quarta-feira, 3 de abril de 2024

Lygia Fagundes Telles (A Estrela Branca)

Ah, meu Deus, meu Deus! Como poderei contar todo esse horror, se tenho a boca seca como se tivesse engolido um punhado de areia e se as minhas mãos estão geladas como as mãos dos afogados?! É a realidade ou um pesadelo? Desde quando estou assim rodando desgovernado feito um pião, com as palmas das mãos comprimindo com força os meus olhos — espera, eu disse os meus olhos?…

Espera, calma, um pouco de calma e saberás tudo, vamos pelo começo. 

Foi há dois meses, que tateante e apoiado numa bengala cheguei a esta ponte, um cego mas um cego orgulhoso, nunca quis ter aquele cão-guia que vai indo assim na frente silencioso e triste. Ah! Querem tanto se libertar e a libertação dos guias e dos cegos só pode ser a morte.

Naquele dia, tomado por uma alegria quase insuportável consegui chegar a esta ponte e fiquei ouvindo as águas tumultuadas do rio correndo lá embaixo e que me chamavam: “Vem!…” Para não despertar a atenção dos passantes, eu pousei a minha bengala no chão, segurei no gradil de ferro e cheguei a sorrir tão feliz como naquela minha última noite em que vi a minha estrela branca pela última vez, palpitando lá no céu. Estava tão próxima que se estendesse a mão poderia segurá-la. Ah! Era linda essa última visão antes de mergulhar nesta treva. Dormi feliz e quando acordei não enxerguei mais nada e então comecei a gritar: “Estou cego, estou cego!” E as pessoas em redor pensando que eu tinha enlouquecido, antes fosse loucura, mas era mesmo a cegueira. Fui levado para o hospital e durante um ano os médicos tão atônitos quanto eu, mesmo tratando deste cego sem solução e sem explicação, os dias, os meses correndo e aquele espanto, aquela perplexidade… Então pensei: “Não quero isto, não quero!” E de repente resolvi fugir. Lembrei-me daquele rio correndo caudaloso e que seria a minha libertação. Fugi do hospital e perguntando e tateando pelas ruas quase gritei de alegria quando a voz do rio foi ficando mais próxima, mais próxima e me chamando: Vem!

Poucos passantes na ponte e assim tentei fazer uma cara tranquila quando pousei a bengala no chão e me agarrei ao corrimão de ferro, agora, já! Sussurrei crispado como um gato antes de saltar. Foi então que alguém me agarrou pelo braço. Voltei-me enfurecido, e então?!… Quem vinha se intrometer, quem?!… O desconhecido — era um homem — apanhou a bengala no chão e disse com voz tranquila: “Boa tarde!” Crispei a boca, baixei a cabeça. Não respondi e ele ainda me segurando. Ah! Mas o que significava isso? Respirei de boca aberta, calma! Fiquei repetindo a mim mesmo: “E se ele resolvesse chamar a polícia? Deve ser proibido se matar, hein?!” A mão que me segurava era forte, vigorosa. Levantei a cabeça e tentei sorrir: “Quer ter a bondade de me soltar?” eu pedi. Ele afrouxou a mão e em voz baixa, para não chamar a atenção dos passantes disse que eu adiasse o suicídio. Era possível adiar o suicídio? Dilatei as narinas e pensei, ele devia ser um médico, cheirava a hospital.

— Médico?

— Doutor Ormúcio — ele respondeu baixando o tom de voz. — Há quanto tempo está cego?

Ah! meu Deus, meu Deus, quer dizer que ia começar tudo de novo?! Ele tinha aquele mesmo tom obstinado dos médicos lá do hospital. Ah, sim, eu conhecia bem essa raça, melhor ir com calma, decidi e devo ter sorrido porque senti que ele sorriu também.

— Faz um ano, doutor. Pela última vez vi no céu uma estrela e depois dormi e quando acordei não vi mais nada. Fui levado para o hospital e lá fiquei internado, especialistas me trataram, me viraram do avesso e nada, nada, continuava cego. Então eu pediria agora que seguisse seu caminho e me deixasse em paz, agradeço a intervenção, mas largue do meu braço, por favor, e me deixe. É pedir muito?

— Mas há quanto tempo?…

— Estou cego? Há mais ou menos um ano, está satisfeito? Agora adeus, doutor. Siga o seu caminho e seguirei o meu, gratíssimo e adeus!

Ele aproximou-se mais. Falou com a boca quase encostada ao meu ouvido.

— Acontece que andei fazendo algumas descobertas importantes, está me escutando? Você não tem nada a perder, é jovem ainda, quantos anos?

— Trinta e dois.

— Ótimo! Se o meu tratamento falhar, voltará aqui, as águas esperam, este rio não vai desaparecer… O tratamento não será dolorido, isso eu prometo. E não precisará me pagar, serei belamente recompensado com o sucesso dessa operação… Está claro?

— Claríssimo — eu sussurrei.

Ele fez uma pausa. Senti seu olhar atento. Tentei relaxar, Calma! pedi a mim mesmo. O intruso parecia bem-intencionado, era melhor relaxar e assim quem sabe ele me deixaria em paz.

— Tem família? — perguntou.

— Não. Sou só, não tenho nada a não ser a solidão e esta treva. Agradeço de coração a sua proposta, vou pensar nela e agora, se me permite eu me despeço muito grato pelo seu interesse doutor…

— Doutor Ormúcio. Moro só com o meu empregado. Venha comigo e conversaremos melhor, não vai se arrepender, a morte pode esperar, concorda?

Deixei-me levar como uma criancinha. “Esta é a minha casa, e este é o meu empregado”, ele disse quando chegamos. O empregado era um homem ainda jovem, de voz mansa. Parecia estar habituado às singularidades do patrão porque não demonstrou nenhuma surpresa quando Ormúcio pediu-lhe que preparasse o quarto para o hóspede.

Foram dias calmos, eu estava indiferente, apático e foi sem nenhuma emoção que ouvi Ormúcio me dizer depois de um prolongado exame que eu estava em condições de ser operado. “Ah, é uma operação?” eu disse. Ormúcio confirmou e daí por diante não estivemos mais juntos, ele passava o tempo todo no consultório ou no hospital e eu já pensava em fugir quando certa manhã ele entrou no meu quarto.

— Hoje vamos para o hospital.

Nesse instante a ideia de enxergar novamente sacudiu-me com violência. Poderei descrever aquele tempo que antecedeu à operação? “Não me faça perguntas”, Ormúcio ordenava. E eu obedecia, verdadeiro autômato nas mãos daquele homem que ora se me afigurava um deus, ora um demônio, impenetrável como a própria escuridão. Fui um desses bonecos de mola esquecido num canto e que de repente alguém se lembrou de dar corda e a corda foi excessiva, tudo se embaralhou e me descontrolei numa volúpia de movimentos que já era uma alucinação. No meu peito arfante o desespero e a esperança num rodízio enlouquecedor, às vezes eu me sentia rolando no espaço sem direção e sem socorro. Mas de repente um jorro de luz me inundava e eu me preparava para “aquilo” com o entusiasmo de um menino a se aprontar para uma festa. Já nem fazia mais ideia há quanto tempo estava internado à espera quando de repente, numa madrugada — devia ser madrugada — Ormúcio aproximou-se.

— Venha comigo.

Obedeci em silêncio, habituado a fazer o que me ordenavam sem perguntar “por quê”. Conduziu-me por um longo corredor que achei frio e deteve-se diante de uma porta. Segurou no meu braço.

— Ele sabe que vai morrer logo, falência múltipla dos órgãos — sussurrou-me e pela primeira vez notei um leve tremor na sua voz. — Creio que não passa de amanhã… Ele me pediu para falar com você, antes ele quer falar com você.

— Ele quem?

Silêncio. Comecei a tremer porque de repente senti que alguma coisa terrível ia ser revelada e assim todo o meu ser se inteiriçava na expectativa “daquilo” que meus sentidos pressentiam. Estaquei resfolegante como à beira de um abismo.

— Ele quem? — repeti num sopro de voz. — Quem é que quer falar comigo antes de morrer?

— Ele… O homem de quem você vai herdar os olhos.

Encostei-me à porta para não cair. Então era isso, era isso. Meus olhos iam ser arrancados e nos buracos seriam colocados os olhos daquele homem que estava morrendo. O moribundo me fazia presente dos olhos, eu ia herdar um par de olhos!

Desatei a rir e logo o riso se transformou em soluços.

— Vamos, nada de cenas, acalme-se! — Ormúcio ordenou a sacudir-me com força. — É um mendigo, há meses está internado aqui. Naquela tarde em que impedi seu suicídio, eu já estava pensando nele, nos olhos dele que são perfeitos e que poderiam servir para alguém. Nem eu nem ele, nós não queremos nada em troca, ele se contenta em lhe ceder os olhos e eu serei pago com o sucesso da operação. Compreendeu agora?

Fiz que sim com a cabeça. Compreendia tudo e estava de acordo com tudo, como não havia de estar de acordo? Eu queria enxergar, não era isso? E para enxergar, usaria de todos os meios, fossem quais fossem. Enxuguei o suor que me empastava os cabelos e entrei no quarto. No silêncio, só se ouvia uma respiração ansiosa. Inclinei-me. Senti um hálito fétido.

— É este? — uma voz áspera perguntou voraz. Era tão asqueroso o bafo que vinha daquelas cobertas e tão desagradável aquela voz que instintivamente recuei.

— Sim, ele é bem jovem! — prosseguia a voz sem esperar pela resposta. Havia nessa voz um tom de insuportável alegria. — Quer dizer que viverei muitos anos ainda! Muitos anos!

Continuei calado, voltando o rosto para não sentir mais o bafo que vinha em lufadas do meu benfeitor. Ah, benfeitor, benfeitor!… Se eu soubesse, meu Deus! Que ridícula soa agora esta palavra, benfeitor! Decerto ele está delirando, pensei e só mais tarde aquelas frases voltaram cheias de sentido, verdadeiras hienas a devorarem a paz do meu coração.

— Se você não fosse tão jovem eu não lhe daria meus olhos — exclamou o moribundo apertando avidamente a minha mão. — Meus cabelos caíram, meus dentes caíram, minha carne murchou, de toda esta ruína, só os olhos se salvaram. Pois fique com eles e bom proveito!

Ormúcio impeliu-me para o corredor e fechou apressadamente a porta do quarto mas ainda pude ouvir atrás a voz triunfante:

— Continuarei em você! Continuarei!

Fomos para o jardim. Ormúcio acendeu um cigarro e colocou-o entre meus dedos.

— Não imaginei que ele começasse a delirar justamente na hora em que você… Enfim, passou — disse Ormúcio secamente.

Deixei cair o cigarro e aspirei o perfume fresco da folhagem orvalhada. A voz medonha, o hálito repugnante, tudo aquilo parecia agora pertencer a um pesadelo.

— A última coisa que meus olhos viram foi uma estrela branca cintilando no céu, a minha estrela! Da cama, eu a via sempre pela janela aberta. Naquela noite ela se apagou. Aceito tudo para vê-la novamente.

Dessa operação e dos dias que se seguiram nada poderei dizer, porque minha memória partiu-se em mil pedaços, assim como um espelho. Sei que certa manhã ouvi a voz sussurrante de Ormúcio segredar a um colega: Amanhã saberemos!

Um tremor violento sacudiu-me todo. E quando veio a enfermeira da noite avisando que as bandagens seriam retiradas, pedi-lhe que saísse um pouco do quarto, eu queria ficar só para rezar. Ela obedeceu. Então sentei-me na cama e freneticamente fui arrancando as gazes, arrancando tudo… A princípio, ainda o negrume! E eu já ia desabar sobre mim mesmo, dilacerando-me quando aos poucos um armário branco, um crucifixo, uma cadeira começaram a emergir das sombras, vagamente, meio dissolvidos como os destroços de um naufrágio. Vieram à tona, à tona… dançaram na minha frente indecisos sob um véu de lágrimas. Depois foram se firmando. E se fixaram.

Sufoquei um grito. E delirando de alegria, saltei do leito e escancarei as janelas, era noite, era noite. E a minha estrela? Quis saber, erguendo a cara para o céu, queria vê-la de novo, branca e cintilante, ela que se tornara cinzenta, onde estará, onde?

Foi nesse instante que o horror começou. Ah, mas de que modo explicar a hediondez da minha descoberta? Ergui a face para o céu, ergui a face, mas os olhos… os olhos não obedeciam. “Quero olhar a estrela, a estrela!”, repeti mil vezes num esforço desesperado. E os olhos baixavam obstinados para o jardim como se fios poderosos os dirigissem para o lado oposto daquele que minha vontade ordenava. Como descrever o horror que senti? Como explicar minha cólera ao verificar que fora enganado, miseravelmente enganado, porque nunca aqueles olhos seriam meus! Que me adiantava tê-los herdado, ter-lhes dado vida se eram independentes, se não me obedeciam? Penso que jamais poderei reproduzir as tentativas alucinadas que fiz naquelas horas para arrancá-los, da força medonha que os mantinha na direção oposta daquela que eu determinava, insolentes, livres. Tentei fechá-los, mas esbugalhados como se quisessem saltar, eles rodaram nas minhas órbitas como dois piões num rodopio enlouquecedor e agora se divertiam à minha custa, riam-se de mim naquela brincadeira infernal. Corri para o espelho. Na minha cara pálida e encovada, só os olhos do morto pareciam ter vida, tão brilhantes quanto cruéis. E se deliciavam em me examinar com uma expressão triunfante, gozando o contraste que faziam com o meu rosto retorcido pelo horror. “Eu continuarei em você!” Não foi o que disse o monstro asqueroso?

Cobri a cara com as mãos. Ormúcio triunfara porque a operação fora um sucesso, o morto também triunfara porque continuava vivendo dentro das minhas órbitas, mas e eu?!

Sorrateiramente, antes que o sol raiasse, fugi do hospital saltando pela janela. Ormúcio ficaria na dúvida, era esta a minha paga, ele não saberia jamais se fracassara ou não. E do morto, como vingar-me dele?

Aqui estou no mesmo lugar de onde Ormúcio me arrastou para a sua experiência. Agora os olhos ficaram obedientes, me atendem. Ah! Eles me obedecem, vejo o que quero, estas águas que são mais escuras e turbulentas do que eu imaginava, vejo as nuvens, vejo uma criança correndo lá longe… Eis que agora os olhos me obedecem apavorados porque descobriram meu plano, sabem por que fugi do hospital e por que vim a esta ponte, eles sabem! E já não zombam de mim, não, não zombam mais, sabem que me sepultarei no negrume das águas, desaparecerei como a minha estrela sepultada no negrume do céu, ela e eu teremos o mesmo destino. Agora não posso deixar de rir, de gargalhar até perder o fôlego porque tudo está sendo muito engraçado! O morto queria viver à minha custa, dono de mim! Só que ele não contava com isso, agora sou eu que me rio dele e ainda estarei rindo até o instante em que os seus olhos monstruosos se dissolverem nas águas, como duas miseráveis bolotas de miolo de pão.

Fonte> Lygia Fagundes Telles. Um coração ardente, 2012.

Recordando Velhas Canções (Brigas)


Altemar Dutra

Veja só
Que tolice nós dois
Brigarmos tanto assim
Se depois

Vamos nós a sorrir
Trocar de bem no fim
Para quê maltratarmos o amor?
O amor não se maltrata não

Para quê? Se essa gente o que quer
É ver nossa separação
Brigo eu
Você briga também
Por coisas tão banais

E o amor
Em momentos assim
Morre um pouquinho mais
E ao morrer então é que se vê
Que quem morreu fui eu e foi você
Pois sem amor
Estamos sós
Morremos nós
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Reflexão Sobre o Amor e as Brigas em 'Brigas' de Altemar Dutra
A música 'Brigas', interpretada pelo saudoso Altemar Dutra, é uma balada romântica que aborda a temática das desavenças comuns em relacionamentos amorosos e o impacto negativo que elas podem ter. A letra inicia com uma interpelação direta, chamando a atenção para a futilidade das brigas entre o casal, questionando a razão de tanta discórdia se, no final, ambos acabam se reconciliando e trocando carinhos.

O refrão da canção é um apelo ao bom senso, destacando que o amor não deve ser maltratado. A música sugere que as brigas são vistas por outros como um prenúncio de separação, o que pode ser interpretado como uma crítica à tendência das pessoas de se envolverem ou se alegrarem com o conflito alheio. Altemar Dutra, com sua voz marcante, transmite a mensagem de que as discussões por motivos triviais vão aos poucos desgastando o amor, que é apresentado quase como uma entidade viva que sofre e pode morrer com essas atitudes.

A conclusão da música é uma reflexão melancólica sobre a morte do amor, que é equiparada à morte dos próprios envolvidos no relacionamento. Sem amor, eles se veem sozinhos e, metaforicamente, mortos. A canção, portanto, serve como um alerta para a importância de cuidar do amor e evitar que as pequenas brigas cotidianas levem a um desfecho trágico para a relação.

Aparecido Raimundo de Souza (Escarlate sob o cinza )

“BIRA PENACHO”, era o apontador de lápis da Luana Cristina, a menina dos cabelos verdes. Ao contrário dos seus colegas, o fulano Bira não tinha o menor senso de delicadeza. De ridículo, então, nem se fala. Pedante e extremamente grosseiro, se fazia malcriado até dizer chega. Vivia rindo de tudo e de todos, como se fosse uma hiena. Os demais pertencentes ao mesmo estojo escolar inserido dentro da mochila de Luana Cristina, a menina dos cabelos verdes, achavam o Bira um tremendo chato. Outros, igualmente, tinham por ele uma espécie de aversão repulsiva. A “Borracha” Sofia, por exemplo, vivia em constante atrito com a figura, sem falar no Beto, um tremendo “Giz de cera” que, de vez em quando, partia para cima dele, disposto a fazê-lo em pedacinhos. Bira Penacho, em verdade, nasceu com uma sorte danada. Tinha depósito próprio, encimado por uma tampa que evitava que se espalhassem os resíduos acumulados. Seu corpo, no pensar da Cíntia, a “Caneta Esferográfica,” dava a impressão de ser meio quadrado. 

Todavia, o indisciplinado possuía um tamanho compacto. O rosto lembrava um pastel recém tirado da gordura quente e seus olhos tremendamente transparentes, denunciavam uma visão negra da sua alma em frangalhos. Outros semelhantes a ele, cuidavam das pontas dos lápis com carinho. Bira Penacho parecia carregar consigo a missão pessoal de causar o máximo de incômodo e desconforto possível em seus pares, notadamente na hora de cuidar do lápis Chico, o “Redondo.” No mesmo engodo, metia os dentes sem dó nem piedade, no Valtinho, um “Sextavado” e, de quebra, sacaneava o Juca, um lápis “Triangular.” “Triangular” queria ver o diabo, a se submeter às garras de suas lâminas que ele cognominara de “trituradoras.” Sem mencionar o box do Bira, que cheirava à comida estragada. Para completar o quadro horrível e dantesco, Bira Penacho, às escondidas, usava uma manivela que girava com uma agressividade digna de um furacão. Quando um outro lápis qualquer se aproximava, Bira Penacho o agarrava pelo pescoço, sem cerimônia, como se estivesse prestes a enfrentar um inimigo mortal. 

O desgraçado e indefeso lápis tremia feito vara verde em suas mãos que, segundo relatos a outros consanguíneos, se assemelhavam aos gonzos rangentes das portas do inferno ao serem escancaradas.
— Vamos lá, seu lápis preguiçoso! –, exclamava o Bira Penacho girando a tal manivela com força. Não tenho o dia todo para ficar enrolando com você.

O desvalido lápis gemia enquanto as lascas de madeira voavam. Bira Penacho não se importava. Ele estava determinado a apontar aquele desamparado lápis até que não restasse mais nada além de um toquinho insignificante. O pior ainda estava por vir. Bira Penacho se abria numa risada irritante. Não propriamente uma gargalhada. O troço se assemelhava a um som metálico que ecoava como um esgar jubiloso inundando todo o ambiente.
—  Há, há, há...! Veja só, mais uma ponta perfeita! 

Ele anunciava exibindo à plateia estarrecida o empalidecido e troncho lápis, agora adelgaçado como uma faca imoderadamente afiada. Os outros inquilinos do estojo olhavam com desdém para o metido a “gostosão.” Alguns alimentavam por ele um ódio mortal, como o Petrônio “Marca-texto” e Mauricio, o “Corretivo.” Eles procuravam ser gentis e pacientes, sabendo, de antemão, que cada lápis integrante do grupo merecia respeito e dignidade. Bira Penacho, não se importava com essas bobagens. Ele queria resultados rápidos. Mesmo que isso significasse sacrificar a qualidade de seus serviços à comunidade batizada como “Os Doze.”

Certo dia, o Daniel, um lápis “Rebelde” decidiu enfrentar o prepotente e arrogante. Daniel, entre seus pares, um elegante “Lápis Escarlate,” com uma borracha enorme grudada na ponta. Ele se recusou a entrar na boca de metal do polêmico apontador. Gritou, a plenos pulmões.
— Não vou me submeter a essa tortura!” –, alardeou fora de si. “Prefiro ficar cego a passar por isso.”

Bira Penacho enfezou. Subiu nos tamancos. Esperneou, xingou, rosnou, vociferou. Fez ameaças, latiu cobras e lagartos: 
— Você vai me deixar entrar e fazer o meu trabalho, querendo ou não! 

A certa altura do fuzuê, Bira Penacho, num descuido de seu opositor, agarrou o Daniel com uma força jamais vista. Em seguida, girou a manivela com fúria descontrolada. Daniel resistiu. A borracha agarrada na ponta, em face da força empregada, inchou. Se expandiu, triplicando. Tal reação, atravancou o metal. Com um estalo alto, a manivela sob a pressão efetiva, não se sabe como, quebrou. Se despedaçou. Bira Penacho prostrou a fuça incrédula. Seus olhos esbugalhados se toldaram de cinza. Olhava para o pedaço de metal em suas mãos. Daniel, o “Lápis Vermelho” ou o “Rebelde,” sem esperar por nova onda de sorte,  escapou por pura sorte.

— Isso é o que acontece quando se é tão imbecil e metido a valente, quanto você” –, observou Daniel. E sem mais delongas, mandou a cacetada final.
— Agora, vê se aprende a ser mais gentil com os meus outros irmãos lápis e não só com eles, com todos que fazem parte do material escolar, especificamente do estojo que a nossa querida e amável Luaninha Cristina, a fofura exuberante e charmosa dos cabelos verdes nos leva todos os dias, em sua mochila, para a escola onde estuda.

Bira Penacho, desde esse dia em diante, da vergonha pela qual passou, nunca mais foi o mesmo.  Se tornou um apontador mais cauteloso e cuidadoso, aprendendo a valorizar cada lápis que cruzava seu caminho. Às vezes, quando ninguém estava olhando, deixava rolar algumas lágrimas ao rememorar o fatídico dia em que um simples lápis com o diploma de “Rebelde” o derrotou diante de todos. Numa forma não esperada, termina as proezas espalhafatosas do Bira Penacho, um apontador de lápis esquisito e inconsequente, nascido com o sangue das resinas termoplásticas e as carnes temperadas com lâminas de aço carbono. Por certo, o despudorado mambembe aprendeu a lição mais importante: a gentileza, a complacência, a cortesia, a urbanidade e o obséquio devem ser como um leque abrangente de elegâncias caminhando irmanados, não obviamente como um par de garras afiadas. Ao contrário, como estiletes em harmonia, dispostos a mudarem tudo para que os conformes se coadunem e se atraiam, sobretudo convivam em constante, impecável e imorredoura paz coletiva. Luana Cristina a menina dos cabelos verdes, a dona do estojo, nunca soube de tal acontecimento.

Fonte>Texto enviado pelo autor 

terça-feira, 2 de abril de 2024

Edy Soares (Fragata de versos) – 45: Eterno Gregório de Matos

 

Therezinha Dieguez Brisolla (Um Brinde à vida)

A pergunta me pegou de surpresa: — Bisa, você é velha ou idosa? Sorri... e, com a mesma paciência com que respondi a centenas de alunos, em trinta anos de magistério, expliquei ao bisneto que as duas palavras têm o mesmo significado, porém para sermos educados com as pessoas em idade avançada, as chamamos de idosas. A explicação o convenceu... deu-me um beijo e voltou ao jogo de videogame. Mas, a mim não convenceu!...

Um estudo recente que causou polêmicas, concluiu que: Velho é aquele que não tem mais planos futuros e, com resignação, espera o seu fim. Idoso é aquele que, apesar da idade, é ativo, sente prazer na leitura, ouve e lê notícias para manter-se atualizado, tenta adaptar-se à tecnologia moderna, acredita no amor e ainda sonha!

A conversa levou-me a vigiar meu comportamento no convívio com os quatro filhos, sete netos, seis bisnetos, dois genros, a nora e dezenas de amigos.

Tenho a idade da Revolução Constitucionalista de 1932. É claro que pela idade – 89 anos – eu sou de ontem!...

Sou do tempo em que o meio de transporte era o trole. Acomodei-me nos bancos das jardineiras, em estradas poeirentas, experimentei a emoção do bonde elétrico, em trilhos nas ruas calçadas com paralelepípedos e encantei-me com a magia do trem, em vagões puxados pela máquina a vapor, a Maria Fumaça.

Vivi o tempo do rádio, as notícias dadas pelo Repórter Esso “o primeiro a dar as últimas” e ouvindo e cantando as músicas cujas letras sabia de cor.

Sou do tempo do telefone preso à parede e da vitrola, com discos de vinil – Long Plays e Compactos... ambos os aparelhos movidos a manivelas. Do circo mambembe, que alegrava nossos finais de semana. Do fotógrafo de rua, o Lambe-lambe e das idas aos estúdios fotográficos, para as fotos em preto e branco, registrarem os eventos sociais.

Dancei as cirandas, na praça da cidade, com a banda militar tocando dobrados, no coreto e, depois, as valsas e os boleros, em clubes, ao som de conjuntos musicais. Frequentei quermesses, à espera do “correio elegante” (uma declaração de amor, velada), alegrei-me com a Dança da Quadrilha, em festas juninas... Vesti a roupa da moda para fazer o “footing”, viver a emoção do flerte, do primeiro amor, do namoro de mãos dadas...

Morei em casas térreas, com portas e janelas abertas para a rua, em um tempo em que o contrato de locação era a palavra dada.

À noite, após o trabalho, os vizinhos se reuniam na calçada – as cadeiras em roda – e comentavam os acontecimentos do dia. As crianças corriam pelas ruas brincando de esconde-esconde, de boca de forno, de roda... Os brinquedos eram feitos por nós: a peteca, a boneca de pano, a bola de meia, as pipas coloridas...

E a alegria para se preparar para fazer ou receber visitas! O lanche feito com carinho, o pão quentinho, assado no forno de pedra construído no quintal, os bolinhos de chuva, o suco para as crianças e o café para os adultos, feito no fogão a lenha e servido no bule de ágata.

Ah, nossos Natais! O presépio com as figuras principais, os patinhos de celuloide sobre os cacos de um espelho, imitando lagos, montado na sala de visitas, onde nos reuníamos com os vizinhos para a novena do Advento. A inocência de acreditar em Papai Noel...

A chegada do Carnaval era uma festa! Os pais levavam as crianças para apreciar os corsos carnavalescos, com Pierrôs e Colombinas, em carros abertos, as marchinhas “na ponta da língua”.

Sou de um tempo em que se pedia a bênção aos pais, tios, avós e padrinhos. Em que os alunos se levantavam quando o professor entrava na sala de aula e em que a professora era “a segunda mãe”.

A chegada da televisão já havia revolucionado o mundo, quando assistimos emocionados o homem pisar no solo da Lua, em 1969. Anos depois, a televisão em cores e o programa do Chacrinha, com suas chacretes, era líder de audiência e usava e abusava do meu nome: Alô, alô Terezinha...

O rádio foi desligado e esquecido. Em compensação, a minha máquina Remington trabalhava sem parar, quando datilografava meus escritos para os concursos de trovas, crônicas, contos e haicais.

Um dia, ouvi falar que o computador viera para agilizar esse trabalho mas, não me interessei... Até o momento em que recebi da filha e genro um presente que foi ligado à tomada e me explicaram que as mensagens chegariam em meu e-mail. Pediram que eu lesse um que já havia sido enviado e que dizia: “Agora vai ter que aprender”.

E aprendi: por telefone fixo, com o monitor ligado e ouvindo as explicações: — Mãe, está vendo aquele botão lá no alto, à direita? Aperte e me diga o que apareceu na tela... Pouco tempo depois já sabia o que chamo de “o básico do básico”.

Meus trabalhos, agora, são digitados. Assim editei meu livro de trovas e sonetos “À Procura de Estrelas”, aos 80 anos. Hoje tenho uma senha, um e-mail, recebo e envio textos... E quando tenho dúvidas, as pesquisas são feitas no Google.

A máquina Remington foi guardada, com o carinho que merece e ainda a uso quando a Internet falha.

Não satisfeitos, a filha e o genro, me “presentearam” com um celular e que trabalho me deu! Guardei, ao lado da Remington, as três máquinas fotográficas, desliguei o telefone fixo e empilhei meus álbuns de fotografias na estante – as fotos agora ficam “armazenadas” no computador e quando quero vê-las basta abrir a pasta onde estão. E aqui estou eu tentando adaptar-me a um mundo completamente diferente para poder dialogar, principalmente, com netos e bisnetos.

O ritual começa logo cedo, antes das 6 horas da manhã. Coloco água para o café, no fogão a gás e ligo o celular na tomada. Pronto, já estou on-line... Mando e respondo as mensagens mais urgentes pois, de manhã, sou “dona de casa. Após o almoço, ligo a TV para as notícias e fico a par do que acontece lá fora. Ouvi falar que alguns idosos fazem a sesta – um cochilo após o almoço – mas não faz parte da minha agenda. À tarde quem trabalha é a mente: leio, escrevo, faço trovas, navego na Internet...

Faço parte de quatro grupos que se comunicam, diariamente, pelo WhatsApp: dois de Recife e dois da UBT porque sou a Secretária Nacional da entidade. Da memória não me queixo e lembro-me, com facilidade, de datas históricas, números de telefones e aniversários.

Ao completar 89 anos concluí que, apesar de “ser de ontem” eu não sou velha, e sim, idosa: amo a vida, tenho sonhos e vivo com alegria o momento presente, porque como disse Mia Couto: “A vida passa tão depressa que, às vezes, a alma não tem tempo de envelhecer”.

Fonte> Flávia Suassuna (coord.). Rede solidária: coletânea de textos. 2021. Ebook enviado pela Therezinha D. Brisolla

Professor Garcia (Pantuns) IX


PANTUN DA VIDA CIRCENSE

TROVA TEMA:
No picadeiro da vida
às vezes somos palhaços:
com atitude fingida
maquiamos os fracassos.
(Hélio Pedro – RN)

PANTUN:
Às vezes somos palhaços:
E nesse circo sem pano,
maquiamos os fracassos
ante a incerteza e o engano.

E nesse circo sem pano,
com tanta banalidade,
ante a incerteza e o engano,
as marcas vis da maldade.

Com tanta banalidade,
vê-se em qualquer direção,
as marcas vis da maldade
moldando as marcas no chão.

Vê-se em qualquer direção,
a maldade desmedida,
moldando as marcas no chão
no picadeiro da vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

PANTUN DO FRATERNO ABRAÇO

TROVA TEMA:
O abraço meigo e fraterno,
refletindo nitidez,
no retrato fez eterno
tudo o que o tempo desfez.
(Hélio Alexandre – RN)

PANTUN:
Refletindo nitidez,
guardo ainda por lembrança,
tudo o que o tempo desfez
nesta foto de criança,

Guardo ainda por lembrança,
a paz dos nossos perfis,
nesta foto de criança
que tanto nos fez feliz.

A paz dos nossos perfis,
está na fotografia
que tanto nos fez feliz
nas marcas de cada dia.

Está na fotografia,
A expressão do amor eterno,
nas marcas de cada dia,
o abraço meigo e fraterno.
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PANTUN DE ELEVADA PRECE

TROVA TEMA:
Na aurora de cada dia,
a Deus elevo uma prece;
- Pai, enchei de poesia
nosso povo que padece!
(Joamir Medeiros – RN)

PANTUN:
A Deus elevo uma prece;
ó Pai, salvai por favor,
nosso povo que padece
por falta de pão, de amor,

Ó Pai, salvai por favor,
os excluídos do afeto,
por falta de pão, de amor,
vivem sem lar e sem teto.

Os excluídos do afeto,
não têm voz, nem têm razão,
vivem sem lar e sem teto
ante a cruel exclusão.

Não têm voz, nem têm razão,
por berço, a melancolia,
ante a cruel exclusão
na aurora de cada dia.
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PANTUN DA PEDRA ESCONDIDA

TROVA TEMA:
Nas ruas da minha vida
quantas pedras eu saltei,
mas a pequena escondida,..
Foi nela que eu tropecei!
(Vera Maria Bastos Braz – MG)

PANTUN:
Quantas pedras eu saltei,
na menor de todas elas,
foi nela que eu tropecei
em meio a pedras tão belas.

Na menor de todas elas,
eu vi um brilho tão forte,
em meio a pedras tão belas
há nela, o brilho da sorte.

Eu vi um brilho tão forte,
e essa luz, eu nâo renego,
há nela, o brilho da sorte
da velha cruz que carrego.

E essa luz, eu não renego,
eis a forma desmedida,
da velha cruz que carrego
nas ruas de minha vida!
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PANTUN DA ETERNA ILUSÃO

TROVA TEMA:
Foi pela guerra enlutada...
Mas a ilusão de Maria
Fincava os olhos na estrada
Quando a porteira batia!...
(José Messias Braz – MG)

PANTUN:
Mas a ilusão de Maria
era um eterno estribilho;
quando a porteira batia
ela ouvia a voz do filho.

Era um eterno estribilho;
quanto mais a mãe rezava,
ela ouvia a voz do filho
que da guerra não voltava.

Quanto mais a mãe rezava,
mais sentia entre os arcanjos
que da guerra não voltava,
que o filho estava entre os anjos.

Mais sentia entre os arcanjos
já chegando ao fim da estrada,
que o filho estava entre os anjos.
Foi pela guerra enlutada!...
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PANTUN DA ALMA ARREPENDIDA

TROVA TEMA:
Na praça da minha vida
vi, de joelhos, em vão,
uma ofensa arrependida
pedindo abraço ao perdão...
(José Valdez de Castro Moura – SP)

PANTUN:
Vi, de joelhos, em vão,
um alguém, que nunca via,
pedindo abraço ao perdão
no altar da Virgem Maria.

Um alguém, que nunca via,
Confessa os pecados seus,
No altar da Virgem Maria,
pedindo perdão a Deus.

Confessa os pecados seus,
por sentir-se angustiada;
pedindo perdão a Deus
vi a pobre alma penada.

Por sentir-se angustiada,
tristonha e arrependida,
vi a pobre alma penada
na praça da minha vida.
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PANTUN DOS DESAJUSTADOS

TROVA TEMA:
Quando a família é rompida
por atos cegos, tiranos,
deixa destroços de vida,
restos de seres humanos.
(Manoel Cavalcante – RN)

PANTUN:
Por atos cegos, tiranos,
por ciúme ou por loucura,
restos de seres humanos
são sobras da desventura.

Por ciúme ou por loucura,
as decisões mal tomadas,
são sobras da desventura
de vidas abandonadas.

As decisões mal tomadas,
as vezes gera a desgraça
de vidas abandonadas
jogadas no chão da praça.

As vezes gera a desgraça
das almas cheias de vida,
jogadas no chão da praça
quando a família é rompida.
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PANTUN DOS MARES DA VIDA

TROVA TEMA:
Singrei mares de agonia,
lutei contra vendavais,
para achar a calmaria
que só encontro em teu cais.
(Lisete Johnson – RS)

PANTUN:
Lutei contra vendavais,
tentando encontrar alguém,
que só encontro em teu cais,
e no cais de mais ninguém.

Tentando encontrar alguém,
procuro por todo canto;
e no cais de mais ninguém,
ninguém verá mais meu pranto.

Procuro por todo canto,
esse alguém, que disse adeus;
ninguém verá mais meu pranto
no pranto dos olhos meus.

Esse alguém, que disse adeus,
me tez sofrer todo dia;
no pranto dos olhos meus,
singrei mares de agonia.

Fonte> Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020. Enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (Finlândia: O galo velho)

Era uma vez um palácio cujo proprietário tinha um galo velho, que, devido à sua idade avançada, o pessoal da casa não quis continuar a alimentar, pelo que o galo teve de mendigar nas cercanias para se poder sustentar. Mas como dessa forma tampouco conseguia obter comida em quantidade suficiente, decidiu regressar a casa. Pelo caminho, cruzou com uma raposa, que lhe perguntou:

— Onde vais, meu galozinho?

— Volto para casa, porque nem a mendigar se consegue nada! - respondeu o galo.

— Leva-me contigo.

— Não tenho forças suficientes para poder carregar-te às costas, mas levo-te se te transformares em pulga e te meteres debaixo da minha asa.

A raposa transformou-se, pois, numa pulga e refugiou-se no lugar indicado. O galo reatou a marcha e, mais tarde, deparou-se com um lobo, que perguntou:

— Onde vais, meu galozinho?

— Para casa.

Ao inteirar-se, quis acompanhá-lo a todo o custo, pelo que pediu:

— Leva-me contigo!

— Transforma-te numa pulga e mete-te entre as penas das minhas costas, e levo-te.

O lobo transformou-se numa pulga e o galo introduziu-a entre as penas do dorso.

Depois de percorrer mais um pouco de terreno, encontrou um urso, que também lhe pediu que o levasse. O galo disse-lhe que se transformasse numa pulga e, quando o urso o fez, introduziu-a entre as penas de uma perna.

A seguir, prosseguiu o seu caminho e chegou finalmente ao seu antigo lar, dirigindo-se para o pátio, onde começou a cantar:

Cocorocó! Cocorocó!
O galo tem um esporão dourado!
Mas o amo é um canalha
e para a rua foi mandado!

Ao ouvir isto, o proprietário do palácio ficou furioso e ordenou a um serviçal que matasse o galo. No entanto, o homem condoeu-se dele porque cantava muito bem e recusou cumprir a ordem, argumentando que o repugnava ter de por termo à vida da ave.

— Então, leva-o para o estábulo e deixa-o no meio dos cavalos selvagens, que o matarão aos coices — decidiu o rei.

Assim, o galo foi levado para o estábulo, mas não sofreu qualquer ataque, porque, quando os cavalos começaram os coices, disse simplesmente:

— Sai da minha perna, urso querido, come todos os que quiseres e mata os restantes!

Surgiu imediatamente o urso que se tinha transformado em pulga e ocultado entre as penas de uma das pernas do galo, que comeu todos os cavalos que pôde e matou os outros.

No dia seguinte, o rei apresentou-se no estábulo, a fim de se certificar pessoalmente de que os cavalos tinham esmagado o galo.

Este, porém, que continuava vivo, cantou como na ocasião anterior:

Cocorocó! Cocorocó!
O galo tem um esporão dourado!
Mas o amo é um canalha
e para a rua foi mandado!

Havia no palácio doze touros invulgarmente corpulentos e bravos, pelo que o rei ordenou ao serviçal:

— Atiça os touros contra o galo, para que o trespassem com os chifres. Desta vez, não escapará à morte e poremos termo ao seu irritante cacarejar.

E assim se fez. Mas quando os touros se preparavam para o atacar, o galo extraiu a pulga que se alojava sob as penas das costas, a qual se transformou de novo em lobo, que devorou e degolou os touros, após o que o galo se pôs a cantar como nas outras vezes:

Cocorocó! Cocorocó!
O galo tem um esporão dourado!
Mas o amo é um canalha
e para a rua foi mandado!

O rei, que o ouviu, enfureceu-se e disse aos serviçais:

— Ainda nos restam doze bodes muito ferozes. Levem o galo ao seu estábulo, para que passe lá a noite. Veremos se, desta vez, continuará com o seu cocorocó!

Dito e feito: o galo foi levado ao local indicado e encerraram-no com os bodes, os quais se precipitaram imediatamente para ele, dispostos a atravessá-lo com os chifres. No entanto, o galo sabia perfeitamente o que devia fazer: extraiu de entre as penas a terceira pulga, que se transformou em raposa e os degolou. Deixou-os em tal estado que horrorizava vê-los, e devorou toda a carne que pôde.

Na manhã seguinte, o rei e os serviçais foram ver o resultado do seu estratagema e verificaram que o galo continuava vivo. Mal abriram a porta, a raposa saiu sem que a vissem e partiu com destino desconhecido.

A fúria do monarca foi novamente quase apopléctica, e decidiu:

— Tenho de matar essa maldita ave, seja como for!

E dispôs-se a eliminar o galo com as suas próprias mãos. Por conseguinte, agarrou-o e começou a torcer-lhe o pescoço, mas, já moribundo, o galo disse:

— Não te livrarás de mim, nem morto. Voltarás a ouvir a minha voz, mas o teu fim estará então próximo.

Ao escutar estas palavras, o rei disse para consigo: "Tenho de comer este maldito alvoroçador! Assim, deixará de cantar para sempre!"

Mandou, pois, assar o galo e organizou um banquete, para o qual convidou todos os fidalgos vizinhos e muitos outros. Na data fixada, sentaram-se em torno da enorme mesa e principiaram a comer. O rei pegou então no galo assado com as mãos, cortou um pedaço e levou-o à boca, dizendo:

— Livraste-te de muitos momentos de apuro em vida, mas agora não voltarás a cantar o teu cocorocó!

Mal pronunciara estas palavras, quando, de repente, o galo assomou a cabeça à boca do rei e entoou como nas outras vezes:

Cocorocó! Cocorocó!
O galo tem um esporão dourado!
Mas o amo é um canalha
e para a rua foi mandado!

Quando os comensais ouviram aquela voz singular proveniente das entranhas do monarca, ficaram de tal modo desconcertados que não tornaram a tocar na comida. Depois de refeito do susto, o rei ordenou aos serviçais:

— Peguem num machado e, se o maldito galo tornar a assomar à minha boca, cortem-lhe a cabeça!

Eles apressaram-se a obedecer e, quando a cabeça da ave voltou a aparecer, pretenderam cortá-la, mas retrocedeu com prontidão e atingiram a do amo, que caiu morto, como o galo predissera. E assim chega este conto ao fim.

Fonte: Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

Recordando Velhas Canções (Nervos de aço)


 Lupicínio Rodrigues

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer?

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do meu pode ser?

Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação

Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, é despeito, amizade ou horror
Eu só sinto é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer?

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do meu pode ser?
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A Dor do Amor Não Correspondido em 'Nervos de Aço'

A música 'Nervos de Aço', composta pelo célebre Lupicínio Rodrigues, é um clássico do samba-canção, gênero que se caracteriza por suas letras melancólicas e melodias envolventes. A canção aborda a temática do amor não correspondido e do sofrimento que advém dessa situação. Lupicínio, conhecido por suas composições que falam de desamor e traição, utiliza-se de uma conversa direta com o ouvinte para expressar a dor de ver o ser amado nos braços de outra pessoa.

A letra da música é um desabafo de quem viveu intensamente um amor, chegando ao ponto de quase morrer por ele, e agora se vê obrigado a enfrentar a realidade de que esse amor pertence a outro. A expressão 'nervos de aço' sugere a necessidade de uma força sobre-humana para suportar tal dor, questionando se alguém sem emoção conseguiria lidar melhor com essa situação. A música transita entre sentimentos como ciúme, despeito, amizade e horror, mostrando a complexidade emocional que envolve o fim de um relacionamento amoroso.

A canção é um retrato da vulnerabilidade humana diante do amor e da perda, e Lupicínio Rodrigues consegue, com maestria, transmitir essa emoção em sua composição. 'Nervos de Aço' não é apenas uma música, é um testemunho da dor que muitos podem sentir, mas poucos conseguem expressar com tamanha profundidade e sinceridade.
https://www.letras.mus.br/lupcinio-rodrigues/127284/significado.html

Eduardo Martínez (Ataíde, o generoso)

Ataíde era um bom homem. Aliás, de tão bom, alguns poderiam supor que fosse um boboca, palavra que quase caiu em desuso nesses tempos tão corridos, em que há um otário em cada esquina. Mas usemos boboca, que, creio, cai melhor para descrever aquele ser ingênuo e de coração generoso além da conta.

Por causa dessa característica dadivosa, Ataíde, não raro, era passado para trás por algum espertinho, seja parente, seja amigo, seja conhecido de vista, seja até aquele completamente desconhecido. Mas de todos os aproveitadores, havia um que era uma avalanche de pedir favores aqui, ali, acolá, a qualquer hora do dia e da noite, madrugada adentro e sem qualquer cerimônia. Um verdadeiro cara de pau! Seu nome? Todavia, para encurtar a história, todos o conheciam por Abobrinha. 

Abobrinha, aliás, conhecia Ataíde desde os longínquos tempos em que usavam calças curtas. O tempo passou, é verdade, mas o interesse pela amizade cresceu de maneira exponencial com os anos, especialmente nos últimos meses, quando o Ataíde conseguiu um empregão numa firma de exportação. Quanto ao Abobrinha, além de pular de um trabalho para o outro, foi despedido na semana passada e expulso da casa dos pais, que já não aguentavam sustentá-lo. O safado nem sequer lavava um copo. 

Sem ter a quem recorrer, o pilantra foi até o eterno amigo, que, agora, estava bem de vida. Ataíde acolheu o Abobrinha de braços abertos. Tanto é que até o convidou para passar uma temporada no seu amplo apartamento, que, apesar de enorme, possuía apenas uma suíte, além de um quarto mais modesto.

Acredite ou não, quem se acomodou no cômodo maior foi justamente o Abobrinha. Ataíde, por sua vez, pareceu não ligar. Afinal, para que serve o conforto se não pode compartilhá-lo com os amigos?

Tudo ia bem, até que, certa manhã, quando o Ataíde estava quase saindo de casa para mais um dia de trabalho, o Abobrinha, com a cara mais lavada do mundo, apesar das remelas nos olhos, já que acabara de acordar, mandou uma fala para o amigo.

— Ataíde, meu querido. Preciso de um favorzinho seu.

— Pois diga, Abobrinha.

— Tô precisando de uma graninha.

— De quanto?

— Dez mil.

— Dez mil? 

— Isso mesmo.

— Aí, não, meu irmão! Assim, você forçou a amizade!

Fonte> Blog do Menino Dudu. 31 março 2024.
https://blogdomeninodudu.blogspot.com/2024/03/ataide-o-generoso.html