quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Estante de Livros (“Roque Santeiro ou O Berço do Herói”, de Dias Gomes)


I- Introdução

A peça O berço do herói deveria ter sido encenada pela primeira vez em 1965, mas o Brasil passava pela ditadura militar e, duas horas antes da estréia, a peça foi proibida pela censura. Mais tarde, com o nome de Roque Santeiro, quase virou novela, mas também foi censurada. Toda essa perseguição deve-se ao fato da peça abordar o tema do mito [herói militar], desconstruindo esse mito. Esse era um tema muito delicado para o momento que atravessava o país. Somente em 1985, já com o processo de democratização, a novela foi ao ar, alcançando grande sucesso e tornando personagens inesquecíveis, como o Sinhozinho Malta e a viúva Porcina. É interessante esclarecer que o livro O berço do herói tem o formato de uma peça teatral.

II- Tempo

A história acontece no período da Segunda Guerra Mundial e Roque retorna à Asa Branca quinze anos depois do final da guerra, quando o governo concedeu anistia aos desertores. Porém, é claro que Dias Gomes utiliza esse tempo passado, como forma de se referir ao tempo em que o livro foi escrito, na ditadura militar da década de 60. Por falar de um herói militar, Dias Gomes tentou criticar o comportamento das Forças Armadas e só pôde fazer isso através de uma história fictícia, deslocada do tempo real, ao qual ele se referia.

III- Espaço

A cidade de Asa Branca acaba se transformando em uma metonímia do Brasil.

IV- Personagens

CABO ROQUE: Natural de Asa Branca, foi convocado a participar da Segunda Guerra Mundial, contra os nazistas. No meio da guerra, fugiu e se refugiou cerca de 15 anos na Europa. Antes de ir para a guerra, porém, prometeu à Mocinha que voltaria para buscá-la. Anos depois, quando os desertores receberam anistia do governo, voltou para ver Mocinha e encontrou sua estátua na praça e percebeu que tinha se transformado em herói devido a uma confusão. Sua fuga foi interpretada como um ato de coragem e ele foi tido por toda a cidade como herói de guerra morto. Asa Branca enriqueceu às custas desse mito, tornou-se uma cidade do progresso e Porcina, uma empregada que teve um caso rápido com Roque, ganhou status de viúva de herói. Além dela, Chico Malta, Zé das Medalhas e muitos outros exploravam a imagem e, por isso, se interessavam em manter o mito.

PORCINA: é uma mulher de 35 anos, muito vulgar e despudorada. Morava em Salvador, onde era arrumadeira e se envolvia com os soldados que iam ficar na hospedaria em que ela trabalhava. Foi assim que se relacionou por uns dias com Roque. Um dia, conheceu Chico Malta, morador de Asa Branca e se apaixonaram. Chico decidiu levá-la para Asa Branca, mas tinha medo de ter problemas, porque era casado. Para resolver tudo, ambos inventaram a estória de que ela era a viúva do falecido Cabo Roque que morrera lutando na guerra. Assim, ela ficou rica e respeitada na cidade toda.

SINHOZINHO MALTA [CHICO MALTA]: Fazendeiro rico e chefe político de Asa Branca. Corrupto e sem caráter, enriqueceu explorando o mito de Roque Santeiro.

FLORINDO ABELHA: Prefeito de Asa Branca, sem personalidade, é o homem de confiança de Chico Malta, pois depende de seu prestígio e se submete a ele. Tenta ser um administrador moderno, mas não manda em nada.

DONA POMBINHA: mulher do prefeito e mãe de Mocinha. Sua religiosidade se aproxima do fanatismo.

MOCINHA: Filha de Dona Pombinha e Florindo. Foi a primeira namorada de Roque e depois que ele foi para a guerra e espalhou-se a notícia de sua morte, decidiu ser casta. Tem um temperamento marcado pela frustração sexual. Encarna a figura da ‘virgem abandonada’. É desencantada com o amor, porque acha que Roque a traiu, casando-se com Porcina.

PADRE HIPÓLITO: é uma figura contraditória [representa a contradição da Igreja no período militar]. É a única pessoa da cidade que possui uma visão crítica sobre o desenvolvimento desigual da cidade. Combate também as prostitutas da cidade.

ZÉ DAS MEDALHAS: é o mais bem-sucedido de todos os moradores da cidade. Enriqueceu fabricando medalhinhas do herói Roque. Monopoliza esse comércio e quer expandir seus negócios para o exterior.

MATILDE, NINON E ROSELI: Prostitutas da cidade, Matilde é a proprietária do bordel. Querem construir uma boate chamada Sexual, porém são impedidas pelo padre e pelas beatas.

TONINHO JILÓ: representa o povo. É manipulado pelos políticos e figurões da cidade.

GENERAL: representa os militares. Ao ser comunicado por Chico Malta sobre a volta de Cabo Roque, vai à Asa Branca atrás dele e não admite que o exército passe pelo vexame de ter reverenciado um covarde, que fugiu da guerra.

V- Enredo

- 1º ATO

1º quadro A peça tem início com uma batalha. Soldado Roque, que carregava em uma das mãos um fuzil e na outra a bandeira brasileira, foge da trincheira, com medo. Sua fuga é interpretada como um ato corajoso , como se ele tivesse decidido enfrentar o exército inimigo sozinho, e tivesse sido metralhado. Essa morte trágica encoraja os outros soldados, que avançam em massa e derrotam as tropas nazistas na Itália. [Essa é a versão que se espalhou por toda a cidade. Na verdade Roque, fugiu no meio de um bombardeio e não morreu].

2º quadro Toninho Jiló [o povo] inicia esse quadro cantando:

Vamos, minha gente, vamos / melhorar nossa cultura / o ABC de Cabo Roque / A estória que vão ler / se passou lá nas Oropa / e demonstra que na guerra / brasileiro não é sopa / quando entra numa briga / não teme sujar a roupa.

Nessa parte, o autor passa a demonstrar a vida da cidade de Asa Branca. Percebemos que o suposto feito heróico do cabo Roque elevou sua cidade à categoria de berço do herói. O lugar passou a ser visitados por muitas pessoas e ali foi construída uma estátua de Roque. Além disso, faziam festas para comemorar data de nascimento, data de morte, data da primeira comunhão e outras mais, tudo isso para explorar a figura do herói. Foi feito até um filme contando sua história e medalhas eram vendidas por todos os lados.

3º quadro A história praticamente começa nesse quadro, pois Porcina está em casa com seu amante, Chico Malta. Conversavam sobre o lucro que Roque dava àquela cidade, até pensavam em uma maneira de transformá-lo em santo. Malta demonstra preocupação em esconder seu envolvimento com Porcina, pois ele é casado. Ressalta que ela precisa ser vista por todos como a viúva do morto, uma mulher virtuosa. Enquanto conversavam, Matilde, a dona do bordel, bate na porta e Sinhozinho Malta sai pela porta dos fundos. Matilde comenta com Porcina sua vontade de abrir uma boate e entrega dinheiro para Porcina levar à igreja. Matilde convida Porcina a ir no bordel e ela responde: Oxente, eu sou a viúva de Cabo Roque, viúva de um herói. Tenho que manter a dignidade.

4º quadro Zé das Medalhas vai visitar o bordel e leva medalhas de ouro de Roque para as meninas. Nessa quadro, o autor localiza o leitor no estilo de vida dos moradores ilustres da cidade, todos os que viviam em função do mito.

5º quadro É o início da complicação, pois chega na cidade um rapaz de uns trinta e cinco anos, com uma maleta de viagem nas mãos. Surpreso, pára diante da estátua aonde está escrito: 'O povo a seu herói'. Ao cruzar com Matilde na praça, pergunta o que é aquilo e ela explica que é o herói da cidade, que fazia de Asa Branca um lugar importante. Acrescenta ainda que Seu Chico Malta era quem cuidava de tudo. O rapaz decide procurá-lo e vai á casa da viúva Porcina, pois Matilde indica esse lugar.

6º quadro Porcina abre a porta e quando encara o rapaz, grita: Meu Deus!... Não, não pode ser! Tou vendo a alma de um defunto... Como é que eu podia esquecer? Roque... Diante dessa situação, Roque responde: ...Nunca poderia esperar encontrar você, tanto tempo depois, na primeira casa em que eu entro. Como veio parar aqui? Me disseram que aqui mora uma viúva... É a sua patroa?

Na verdade, Roque se dirigiu à casa de Porcina, sem saber que ela era a viúva dele. Eles se conheceram na época em que ele foi convocado para o exército. Porcina era a empregada de uma pousada e eles chegaram a ter um romance rápido.

Roque e Porcina relembram os velhos tempos e Porcina procura omitir muita coisa, com medo da situação. Começa a seduzi-lo e o leva para dentro. Cansado da viagem, Roque acaba dormindo.

7º quadro Sinhozinho Malta chega na casa de Porcina e se espanta com a história. Vai ao quarto dela, onde Roque dorme e verifica que realmente é ele:

MALTA: Espere, também não é assim. Um homem vira estátua, vira fita de cinema, de repente aparece de cueca, de bunda pra cima, na cama da minha amante.

PORCINA: Sou viúva de um homem que nunca morreu e que nunca foi meu marido. Agora o falecido taí. Quero ver como vamos explicar isso a ele. A ele e a todo mundo, porque amanhã a notícia vai correr de boca em boca.

MALTA: Ninguém deve saber. É preciso que ele não saia daqui, que não apareça a ninguém. Até eu decidir o que vamos fazer. Não é só o seu caso. A volta desse rapaz vai criar muitos casos.

Depois dessa conversa, Malta vai embora desesperado e ambos prometem pensar rapidamente em uma solução.

8º quadro Roque acorda cedo, antes de Porcina, e vai passear pela praça onde encontra o padre Hipólito. O padre não o reconhece, mas ele insiste: Não se lembra mais de mim? Fui seu coroinha... seu aluno de catecismo. O padre finge lembrar, mas sai apressado para sua caminhada. Logo em seguida, Porcina vem correndo e pede que ele não saia de casa, para que a cidade não descubra que ele voltou e está vivo. Sem entender nada, Roque pensa que ela se refere ao fato de ele ter abandonado a guerra, pensa que foi tido como desertor. Percebendo isso, Porcina explica que a estátua da cidade era para ele e que, para todos de Asa Branca, ele morreu lutando, dando a vida pela pátria, o primeiro soldado brasileiro que morreu pela democracia. Roque se espanta ao descobrir que é um herói.

Malta chega e Roque conta como fugiu da guerra, no meio de um bombardeio, ficando apenas ferido no ombro. Confessa que foi um covarde e completa: Talvez tenha feito coisas ainda piores pra não morrer. E o que fizeram comigo, em nome da democracia, da liberdade, da civilização cristã e de tantas outras palavras?

No meio dessa constatação, percebendo a chegada de alguém, Roque se esconde. É o padre Hipólito que veio buscar o dinheiro que a prostituta Matilde deu à Porcina e aproveita para comentar com Malta o encontro na praça. O padre explica que lembrou quem era depois e que era o Roque. Além disso, afirma que já comentou com o prefeito e com Zé das Medalhas. Logo em seguida, chegam os dois apavorados. Diante da comprovação, procuram o que fazer:

MALTA: Há quinze anos que a cidade vive de uma lenda. Uma lenda que cresceu e ficou maior que ela. Hoje, a lenda e a cidade são a mesma coisa. Na hora em que o povo descobrir que Cabo Roque tá vivo, a lenda tá morta. E com a lenda, a cidade também vai morrer. Tou certo ou tô errado?

Todos chegam à conclusão que se o povo descobrir a verdade, Asa Branca vai acabar e com ela a fonte da riqueza de todos ali. Resolvem então chamar Roque e propor que ele volte à Itália.

ROQUE: [eu vou embora] E todos continuam aqui cultuando a memória do herói. E vivendo à sombra de uma mentira. Já disse que não tenho vocação para mártir. Não acredito nisso, não posso acreditar que um homem seja mais útil morto do que vivo. Do contrário ia ter que acreditar também que todos aqueles infelizes que morreram na guerra foram muito úteis. E que a guerra é uma necessidade porque fabrica heróis em série.

Diante da negação dele, Malta decide ir ao Rio denunciá-lo ao exército.

9º quadro [encenação] todos cantam

À sombra dessa estátua / uma cidade cresceu / cresceu, cresceu, cresceu / à sombra dela cresceu / E agora que fazer / Que a estátua virou / virou, virou, virou / de novo gente virou.

- 2º ATO

10º quadro O autor começa descrevendo a praça, que está toda enfeitada com faixas e cartazes: Bem-vindo Cabo Roque – A cidade recebe com orgulho seu heroico filho. O comentário geral é que Roque sobreviveu á guerra e que está voltando para sua cidade.

No meio dessa confusão Chico Malta volta do Rio com um general e fica surpreso diante da decoração do lugar. Porcina o chama e explica que na ausência dele, todos decidiram contar para a cidade que ele está vivo e inventaram a história de que ele ia chegar com todas as glórias que merece. Malta gosta da ideia, chama o general e explica que Roque é um herói militar e por isso merece as honras do exército. O general entretanto, não aceita ser cúmplice dessa mentira e diz que essa decisão é incompatível com a dignidade militar.

11º quadro Mocinha desconfia que Roque Santeiro já estava em Asa Branca e entra na casa de Porcina escondida. Encontra Roque na sala. A moça o questiona, inconformada porque acha que ele realmente é casado com Porcina. Roque se surpreende com essa informação, mas não tem tempo de se explicar para o seu grande amor, porque Porcina chega e a menina sai correndo. Ele descobre finalmente, porque chamam a mulher de viúva: ela é viúva dele. Porcina conta para Roque essa invenção de Malta para levá-la à Asa Branca sem despertar a desconfiança da mulher do Sinhozinho. Entretanto, se oferece para ser sua mulher de verdade, mas ele não aceita, alegando que é ele quem decide sua vida. Porcina acaba deixando escapar que o general está na cidade e Roque decide fugir para o bordel.

12º quadro As prostitutas o recebem e querem saber o que ele fez durante todos esses anos. O autor se utiliza dessa cena para fazer algumas reflexões sobre a questão do herói militar:

ROQUE: Profissão? Herói! [arrumei essa profissão] Na guerra! Lutei sozinho contra Hitler, Mussulini...Sozinho contra os alemães...Ah, mas é muito dura a profissão de herói. Se eu tivesse morrido, era fácil. Ou se eu tivesse sido herói por acaso, sem querer, como muitos. Mas sou um herói por convicção. Um herói de corpo inteiro.

TODOS: É um mundo estranho esse / em que o amor ao pêlo pode ser / um gesto revolucionário / e provocar a ira dos que nos querem enterrar.

13º quadro Sinhozinho Malta procura Roque na casa de Porcina e ela fala que ele fugiu. Malta começa a pensar em dar um fim nele, crendo que essa é a melhor solução. Para a cidade que espera sua volta devido às faixas espalhadas por todos os lugares, eles falariam que era um louco que se fez passar por Roque. Porcina pede que o deixe fugir, mas Malta acha melhor não.

14º quadro Chico Malta, Florindo e o general procuram o fugitivo e vão ao bordel. Lá, o general passa a questioná-lo e ele confirma ser o Cabo Roque. Isso deixa o militar com raiva, porque Roque era da sua tropa na guerra. Além disso, havia um batalhão do exército que tinha o nome dele. Percebendo que sua vida estava por um fio, o Cabo pergunta se eles querem que ele volte para a Itália, porém, o general responde que não, pois ele pode querer chantagear o exército e a honra militar não pode ficar nas mãos de um canalha.

GENERAL: A verdade é que não tem nenhum sentido ele estar vivo. A morte dele consta da ordem de dia 18 de setembro de 1944 do 6º Regimento de Infantaria. Foi uma morte heróica, apontada como exemplo de bravura do nosso soldado. Atentem bem os senhores o que significa: há um batalhão com o nome dele. Isso é definitivo. Para o exército ele está morto e deve continuar morto.

ROQUE: Parece que a única maneira de não desmentir o boletim do meu Regimento é eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só que me falta coragem...Sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Hoje o mundo é outro. E vocês ficam aí cultuando a memória de um herói absurdo. Absurdo sim, porque imaginam ele com qualidades que não se pode ter. Caráter, coragem, dignidade... não vêem que tudo isso é absurdo?

Malta deixa os dois discutindo e sobe para conversar com Matilde e promete patrocinar sua boate se ela der uma bebida envenenada a Roque. A proposta é aceita e todos decidem ir embora. Roque fica sem entender nada, mas fica bebendo com as meninas do bordel. Começa a sentir seu corpo cambalear e cai. Isso coincide com a chegada das beatas à porta do bordel para protestarem contra a abertura da boate, jogando pedras lá dentro.

15º quadro Essa cena tem início com o corpo de Roque estendido no bordel, com um lençol acima e velas em volta. Matilde explica que uma das pedras jogadas pelas beatas atingiu a cabeça dele e isso foi fatal. Pouca gente fica sabendo do ocorrido, pois nem sabiam da presença de Roque lá dentro.

PORCINA: Desde que ele chegou que eu senti que alguma coisa ruim ia acontecer

MALTA: A ele ou a todos nós. É nisso que a gente deve pensar. A uma cidade inteira

FLORINDO: Não seria um crime muito maior matar uma cidade? Em compensação, teremos uma estrada

MALTA: Uma estrada asfaltada para chegar na capital em duas horas.

PORCINA: Que bom. Vou a Salvador toda semana.

MALTA: E ninguém constrói uma estrada dessas sem sacrificar muitas vidas. É a paga do progresso.

A culpa do homicídio recai sobre o padre e as beatas, principalmente Mocinha que se sente culpada por também ter jogado pedras. Devido a isso, o padre é obrigado a aceitar a boate na cidade. Malta propõe abafarem o caso, alegando que se ele pudesse escolher, preferiria ter morrido na guerra.

16º quadro As prostitutas conseguem abrir a Boate Sexus. Na abertura o prefeito discursa:

FLORINDO: Declaro inaugurada esta casa que é, em seu gênero, uma das melhores do país, quiçá da América do Sul. Quero declarar também que isso não seria possível sem o espírito empreendedor de dona Matilde... que tanto tem colaborado com o nosso plano de turismo. Plano que, se Deus quiser, há de fazer de Asa Branca uma cidade digna de Cabo Roque, aquele que morreu lutando pela democracia e pela civilização cristã.

A peça termina com uma fala de Malta:

MALTA [canta]: Assim, senhoras e senhores / foi salva a nossa cidade / Com pequenos sacrifícios / de nossa dignidade / com ligeiros arranhões / em nossa castidade / e algumas hesitações / entre Deus e o Demônio / conseguimos preservar / todo o nosso patrimônio.

VI- COMENTÁRIOS

Linguagem: A linguagem do livro é muito coloquial e simples. Dias Gomes inclui em seu texto palavras do linguajar popular, utilizando até mesmo palavra chulas. Além disso, há em diversos fragmentos ressonâncias das cantigas populares do Brasil.

Personagens: As personagens, em grande parte, são caricaturas de tipos que articulavam o poder em nosso país.

Os militares são vistos, através do general, como autoritários. Além disso, queriam manter o que estabeleciam como verdade, mesmo que isso não fosse verdade. A morte de Roque era tida como verdade, então precisava ser, ou seja, Roque vivo precisava morrer para que a palavra do exército não fosse desmoralizada, custasse isso qualquer o preço.

A Igreja por sua vez, tem dois ângulos no livro. Tem um lado crítico, que rejeita omito progresso, que esconde falsos valores, mas também manipula beatas. Dias Gomes deixa bem clara sua opinião: no período da ditadura foi omissa e muitas vezes conivente com os abusos. Sua preocupação era em manter a falsa moral e não a verdade.

Os políticos como Florindo, o prefeito, demonstram que, segundo Dias Gomes, o poder político não estava com quem tinha sido eleito pelo povo, mas sim com aqueles que detinham o poder econômico, como o Sinhozinho Malta. Malta é também o retrato do que ocorre nas cidades do interior do Brasil, onde os poderosos amedrontam e dominam o povo.

Por outro lado, o capitalismo selvagem é analisado através de quem explora a ingenuidade do povo, vendendo medalhas de um falso herói, como é o caso de Zé das Medalhas. Diante de tudo isso, o povo [representado no livro por Toninho Jiló] nunca conhece a verdade e acaba sempre sendo levado por aquilo que os poderosos querem que ele acredite.

Herói: Dias Gomes questiona um conceito muito interessante do herói. No lugar de simplesmente desconstruir essa figura, apresentando o anti-herói, o autor procura demonstrar como o herói é construído.

Seu livro trata da necessidade do brasileiro de criar figuras maravilhosas. Para isso, expõe a carência das pessoas ao crerem em alguém que é o ser humano ‘ideal’, dotado de virtudes que não temos. A partir disso, aqueles que são mais espertos passam a explorar essa imagem e o mito se consolida. Depois de consolidado, entretanto, aqueles que o criaram acabam perdendo o controle sobre ele e ele passa a ter uma importância que ultrapassa até o bom senso. O mito é também incorporado ao progresso.

Roque precisava morrer, porque ele era um ‘herói’ e essa imagem é mais importante do que a realidade. A personalidade verdadeira do Cabo Roque é totalmente diferente da do herói Roque. O primeiro é um covarde, egoísta e o segundo é cheio de virtudes, como a coragem e o nacionalismo. O que complica tudo isso é o fato dele ser um herói militar, de quem se espera bravura. Ele ter fugido da guerra acaba com a idealização em torno das Forças Armadas.

História Real X História Ideal

Temos no livro dois enfoques da história: a real – Roque foi um covarde e fugiu da guerra – e a ideal – Roque foi um herói e deu a vida pelo país.

Desconstrução da guerra

Se os heróis são necessários para o povo, a guerra também é, porque fabrica heróis em série. O autor procura desconstruir isso e demonstra que o povo não precisa de heróis e que a guerra, ao contrário da visão idealizada que se faz dela, é uma destruição.

Fonte: Estudo da Professora Maria Laura Muller da Fonseca e Silva, disponível no site Algo Sobre. http://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/roque-santeiro-ou-o-berco-do-heroi.html, acesso em 2.02.2008.

Aparecido Raimundo de Souza (A Assiduidade de um Maluco Devoto)

TODOS OS DIAS, IMPRETERIVELMENTE, Anastácio repetia aquela cena patética. Escrevia um bilhetinho e subia até o topo do pau-de-sebo. Bastava se levantar da mesa das refeições, lá ia ele, apressado, para o centro do pátio onde outros internos se amontoavam para o descanso do almoço. A única coisa que o vesano não seguia à risca, o horário. Às vezes, postergava para depois das onze e meia, às vezes passava das doze. Todavia, sempre após encher a barriga com a sobremesa que serviam e o café requentado, punha em ação a sua árdua tarefa. Só isto quebrava a rotina. No mais, o ato de levar à termo, com tanta e tamanha veemência a sua esquisitice de subir ao cume da vara enrijada, não falhava, jamais.

Era assim, há exatamente e precisos seis anos de internamento naquele sanatório. No geral, somava, com ele, setenta pacientes. Todos em completo estado de abandono, além da insanidade que os colocava num planeta à parte e sem volta. Em meio aos debilóides estava Dirceu, um jovem chegado há dois anos, que pouco se comunicava com seus pares. Gostava de sondar, registrar e conferir. Passava o dia perdido em pensamentos, perscrutando o ambiente. Quando não, vigiando um funcionário aqui ou ali, aculá uma das enfermeiras que atendia na emergência. O mundo, ao redor simplesmente não existia. Aliás, para ninguém em particular. Sempre que Anastácio se propunha a empreender a sua jornada, Dirceu o seguia, prudentemente, de longe, e o engraçado, se disfarçando de todas as formas para não ser visto ou pego de calças curtas. Numa delas, por exemplo, se camuflou de Tiazinha. Só o pegaram, quando sentou o chicotinho num dos médicos de plantão que o agarrara no banheiro feminino.

E por que Dirceu fazia isso? Pela curiosidade. No meio do pátio, que fronteava com a sede da administração e do ambulatório, havia um mastro de cocanha maior que os normais desses encontrados nas festas de São João e Páscoa. Extremamente liso e comprido, a peça passava dos quinze metros de altura. O bicho se elevava, empertigado, soberbo, como se fosse um varapau. Em épocas de festas, os funcionários se reuniam com alguns familiares, colocavam uma prenda no ápice, geralmente uma boa quantia em dinheiro, depois besuntavam com graxa e a hora que o responsável pela prova gritava “pode subir”, a galera fazia o diabo para agarrar o prêmio.  Exatamente nessa haste carrancuda e altareza, que o Anastácio, impreterivelmente trepava, com todas as forças que o mantinham vivo e em contexturada postura. Esse longo acessório, por rejeição e desmazelo, linha paralela, purgava em orfandade. Os funcionários deixaram de promover as algazarras dos regozijos costumeiros somavam bons carnavais.

Para piorar seu desuso, cada administração que chegava, mudava as regras. Por circunstâncias outras, apesar das intempéries, o madeiro continuava duro e resistente, sendo mantido no mesmo lugar e ali se mantinha a mercê dos extremos climáticos. Antes de subir, Anastácio colocava o tal do papelzinho no qual havia escrito preso aos dentes. Empregando, então, um esforço sobrenatural, ia subindo, galgando centímetro após centímetro, até chegar onde desejava. Às vezes falhava e escorregava, precisando começar de novo, do zero. Mas não desistia. Era obstinado, inflexível e contumaz.  Assim, depois de várias tentativas, conseguia, finalmente, galgar o limite máximo. Uma vez lá, se apressava a espetar sobre um prego, o papelote que levava preso à boca.

Havia um amontoado deles, anteriormente encravado, porém, Anastácio sempre dava um jeitinho e conseguia afixar um a mais. Em seguida, descia escorregando, satisfeito, se flabelava com as mãos em leque e então se trancava em seu cubículo. Todo santo dia, portanto, chovesse ou fizesse sol, ia o Anastácio, pau acima, depositar o minguado de papel, no qual escrevia alguma coisa que só ele saberia explicar. Isso intrigava deveras ao Dirceu, que não perdia as subidas diárias da criatura. O que, afinal, Anastácio grafava de tão importante, que não podia haver um dia, sem que não interrompesse, por nada nesta vida, aquele ritual impróprio de precisar depositar o bilhetinho nos cafundórios das alturas? Seria algum pedido endereçado à Deus? Não! Naquele lugar ninguém falava de religião. Nenhum pastor, padre, ou qualquer representante de uma dessas denominações que visitam presídios e casas de repouso apareciam para dar o ar da graça.

Desde que passara a observar o Anastácio, Dirceu fizera questão de anotar. Remia seus desatinos naquele fim de mundo, exatos dois anos.  Dois anos.  A setecentos e poucos dias sondava cotidianamente, na sua luta, para depois do almoço, ver o cidadão escrever alguma coisa num papel sujo, empalmar com cuidado e subir até o cimo do bastão e, uma vez em nível superior, cravar o bilhetinho e empreender o caminho de volta. Dias, um após outro que martelavam a sua cabeça. O que aquela criatura escrevia? Por que deixar esses papeizinhos no longínquo do inalcançável?               

Belo final de lanche da tarde, por volta das três e meia, Dirceu se encheu de razão. Seria agora (no entender dele,  “hoje”), ou nunca. Desvendaria esse dúbio suspeito, custasse o que custasse. Sua vida inclusive, se necessário. Com esse pensamento aflorando à abelhudice, ainda que envolto pela loucura, esperou a oportunidade certa. E ela chegou mais rápido do que esperava. Aproveitou a ocasião em que um dos doentes da ala dos “trancados” precisou ser levado para o hospital distante do sanatório, uns duzentos quilômetros. Declinava uma sexta-feira conveniente à sua investida e aos propósitos pretendidos. Com essa emergência às portas, o doente alterado, encadeado numa camisa de força, todos os demais internados permaneceram em seus respectivos espaços. Enfim, livre o Dirceu, para tomar, no grito, o pau-de-sebo e pôr um fim definitivo naquele excentricismo do Anastácio. Esgueirando por aqui e ali, espiou o colega de infortúnio e flagelo.

Anastácio havia acabado de descer fazia pouco, e se achava enfurnado em seu pequeno cômodo. De resto, tudo em paz. Os enfermeiros (após a saída do paranoico paramentado no instrumento de tortura) faziam um lanche, riam e conversavam animadamente. Os demais insanos e mentecaptos seguiam em suas órbitas de demências à espera de um possível milagre. Dirceu não perdeu tempo. Alcançou o pátio sem ser perturbado. O pau-de-sebo, senhoril e monumental parecia desafiá-lo em seu intento.

Pôs se em guarda. Empreendeu a árdua tarefa de galgar a compridez do alcantil. Não seria tarefa fácil. Mesmo o Anastácio, acostumado, às vezes subia um bom naco e, no minuto seguinte, despencava. Com ele não haveria de ser diferente. Nesse primeiro dia, tentou diversas vezes. Em vão. No segundo, igualmente os esforços redundaram em fiasco total. Uma semana, nada. Quinze dias, idem. Engraçado, que Anastácio, sem saber dessa façanha, continuava escrevendo os bilhetinhos e os colocando no lugar costumeiro. Quase trinta dias de infrutíferos ensaios. Finalmente o abelhudo alcançou o cocuruto do pódio. Deu graças. Chorou de alegria e contentamento. A ponto de, quase a botar as mãos nos bilhetes, degringolar, se rebentando no chão de terra batida. Ganhou uma série considerada de arranhões, todavia, não entregou os pontos. O pior passara.

Nesse tempo todo de subidas e escorregadelas, patinadas e saracoteios, Dirceu pegara o macete, de como se elevar, e, claro, se sustentar sem propender a se estabacar. Se por azar rolasse desajeitado, poderia acrescentar a seu infortúnio à presença de uma sisuda cadeira de rodas. Nem pensar. Ufa! Poria fim a sua alcovitação dia seguinte. Deu certo. E como foi? Esperou pacientemente o Anastácio colocar mais um papelzinho. Pelas suas contas, desde que passara a observa-lo, beiraria o mesmo número de meses desde que optara a ser um ousado beleguim.

Na oportunidade seguinte, por sinal, caído num sábado ensolarado, seu sucesso se fez pleno. Subiu, subiu, havia aprendido a controlar a respiração, as posições certas para não perder terreno. Eis que a sua neurastenia quase às raias de uma birra insolente misturada com angústia e exasperação, lhe agraciou com o mito acautelado. Sem perder um segundo, Dirceu alcançou o prego que sustinha os bilhetinhos. Arrancou os que lhe foram possíveis. Entabulou o processo de descida, lenta e gradativa, as minúsculas cédulas presas entre os dedos. Em terra firme, tratou de correr para seu quadrado. No silêncio do emparedamento, longe de olhares abelhudos e metediços, passou a ler as mensagens.

Três palavras, apenas três palavras, numa letra desgraçadamente infeliz se juntaram ao seu espanto quase abissal. Desatou a chorar como criança que perdeu um brinquedo de estimação. Em todas as tirinhas de papel a frase lacônica e concisa, como um mantra sem eira nem beira. “FIM DO PAU”. Não contente em chorar, arrancou alguns tufos de cabelos. Bateu com a cabeça na parede. “Fim do pau!”. Estólido ignaro e bronco esse Anastácio dos infernos. O que significavam, ou o que sinalizavam essa três palavras, afinal?!” 

Aferrado nesse caótico sarapantado, Dirceu entrou em um estado de agonia como ha tempos não lhe abatia sobre os costados.  Garrou a gritar. Em meio a esses berros espalhafatosos, os enfermeiros pularam de suas cadeiras e chegaram arrombando a porta de seu cubículo (que ele havia algaraviado por dentro) e o levaram direto para a enfermaria.  Aquietou-se o infeliz com um sossega leão que lhe aplicaram. Até agora ninguém do hospício soube dizer com precisão o que, de fato levou o doidivanas do Dirceu a tomar aquela decisão de se autoflagelar. “Fim do pau”. Explicado e devendado o mistério,  fim do texto também.             

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Versejando 126

 

Mensagem na Garrafa – 34 –


Clarisse da Costa
Biguaçu / SC

Tu és bem linda! 

Não importa o que te digam. 
Teu sorriso encanta, mesmo que atrás haja uma dor oculta. 
Teu olhar ilumina, não importa o quanto você chorou. 
Você sabe que a vida não é perfeita. 
Você não é perfeita. 
Não precisa que alguém te diga isso. 

Procure estar com quem enfatiza as suas qualidades. 
O corpo te sustenta, mas é o seu caráter e determinação que te faz vencedora.

Mulher largue mão das amarras que te fazem sofrer. 
Seja feliz por si mesmo. 
Não espere pelo outro. 
A vida se faz com sonhos, mas é bem melhor com pés firmes no chão. 
Você bem sabe da sua capacidade, só te falta confiança. 
Se não confiares em si quem irá confiar?

Imagem = criação de JFeldman com Microsoft Bing   

Eduardo Martínez (Talarico, o pé de pano)

Talarico corria despido pela rua, enquanto uma multidão furiosa o perseguia. Aliás, tirando o marido traído, os outros eram apenas curiosos a fim de ver o desenlace daquela pendenga. E lá ia Talarico todo esbaforido, mais ligeiro que preá com medo de virar espetinho. Tamanho o seu desespero, nem sentia dor, apesar do balançar do sino de Belém entre as suas pernas.

– Pega!!! Pega!!! Pega!!!

Que nada!!! O peladão entrou por aqui, mas, antes que o seu perseguidor percebesse, lá estava o nosso Don Juan pulando o muro, entrando pelos fundos da casa vizinha, assustando duas velhas sentadas à mesa na hora do chá, tomando novamente a rua em seguida. 

Correu tanto, que nem os cachorros que latiam em seu encalço conseguiram alcançá-lo. Escafedeu-se, apesar da expectativa de todos e, em especial, da do esposo da doce Jurema. Afrânio, ainda com uma peixeira na mão, suando em bicas, soltou um grito, que poderia até ser confundido com o de um bugio.

– Que raiva!!! Mais cedo ou mais tarde eu te pego, seu salafrário!!! 

Já bem distante dali, Talarico, com as duas maçãs do traseiro perdendo o ritmo daquela desesperada corrida, finalmente olhou para trás. Nada!!! Ninguém mais ao alcance dos seus olhos tão lascivos. E, a despeito da sensação de ter escapado de mais uma boa, não titubeou e manteve o passo firme até a casa da Rosinha, com quem, há tempos, fazia promessas de uma vida juntos. 

Em pé diante da porta, Talarico foi recebido pelos olhos surpresos da amada.

– O que houve? Por que está assim sem roupa?

– Minha flor, você não vai acreditar! Fui assaltado por uma gangue logo ali! Como esse mundo está violento! Não se pode nem mais andar por aí em paz!

Rosinha, olhando todo aquele teatro, tocou de leve o rosto do seu homem, fez uma cara de compaixão e, finalmente, lhe deu as costas.

– Talarico, você falando e um risco n'água, pra mim, é a mesma coisa!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Eduardo Martínez nasceu na cidade do Rio de Janeiro, possui formação em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Começou a se enveredar pela literatura através do romance “Despido de ilusões”, publicado em 2004 e que figurou, durante dois anos, entre os mais lidos de todo o acervo da biblioteca do Centro Cultural do Banco do Brasil. Também é autor do romance policial “Rachel” e do livro sobre educação canina “Meu melhor amigo e eu”, além de participações em várias coletâneas de contos e crônicas. Suas histórias, geralmente, se passam no Rio, em Brasília ou em Porto Alegre, cidade onde reside desde 2021. Atualmente, é cronista/contista do Notibras (https://www.notibras.com/site/) e do Blog do menino Dudu (https://blogdomeninodudu.blogspot.com/).

Dados biográficos: enviado pelo autor.

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para refletir) – 6 –


 A guerra não é com o mundo.
A guerra é dentro de nós.
O grande embate, no fundo,
é quando estamos a sós!
= = = = = = = = = 

Às vezes, dentro da gente,
grande conflito se encerra.
A paz é frequentemente
motivo da própria guerra.
= = = = = = = = = 

A vida inteira é disputa;
enfrenta o temor e vence-o.
Mas lembra: só ganha a luta
quem sabe guardar silêncio.
= = = = = = = = = 

Com tanta agressão e guerra,
neste milênio, é preciso
que Jesus retorne à terra
e nos traga a paz e o riso!
= = = = = = = = = 

Existe gente no mundo
que ama a todos, ama a esmo...
E há quem sinta amor profundo,
no fundo, só por si mesmo!
= = = = = = = = = 

Há gente que muito corre,
sempre em constante vaivém,
mas não percebe que morre,
porque não vive também!
= = = = = = = = = 

Não é porque alguém nos trai
que a sorte é madrasta e feia.
O mar também se retrai
e volta a dançar na areia!
= = = = = = = = = 

Não há no mundo distância
que faça um dia esquecer
a terra de nossa infância,
o sol que nos viu nascer!
= = = = = = = = = 

Não tomes uma atitude
na hora do nervosismo!
Paciência é a maior virtude
se estás à beira do abismo...
= = = = = = = = = 

No jogo de todo dia,
há muitas vezes entrave,
pois muita bola erradia
apenas bate na trave.
= = = = = = = = = 

O remorso que arruina
- passado sempre presente -
é aquela voz, em surdina,
a acusar dentro da gente.
= = = = = = = = = 

Quando é aflitivo o momento,
o sorriso impõe a calma;
transforma em bom pensamento
a angústia que se tem n'alma.
= = = = = = = = = 

Quando é um bem que muito custa,
ao chegar, traz ansiedade:
na vida, a gente se assusta
até com a felicidade!
= = = = = = = = = 

Quem no meio da jornada
encosta o carro e vacila,
se quer voltar para a estrada
só tem vez no fim da fila...
= = = = = = = = = 

Quem espião quer ao lado,
não existe outra maneira:
é só não tomar cuidado
com quem lhe pisa a soleira...
= = = = = = = = = 

Quem tem à vista um fanal
não se perde no caminho;
quem persegue o seu ideal
é vento a girar moinho!
= = = = = = = = = 

Quem persegue a trajetória
que traçou para os seus passos,
um dia conquista a glória,
pois não se rende aos fracassos.
= = = = = = = = = 

Quem traz guerra e desventura,
à paz opõe empecilhos,
abre assim a sepultura
para enterrar os seus filhos!
= = = = = = = = = 

Se alguém te ofende demais,
não gastes língua ou papel;
o silêncio fere mais
que a palavra mais cruel.
= = = = = = = = = 

Se guardas boa lembrança,
não retornes a um lugar:
quando o passado descansa,
melhor deixá-lo sonhar!
= = = = = = = = = 

Sem nada para ofertar
no presente ou no porvir,
o quanto pode ajudar
quem sabe apenas ouvir!
= = = = = = = = = 

Ter fibra é sorrir na mágoa,
opor, ao mal, sempre o Bem:
no fogo do ódio por água
quando o incêndio nos convém...
= = = = = = = = = 

Todos temos, no horizonte,
uma ideia mais sombria,
porque sempre existe ponte
entre a tristeza e a alegria.
= = = = = = = = = 

Vê como o sol no horizonte
desce aos poucos, devagar...
Não vás tão depressa à fonte,
que o jarro podes quebrar…
= = = = = = = = = 
Fonte: CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009. Enviado pela Trovadora.

Contos das Mil e Uma Noites (Um califa estranho)

Conta-se que, certa noite, o califa Harun Al-Rachid, sofrendo de insônia, mandou chamar seu vizir Jafar Al-Barmaki e seu guarda-costas Masrur e disse-lhes: “Tenho o coração oprimido. Para me distrair, gostaria de errar pelas ruas de Bagdá e chegar ao Tigre.” 

Imediatamente, vestiram-se todos de mercadores e andaram até o rio. Lá encontraram um barqueiro velho e disseram-lhe: “Ó velho, eis um dinar. Poderias levar-nos no teu barco pelo rio para gozarmos o frescor da brisa?” 

- Qual é o objetivo de vosso pedido, senhores? E qual é a graça? Não conheceis as ordens? “É proibido a grandes e pequenos, jovens e velhos, nobres e plebeus, navegar no Tigre. Quem desobedecer terá a cabeça cortada.” Não vedes o barco do califa dirigindo-se para cá? 

Surpresos, perguntaram-lhe: “Estás certo de que o próprio califa está no barco?” 

- Existe alguém em Bagdá que não conhece o califa Harun Al-Rachid? Sim, é ele que está no barco com seu vizir Jafar e o portador de sua espada, Masrur. 

Harun Al-Rachid, que nunca dera as ordens mencionadas e ficara afastado do rio o ano todo, interrogou Jafar com os olhos. O vizir, que estava igualmente intrigado, disse ao barqueiro: “Eis dois outros dinares. Leva-nos até aquela sombra para que possamos ver o califa sem sermos vistos.” 

Após alguma hesitação, o barqueiro levou-os e escondeu-os por baixo de um arco. De lá viram o barco real passar com luzes, movimentos e escravos dançando e cantando. Num trono de ouro sentava-se um jovem, suntuosamente vestido, e tendo à sua direita um homem estranhamente parecido com Jafar e, à sua esquerda, o suposto Masrur, segurando uma espada nua. 

– Velho, perguntou o califa ao barqueiro, tens certeza de que o califa passeia no rio nesse barco iluminado todas as noites? 

- Ele tem feito isso todas as noites nos últimos doze meses. 

– Somos estrangeiros nesta cidade, disse o califa, e gostamos de ver coisas curiosas. Se eu te der dez dinares, esperarás por nós amanhã aqui nesta hora? 

O barqueiro agradeceu e prometeu ser fiel ao compromisso. Na noite seguinte, os três dignitários voltaram e, levados pelo barqueiro, esconderam-se debaixo do arco e observaram o barco iluminado passar. 

- Ó vizir, disse Harun Al-Rachid, nunca teria acreditado no que estou vendo se me tivessem contado. E virando-se para o barqueiro, disse-Ihe: “Eis outros dez dinares. Segue aquele barco e não tenhas medo de ser visto, pois estamos na escuridão e eles, em plena luz. Gostaríamos de ver aquela iluminação de mais perto e por mais tempo.”

Logo depois, viram o falso barco real atracar e seus ocupantes desembarcarem e entrarem num grande parque onde se puseram a cantar, dançar e divertir-se. O califa e seus dois companheiros também desembarcaram, entraram no parque e se misturaram com os outros. Mas alguém reconheceu-os como estranhos ao grupo e levou-os até o pseudocalifa. 

Perguntou-lhes o califa: “Como e por que viestes aqui?” 

Responderam: “Somos mercadores estrangeiros que visitamos esta cidade pela primeira vez. Estávamos passeando e entramos neste parque sem saber que era proibido entrar nele.” 

- Já que sois estrangeiros, sede nossos hóspedes, disse o estranho califa. Senão, teria que mandar cortar-vos a cabeça. 

O convite foi aceito  e entraram todos num palácio tão suntuoso quanto o palácio do califa. A festa prosseguiu com danças, canções, bebidas e guloseimas. No lado direito do salão, uma porta abriu-se e dois negros entraram carregando sobre as espáduas um trono de marfim no qual sentava-se uma jovem escrava tão brilhante quanto o sol. Estava tocando o alaúde e cantando: 

Como pudeste encontrar a paz quando eu estava longe e infeliz? 
Como pudeste encontrar bálsamo quando eu estava perto e partindo? 
Ai de mim! Vazio está o quarto perfumado onde espera em vão nossa cama colorida. 
E vazia está a sala de mármore onde morrem os ecos das canções de amor. 

Assim que o falso califa ouviu esta canção, rasgou a roupa e desmaiou. Harun Al-Rachid e seus companheiros repararam que seu corpo estava coberto de marcas de flagelo.

 - Pena que um jovem tão bonito carregue esses estigmas que o denunciam como um criminoso fugitivo, disse o califa.

Mamelucos apressaram-se em acordar o jovem e cobri-lo com vestidos tão suntuosos quanto os que rasgara. 

- Pergunta-lhe a causa dessas marcas, pediu o califa a Jafar. Mas Jafar opinou que seria melhor não se precipitar para não despertar suspeitas. 

- Pergunta, insistiu o califa. Senão teu corpo estará buscando uma cabeça quando voltarmos ao palácio. 

Jafar obedeceu. O jovem sorriu e disse: “Já que sois estrangeiros, contar-vos-ei minha história. Ela é tão estranha que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, serviria de aula a quem gosta de instruir-se.” E começou: “Meus senhores, eu não sou o Comandante dos Fiéis, mas apenas Mohamed-Ali, filho do síndico dos joalheiros de Damasco. Quando meu pai morreu, legou-me muito ouro e prata, inúmeras pérolas, rubis e esmeraldas. Legou-me também edifícios, terras, jardins, lojas e este palácio com seus escravos e escravas. 

“Um dia, estava na minha loja quando vi apear de um cavalo arreado uma jovem de beleza lunar. Entrou acompanhada de seus servidores, e perguntou-me: Não és Mohamed-Ali o joalheiro?” Respondi: “Não sou apenas Mohamed-Ali. Sou também teu escravo.”

“- Terias algum adorno bonito que possa agradar-me? 

“Mostrei-lhe os mais belos colares que tinha. Nenhum lhe agradou. Lembrei-me então que meu pai comprara certa vez um colar de inigualável beleza que guardara num cofre especial. Trouxe-o. Assim que a jovem o viu, exclamou: “É este o colar que sempre procurei, quanto custa? 

“- Meu pai pagou 100 mil dinares por ele. Se te agrada, terei prazer em oferecer-te de graça. 

“- Aceito-o pelo preço original e mais 5 mil dinares a título de juros, replicou a jovem com um sorriso. Por favor, traze-o até minha residência e lá receberás o preço. 

“Mandei meus escravos fecharem a loja e segui-a. 

“Quando cheguei, esperava-me no seu aposento sem véu, sentada num trono de ouro, com meu colar em volta de seu pescoço. Vendo-a assim, senti meus miolos fundirem e a fortaleza de meu coração desmantelar-se. 

“A senhora acenou à suas escravas para que saíssem, veio até mim e disse: “Mohamed-Ali, luz de meus olhos, amo-te; e tudo que fiz hoje era apenas uma manobra para trazer-te até aqui.”

“Deixou-se cair nos meus braços, banhando-me no langor de seus olhos. Beijei-a, enquanto ela empurrava seus seios contra mim. Compreendi que não devia recuar e quis fazer o que tinha que ser feito. Mas no momento em que o menino, já completamente acordado, clamava lascivamente pela mãe, a jovem disse-me: “Que pretendes fazer com ele, meu senhor? Guarda-o, porque minha casa não está aberta. Alguém terá que quebrar a porta. Se pensas que estás lidando com alguma mulher comum, desengana-te. Sou a filha de Yahia Ibn Khalid Al-Barmaki, irmã do vizir Jafar. E sou virgem.” 

“Ao ouvir essas palavras, meus senhores, mandei o menino voltar para seu sono e desculpei-me por ter desejado que ele participasse da hospitalidade estendida a seu pai. 

“- Nada tens que lamentar, disse a moça. Chegarás ao que queres, mas pelo caminho legal. Gostarias de casar-te comigo? 

“Respondi que nada me agradaria mais. Imediatamente, mandou chamar o cádi e as testemunhas e declarou-lhes: “Eis Mohamed-Ali, filho do síndico. Pediu-me em casamento e ofereceu-me este colar por dote. Aceitei e consinto.” Nosso contrato de casamento foi redigido e assinado na hora e fomos deixados a sós. 

“Quando a despi, vi que era realmente uma pérola não-furada, um cavalo que nenhum cavaleiro montara. Passei com ela uma noite que resumiu todas as alegrias de minha vida. “Vivemos assim um mês inteiro. No começo do mês seguinte, disse-me certa vez: “Devo ir ao hammam (banho turco) por poucas horas. Jura que não te levantarás desta cama até que volte.” Jurei, e ela saiu. 

“Ora, quis o destino que, minutos depois, chegasse uma anciã e me dissesse: “Ó Mohamed-Ali, a senhora Zubaida, a esposa do Comandante dos Fiéis, enviou-me para pedir-te que fosses imediatamente ao palácio, pois deseja falar-te.” Respondi: “Senhora Zubaida honra-me com esse pedido, mas não posso sair de casa até o regresso de minha mulher.” 

“- Meu menino, disse a velha, aconselho-te a atender sem demora a dona Zubaida em teu benefício, a menos que queiras fazer dela tua inimiga. Sua inimizade é perigosa. 

“Atendi, esperando que minha mulher compreendesse e me desculpasse. A senhora Zubaida recebeu-me com um sorriso e perguntou: “Luz de meus olhos, não és o amante da irmã do vizir?” 

“- Sou teu escravo, respondi. 

“- Em verdade, não exageraram em descrever o charme de tuas maneiras e de tua voz. Estou satisfeita. Mas quero que cantes alguma coisa para mim. 

“Quando fui libertado e voltei para casa, encontrei minha mulher dormindo. Deitei a seu lado e comecei a acariciar-lhe as pernas. Mas ela me deu um pontapé tão violento na virilha que caí da cama. 

“Traidor perjuro!”, gritou. “Quebraste teu juramento e foste visitar a senhora Zubaida! Não posso ir ensinar-lhe a não debochar dos maridos de outra mulheres. Por isso, pagarás por ambos.” E chamou o chefe de seus eunucos, o terrível Sauab, e disse-lhe: “Corta a cabeça deste traidor.” “

Nesse momento, todos os escravos da casa, que eu costumava tratar com bondade, acorreram e solicitaram sua compreensão: “Como iria ele adivinhar que uma simples visita a dona Zubaida iria desagradar-te tanto? Ele desconhecia a rivalidade e inimizade que existe entre vós duas. Por favor, trata-o com clemência. 

“Pouparei a sua vida, concedeu ela finalmente. “Mas deixarei no seu corpo uma lembrança indelével de sua traição.” E mandou infligir-me as torturas de que vedes os vestígios.

“Quando me restabeleci, vendi tudo que tinha, comprei esse grande barco e quatrocentos escravos e escravas, disfarcei-me de califa e entreguei-me à alegria de viver, ao canto e à dança. Passei assim um ano inteiro, tentando esquecer as consequências que sofri por ter-me intrometido sem querer numa briga de mulheres”.

Após ouvir esta história, o califa voltou para seu palácio, preocupado em encontrar um meio de reparar a injustiça feita àquele homem bom. No dia seguinte, revestido de sua autoridade, mandou vir Mohamed-Ali e disse-lhe:

“Gostaria de ouvir de tua própria boca a história que contaste ontem à noite a três mercadores estrangeiros.” 

Surpreso, Mohamed-Ali repetiu a história. Perguntou-lhe o califa: “Ainda amas a tua mulher e a queres de volta?” 

- Tudo que recebo das mãos do califa é bem-vindo. 

Então disse o califa a Jafar: “Traze-me tua irmã.” 

Quando a mulher chegou, disse-lhe o califa: “Ó filha de Yahia, nosso fiel emir, eis Mohamed-Ali. O que passou, passou. Neste momento, quero dar-te a ele como esposa.” 

- Os presentes de nosso senhor são sempre generosos. O califa mandou vir o cádi e as testemunhas. Os dois jovens foram casados de novo, e o califa fez de Mohamed-Ali um de seus amigos mais íntimos.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Contos e Lendas do Mundo (Honduras: Mina de água suja)

Este conto hondurenho vem do município de La Llama, no departamento de Santa Bárbara. Antigamente, o morro em que se passava tinha um nome cuja tradução de Nahuatl significava velha. Um dos pontos de referência mais verdadeiros é nos localizarmos nas proximidades do Rio Cececapa, onde há muitos anos um pai e uma filha viviam entre os moradores do bairro, em torno dos quais gira esta história.

Na cidade corria o boato de que no morro se encontrava uma mina de água suja onde se ofereciam sacrifícios por algum bem, mas ninguém sabia o que era esse bem retribuído nem como chegar a esse lugar. O pai da história, porém, com o maior dos mistérios e muito furtivamente desaparecia todas as sextas-feiras com uma galinha e algumas velas brancas feitas em Castela.

Chegou um momento em que a filha ficou tão curiosa sobre o que estava acontecendo e fazendo com que o pai desaparecesse por horas todas as sextas-feiras, que ela começou a segui-lo com muito cuidado para não ser descoberta e como uma farpa. A discrição da jovem foi tanta que ela conseguiu chegar à entrada de uma caverna no fundo da montanha sem ser notada, onde seu pai se sentou e começou a desempacotar os gadgets que trouxera consigo durante a viagem.

O homem começou a realizar um ritual e quase imediatamente um redemoinho de fogo apareceu do chão e começou a ir até onde a menina estava escondida nos arbustos, isso a fez fugir do local e foi aí que ela pôde ver o que causou muita raiva nele e fez com que ele a levasse de volta para casa entre severas broncas e punições, já que o caminho para chegar lá era um segredo que só seu pai deveria saber.

Assim que voltou ao local, o homem terminou de realizar um ritual que também não é conhecido, mas que se conecta com um ser que é uma espécie de lagarto de ouro gigante que vive dentro da mina de água suja e que depois de fazer o sacrifício da galinha branca e acenda algumas velas, isso permite que uma parte da cauda seja cortada.

Como essa porção da cauda se regenera nele para a próxima sexta-feira, esse recurso está sempre disponível, para quem o fizer quando seu sacrifício for devido, no entanto, muito poucos devem saber como chegar lá e como invocá-lo. Depois de aprovisionado, quem oferece a galinha pode vender o ouro, que são galões sólidos dele, e se sustentar com essa venda.

É o caso do que fez o pai desta história de Honduras, que uma vez teve sua porção semanal de ouro, foi a Salvador e vendeu o que havia cortado no mercado, evitando assim perguntas, pois longe de sua cidade não conhecia o boato da mina de água suja.

Inevitavelmente vemos nesta história como os desejos de abundância econômica e sua busca estão ligados à realidade, esta é uma ideia antiga segundo a qual na América Latina existe algo chamado El Dorado que em certos pontos esquecidos e conhecidos por poucos, as fontes de ouro podem ser encontrado.

Essa ideia que os espanhóis trouxeram foi muito bem recebida na cultura hondurenha e em muitas das regiões, por isso não é difícil encontrar histórias como as de Honduras em que um tesouro pode ser descoberto com rituais ou escavações.

Fonte: https://www.postposmo.com/pt/contos-de-honduras/

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Paulo Leminski em versos inversos – 004

 

Mensagem na Garrafa – 33 -


Marcos Assumpção
Niterói/RJ

CASA VAZIA

Falar de amor não é mistério
Nem tão difícil de explicar
A gente nunca faz por mal

Meu coração praia deserta
Morre de medo do inverno
E da solidão que me devora

Agora, a casa vazia,
Eu grito seu nome,
Só o silêncio me responde

Pensar que o amor é sempre eterno
Que é impossível ele se acabar,
Você bem que podia tentar, mas não,
não, não…..

Então quero falar por um momento 
(só por um momento)
Da tua ausência no meu corpo
E dessa lágrima no meu rosto

Agora, a casa vazia,
Eu grito seu nome,
Só o silêncio me responde

O fogo arde sob o nosso chão
Nada é tão fácil assim
Eu ando sozinho, no olho do furacão
Você nem lembra mais de mim

Agora, a casa vazia,
Eu grito seu nome,
Só o silêncio me responde.

Carolina Ramos (E os meus cavalos?)

A pergunta se justifica, não foram apenas os gatos, os cachorros e a bicharada miúda que preencheram a parte lúdica de minha vida. Os cavalos também têm grande relevância nesse setor.

Um deles até já foi citado, ou seja, o que veio buscar socorro, chegando-se, sem cerimônias, ao portão, para que cuidasse dele. E a lembrança desse cavalo ferido puxa outras que, por momentos, tiveram relevância e enfeitaram boa parte de minha existência.

Relato alguns momentos de devaneio, expressos numa outra crônica intitulada: - "Férias na Roça", também já chegada à imprensa.

FÉRIAS NA ROÇA

Quanta saudade! Saudade das minhas férias na roça! Das cavalgadas matinais na fazenda do Pinhal, cedinho, quando

O orvalho ainda brilhava nas folhas adormecidas, à espera de que o sol as viesse despertar!

Saudade da algazarra dos pássaros madrugadores... Saudade do estalar da lenha sob a chapa do fogão que amparava o bule do café, enquanto o aroma familiar se espalhava pelos cômodos do velho casarão da Fazenda do Pinhal, lá para as bandas de Itapetininga, a esgueirar-se pelas janelas, a competir com o aroma adocicado das flores do jardim.

Que saudade, também, do velho Lucrécio - passos lentos, carapinha branca, voz pausada e mansa... Nas noites embuçadas em mistério, eletrizava a criançada sentada à sua volta, olhos arregalados, a ouvir suas histórias, suspensa nos "causos" por ele contados, que envolviam sacis, lobisomens, assombrações e tanta coisa mais que acabava por perturbar a mansuetude do sono dos anjos.

Lucrécio era dessas pessoas que não podem faltar ao cenário de uma fazenda que se preze.

Alto, magro, pele curtida de sol e alma de algodão... Se Lobato o tivesse conhecido, certamente haveria um Lucrécio no "Sítio do Pica-Pau Amarelo".

Ainda garotinha, mas já com veleidades de boa amazona, pedia-lhe que encilhasse o meu cavalo, nunca o mais manso, e, Lucrécio recomendava, sério, de dedo em riste: – "Cuidado minina. Num pode galopeá... num pode, viu? I num si meta no mato, qui tem munta cobra pur lá... daquelas perigosa... cheia de veneno!" - Lucrécio arregalava os olhos para dar mais ênfase ao que dizia.

E eu apenas assentia com a cabeça, sabendo que nem tudo iria ser perfeitamente cumprido.

Ah! O velho Lucrécio, que nos ensinava a valorizar a poesia dos aboios... o canto desafinado e dolente de um carro-de-boi... O ranger festivo das porteiras, quando se abriam... E a pancada seca de um adeus, quando se fechavam por detrás de nós.

Lucrécio juntava a criançada da vizinhança e nos levava, em bando, a catar ninhos de pinhão e de ovos... A colher laranjas... E, também, aquelas jabuticabas brilhosas, que, parecendo envernizadas, enverrugavam os troncos e os galhos das jabuticabeiras.

Ensinava-nos a ouvir, bem de perto, o pipilar dos passarinhos nos ninhos, mas... sem tocá-los, já que sem esses cuidados aqueles ninhos poderiam ser abandonados e os filhotes expostos ao repúdio dos pais.

Quanta e quanta saudade da Fazenda do Pinhal, lá para os lados de Itapetininga, moldura preciosa da paisagem da minha infância! Seus proprietários - Sr. Leonardo e esposa, dona Nenê. Ela, espanhola, prima de minha mãe. Ele, de família italiana.

Lembro-me da roça viçosa, de onde vinham os verdes que enfeitavam nossa mesa... E daquela fonte gorgolejante, escondida entre a ramagem, sempre a oferecer linfa pura e fresca... Lembro-me bem do balido das cabras e dos carneiros de pernas finas, acolchoados de lã... Das vaquinhas leiteiras, que nos brindavam com bigodes de leite morno... E, também, do extenso algodoal... Semelhante a imenso campo nevado que nem o sol a pino conseguia derreter!

E me assalta, então, aquela saudade doída do meu cavalinho Expresso. Ele seria o cobiçado presente dos meus quinze anos... Negro "como a asa da graúna", lépido como um pé de vento... a correr pelos campos, onde o veneno de uma urutu-cruzeiro cruelmente o roubaria de mim!

Enfim... Quanta saudade daquelas noites forradas de estrelas, (hoje engolidas pela poluição) quando ainda era possível ouvir a brisa sussurrar suavemente entre os pinheiros a lembrar-nos que a vida passa depressa... Tão depressa quanto a água do rio, que a murmurejar segue sempre em frente... Para com certeza nunca mais voltar!

E aí está, retratado, en pasant, nesta crônica, mais um nome caro e saudoso, dono de quatro patas indóceis, o meu - Expresso!

Nome daquele querido cavalo, imaginado e amado à distância, e que, afinal, embora fruto de uma promessa cujo cumprimento fora aguardado com tanto carinho, acabou conhecido apenas através de um sonho frustrado e de uma foto que, inconscientemente, mais acirra a dor de o saber quase viável. Tudo por conta de um doloroso instante que o tornou definitivamente irrealizável.

Expresso tinha até baia garantida, já alugada por meu pai, na Hípica de São Vicente. Inteiramente negro, o pelo do "meu querido" Expresso tinha um brilho muito especial. Na testa, entre as orelhas, uma única e derradeira pincelada branca, como se o artista que o criou, feliz com a perfeição da obra, quisesse imitar aquela martelada cheia de orgulho, dada por Miguel Ângelo no joelho de uma de suas obras primas, ao dizer-lhe: - Parla! - Tal como se a perfeição daquele seu Moisés, para completar-se, exigisse apenas que falasse!

Assim era o "meu" Expresso! Pelo menos, para mim!

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Daniel Maurício (Origamis de Palavras) – 3 –

Abro-me inteira
Para que de mim,
Entres e saias
Quando queiras.
= = = = = = = = = 

Calmaria…
Nas dobraduras do dia
As águas conversam com os remos,
Enquanto sem nenhuma pressa
Os gansos cochicham
Meneando a cabeça.
= = = = = = = = = 

Corri
Não por ter medo da chuva
Mas porque queria
O mais rápido possível
Inundar-me junto a ti.
= = = = = = = = =  = 

De repente
Um quê de fada,
De anjo de estrela,
Brilhou diferente entre os cachos de flores.
Borboletas...
Pequenas e ligeiras
Almas com asas,
Tingidas com pó de arco-íris
Rasgam o vento tão leve
Tal como o sono inocente.
Sonha em mim,
Coração em pétalas
No suave pousar das borboletas.
Em silêncio falam aos meus olhos
De um mundo de paz,
Amor e poesia.
= = = = = = = = =

Discretamente
Com a janela aberta
Entre a cortina de voal,
A aranha escuta o vento .
= = = = = = = = = 

Na aridez
Desértica do concreto
Você é o meu sol
Que faz refletir
Minha outra metade
Num coração
Inteiro de amor.
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Não é apenas
Um cachecol de pena
Pois na conjugação
De um abraço
Infinito é o enlaço
Entre duas almas.
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Não era mancha
de beterraba,
da salada
que pra família fazia.
Era um mapa
da violência,
que na alma ardia.
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Nas folhas pintadinhas
Da folhagem antiga,
Pingam saudades
De casa de mãe.
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No meio do caminho
Era só um pedaço de pedra
Mas ao olhar atento
O amor revelou a tempo
Um coração aberto
Que receptivo esperava.
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Saudoso
sobre o lago de lágrimas
O olho encara de frente
O presente, o passado e o futuro.
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Uma borboleta
Inquieta-se em mim.
Suas asas doem nas pétalas do meu peito
Que queria de todo jeito
Florescer em teu jardim.
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Voei por muitas Eras
Nos degraus do tempo descansei
Seguindo o fio da vida
Por muitos portais atravessei
O chamamento da tua alma
Pelas frestas da gaiola escutei
Almas gêmeas
Finalmente plenas
Completando o ciclo do viver
Eu te beijei.
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Fonte: Daniel Maurício. Origamis de Palavras. São Carlos/SP: Pedro e João Editores, 2021. 
Enviado pelo poeta.