Em família.

Nas tardes de garoa,
Choviam heterônimos:
Que falta nos faz Pessoa!

Redescobrir a pureza humana,
Domesticar os demônios,
Enlouquecer as filigranas...
Falta-nos Quintana.

Pobres dos homens que anseiam
O mundo que mais tarde
Incendeiam...

E o livro, inquieto,
Grita do alto da estante:
- Empoeirou-se o meu instante?

Fonte: Sammis Reachers (seleção e edição). Poemas sobre Sua Majestade, o LIVRO: uma microantologia. ebook.

Irmãos Grimm (A velha mãezinha)

Numa grande cidade, vivia uma pobre velhinha. Certa noite, estava ela muito só, sentada no quarto, pensando em como, primeiro, perdera o marido; depois os dois filhos, um atrás do outro e, sucessivamente, todos os parentes; nesse mesmo dia acabava de perder o seu único amigo, ficando completamente só e abandonada.

Com o coração dilacerado pela angústia, oprimia-a, sobretudo, a perda dos dois filhos e se revoltava contra o destino, chegando até a acusar Deus por lhes ter roubado.

Nisso, enquanto estava mergulhada nos tristes pensamentos, pareceu-lhe ouvir tocar os sinos para a missa matinal. Admirou-se muito de ter passado à noite toda nessa sua angústia, acendeu a lanterna e dirigiu-se à igreja.

Ao aproximar-se, notou que a igreja estava toda iluminada, mas não por círios, como de costume, mas por uma estranha luz crepuscular. E já estava repleta de gente, todos os lugares estavam ocupados; e quando a pobre velha procurou o lugar habitual no banco para sentar-se, encontrou-o também todo ocupado.

Ao fitar aqueles que o ocupavam, reconheceu os seus falecidos parentes aí reunidos, vestidos à moda antiga e de rostos lívidos. Não falavam, nem cantavam, mas pela igreja perpassavam leves sopros e sussurros. Eis que uma velha parenta se levantou, aproximou-se dela e disse-lhe:

– Olha para o lado do altar e lá verás teus filhos. A pobre mãe olhou ansiosamente e viu os dois. Um pendia de uma forca e o outro estava atado a uma roda.

Então a tia acrescentou:

– Vês o que lhes teria sucedido, se Deus os tivesse deixado no mundo e os não tivesse chamado a si quando ainda crianças inocentes? A desolada mãe voltou para casa tremendo e, ajoelhando-se no quarto, agradeceu profundamente a Deus a mercê que lhe fizera e que ela, na cegueira do seu amor, não pudera compreender.

Ao fim de três dias, caiu de cama e morreu.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

Estante de Livros (A filha dos rios, de Ilko Minev)

Com o intuito de homenagear os habitantes da região amazônica e de preservar a história local, Minev descreve com detalhes a paisagem do mundo onde moram nordestinos , portugueses, italianos, espanhóis, árabes e judeus, que desbravaram aquele território imenso desde o primeiro ciclo da borracha.

Romance ambientado na Amazônia, marcado pela história de mulheres resolutas e fortes diante de adversidades rotineiras na segunda metade do século XX. Filhas do rio, apesar do título referir-se, primordialmente, a Maria.

Aborda pontos históricos como o garimpo e seringais, despertando um encanto ou curiosidade na descrição da natureza e da vida social.

A obra inicia com a história de Maria, em uma sucessão de eventos fortemente arraigados na cultura ribeirinha, principalmente de décadas passadas, mostrando a protagonista da adolescência à maturidade de mulher calejada e pilar em sua família. Maria é uma cabocla de olhos verdes. Aos 16 anos, ela é levada de Igarapó Mirim por Adriano, a pedido de sua mãe, Eulalia. Descendo pelo Rio Purus, eles chegam a Surara, onde se instalam. É lá que Maria aprende a cozinhar e que o amor entre ela e Adriano aflora. Maria e Adriano seguem viagem até Manaus, onde conhecem Benjamim Melul e sua esposa Nina e, juntos, partem para Quatro Ases, um seringal na fronteira do Brasil com a Bolívia. Após cinco anos, quando decidem se mudar, o grupo é pego por um surto de febre amarela e apenas Maria e três crianças sobrevivem . Determinada a educar seus dois filhos e Alice, a filha do casal de amigos, Maria trabalha como cozinheira, em uma boate e na draga de prospecção de ouro de Oleg Hazan, um jovem judeu búlgaro.

O ambiente é retratado de forma rústica, isolada e decadente, principalmente em relação ao resgate seringalista.

Na segunda parte o autor apresenta Sandra, que tem uma história ligada a antepassados judaicos e com muitas revelações quanto a trajetória pessoal e de seu povo. O autor fala de eventos ocorridos na Europa que são desconhecidos do grande público, como a organização Zwi Migdal (máfia que atuou no tráfico de mulheres para a América do Sul). Nessa parte os eventos giram em torno do garimpo e sua efervescência comum ligada a bordéis e pirataria.

O livro encerra de forma nostálgica, em uma revisitação dos cenários, deixando em paralelo histórias amazônidas, reais ou fictícias, como tantas que ocorreram ou se passam por aqui.

A história de Maria, retorna apagada na segunda parte, sem o carisma cativante e admirável em sua primeira passagem.

É o segundo romance de Ilko Minev, publicado em 2015, com personagens ligados a "Onde estão as flores?", obra de 2013.

Fontes:
Amazon 

Aparecido Raimundo de Souza (Recordações de um passado que não desgruda)

 NUNCA FUI um sujeito de ir à missa aos domingos, de rezar de joelhos, os pensamentos compenetrados nas palavras do celebrante, as mãos cruzadas em atitude de respeito. Não me recordo de ter acendido velas no cruzeiro, de fazer reverências diante dos santos, e como um bom cristão, molhar o dedo no vidro de água benta e esparramar na cara o sinal da cruz. Tampouco de jogar uns trocadinhos na caixa de ofertas, pedir a bênção do padre... enfim, sempre me portei como um católico pela metade, avesso a estas futilidades que alguns pirús de igreja levam tão a sério que chegam a gozar êxtases religiosos.

Tive uma infância difícil. Desde tenra idade vivi longe dos carinhos maternos. Meu pai, separado de mamãe (que morava no Rio de Janeiro), aparecia de vez em quando, e, nessas escassas erupções, dava os ares da graça para pedir dinheiro ao meu avô. O velho tinha posses e segurava a barra dos dois únicos filhos que tivera com a primeira mulher. Não fosse ele, acho que tanto papai como a tia Nair sucumbiriam de fome e frio. Em outras palavras: colariam as suas imbecilidades em um banheiro de hoteizinhos baratos de beira de estrada.

Em decorrência de uma série de atropelos, me criei num mundo diferente. Na verdade, construí um universo só meu, onde os adultos não entravam. Nem saiam. Os brinquedos que povoavam meus sonhos de garoto, eu os improvisava com caixas de sapatos, caixinhas de fósforos, palitos de sorvete, tampinhas de garrafas e latas de leite em pó e de óleo. Vovô não se dava ao luxo de comprar as novidades que chegavam às lojas especializadas. Para ele, criança precisava de escola, roupas, remédios e calçados. O resto, bem o resto fazia parte de uma lista de eternos supérfluos, sendo, portanto dispensáveis.

Nem rádio para se ouvir uma música existia. Vovô não permitia principalmente televisão. Em hipóteses nenhuma. Vovó Marta (sua segunda mulher), coitada, adorava uma novela que passava às sete horas da noite, e, quando estava quase dando o horário, combinada com a vizinha, dona Clotilde, casa de meia parede, a boa senhora vinha até o muro e gritava. Em outras vezes, batia palmas no portão. E lá ia a pobre longeva correndo, quase aos tropeções para não perder o capítulo do dia. Um pouco antes, punha a ferver, numa panelinha de alumínio, um aparelho de dar injeção juntamente com uma agulha.  

Seu Agenor (marido de dona Clotilde) tinha problemas de saúde e se valendo da doença do infeliz, vovó conseguia acompanhar, com certa regularidade a trama da história. Porém, o que eu mais gostava, neste tempo: os domingos. Não todos, mas especificamente aqueles em que mamãe Ana vinha me visitar. A autora dos meus dias (depois de viajar a noite inteira), chegava muito cedo, aportava com um monte de presentes na bagagem. Isto realmente me fazia no garoto mais feliz na face da terra. Ela passava o dia todo comigo.

Saíamos, íamos a um restaurante, almoçávamos. Eu adorava arroz e filé com fritas. Nunca mudava o prato e a garçonete, quando chegávamos se apressava a mandar preparar o prato. Final de tarde, a caminho de regressar, parávamos numa lanchonete e eu me fartava no tal do misto quente com Coca-Cola. Por volta das oito, mamãe se recompunha para voar para a rodoviária. Ela então se despedia. Uma cena bárbara, recheada de muitas tristezas e lágrimas A sua partida me deixava fora de mim, do chão. Ficava um vazio grande corroendo dentro do meu peito seguido de uma dor muito forte e intensa que varava a noite e custava a passar.

Contudo, a magia do encanto de saber que outro domingo (ainda que não o próximo) igual o último se repetiria depois, me dava forças hercúleas para ficar esperando, trepado numa cadeira, olhando, impaciente pela janelinha que havia na porta da sala. Este postigo me colocava em sintonia com uma rua larga e bonita, cheia de árvores floridas que se perdiam, lá longe, numa curva distante. Noutras vezes, esperava por ela em meu quarto. Aguardava impaciente, nervoso, os olhos injetados de um medo insalubre e mazelento de que ela, por algum motivo, não viesse. Quando não estava dentro de casa, deitava no chão de terra do quintal (que era imenso) e ficava prostrado.

Me invadia uma angústia perturbadora, ao tempo em que arrimado num céu azul acima de mim, alimentava à espera, sempre à espera de que ele desabasse em cima de meus anseios, e, de repente, num piscar mágico do acaso, Papai do céu fizesse mamãe surgir do nada e eu me levantasse do medo mórbido que me envolvia até os cabelos da alma. No tempo do meu tempo, a alma tinha cabelos. Claro, nem sempre acontecia assim. Hoje, aos setenta, não posso dizer que sou totalmente feliz, mas no fundo, sou. Pelo menos um bocadinho. Tenho uma renca considerável de filhos e netos.  Uma, em especial, se fez igual a mim. “Cuspida e escarrada.” Mora longe e fica me esperando chegar todos os domingos, sentada na porta do condomínio, chupando o dedinho, perdida em pensamentos infantis, esquecida em seu mundinho limitado, sabe-se lá sonhando com o quê.

Este fato me faz lembrar nitidamente dos meus tempos de menino de calças curtas, em que, igualmente à minha pequena, eu me olvidava dos demais ao redor e via diante de mim somente a figura elegante e radiosa de mamãe apontando na esquina da rua. Às vezes, o tempo se mesclava refulgido numa agitação inqualificável. Meu Deus, ela se fazia real. Se tornava em carne e osso. Em outras, a minha Felicidade morria lentamente dentro do peito e eu me trancava sem vontade de nada. Me refugiava pelos cantos, os olhos chorosos, o rosto entrelaçado numa solidão coalescente (aderente) e pegadiça, difícil e feroz, que custava um bocado para me largar de vez e ir embora.  
    
Apesar destes contratempos, cheguei até aqui. Me sinto realizado. Não totalmente, mas dá para o gasto. Os filhos cresceram. A minha menina se fez mulher, me deu um neto. Continua chupando o dedinho. Os outros rebentos também se fizeram adultos. Casaram, separaram. Me deram netos. Apesar de toda a tecnologia que temos ao alcance das mãos, nunca telefonam ou mandam recados via WhatsApp. Mamãe, por seu turno, se cansou da vida. Foi embora de vez. Disse adeus num dia que se tornou melancólico e sem volta. Sua ausência me traz à lembrança um porvir agourento e aterrador. Nele não vejo o céu, tampouco o sol. Menos ainda as estrelas cintilantes. As noites do meu “hoje-agora” se fizeram compridas e inauditas.   

Fonte:
Texto enviado pelo autor

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Adega de Versos 114: Washington Daniel Gorosito Pérez

 

Mensagem na Garrafa – 11 -

Henfil

Ribeirão das Neves/MG, 1944 – 1988, Rio de Janeiro/RJ

POR MUITO TEMPO

Por muito tempo, eu pensei que a minha vida fosse se tornar uma vida de verdade.

Mas sempre havia um obstáculo no caminho, algo a ser ultrapassado antes de começar a viver, um trabalho não terminado, uma conta a ser paga. aí sim, a vida de verdade começaria.

Por fim, cheguei à conclusão de que esses obstáculos eram a minha vida de verdade.

Essa perspectiva tem me ajudado a ver que não existe um caminho para a felicidade.

A felicidade é o caminho! Assim, aproveite todos os momentos que você tem.

E aproveite-os mais se você tem alguém especial para compartilhar, especial o suficiente para passar seu tempo; e lembre-se que o tempo não espera ninguém.

Portanto, pare de esperar até que você termine a faculdade; até que você volte para a faculdade; até que você perca 5 kg; até que você ganhe 5 kg; até que seus filhos tenham saído de casa; até que você se case; até que você se divorcie; até sexta à noite até segunda de manhã; até que você tenha comprado um carro ou uma casa nova; até que seu carro ou sua casa tenham sido pagos; até o próximo verão, outono, inverno; até que você esteja aposentado; até que a sua música toque; até que você tenha terminado seu drink; até que você esteja sóbrio de novo; até que você morra; e decida que não há hora melhor para ser feliz do que agora mesmo...

Lembre-se: felicidade é uma viagem, não um destino.

Júlia Lopes de Almeida (Amuletos)

Foi numa das sextas-feiras da Matilde Abranches, que o seu médico, rapaz aliás simpático, afirmou que os homens são maus por culpa das mulheres...

Os dedos de Cecília desfolhavam as notas levíssimas de Ma barque légère e a meu lado Lídia sorvia o aroma de um botão de rosa. Bem comparado, fez-me lembrar um quadro ideal de Diana Cid; Lídia também estava de azul, como a formosa do "Perfume".

— Por culpa das mulheres?! – perguntou a voz empapada de uma mãe de família, que tem por hábito tomar a sério todas as conversas.

— Como desde o princípio do mundo. Agora então a influência da mulher é nefasta. A nossa sociedade cai rapidamente da sua modesta franqueza, que a fazia encantadora, para um esnobismo que a torna ridícula. A preocupação do chique estraga tudo. As portas já se não abrem como antigamente, e procuramos termos para as conversas mais simples! Não há naturalidade nem há simplicidade. A virtude das mulheres, que era para as nossas culpas, como um tronco profundamente enraizado é para as lianas frágeis — um sustentáculo que as eleva e ampara, sente-se abalada e já não nos inspira a confiança de outrora. Como para Bruto, para mim a Virtude não é mais que uma palavra. Bebemos todos do veneno. Agora só o dilúvio.

— Que mal lhe teriam feito as mulheres, sempre gostaria de saber...

— Estragam tudo com a sua imprudência, a sua coquetterie (galantaria) e o seu fanatismo. Basta olhar para uma mulherzinha moderna para a gente perceber que se preocupa com feitiços e é supersticiosa. A quantidade de figas e de amuletos que traz ao pescoço, bem o prova. Em vez de nos ensinarem a sermos simples e cordatos, tornam a vida cada vez mais complexa e difícil.

— Exemplo?

— Nas mínimas coisas ele aparece. Vá o exemplo: convidam-nos para um jantar familiar e dão-nos um banquete em que vagueiam perfumes de flores caras e cheiros de molhos complicados. Aquilo não é o trivial: logo, aquele não é o jantar familiar. Quem ordenou e determinou o menu, não foi certamente o dono, mas a dona da casa. Portanto a atmosfera de falsidade que se respira naquela casa amiga, foi criada pela mulher.

— Ora aí está! São os nossos maridos que trazem dos hotéis e das festas a que assistem a exigência desses molhos complicados, dessas floreiras odoríferas do champagne ruinoso e dos cristais variegados (diversificados) das mesas ricas. São eles que nos sugerem novidades de serviço; e vêm os senhores depois pôr a ridículo a nossa pretensão! Geralmente não somos nós que compramos a prataria e as porcelanas. Que sabemos nós, as mulheres?

— O que adivinham. Oh! E o que as mulheres adivinham! Conheço uma que, sem ter ouvido uma única confidência, sabe que uma certa pessoa evita encontrá-la, porque é vê-la e logo nessa noite perder ao jogo!

— Esse alguém é o senhor. Vê? São os homens que jogam, que ficam amáveis se ganham ou mal humorados se perdem, que tem estragado a nossa alegria. Mas sempre quero agora que me explique: o senhor, que se ri das quatro folhas de trevo e dos corcundinhas de coral que trazemos ao peito, porque foge de cumprimentar uma senhora amiga só pelo receio de que esse encontro fortuito e rápido lhe traga o azar da fortuna?

— Males de raça, minha senhora, coisas que ficam da infância. De algum modo precisamos mostrar que já fomos crianças. Creia que eu até adoro essa senhora!

— Adora-a e evita-a!

— Mas se ela tem jetatura (azar)!

— Use então de um expediente: Quando a vir, pegue em qualquer objeto de ferro. Uma chave, por exemplo. Não traz uma chave consigo?

— É bom?

— É magnífico!

— Não sabia!

A conversa embarafustava por um terreno amável. D. Matilde confessou que deixara de se vestir de azul, porque essa cor lhe trazia infelicidade.

D. Joana citou uma amiga que usava uma liga de cada cor, como portebonheur (amuleto).  Quase todos os presentes tinham a sua mania... Voltou-se então alguém para o velho e sério dr. Braga e perguntou com um pouquinho de dúvida:

— O senhor também usa dessas coisas?

Ele tirou do bolso um caquinho de vidro azulado e disse com seriedade:

— Isto. Podem examinar.

O pedacinho de vidro andou de mão em mão; olharam todos por ele para a luz e concordaram em que não seria fácil encontrar outro tão ordinário!

Dr. Braga explicou:

— Pois, minhas senhoras e senhores, isto não é um simples amuleto, mas um talismã.

— Ainda há disso?!

— Há. Este chama-se o olho da tolerância. Infelizmente, para se ver bem por ele é preciso ter-se passado dos quarenta anos, ter-se gasto o bestunto (cabeça) em muitas observações e curvado a cabeça a duras exigências da sorte... O olho da tolerância, antes de censurar ou de punir a culpa, penetra-lhe a causa, mais disposto a absolvê–la que a castigá-la... Tem a consciência da fragilidade da alma. Antigamente eu sentia como um romancista filósofo que disse: "plus j'aime l'humanité, plus je déteste l'individu."* Hoje não; o indivíduo delinquente é para mim um irmão fraco que devo amar de preferência, porque todas as suas impurezas são consequentes de males, de cuja origem não é só ele o responsável. O olho da tolerância acalma o sistema nervoso e exercita o coração na prática do bem. Quando me sinto arrastar pela indignação ou a cólera contra alguém, respiro com força, saco deste caquinho, domino-me, e, para abater o ímpeto, olho através do vidro, reflito, e uma grande piedade vem substituir o meu primeiro movimento de fúria. Ah! Minhas senhoras, é que não há nada como a tolerância para dar repouso à inquietação das almas!
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*"plus j'aime l'humanité, plus je déteste l'individu."* = “mais eu amo a humanidade, mais eu detesto o indivíduo”.

Fonte: Júlia Lopes de Almeida. Livro das donas e donzelas. Publicado originalmente em 1906. Disponível em Domínio Público.

Isabel Furini (Poemas Infantis) II

A GATINHA MALHADA E A IDOSA


A gata quebra uma bandeja
linda, de mármore rosa.
Deixando zangada a idosa.
E nessa tarde chuvosa,
a velha grita: Gata gulosa,
você quebrou essa bandeja!

Lacrimejam os olhos da idosa.
Era um presente muito querido,
que recebera do finado marido.
- Vou deixar você no pátio,
para que morra de frio.
Agora terá que morar longe.
Talvez na casa do vizinho…
A gatinha, triste, chora.
Miau, miau, miau, miau, miau.

A velhinha arrependida,
Chama a gata de bandida,
Enquanto lhe dá um abraço.
O aconchego de seus braços,
Agrada a sua gata malhada,
Que em poucos minutos dorme.
Fica tranquila, bem relaxada,
Sente aquele carinho enorme
Percebe o quanto é amada.
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A MAÇÃ DANÇARINA

A maçã caiu de uma árvore.
Sentiu-se livre a maçã
E seguindo o ritmo do vento
Ela começou a dançar.

A maçã tinha talento,
Sabia seguir o ritmo do vento
E também bailar chá-chá-chá.
Depois começou a dançar samba.

Ela não conseguia parar...
A maçã somente deitou
de manhã, quando o Sol nasceu.

Mas a maçã ouviu o canto
dos pardais e continuou dançando
perto dos milharais.
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A ORQUESTRA DA FLORESTA

Muito bonita a passarada
que mora nessa floresta
de manhã, ao nascer o Sol,
já começa a fazer festa.

Tem cardeal e choquinha
tem canário e azulão...
Todos muito alegres
cantando com o coração.

O coral é bem treinado,
afinado como orquestra,
Bigodinho é o diretor.
Se acha o rei da floresta!

É um maestro paciente
dirigindo com a batuta
os cantos da passarada
sob o sol ou chuvarada.
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A PALMEIRA

O Ipê amarelo dá lindas flores
e  é visitado pelos beija-flores.
A palmeira é magricela!

Coitadinha da palmeira.
Falou uma cobra fofoqueira
que não gostava da palmeira.

A palmeira, irritada,
disse que ela era muito amada.
E continuou se defendendo:
- Cobra, você foi mal informada.

Palmeiras damos palmito,
damos cocos e açaí,
e nosso aspecto é bonito.

Você só quer criar conflitos.
Cobra, agora chega de fofocas,
você deixa o mundo aflito.
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O CROCODILO E A NOIVA

Uma menina bonita
morava ao lado do rio
e ela se fez amiga
de um pequeno crocodilo.

A menininha cresceu
e o crocodilo também.
Ela o alimentava,
o crocodilo comia bem.

Chegou o dia esperado
da menina, já mulher,
um vestido de noiva,
para casar-se, escolher.

A noiva estava bonita
e a festa muito divertida,
quando entrou o crocodilo
e no bolo deu uma mordida.

Todo mundo ficou assustado,
pois pressentiram o perigo.
Alguns fugiram pela janela
outros, buscaram abrigo.

A noiva gritou: " -Calma, gente!
Esse crocodilo é meu amigo,
além de muito inteligente."
E a festança continuou.

A orquestra tocou lambada,
O crocodilo dançava e cantava.
A noiva, o noivo e o crocodilo
dançaram até de madrugada.
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O GATINHO É UM ARTISTA

O gatinho era pintor.
Ele queria pintar
a palavra amor.

O gatinho procurou uma flor
de pétalas vermelhas
com manchas de cor marrom.

O gatinho preparou uma tela
e copiou essa flor
(que era vermelha e marrom).

E no centro dessa flor
escreveu a palavra AMOR.
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O GATO TOUREIRO

Eu tenho um lindo gato
é um gato muito pequeno,
mas ele enfrenta um touro
e ele o enfrenta sem medo.

Meu gato é toureiro
e quer tourear o dia inteiro.
Ele faz isso sem ficar em perigo
porque o touro é de brinquedo.
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O GRILO, A JOANINHA E O SAPO

Cri-cri-cri, cri-cri-cri
O som estridente do grilo
convida outros grilos a cantar.
A Joaninha ouve o canto
e logo começa a dançar.
A formiga se aproxima
e ensaia passos de dança.
A Lua sobre o jardim
fica olhando a algazarra.
De repente, aparece um sapo
carregando uma guitarra.
O sapo abre a bocarra
e o grilo tenta escapar,
a joaninha assustada
começa a chorar.
O pobre sapo fica triste
pois ele só queria cantar.
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O GUARDA-CHUVA AZUL

Na chuva,
um guarda-chuva azul
voa pela rua
e saúda a Lua.
Uma criança,
com esperança,
corre atrás do guarda-chuva
que dança
no jardim da pequena casa,
no fim da rua.
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VIVA A PRIMAVERA!

Vamos todos desenhar
lindas flores nas janelas.
Vamos alegres cantar,
pois chegou a primavera.

A primavera chegou
com flores e borboletas.
Na praça um músico cego
está tocando trombeta.

Na televisão, o palhaço
fica fazendo piruetas.
As crianças estão contentes
e  dançam alegremente.

Viva! Viva, a primavera!

Fonte: Bondinho dos livros
https://www.bonde.com.br/blogs/bondinho-dos-livros