quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Afrânio Peixoto (Trovas populares brasileiras) – 19

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. Muito cuidado, também, pois atualmente não são admitidos os cacófatos, quando uma palavra forma uma segunda, ou duas formam uma terceira, como é por ex. o caso da número 1 e da 14, “como” tem sentido de comer também. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.



1
Abre a boca como a rosa
aos orvalhos do verão.
Dize ao menos que me amas,
e terás meu coração.
2
Amar a duas pessoas
não pode um coração.
Deus formou uma só Eva
por ter feito um só Adão.
3
Coração que ama a dois
que firmeza pode ter?
Já te dei o desengano,
não pretendo mais te ver.
4
Coração que a muitos ama
não sabe o que é querer bem,
pois faz carinhos a todos,
mas não contenta a ninguém.
5
Desde o dia em que te vi,
de te amar fiz a intenção.
É justo, pois, prenda minha,
que me dês teu coração.
6
Lá se vai meu coração
para te servir de prenda.
Não o maltrates, benzinho,
que não tem quem o defenda.
7
Lá vai o meu coração,
é a prenda que te mando.
Ele lá vai ser feliz,
eu por cá fico chorando.
8
Meu coração está vazio,
está com escritos agora:
Se o quiserem alugar
dou preferência à senhora.
9
Meu pai, para me ver casada,
prometeu-me uma panela,
mas depois que me casei...
não vi nem um caco dela.
10
Muito padece quem ama,
muito sofre um coração.
De dia apanha poeira,
de noite, constipação!
11
Nada tenho pra te dar
do jardim deste meu peito:
Se queres meu coração,
mete a mão, tira-o com jeito…
12
Não posso mais, nem que queira
ter paz, nem satisfação!
0 olhar desta morena
espinhou meu coração...
13
Não te dou meu coração
porque não posso tirar...
Se tirar eu sei que morro,
morro e não posso te amar...
14
Negaste-me a formosura,
que a natureza te deu.
Nesse teu peito não tens
um coração como o meu.
15
No meu rosto ninguém vê
nenhum sinal de aflição...
Minha pena, meu cuidado
eu guardo no coração.
16
Nos sertões aonde moro
tenho terras, tenho gado,
e o que tenho será teu
se isto for do teu agrado.
17
0 amor, quando é tecido,
não pode ser desmanchado.
Dois corações bem unidos,
não podem ser apartados.
18
Pega lá meu coração
vinga nele os meus delitos,
crava-lhe um punhal agudo
não te embaracem meus gritos.
19
Pena por seres magrinha,-
miudinha de feição,
num peitinho delicado
está mais perto o coração.
20
Quando a boca diz que sim,
a cabeça diz que não.
Ora, que me diz a mim
o que sente o coração?
21
Rua abaixo, rua acima,
sempre com o chapéu na mão...
Não achei quem me dissesse
cobre-te, meu coração!
22
Sou meirinho, à tua porta,
venho fazer citação,
estás intimada, ingrata,
a me dar teu coração.
23
Tenho o coração magoado,
coberto de cicatrizes:
E como roçado novo,
queimado e cheio de raízes...
24
Uma esmolinha, chorando,
te pediu meu coração… 
Nem ao menos lhe disseste;
Deus te ajude, meu irmão!
25
Você diz que eu sou escura...
mas é claro o coração:
Muito branco é parecido
com capucho do algodão.
26
Vou-me embora desta terra,
é mentira não vou não...
Quem vai lá é o corpo só,
mas não vai o coração.

Fonte: Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919. Disponível em Domínio Público.

Artur de Azevedo (Um Médico da Roça)

Aos vinte e um anos Tolentino Abrantes
Da vida a primavera desfrutava,
Figurando entre os piores estudantes,
Pois que não estudava,
Muito embora na Escola
De Medicina, que ele frequentava,
Dissesse toda a gente
Ter ele muito fósforo na bola,
E ser, talvez, o mais inteligente
Da sua turma. O nosso rapazola,
Que dos paternos cabedais dispunha,
Metendo-lhes a unha
Tão facilmente como se a metesse
Num fofo pão de ló, não conhecia
Da pobreza os açoites,
E, nesta vida tudo lhe sorria.
Antes os conhecesse:
Na pândega não passaria as noites.

O pai, sujeito honrado,
Que no comércio havia enriquecido,
Foi por alguns amigos prevenido
Da vida que levava o seu morgado,
E corrigi-lo quis, mas era tarde,
Porém o velho, sem fazer alarde,
Resolveu, de repente,
Suspender-lhe a pecúnia, declarando
Categoricamente
Que só dinheiro lhe daria quando
Ele quisesse entrar no bom caminho,
E andasse «muito, muito direitinho».
— Um meio há de o fazeres,
O bom pai aduziu: troca essa vida
De festas e prazeres
Pela vida em família. A Margarida,
Filha do meu amigo Castro Motta,
Gosta muito de ti; é moça, é bela,
O pai é rico e certamente a dota.
Serás feliz casando-te com ela.
Esse o meio será de prosseguires
Nos estudos. O meu conselho segue,
E olha: se o não seguires,
Para o diabo vai que te carregue!

Não foi para o diabo o nosso Abrantes,
Que, três meses depois desse conselho,
Sendo embora um fedelho,
Sem conhecer do mundo as cambiantes,
Casado estava e muito bem casado.

Durante meses, no seu novo estado,
Foi dos maridos jovens o modelo:
Fazia gosto vê-lo
Sempre ao lado da sua mulherzinha,

Que uma afeição puríssima lhe tinha;
Mas, depois de formado,
(Sim, porque o moço conseguiu a beca),
Daquele dueto se sentiu cansado
E fez coisas da breca,
— Tantas e tais, que Castro Motta, o sogro,
Observando o malogro
Da ventura da filha amada, um dia
Não quis que ela nem mais uma semana
Vivesse em companhia
Daquele doidejana,
Que a deixava ficar sozinha em casa
Dias e noites, nem perdia vaza
De se exibir escandalosamente,
Com mulheres perdidas, nos lugares
Onde havia mais gente,
Sem dares nem tomares.
Carregou-a dali. — Pois satisfeito
(Podeis acreditar) ficou Abrantes
Quando, ao entrar, com passos vacilantes,
No seu quarto, lá pela madrugada,
Achou vazio o leito
Onde a esposa devia estar deitada,
E sobre o travesseiro
Um papel em que havia este letreiro:
«Vou para casa de meu pai.» Mais nada.

O médico, durante alguns instantes,
Pensou em Margarida...
— Fugiu? Melhor! É’ tão desenxabida! —
Era um patife Tolentino Abrantes.

Mas como o pai do lado o houvesse posto,
E do sogro infeliz secasse a teta,
E doente nenhum fizesse gosto
Em recorrer à sua medicina,
Em breve Abrantes se apanhou sem cheta*,
E passou existência bem mofina.

Não tinha o pobre diabo
O que fazer da vida, e já pensava
Em dela enfim dar cabo,
Quando um roceiro, que na corte estava,
Propôs leva-lo para certa vila
Ignorada e tranquila
Onde faltava um médico; podia,
Se não fazer fortuna,
Pelo menos ganhar grossa maquia**.

A proposta oportuna
Abrantes aceitou; foi para a roça,
Quinze anos respirou, num mundo a parte,
O oxigênio do mato, que remoça,
E, aprendendo a sua arte
No corpo dos escravos, nas fazendas,
Afinal ganhou fama
De haver feito umas curas estupendas,
Moribundos erguendo até da cama!
Regenerou-se. O ver constantemente
As moléstias alheias,
Fez-lhe voltar o coração ausente,
Deu-lhe boas ideias;

Tinha Abrantes agora
Fundos remorsos do viver de outrora.

Sim, quinze anos esteve
Naquela redondeza. Um dia, teve
Desejos de ir à capital do Estado,
Afim de espairecer o seu bocado,
E, indo ao teatro, viu num camarote
Uma linda mulher; impressionado,
Pretendeu dar-lhe um bote:
Subiu ao corredor num intervalo...
Qual foi o seu abalo,
Reconhecendo nela,
Vista de perto, a pobre Margarida,
Que não lhe pareceu desenxabida!
Muito mais gorda, mas também mais bela
Estava. O porte altivo e majestoso,
Lânguido o olhar velado e misterioso...
Tão formosa não era a própria Vênus!...
Que singular acaso!
Surpreso ele ficou; pudera! — o caso
Não era para menos.

— Gosta dela, doutor? disse-lhe rindo,
Um conhecido que passava. — Gosto.
— Não se lhe dava de a apanhar, aposto!
Anjo não há mais lindo!
Pois bem: tire daí o pensamento:
É casada. — Casada? — Sim, casada!

O marido não tarda aí um momento:
É engenheiro da Estrada.
Há dias aqui estão, vindos do Rio. —
Outro indivíduo, tipo de vadio,
Que passava também parou e disse:
— Casada? Que tolice!
Eles não são casados!
O marido era um médico: deixou-a
E nunca mais nem novas nem mandados
Deu da sua pessoa.
Depois de abandonada,
Ela viveu com o pai pura e honrada.
Mas o velho morreu; ela, coitada!
Do engenheiro gostou, e não podendo
Casar-se, ficou sendo
A mais fiel das amantes.

Foi para o hotel Abrantes,
E, na manhã seguinte,
No trem das seis e vinte
Para a roça voltou, bem castigado
De todo o seu passado.

Hoje ele é morto, e é ela a esposa amada
Do engenheiro da Estrada.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* Cheta = qualquer quantia pequena de dinheiro.
** Maquia = gorjeta; lucro.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman

João da Câmara (O Ventura)

Quando começou de namoro com a Maria Eduarda, ainda não havia carreiras de vapor. Faziam apenas concorrência aos catraeiros de Belém os ônibus imensos da Companhia, que de meia em meia hora passavam, chocalhando por aquela estrada afora até ao Pelourinho, uns vinte passageiros, a seis vinténs por cabeça.

A vida de barqueiro não era então das piores; e o José da Anastácia com o seu bom gênio constante e o sorriso obsequiador, em que mostrava os dentes amarelados pelo tabaco, quase da cor do rosto requeimado pelas soalheiras do Tejo, conquistara as simpatias de muitos, que preferiam o bote dele e a viva conversa do algarvio, à velocidade pacata dos churriões (carruagem grande e pesada) da Companhia.

Era vê-lo quando, por exemplo, tinha de transportar até ao Terreiro do Paço a família do Conselheiro, azafamado, logo desde manhã, lavando o bote, arranjando o toldo, remendando a bandeirinha portuguesa, dádiva das meninas, e que flutuava lá no alto, no angulo da vela, com mais donaire e, com o ser pequena, com mais orgulho que a bandeira branca de cruz vermelha de uma nau da Índia.

O Conselheiro, muito amigo dele, nunca lhe chamava senão o Ventura. Tinha-lhe ficado a alcunha. E bem a merecia, quando sentado ao leme, com a mão junto aos sobrolhos e os olhos semicerrados por causa do sol, todo cheio de si e do seu barco, sorria satisfeito, vendo a bandeirinha a flutuar lá em cima, e a proa do bote, um pouco tombado, riscar o espelho azul, em que as ondas só lá muito longe se encarneiravam, nas Bailadeiras, junto ao Pontal de Cacilhas.

E os véus azuis das filhas do Conselheiro esvoaçavam alto, erguidos pelo vento. À volta, como não havia pressa, preferiam vir a remos. O José, para entreter, contava histórias e fazia reflexões, que as meninas aprovavam, meneando lentamente a cabeça, sentadas uma de cada lado do barco, fitando os olhos nas margens do Tejo que deslizavam lentamente. E ele, fincados os pés no banco dianteiro, de mangas arregaçadas, deixando ver os músculos possantes dos braços cabeludos, duros como seixos e palpitando com o esforço, sorria numa felicidade santa e levantava compassadamente os remos, de onde caiam enfiadas de pérolas, que os últimos raios do sol cravejavam de pontos luminosos.

A Anastácia, uma velhinha, que morava numa agua furtada, quase ao cimo da Calçada da Ajuda, benzia-se reconhecida cada vez que o José entrava em casa, atirando para cima da mesa os ganhos do dia; e, pegando na cabeça do filho com ambas as mãos, enterrando os dedos rugosos na basta grenha emaranhada, beijava com ânsia, mil vezes, sobre os cabelos secos e duros, o amparo querido da sua viuvez.

Ele, um homenzarrão com vinte e tantos anos, adormecia, logo depois da ceia, com a cabeça reclinada no colo da mãe, cansado, mas feliz, contente naquele ninho.

—José, vamos, acorda, dizia ela, dobrando o serão, quando na torre da Boa Hora batiam vagarosamente as dez.

O José levantava a cabeça e passava a mão pela nuca, cheio de sono.

—Que é isso homem? Põe-te em pé, pedaço de mandrião!

Com os olhos meio cerrados, encandeado, dirigia-se então para o quarto, murmurando:

—Sua bênção, minha mãe.

E não pediam a Deus senão um futuro de dias assim.
*
* *
Pelos fins de outubro, uma tarde, o José lembrou-se de deitar por ali fora, até Monsanto.

Ia passeando devagarinho.

O vento soprava do noroeste. Ao meio dia tinha dado aquela volta, e o José achavalhe jeitos de querer saltar para a barra. Quando chegou ao cimo da serra, viu o Bugio rodeado de espuma e as ondas caindo do alto, lá por detrás, ao pé da Costa. 

Diabo do inverno! Começava cedo.

O sol descia. O José parou um bocado a vê-lo mergulhar na espuma. Começou soprando mais rijo o vento, e, quando o sol desapareceu, fechava o horizonte uma lista negra, franjada de oiro, que ameaçava engrossar. 

Pois paciência! Felizmente lá estavam na gaveta as economias do verão. Todos os anos havia inverno e na casa dele nunca houvera fome, graças a Deus. E o José levou a mão ao barrete.

Sentia-se feliz, não tinha cuidados, o dinheiro entrava-lhe pela porta dentro; teria até demais, se fosse a comparar, porque a ele nada lhe faltava e a muitos faltava tudo. Lembraram-lhe então certas historias. Aquela mulher a quem uma vez alugara o bote, porque a encontrara a chorar no Largo. Tinha deixado os filhos sozinhos em Caparica e estava ali com um vintém na algibeira; e ele alugara-lhe o bote pelo vintém, que aceitara, porque não queria envergonha-la. E outra vez que ele se escondeu para o Conselheiro o não ver e alugar o bote ao tio Matheus, que havia dois dias não trabalhava e tinha a filha doente em casa, a tossir, a tossir, e ele sem dinheiro para lhe comprar o caustico?

Havia tanta pobreza!

Ele nada lhe faltava e até na algibeira trazia quase sempre uns cobres, para o que desse e viesse. E como levava sede, entrou numa taberna e pediu dois decilitros. O taberneiro tinha saído. Foi a filha quem veio servir.

O José ficou um pouco enleado a olhar para a rapariga, quando esta lhe trouxe o copo transbordando, deixando cair no pires de barro grosso, branco, riscado de azul, um pouco de vinho em que ela molhava a unha do polegar. 

Para o gosto dele nunca vira mulher assim!

Levou a mão ao barrete, e disse com a sua educação costumada:

—Muito obrigado.

E ficou-se a olhar para ela, um pouco apatetado, querendo falar e não lhe ocorrendo nada, sentindo como que um nó na garganta e um véu no entendimento, que o apoquentavam.

Era uma rapariga alta, magra, de cabelos castanhos muito finos, muito compridos, separados no alto por uma risca estreita, mostrando o casco branquíssimo; a orelha pequenina; o nariz perfeito apesar duma pequena quebra; a boca um quase nada grande, com o beiço interior saliente, e uns olhos azuis escuros, que entonteceram o José, quando Welles demorou os seus.

Do outro lado do balcão, de mangas arregaçadas, um pouco enleada também pela ingénua admiração que percebia causar àquele homem, lavava os copos num alguidar de zinco posto em cima d'um mocho, e colocava-os depois na prateleira de pinho pintada de azul, virando para o ar os fundos, onde, como aureolas, se alastravam grandes nódoas roxas rebeldes à limpeza.

A noite vinha-se aproximando. A taberneira raspou um fósforo na prateleira e, desviando a cara dos fumos do enxofre, acendeu o candeeiro de petróleo.

—Muito boa noite, disse.

—Boa noite, respondeu o José, erguendo-se um pouco.

E nunca música para ele valera aquela voz.

O vento fora soprava rijo e o ramo de loiro à porta raspava na parede.

O José levantou-se e abriu o saquinho de algodão. Com voz sumida pediu por favor dois charutos cortados e pagou, levando a mão ao barrete, sem se atrever a mais palavra. 

Por toda a estrada veio pensando na rapariga. Trazia-a indelevelmente fixada na memória, e até nas mais pequenas particularidades, uns sinaizinhos espalhados pelo nariz e um outro sobre a pálpebra um pouco mais acentuado.

E repetia mentalmente, muito enlevado, as únicas palavras que lhe ouvira:—«Muito boa noite. Muito boa noite.»
*
* *

A mãe estranhou-o. Em vez de adormecer para ali, depois da ceia, como costumava, pregou os olhos no teto, e ficou-se a mascar um bocado de charuto, a mascar, ora serio, ora sorrindo a alguma imagem que entrevisse, como quem faz castelo no ar, que os vê cair de repente e logo erguerem-se mais alto. Nem sequer reparou nos olhares perscrutadores que a mãe, de vez em quando, lhe lançava por cima dos óculos.

Mas de repente a pobre Anastácia deu-lhe o coração um baque. E ela que nunca se lembrara daquilo! Pois não era certo que tarde ou cedo havia de acontecer? E com um fundo suspiro de saudade pelo bom tempo que passara, murmurou com os olhos embaciados:

—Queira Deus que seja para bem.

O José encarou-a, despertado por aquela voz.

Ergueu-se e aproximou-se da janela, que abriu.

O vento soprava do sudoeste. Ao longe a barra roncava medonhamente. Grossas cordas de água entraram no quarto.

—O inverno! disse ele, fechando a janela.

A velha encolheu os ombros.

E depois, com certo ar malicioso, já conformada:

—Ainda agora para ti começa a primavera!
*
* *
Pouco tempo durou.

Uma noite, o José sentou-se tristemente à proa do bote e remou devagar para o largo. Chegado a meio do rio, deixou os remos e, traçando a perna, fincando a barba no punho cerrado, deixou ir o barco na corrente. Pôs-se a olhar, sem as ver, para as mil luzes, que no quadro sobre as nódoas escuras dos navios brilhavam como lentejoulas no pano negro dos caixões. Estava triste o José naquela noite.

E quando reparou, à popa do barco, na alcunha dele—Ventura—pintada em grossas letras brancas sobre uma variegada rosa dos ventos, sorriu amargamente e murmurou com ironia:—Ventura!

O bote arrastado pela vazante passou para além da Torre, e o José perdeu de vista os pontos luminosos do quadro. Apenas, ao longe, avistava um candeio baloiçando-se sobre a faixa projetada, tremeluzente.

Que tristeza aquela!

O bote corria para a barra e começava saltando na crista das ondas. Fazia frio, e o Ventura encharcado, tremia.

De repente, o candeio desapareceu. Então o José ergueu-se, pegou novamente nos remos, virou o bote, começou a remar com força para o lado de Lisboa, arquejando, como a fugir d'um perigo. Mas de novo deixou cair os braços, em grande prostração, e a cabeça inclinou-se-lhe sobre o peito. O bote virou devagarinho e continuou em seu caminho fatal.

O farol do Bugio circulava lentamente, e a luz fixa da Torre de S. Julião parecia examina-lo com uma grande curiosidade idiota, nunca satisfeita. O bote passou entre os dois faróis.

As ondas marulhavam de encontro ás bordas do barco, e a musica delas era triste como o coração do Ventura.

E fora o Conselheiro, o seu melhor amigo, quem lhe enterrara o primeiro espinho!

Ao principio correra tudo menos mal. Muitos tinham medo do vapor, e mais que todos o Conselheiro.

—Nada! dizia ele ao Ventura, batendo-lhe com a mão no ombro. Estes progressos são muito bons, mas cá para mim não servem. Um belo dia...

—Zaz!... Pum!... concluía José, rindo muito e imitando com os braços um grande fogo de vistas, que era a caldeira a rebentar.

E, dez dias depois, o José cumprimentava-o com o seu melhor sorriso, e o Conselheiro passava cheio de pressa, afogueado, levando as filhas a reboque, muito coxas com as botas curtas, fazendo todos sinais desesperados com os chapéus de chuva para o vapor que apitava, pronto a largar.

Bem lhe tinha dito o pai da Maria Eduarda:

—Muda de vida, José, ou prego-te a peça.

E, como o José não mudava de vida nem a caldeira rebentava, tinham pregado a peça ao Ventura.

Foi num dia em que o catraeiro, pelo maior dos acasos, tinha ganho dois tostões. E, em vez de os entregar à mãe, foi à loja da esquina comprar um colar de contas para levar à namorada.

—Está cá, menina Maria? perguntou da porta com o coração a bater.

—Saiu, respondeu lá de dentro a voz do pai. Queres-lhe alguma coisa?

—Nada, respondeu.

E ficou encostado à porta, esperando a noiva.

Lá dentro o taberneiro virava na frigideira as sardinhas que aloiravam, bailando e cantando uma cantiga festiva no azeite a ferver. E o Ventura à porta apertava na mão a caixinha das contas, e tinha fome.

—Olá, seu Manuel Joaquim, disse entrando alegremente na taberna um cocheiro de grandes melenas oleosas, repuxadas para diante das orelhas, cara escanhoada, chapéu de capa de oleado deitado para traz. Já vieram as senhoras?

—Ainda não, mas não podem tardar. A pequena disse à mãe que haviam de voltar cedo por você cá vir... Seu maroto!...

—Ó seu Manuel Joaquim!... Eu cá dou-lhe a minha palavra...

—Mau! mau!

E, largando as Sardinhas, chegou-se ao pé do cocheiro e disse-lhe ao ouvido:

—Olhe que a ceia está pronta e tenho ali uma pinga...!

O Ventura à porta, envergonhado, sem se lembrar de os matar a ambos, escondia o pé descalço atrás da perna nua e torcia nas mãos o barrete de lã esburacado. E logo voltando, num desespero, atirou ao chão a caixa do colar. E as contas de vidro foram adiante dele saltando por longo tempo, fazendo uma bulha alegre de gargalhadinhas trocistas.

E a mãe àquela hora tinha fome...! E fora talvez a fome que a matara!

Lá estava enterrada na vala dos pobres, lá muito longe, por detrás daqueles montes, que a lua a nascer, espargindo uma embaçada claridade, azulava docemente. 

Estavam fora da barra, o mar estava picado e o Ventura tremia.
*
* *
No dia seguinte, ao amanhecer, foi encontrado, meio desfeito, para além de S. Julião, um bote abandonado, que tinha à popa escrito numa variegada rosa dos ventos o nome do Ventura.

E quando soube da triste nova, enquanto aos olhos das filhas subiam saudosas e sentidas lágrimas, o Conselheiro, gravemente, lembrando-se do pouco tempo que durara a primavera do José, citou as rosas de Malherbe.

Fonte: João da Câmara. Contos. Lisboa: Guimrães, Libânio & Cia, 1900. Disponível em Domínio Público. Convertido para o português atual por Jfeldman. 

Hinos de Cidades Brasileiras (Paranavaí/PR)


por Geraldo Marques e Carlos Cagnani

Quando te vemos hoje, assim radiosa,
Teus filhos agitados no labor,
Lembramos da empreitada gloriosa,
Que calejou as mãos do lavrador
E fez romper da terra generosa
Os ricos frutos do progresso e amor!

Estribilho:
Nasceste sob o signo da vitória
Que os filhos teus souberam conquistar
És a um só tempo a evolução e a glória
Cidade que não pode mais parar!

Ó Paranavaí dos cafezais
Simétricos, em flor sobre a paisagem,
De belos e de extensos matagais,
Planícies verdejantes de pastagem...
Da glória tu chegaste até os umbrais!

Estribilho
Nasceste sob o signo da vitória
Que os filhos teus souberam conquistar
És a um só tempo a evolução e a glória
Cidade que não pode mais parar!

Salve teus filhos, que na faina ardente
Sobre teu solo ainda hostil e agreste
Traçaram teu destino florescente!
Salve, ó cidade que te engrandeceste
Ó bela Capital do Noroeste!

Estribilho
Nasceste sob o signo da vitória
Que os filhos teus souberam conquistar
És a um só tempo a evolução e a glória
Cidade que não pode mais parar!

Maya Falks (Espaços Fechados)

Do lado de fora, há uma guerra.

Apesar do silêncio, há uma guerra. Estou trancada em meu quarto tem pelo menos quarenta e cinco dias. Quarenta e cinco amanheceres nesse espaço de poucos metros quadrados, muito maior do que onde Ravena, minha irmã, está nesse momento. Ela ocupa poucos centímetros; seu novo quarto é marrom por fora, tem detalhes em bronze e fica, agora, sobre a mesma estante onde estão nossos retratos da linha do tempo.

À esquerda da urna, há um retrato de nós duas, sem alguns dentes, depois ostentando as mesmas roupas iguais, que foram nossa marca registrada na infância, para ninguém saber quem era quem. À direita, nós duas, quando passamos no vestibular, sujas de farinha e ovo, e depois meu retrato de toga enquanto Ravena fazia só figuração.

Ela era espírito livre, nunca aceitou essa ideia de ficar trancada em casa.

Quando nos disseram que essa guerra invisível começaria, ri dela, imaginando que aprenderia a escalar paredes com a unha para não precisar ficar ali, naquele apartamento pequeno, se remoendo em uma claustrofobia imaginária porque ali não tinha espaço para ela ser o animal selvagem que sempre disse ser.

Eu, ao contrário, nunca tive dificuldade de permanecer em completa inércia. Minha liberdade sempre foi no campo das ideias, e eu nunca precisei mover um único dedo para realizar mil malabarismos e viagens fantásticas.

– Você vai virar gelatina – ela dizia.

– Você vai virar alvo na temporada de caça – rebatia, arrancando aquele riso frouxo de quem se identificava mais como leoa do que como gente. Braba como só ela, garbosa, mandona e livre.

Era inacreditável que dividimos o mesmo útero por quase nove meses. E digo quase porque nem ali Ravena teve paciência de permanecer em um espaço fechado até o fim e me obrigou a sair do conforto do ventre quatro semanas antes do esperado.

Dizem que nascimentos antecipados são comuns entre gêmeos, eu ainda acho que isso aconteceu porque Ravena tinha pressa. Ela sempre tinha pressa. Talvez soubesse que teria uma vida breve ou talvez tenha tido a vida breve por ter pressa demais.

Apesar do silêncio, há uma guerra lá fora. Ela não entendeu porque sempre víamos guerras como coisas extremamente barulhentas. Acho que foi quando chegamos à agitação da emergência que ela entendeu que era uma guerra, mas aí já era tarde demais. Sempre é tarde demais quando temos tanta pressa, era o que vovó dizia a ela quando vomitava depois do almoço porque devorava a comida num só fôlego para ir pra rua brincar mais rápido.

Decretaram a quarentena por aqui em um domingo. Vimos na TV. Ravena saiu da sala aos berros, falando todos os palavrões que poderiam caber no vocabulário de uma menina de 23 anos. E ela era criativa, a danada, saíram até uns palavrões híbridos. Ela se trancou no quarto. Eu achava engraçado quando ela se trancava no quarto porque era um espaço pequeno e ela não aguentava mais de que um ou dois minutos.

– Deixa de drama, Ravena, é só um período, depois passa – falei quando ela passava por mim batendo as tamancas no piso de madeira do corredor.

– Pra você é fácil, né? Basta continuar fazendo nada, como sempre foi.

E seguiu para a cozinha, onde quebrou o terceiro copo da semana. Ela simplesmente não conseguia segurar qualquer objeto quando ficava muito agitada. Mamãe prometeu que a levaria ao médico a vida inteira, nunca cumpriu, até porque era difícil mesmo planejar qualquer coisa envolvendo Ravena; a chance de ela desaparecer pelos matos que circundavam o bairro era imensa.

Na terça-feira, nem dois dias de quarentena decretada, acordei no final da manhã com mamãe e Ravena discutindo. Ravena dizia que tinha um festival na casa de campo de um amigo, que fica a poucos quilômetros daqui e que já estava marcado há mais de um mês. Ela faria a discotecagem e não poderia faltar. Questão de responsabilidade, dizia.

– Ravena, pelo amor de Deus, isso aqui é assunto sério, filha!

– Meu trabalho também é assunto sério, mãe! Eu fui contratada pra colocar música na festa, não vou falhar!

– Mas Ravena, é uma pandemia! Esse festival nem deveria acontecer!

– Não foi cancelado, nem todo mundo embarca na histeria coletiva. Deixa de drama, eu levo o álcool e tá tudo bem.

– Não, no último festival, você voltou quatro dias depois, acha mesmo que pode conviver em segurança com um monte de gente por quatro dias?

– Por favor, mãe, essa ideia de que essas pessoas são sujas vem de gente preconceituosa!

– Não estou falando em limpeza, filha, estou falando do vírus!

– Vocês acreditam fácil demais nessas coisas, credo! A vontade que eu tinha, ouvindo da porta do quarto, era pegar Ravena pelos cabelos para que deixasse de ser cretina. Tinha gente morrendo. A quarentena só foi decretada depois que a pandemia saiu de controle. Não há exagero em medidas de segurança quando o jornal precisa ampliar o espaço do obituário.

– Dona Araci morreu ontem, vieram os moços uniformizados tirar ela de casa. A família não teve nem chance de se despedir, levaram direto pra cremação – falou mamãe tentando segurar o choro.

– Dona Araci já estava fazendo hora extra no mundo.

Eu sou jovem, muito mais saudável que vocês. Sem drama, vou lá, faço meu trabalho e volto.

– Não volta, vai arranjar um canto pra fazer quarentena – falei, invadindo a conversa.

– Olha só, projeto de clone, eu não dou a mínima para suas paranoias, vou lá fazer meu trabalho e volto pra casa, enquanto você fica aí, se ocupando de ser uma matéria estática.

Eu não lembro o dia em que Ravena começou a me odiar, mas lembro que já fazia bastante tempo. Foi quando ela começou a namorar um garoto da escola, tínhamos entre treze e catorze anos, e eu me passei por ela porque nunca tinha beijado e queria saber como era. O garoto caiu no meu truque, mas percebeu que eu não era ela na hora do beijo. Naquela noite, Ravena me bateu, nem mamãe conseguia tirar ela de cima de mim.

Ela foi embora de casa na manhã seguinte pra morar com o garoto na casa da família dele. Ela não falava mais com a gente, mas mamãe conseguia notícias falando diretamente com os pais dele. E foi por terceiros que descobrimos que Ravena estava grávida.

Os pais dele, sempre tão polidos, educados, gente de bem, botaram minha irmã pra correr porque onde já se viu uma mocinha de catorze anos sem nenhuma educação sexual engravidar do namorado com quem divide a cama sob supervisão deles? Não teve conversa, Ravena foi colocada na rua carregando o neto deles, numa madrugada qualquer.

Mas ela não voltou pra casa. Tinha vergonha. Fomos saber dela dias depois, em um hospital, se recuperando de um aborto, causado por uma tentativa de suicídio. Ravena, tão cheia de vida, tentou morrer. Ela então aceitou voltar, mas, apesar do ódio que nutria pelo ex-namorado – de quem nunca mais tivemos notícias –, não me perdoou, ou pelo menos não o bastante para voltarmos a ser amigas.

Eu não me importava, também a odiava da minha maneira. Éramos idênticas, me preocupava o fato de ela ser tão livre ostentando por aí as minhas fuças. Foi aí que comecei a pintar o cabelo, numa tentativa meio boba de me diferenciar da minha irmã doidona.

Ravena não aprendia nem na dor. Todas as vezes que mamãe tentava impedi-la de fazer bobagem, ela tinha que ser resgatada em seguida de algum apuro. Dessa vez, a gente sabia que não seria diferente e sequer seria a primeira das suas enrascadas que poderia ser potencialmente letal.

E foi assim que Ravena voltou pra casa quatro dias depois do começo do tal do festival. Estava destruída. Tentamos não entrar em paranoia, afinal, não sabíamos quanto tempo nesses quatro dias ela tinha efetivamente parado para dormir ou descansar um pouco.

Por uns dias, ficou quieta na cama, tomando o caldo de galinha de mamãe e muita água para se reidratar. Mas não demorou para ela mesma perceber que seu cansaço parecia não ter fim. Também não demorou para os primeiros calafrios e para ela me acordando de madrugada desesperada tentando puxar ar.

Ela não queria sair da cama, dizia que não aguentava dois passos, então mamãe ligou para o pronto-atendimento.

– Que idade tem ela? – perguntou a atendente.

– 23, 23 anos.

– A senhora não se preocupe, não é grupo de risco. Vai ficar tudo bem. Aconselhamos a manter ela em quarentena porque ela dificilmente conseguirá leito no hospital.

Mamãe chorou.

Qual é? A gente conhecia Ravena o bastante pra saber que sua letargia era um sintoma grave. A menina tinha a energia de uma hidrelétrica e agora não conseguia levantar da cama. Dizia ela que a dor no peito causada pela falta de ar parecia um ataque a facas.

E aí soubemos que, de toda a molecada que participou do festival, já havia um rastro de mortes. Dos próprios jovens, já se somavam três, mas o grave mesmo ficou para os bastidores; muitos hegaram infectados nos pequenos apartamentos que dividiam com pais e avós, e aí o índice de mortalidade se multiplicava. A mãe de Samuel, que trabalhou no bar do festival, ligou lá em casa pra contar que o rapaz estava entubado e que a sogra tinha sido cremada no dia anterior.

A pandemia estava de plantão na porta da nossa casa. Ou melhor, na cama ao lado da minha. Me mudei temporariamente para a sala. Deixamos Ravena sozinha no quarto, e mamãe entrava lá para levar comida, analgésicos, medir a febre e improvisar um banho a cada dois dias.

Um dia, em meio aos meus cochilos entediados, acordei com um grito de mamãe. Ravena não se mexia, mas ostentava no rosto a expressão de horror de quem tentou desesperadamente puxar o ar até seu último segundo. Sufocou. Filmes de terror agora me parecem comédia romântica perto da imagem que vi de minha irmã gêmea já restando somente sua carcaça no quarto que dividimos desde a infância. Ou pelo menos nos períodos em que ela morou com a gente.

Mamãe cuidou de tudo, eu fiquei estática no sofá enquanto recolhiam o corpo dela, e mamãe limpava o quarto para que eu pudesse voltar a habitá-lo. Foi ela também quem saiu de casa para buscar as cinzas e escolheu a urna.

Eu só entrei na história quando a coloquei no carro, abatida, e rumei para o hospital de campanha que foi montado pela prefeitura.

Foi aí que entendi que essa guerra só é silenciosa para quem não está na linha de frente. Lá o barulho era intenso. Desde profissionais gritando uns com os outros pela força da urgência, até pacientes sozinhos em suas macas gemendo de dor, tentando puxar o ar, rezando e toda a sorte de sons que somente o caos é capaz de produzir.

Não sei se a imagem da minha irmã já tinha sido o ápice de cenas avassaladoras que poderiam me tocar, mas, apesar de toda a tristeza que me consumia, eu não fiquei impressionada. Mamãe ficou em observação, e eu fui mandada pra casa. Ela era grupo de risco, e tínhamos perdido Ravena, então também não me foi surpresa quando ligaram avisando que ela estava sendo entubada, nem quando confirmaram o teste positivo.

Logo que voltei sozinha pra casa, ia à cozinha de tempos em tempos, mas passava pela estante onde agora Ravena descansa em um pequeno montinho de pó, então desisti do percurso, instalei o telefone no quarto e montei um pequeno estoque de alimentos ali mesmo, saindo para repor com alguma raridade.

Quarenta e cinco dias da internação de mamãe. Observando da minha janela a ausência de movimento, o silêncio, o luto que se abate sobre todos os prédios do quarteirão. Em praticamente todos, já morreu alguém. A gente demorou demais para levar a sério.

Pela redondeza, o barulho dos pássaros só é interrompido por eventuais sirenes ou pelos gritos desesperados de alguém que recebeu uma ligação do hospital. Fico imaginando como será minha reação quando meu telefone tocar. Eu sei que vai tocar e que a ligação me será dolorida. Mamãe está em coma.

Irônico que eu tenha compartilhado do útero dela com outro ser humano, que eu tenha nascido em uma família com pai, mãe e irmã, que nem na minha formação uterina eu tenha estado sozinha, e agora estou aqui, já sem lembrar do rosto de papai, que enfartou jovem, e sem poder esquecer de Ravena, já que a vejo toda vez que me olho no espelho.

Meus remédios para dormir já se aproximam do fim. Mamãe já se aproxima do fim, e a pandemia parece ser a única coisa que pretende permanecer por aqui por mais tempo. Nem os cães vadios mais passam pela nossa rua, que parece tirada de uma distopia qualquer. No começo, nos tempos que Ravena morria aos poucos, alguns vizinhos ainda saíam com uma desculpa qualquer; hoje, a maioria dos que saíram estão presos nessas mesmas urnas em que minha irmã, tão sedenta de liberdade, acabou confinada.

Pensei na ironia da coisa toda, porque não existe espaço mais apertado do que um caixão, e essas pessoas terminaram seus dias em um porque não suportavam a ideia de viverem confinados em suas próprias casas. Não é à toa que o vírus se espalhou tão rápido. Não é à toa que todo mundo por aqui já perdeu alguém ou mais de um alguém.

Eu não tive sintomas, mas o que ninguém fala na TV é que a sensação de sufocamento não é exclusiva dos contaminados. Os que enterram seus mortos também se sufocam. Se sufocam na dor, na perda, no vazio, no choro que seca porque o corpo não produz água o suficiente para chorarmos todos os nossos mortos em tão pouco tempo. Estou sufocada não pelos pulmões ou pelo confinamento, mas pela impotência.

Mamãe tem um tubo enfiado no corpo para que seu pulmão não desista.

Me pergunto se ela ainda luta.

Me pergunto se eu ainda luto. Perdi as contas de quantas vezes acordei sorrindo por achar que me faltava o ar. Mas não era o vírus, era o luto. Me falta o ar porque a traqueia não consegue se dividir entre a respiração e os espasmos causados pelo choro constante.

E então fico apática. Olhando do lado de fora sem acreditar que há uma guerra. Que, em algum ponto daquele hospital de campanha, mamãe está em uma trincheira. Posso imaginá-la em um campo de batalha, mas me recuso a criar dela a imagem de um corpo entubado sobre uma cama, sem perspectiva de voltar a ter vida dentro dele.

Quarenta e cinco dias que voltei sozinha pra casa. Não ligo a TV, não vejo notícias, não sei em que ponto estamos da pandemia, nem quanto tempo falta para a quarentena acabar. Não espero que volte tudo ao normal porque já não existe mais o normal, pelo menos, não para mim, para meus vizinhos, para milhares de pessoas que seguirão em frente pela metade.

Se eu não voltar a dividir quarto com a minha irmã naquela urna que está na sala, não sei se terei coragem de me considerar uma sobrevivente. Para isso é preciso continuar vivendo, não é? Pois não acho que isso seja possível.

Entrei em um universo paralelo onde minha quarentena só terminará quando eu reencontrar mamãe e Ravena. Talvez nesse encontro eu finalmente diga a ela que beijei todos os seus ex-namorados e não apenas o primeiro.

Fonte: Revista Acrobata. 26 agosto 2021.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Adega de Versos 117: Welton Melo (O que tu és para mim)


 

Mensagem na Garrafa – 64 -

Mario Quintana

(Mário de Miranda Quintana)
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS


CANÇÃO DO DIA DE SEMPRE


Tão bom viver dia a dia...

A vida, assim, jamais cansa...


Viver tão só de momentos

Como essas nuvens no céu...


E só ganhar, toda a vida,

Inexperiência... esperança...


E a rosa louca dos ventos

Presa à copa do chapéu.


Nunca dês um nome a um rio:

Sempre é outro rio a passar.


Nada jamais continua,

Tudo vai recomeçar!


E sem nenhuma lembrança

Das outras vezes perdidas,

Atiro a rosa do sonho

Nas tuas mãos distraídas... 

“O Voo da Gralha Azul” (Um site exclusivamente de trovas)




Um site cujo conteúdo é exclusivamente composto de trovas, em atividade desde 2016. 

São dezenas de milhares de trovas de centenas de trovadores, homenagens, trovas de concursos, dicas, artigos, etc.

Ensinamentos do Professor Renato Alves; 
Trova e Cidadania, por Luís Gonzaga da Silva; 
O bom trovar, por Maria Thereza Cavalheiro; 
Textos de A. A. de Assis;
A trova Humorística, por Luiz Otávio; 
O nome próprio na trova, por Marina Bruna;
Trovas circunstanciais, por Aparício Fernandes;
A classificação das trovas, por Aparício Fernandes;
e mais…

Centenas de trovadores de ontem e de hoje, como por exemplo
Alfredo Valadares, Alonso Rocha, Amilton Maciel Monteiro, Ana Maria Motta, Ary Santos Campos, Brandina Rocha Lima, Carolina Ramos, Cláudio de Cápua, Cláudio Derli, Clenir Neves Ribeiro, Clodoaldo de Abreu Filho, Darly O. Barros, Domitilla Borges Beltrame, Dorothy Jansson Moretti, Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho, Elton Carvalho, Fernando Câncio de Araújo, Fernando Vasconcelos, Gislaine Canales, Héron Patrício, Ialmar Pio Schneider, Istela Marina Gotelipe Lima, Izo Goldman, Jessé Nascimento, Luiz Otávio, Maria Thereza Cavalheiro, Olavo Dantas Coelho, Olympio da Cruz Simões Coutinho, P. de Petrus, Paulo Emílio Pinto, Relva do Egypto Rezende Silveira, Roberto Tchepelentyky, Therezinha Dieguez Brisolla, Vasques Filho, Vanda Fagundes Queiroz e muitos mais.

Este é o seu site, Trovador. Participe, envie suas trovas e de trovadores falecidos.


Hinos de Cidades Brasileiras (Almirante Tamandaré/PR)


por Harley Clóvis Stocchero

No teu céu, que é tão belo e azul,
brilha sempre o Cruzeiro do Sul;
quando Deus, ao compor o Universo,
fez aqui o seu mais belo verso;
e ao pintar, também, a natureza,
pôs mais cor no pincel, com certeza...

Nas tuas matas, no morro ou restinga,
nasce, cresce e dá mel bracatinga,
que, aliada à extração mineral
sua lenha vai produzir cal,
desta terra maior produção
que é exportada por toda Nação.

Estribilho
Almirante Tamandaré
o teu povo tem força e tem fé,
conservando, na sua tradição,
Nossa Mãe, Virgem da Conceição.

Da união do minério e o trabalho
por igual produzimos calcário;
tendo aqui sempre boa produção
nosso milho, a batata e o feijão;
também forte é em nossa lavoura
o repolho, o tomate e a cenoura...

O Tingui nos levou o amor
que preserva o riacho e a flor;
Gralha Azul nos plantou o pinheiro,
que cresceu para o céu altaneiro;
e os gorjeios de nosso sabiá
têm beleza que em outros não há!...

Nesta terra abençoada e feliz
vive um povo que ora e prediz
a grandeza de Tamandaré
no valor do trabalho e da fé.

Estribilho
Almirante Tamandaré
o teu povo tem força e tem fé,
conservando, na sua tradição,
Nossa Mãe, Virgem da Conceição.

Almirante Tamandaré
o teu povo tem força e tem fé,
conservando, na sua tradição,
Nossa Mãe, Virgem da Conceição.