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segunda-feira, 10 de julho de 2023

Sílvio Romero (A Raposinha)

(Folclore do Sergipe)


Foi um dia, saiu um príncipe a correr terras atrás de arranjar um remédio para seu pai que estava cego. Depois de muito andar, o príncipe passou por uma cidade e viu uns homens estarem dando de cacete num defunto. Chegou perto e perguntou porque faziam aquilo. Responderam-lhe que aquele homem tinha-lhes ficado a dever, e que por isso estava apanhando, depois de morto, segundo o costume da terra.

O príncipe, que ouvia isto, pegou e pagou todas as dívidas do defunto e o mandou enterrar. Seguiu sua viagem. Adiante encontrou uma raposinha, que lhe disse:

«Aonde vai, meu príncipe honrado?»

O moço respondeu: «Ando caçando um remédio para meu pai que ficou cego.»

A raposinha então lhe disse: «Para isto só há agora um remédio, que é botar nos olhos do rei um pouquinho de sujidade de um papagaio do reino dos papagaios. Meu príncipe, vá ao reino dos papagaios, entre à meia noite, no lugar onde eles estão, deixe os papagaios bonitos e faladores que estão em gaiolas muito ricas, e pegue num papagaio triste e velho que está lá num canto, numa gaiola de pau, velha e feia. »

O príncipe seguiu. Quando chegou no reino dos papagaios, ficou embasbacado de ver tantas e tão ricas gaiolas de diamantes, de ouro e de prata; nem procurou o papagaio velho e sujo que estava lá num canto; agarrou na gaiola mais bonita que viu, e partiu para trás.

Quando ia saindo o papagaio deu um grito, acordaram os guardas, e o perseguiram, até pega-lo.

«O que queres com este papagaio?! Hás de morrer,» disseram os guardas.

O príncipe, com muito medo, lhes contou a historia de seu pai; então eles disseram:

«Pois bem; só te damos o papagaio se tu fores ao reino das espadas, e trouxeres de lá uma espada.»

O moço, muito triste, aceitou e partiu. Chegando adiante lhe apareceu a mesma raposinha, e lhe disse: «Então, meu príncipe honrado, o que tem, que vai tão triste?»

O moço lhe contou o que lhe tinha acontecido; e a raposa respondeu: «Eu não lhe disse!? Você para que foi pegar num papagaio bonito, deixando o velho e feio? Pois bem; vá ao reino das espadas; entre à meia noite. Você lá há de ver muitas espadas de todas as qualidades, de ouro, de brilhante e de prata, não pegue em nenhuma. Lá num canto tem uma espada velha e enferrujada; pegue nessa.»

O moço seguiu. Quando chegou ao reino das espadas, ficou embasbacado, vendo tantas espadas e tão ricas. De teimoso, disse: «Ora tanta espada rica, e eu hei de pegar numa ferrugenta?»

Pegou logo na mais bonita que viu. Quando ia saindo, a espada deu um trinco tão forte que os guardas acordaram, pegaram o moço e o quiseram levar ao rei.

0 príncipe contou então a sua história, e os guardas, com pena, disseram: «Nós só lhe damos uma espada se você for ao reino dos cavalos e trouxer de lá um cavalo.»

O moço seguiu muito desapontado. Adiante numa encruzilhada encontrou a raposinha: «Aonde vai, meu príncipe honrado?»

O moço contou tudo. «Ah! eu não lhe disse!? Por que não seguiu o meu conselho? Vá no reino dos cavalos, e entre à meia noite. Você lá há de encontrar muitos cavalos gordos e de todas as cores, todos aparelhados, não pegue em nenhum. Lá num canto está um cavalo velho e feio, pegue nesse.»

O moço seguiu. Quando entrou no reino dos cavalos caiu-lhe o queixo no chão: «Ora tantos cavalos bonitos, e eu hei de ficar com um diabo velho e magro?»

E pegou num dos mais gordos e lindos. O cavalo deu um relincho tão grande que os guardas acordaram e prenderam o príncipe. Ele, com muito susto, contou toda a sua história.

Os guardas responderam: «Pois sim; nós lhe damos um cavalo se você for furtar a filha do rei.»

Aí o moço disse: «Então me deem um cavalo para ir montado.»

Eles concederam.

O moço seguiu; quando ia adiante, lhe apareceu outra vez a raposinha: «Onde vai, meu príncipe honrado?»

Ele contou tudo. A raposa disse: «Pois veja: eu sou a alma daquele homem que estava apanhando de cacete depois de morto e de que você pagou as dívidas; ando-lhe protegendo, mas você não quer fazer caso dos meus conselhos, e, por isso, tem andado sempre em perigo… Vá montado neste cavalo; chegue à meia noite no palácio do rei, pegue a moça e bote na garupa, largue a rédea a toda a brida; passe pelo reino dos cavalos para lhe darem o seu, pelo das espadas para lhe darem a sua, e pelo dos papagaios para levar também o seu, e vá voando para casa de seu pai, que ele vai mal. Nunca entre por veredas, nem preste ouvidos a ninguém até à casa. Adeus, que é esta a última vez que lhe apareço.»

O príncipe partiu. Chegando no palácio, furtou a moça; chegando no reino dos cavalos, recebeu o seu; no das espadas, a sua, e no dos papagaios, o seu. Seguiu sempre na carreira. Adiante encontrou uns moços que andavam à sua procura, e eram seus irmãos que vinham buscar novas dele. Os irmãos, quando o viram com objetos tão ricos, ficaram com inveja e formaram o plano de o matar para rouba-lo. Começaram a convence-lo de que devia deixar a estrada real e seguir por uns atalhos para os ladrões não lhe fazerem mal vendo-o com aquelas coisas tão belas e ricas.

Ele caiu na esparrela, e os irmãos o atiraram dentro de uma gruta no mato onde ele tinha ido beber água. Tomaram-lhe a moça, o cavalo, a espada e o papagaio. Largaram-se para a casa muito alegres, pensando que o irmão estava morto.

Mas tudo aquilo chegando a palácio, entrou a marear-se, e a ficar estragado. A moça não quis mais comer nem falar; meteu a cabeça debaixo da asa e não quis mais falar; a espada ficou enferrujada, e o cavalo começou a emagrecer.

Quando o moço estava quase a morrer na furna, apareceu a raposinha, que o tirou para fora, e o botou outra vez no caminho. Ele seguiu e chegou até ao palácio de seu pai. Quando já ia chegando a espada deu um trinco, e começou logo a brilhar, o papagaio voou e foi cair-lhe no ombro, a moça deu uma gargalhada e falou, e o cavalo engordou de repente.

O príncipe entrou e foi logo botando um pouco de sujidade do papagaio nos olhos do pai, que ficou logo vendo, e muito alegre. O príncipe se casou com a princesa que tinha furtado, e os seus irmãos foram castigados por causa de sua falsidade.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Lisboa/Portugal: Nova Livraria Internacional, 1885.
Disponível em Domínio Público.
Atualização do português por J.Feldman

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Sílvio Romero (O Pássaro preto)

(Folclore do Pernambuco)


Uma vez um homem pobre tinha um pássaro preto que estimava muito, e, tendo um filho muito travesso, foi um dia o menino levar a comida ao pássaro e o soltou. O pássaro voou e levou o menino preso pelo bico. Depois de uma grande viagem, largou-o num rico palácio.

Mandou por a mesa para o almoço, a qual apareceu bem preparada, e, tendo ele de sair logo depois, deu ao pequeno uma chave, dizendo que só abrisse o primeiro dos quartos que havia na frente da sala, e que eram sete.

O menino, logo que o padrinho (assim chamava ao pássaro) saiu, foi e abriu o primeiro quarto, e lá encontrou grande porção de cavalos; ele se divertiu a ponto de se esquecer de comer.

No dia seguinte o pássaro, antes de sair, deu-lhe a chave do segundo quarto, e ele o abriu e encontrou uma porção de selins e arreios.

Assim o pássaro foi-lhe dando as diferentes chaves dos quartos até o quinto. O terceiro era cheio de moças brancas, o quarto de mulatinhas, e o quinto de espadas.

Passaram-se tempos e o menino ficou moço feito, e pedia tudo ao padrinho, que lhe respondia que, se ele lhe fizesse sempre a vontade, seria dono de tudo o que ali havia. Depois de vistos os cinco quartos, o padrinho deu-lhe a sexta chave, mas lhe dizendo que não abrisse aquele quarto, do contrário perderia tudo que ele lhe havia prometido.

O moço, não se podendo conter, foi infiel, e abrindo o quarto, achou um belo rio de prata, e nele meteu o dedo, que ficou prateado. Pensando que o padrinho não viesse a descobrir, enrolou o dedo numa tirinha de pano; mas o pássaro que adivinhava tudo, quando chegou, viu o dedo atado, e lhe disse: «Já sei que abriste o quarto!» ao que ele respondeu com medo: «Abri, meu padrinho, mas vosmecê não me castigue.»

Disse-lhe o padrinho: «O castigo será amanhã quando de novo me desobedeceres.»

Deu-lhe a chave do sétimo quarto, e saiu. O moço não se conteve, e abriu o quarto, onde havia um rio de ouro.

Quando o pássaro voltou deu-lhe o castigo prometido: tirou-lhe a roupa e mergulhou-o no rio de prata, e, depois, no rio de ouro, e, quando acabou, deitou-o fora de casa, dando-lhe uma varinha de condão.

O moço começou a andar e foi ter em um reino. Aí encontrou um negro velho, a quem chamou pai Gaforino, e lhe pediu que lhe cedesse a sua roupa velha e suja para encobrir a sua cor e poder entrar na cidade.

O negro cedeu; mas uma princesa, que estava na janela do palácio, chegou a ver ele vestir a roupa velha do preto e, conhecendo que ele se encaminhava para o palácio, disse ao rei que queria se casar com o pior negro que ali chegasse.

O pai, ficando admirado pelo mau gosto da filha, não teve outro remédio senão mandar chamar o negro e contratar o casamento, com o que o moço disfarçado em negro ficou espantadíssimo, porque não pensava que tivesse sido visto por ninguém. Aceitou a princesa por mulher e, sempre muito desconfiado, não se deitava na cama com ela, e sim numa tábua ao pé do fogo.

O rei teve tão grande desgosto, que pôs-se de cama em estado de morrer. A família então fez uma promessa à Padroeira que se o rei escapasse, mandava fazer uma festa na igreja que durasse três dias. O médico receitou ao rei que comesse três pássaros de plumas; e tendo sabido o negro que os dois genros, que o rei tinha, haviam saído a procurar, cada qual montado em seu cavalo, pediu à sua varinha de condão uma carruagem e um rico vestuário e três pássaros de plumas. Meteu-se na carruagem com os pássaros, e saiu. Mais adiante encontrou os genros do rei. Eles perguntaram se aqueles pássaros eram de pluma e se os queria vender. Respondeu que eram de pluma, mas que só os cedia se deixasse ele os ferrar a cada um num quarto com o seu ferro.

Os moços consentiram, e voltaram para o palácio com os três pássaros, que o rei comeu e ficou bom. Seguiu-se a festa dos três dias. O negro mandou que sua mulher fosse à igreja ver a festa, e, ocultamente, pediu à sua varinha de condão que lhe desse uma linda carruagem e um vestido da cor do campo com todas as suas flores.

Assim foi, e a mulher seguiu. Depois ele pediu a mesma coisa para si e lá se apresentou com tanta rapidez que a mesma mulher não podia pensar que fosse ele. As duas irmãs casadas que a princesa tinha, com inveja, e desconfiadas, estando na igreja, diziam escarnecendo: «Com um moço assim é que tu devias ter casado e não com um negro.» Ela recebeu tudo com tristeza.

No segundo dia de festa, o negro pediu à varinha de condão que fizesse aparecer uma carruagem ainda mais rica e um vestido cor do mar, com todos os seus peixinhos, e para ele a mesma coisa, tudo isto sem a mulher saber; e quando voltaram todos da festa, já ele estava no palácio aquecendo fogo com sua roupa de negro.

No terceiro dia pediu uma carruagem ainda mais rica e um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas, e o mesmo para ele. Neste mesmo dia houve festa em palácio e foram convidados todos os genros do rei e mais mulheres, que se apresentaram muito ricamente vestidas. Então o preto apresentou-se na sua cor verdadeira, e nos mesmos trajes com que estava no dia em que ferrou os cunhados, por seus cativos.

Eles ficaram muito espantados, e ainda mais quando o moço foi chamado para a mesa, e disse que não se assentava na mesma mesa com os seus cativos. Então o rei lhe perguntou quais eram ali os seus escravos, e ele apontou para os seus dois concunhados que estavam ferrados nos quartos, como el-rei podia examinar.

O sogro os chamou para um camarim, e lá ficou convencido da realidade, sendo que as mulheres dos dois moços se atiraram da varanda do palácio abaixo, e eles as acompanharam, ficando o rei tão desgostoso, que em pouco tempo morreu, ficando o pai Gaforino senhor de todo o reino.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Lisboa/Portugal: Nova Livraria Internacional, 1885.
Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Sílvio Romero (Dona Labismina)

(Folclore do Sergipe)


Uma vez havia uma rainha, casada já há muito tempo, que nunca tinha tido filhos, e tinha muita vontade de ter, tanto que uma vez disse: «Permita Deus que seja uma cobra!…»

Passados uns tempos apareceu grávida, e quando deu à luz foi uma menina com uma cobrinha enrolada no pescoço. Toda a família ficou muito desgostosa; mas não se podia tirar a cobrinha do pescoço da criança. Foram crescendo ambas juntamente, e a menina tomou muita amizade pela cobrinha. Quando já mocinha, costumava ir passear à beira do mar, e lá a cobra a deixava e fugia para as ondas, mas a princesinha punha-se a chorar até que a cobra voltava, se enrolava outra vez no seu pescoço e iam ambas para o palácio, onde ninguém sabia disso.

Assim foram indo até que um dia a cobra entrou no mar e não voltou mais, porém disse à irmã que, quando se visse em perigo, chamasse por ela. A cobra tinha o nome de Labismina e a princesa o de Maria.

Passados os anos, caiu doente a rainha, e morreu; mas na hora de morrer tirou do dedo uma joia e deu ao rei, dizendo: «Quando tiveres de casar outra vez, deve ser com uma princesa, na qual esta joia der, sem ficar nem frouxa, nem apertada.»

Depois de algum tempo, o rei quis se casar e mandou experimentar a joia nos dedos das princesas de todos os reinos, e não encontrou nenhuma em que o anel coubesse pela forma que lhe tinha recomendado a rainha. Só faltava a princesa Maria, sua filha; o rei chamou-a e botou a joia no seu dedo, e ficou muito boa. Então ele disse à filha que queria se casar com ela e, como palavra de rei não volta atrás, a moça ficou muito desgostosa e vivia chorando. Foi ter com Labismina na praia do mar; gritou por ela, e a cobra veio. Maria contou-lhe o caso, e a cobra respondeu: «Não tenha medo; diga ao rei que só casa com ele, se ele lhe der um vestido da cor do campo com todas as suas flores.»

Assim fez a princesa, e o rei ficou muito passado, mas disse que iria procurar. Levou nisto muito tempo, até que afinal conseguiu. Aí a princesa tornou a ficar muito triste, e foi ter com a irmã, que lhe disse: «Diga que só se casa com ele se lhe der um vestido da cor do mar com todos os seus peixes.»

A princesa assim fez, e o rei ainda mais aborrecido ficou. Levou muito tempo a procurar até que arranjou. A moça foi ter outra vez com a Dona Labismina, que lhe disse: «Diga que só casa, se ele lhe der um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas.»

Ela assim disse ao pai, que ficou desesperado; mas prometeu arranjar. Levou nisto ainda mais tempo do que das duas outras vezes, até que conseguiu.

A princesa, quando o pai lhe deu o último vestido, viu-se perdida e correu para o mar, onde embarcou num navio que Dona Labismina tinha preparado, durante o tempo que o rei andou arranjando os vestidos. Labismina recomendou à irmã que seguisse naquele navio, e saltasse no reino onde ele parasse, que nessa terra ela encontraria casamento com um príncipe, e que na hora de casar, chamasse por ela três vezes, que ela se desencantaria numa princesa também.

Maria seguiu. No reino em que o navio parou ela saltou em terra. Não tendo de que viver, foi pedir um emprego à rainha, que a encarregou de guardar e criar as galinhas do rei. Passados uns tempos, houve três dias de festa na cidade. Todos do palácio iam á festa, e a criadora de galinhas ficava. Mas logo no primeiro dia, depois que todos saíram, ela se penteou, vestiu o seu vestido de cor do campo com todas as suas flores e pediu a Labismina uma bela carruagem e foi também à festa.

Todos ficaram muito embasbacados ao ver moça tão bonita e rica, e ninguém sabia quem era. O príncipe, filho do rei, ficou logo muito apaixonado por ela. Antes de acabar a festa, a moça partiu e meteu-se na sua roupinha velha, e foi cuidar das galinhas.

O príncipe, quando chegou ao palácio, disse à rainha: «Viu, minha mãe, que moça bonita apareceu hoje na festa? Quem me dera casar com ela! Só parecia a criadora de galinhas.»

— «Não digas isto, meu filho; aquela pobre tinha roupa tão fina e rica? Vai ver como ela está lá em baixo porca e esmolambada.»

O príncipe foi onde estava a criada e lhe disse: «Ó criadora de galinhas, eu hoje vi na festa uma moça que se parecia contigo…»

— «Oxente, príncipe, meu senhor, quer mangar comigo… Quem sou eu?»

No outro dia, nova festa, e a criadora de galinhas foi às escondidas com o seu vestido de cor de mar com todos os seus peixes, e numa carruagem ainda mais rica. Ainda mais apaixonado ficou o príncipe sem saber de quem.

No terceiro dia a mesma coisa, e a criadora de galinhas levou o vestido cor de céu com todas as suas estrelas. O príncipe ficou tão entusiasmado que foi se pôr ao pé dela e lhe atirou no colo uma joia, que ela guardou. Chegando ao palácio, o príncipe caiu doente de paixão e foi para cama. Não queria tomar nem um caldo; a rainha rogava a todas as pessoas para lhe levarem algum caldo, para ver se ele aceitava, e era o mesmo que nada.

Afinal só faltava a criadora de galinhas, e a rainha mandou-a chamar para levar o caldo ao príncipe.

Ela respondeu: «Ora, dá-se! Rainha, minha senhora, quer caçoar comigo?! Quem sou eu para o príncipe, meu senhor, aceitar um caldo da minha mão? O que eu posso fazer é preparar um caldo para mandar a ele.»

A rainha concordou, e a criada preparou o caldo, e botou dentro da xícara a joia que o príncipe lhe tinha dado na igreja. Quando ele meteu a colher e viu a joia, pulou da cama contente e dizendo que estava bom, e queria se casar com aquela moça que servia de criadora de galinhas.

Mandaram-na chamar, e, quando ela veio, já foi pronta, como quando ia à festa. Houve muita alegria e muito banquete, e a princesa Maria se casou com o príncipe; mas se esqueceu de chamar pelo nome de Labismina, que não se desencantou, e, por isso, ainda hoje o mar dá urros e se enfurece às vezes.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.  
Sílvio Romero. Contos Populares do Brazil.  Rio de Janeiro: 1894.
Atualização do português por J. Feldman

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Sílvio Romero (Folclore do Pernambuco: O matuto João)

Havia um homem de nome Manoel, casou-se com uma mulher chamada Maria e tiveram um filho que se chamou João. Os pais, por serem muito pobres, não lhe ensinaram a ler; porém João era muito ativo. Um dia saiu de casa com uma cachorrinha que sua avó lhe tinha dado e foi passear. No caminho soube que no Reino das três princesas havia grande festa e um casamento, dentro de quinze dias, com uma das filhas do rei, se decifrasse uma adivinhação. Já muitos homens tinham morrido na forca por não poderem decifrar a adivinhação.

João, chamado o amarelo, voltou para casa e disse ao pai que ia pelo mundo afora ganhar a sua vida. O pai consentiu e a mãe lhe preparou um pão muito grande e envenenado e arrumou-o na trouxa. João partiu com a sua cachorrinha. Não sabendo bem os caminhos, perdeu-se nas montanhas, e, depois de andar muito errado, deu n'uma campina já de noite. Aí dormiu. No dia seguinte passou ele um rio, que tinha tido uma grande enchente e onde viu um cavalo morto, e os urubus já lhe estavam dando cabo. Como havia correnteza, ás aguas puxavam o cavalo rio abaixo. João reparou naquilo e seguiu seu caminho.

O sol já pendia quando ele sentou-se debaixo de um pé de arvore para comer o seu pão, e nisto deu-lhe o coração aviso que não comesse sem experimentar em sua cachorrinha. Logo que ele deu o pão à cachorrinha, ela expirou. Muito sentido com isto, ele pegou-a nos ombros, e os urubus começaram a atrapalha-lo. Para ver-se livre, ele enterrou a cachorra, mas os urubus a desenterraram, a comeram e morreram. 

João pegou nos urubus e pôs nas costas e seguiu. Chegou a uma estalagem, e, não vendo ninguém, entrou pela porta adentro. Lá no fundo avistou sete homens todos armados de espingardas. Estavam sem comer há três dias e logo que viram o João avançaram para ele e lhe tomaram os urubus. João largou-se à toda pressa e deixou-se atrás; mas vendo que o não seguiam voltou e achou-os todos mortos. Escolheu das sete espingardas a melhor e largou-se. 

Chegando adiante, encontrou uma grande campina; já morto de fome e sede, sentou-se debaixo de um arvoredo. Nisto voa do capim grosso uma ynhambu-apé [perdiz]. O tiro errou e foi dar numa rolinha que estava entre as folhas. João apanhou a rola e a depenou; mas não achou com que fizesse fogo para assa-la. Tinha ali uma santa-cruz e tirou dela uma lasca e fez fogo, assou a rola e comeu; mas tinha muita sede e, não achando água, pegou um cavalo, que andava ali pastando, montou nele e pôs-se a correr até o cavalo ficar bem suado — a ponto de correr o suor e ele aparar e beber. 

Seguiu sua viagem e passou num campo e viu uma cova onde havia uma caveira; falou-lhe e notou que a caveira também lhe falava. Mais adiante encontrou um burro amarrado debaixo de uma árvore a cavar com os pés e conheceu que o burro cavava uma botija de dinheiro. Seguiu e foi ter ao palácio do rei e levar a sua adivinhação à princesa, certo de que ela não acertaria. 

Apresentou-se o João e disse que era pretendente à mão da princesa, pois ela era incapaz de decifrar a sua adivinhação. Riram-se muito dele. «Ora! disseram, quando outros homens sábios não saíram-se bem, tu que és um pobre matuto e amarelo é que hás de casar com a filha do rei!» 

O matuto insistiu e foi falar ao rei. O rei lhe disse: «Sabes tu a quanto te arriscas?» João respondeu que a tudo estava disposto. Chamada a princesa e muito confiada em si e debicando o rapaz, manda-lhe que proponha a sua adivinhação. O matuto assim falou:

“Saí de casa com massa e pita;
A massa matou a pita,
A pita matou três,
Os três mataram sete,
Dos sete escolhi a melhor:
Atirei no que vi
E matei o que não vi,
Com madeira santa
Assei e comi;
Bebi água sem ser dos céus,
Vi o morto carregando os vivos,
Os mortos conversando os vivos;
O que o homem não sabe,
Sabia o jumento:
Ouça tudo isto para seu tormento.”

A princesa mandou repetir, e não foi capaz de decifrar. E casou com o João.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.  
Sílvio Romero. Contos Populares do Brazil.  Rio de Janeiro: 1894.

terça-feira, 21 de março de 2023

Carolina Ramos (Folclore Brasileiro) Amazonas

A Amazônia, mercê dos encantos oferecidos pela pujança de sua flora e fauna,  atrai não só os que a procuram por interesse turístico, mas também desperta e cada vez mais incrementa a cobiça mundial de olhos voltados para as riquezas entesouradas no seu solo.

E é lá que o folclore avulta a correr livre como se, "num rasgo de benevolência da Natureza, a Amazônia inteira tivesse sido escolhida para perfeito habitat e abrigo de mitos, lendas e de personagens os mais diversos, tais como Curupiras, Caiporas, Sacis, Saçurás, Uiaras e demais entidades que se acoitam naquele mundo verde que pulsa, irrigado pela pujança dos rios ainda não rendidos à poluição ambiental."

Várias comemorações ligadas ao folclore agitam anualmente as cidades dos amazonenses, como o Festival da Canção Itacoatiara, Festival de Ciranda de Manacapuru e o famoso Festival Folclórico de Parintins. Este município, durante os três dias que encerram o mês de junho, ferve de entusiasmo acompanhando as disputas entre o Boi Caprichoso, que defende as cores Azul e Branca, e o Boi Garantido, que "briga" pela cor Vermelha. Nessa competição,
mitos e lendas indígenas são exploradas nas letras das músicas que incluem rituais indígenas e regionais e levam a plateia ao delírio.

Várias Lendas enfeitam as páginas da tradicional cultura amazonense. Impossível não começar pela maior delas que é a do Eldorado. Sobre essa lenda, temos em mãos o livro "A fascinação dourada", de autoria de J. Muniz, do IHG de Santos, o nosso "Marechal do Samba", como será explicado no momento oportuno. Na obra citada, J. Muniz inclui, à guisa de prefácio, um texto esclarecedor de Manoelito Teixeira Lima, onde se lê: "O mitônimo "Eldorado" significa lugar de ouro. Litré o vê como um pretendido país que teria sido descoberto por um tenente de Pizarro, na América do Sul".

Teixeira Lima também cita J. O. de Meira Penna, que explica: - "Eldorado inscreveu-se entre os três arquétipos míticos da ficção brasileira, a saber: Visão do Paraíso, Inferno Verde e Eldorado".

É evidente que a história do Eldorado faz parte da história do ouro do Brasil sempre impregnada de lirismo, de imaginação e que se estendeu por todo o mundo, em particular pela península ibérica, estimulando tanto a curiosidade como também a gula dos interesses, através dos tempos, o que, por sua vez, contribuiu bastante para o desenvolvimento da região amazônica.

J. Muniz relata a ousada "passagem dos fenícios e hebreus pela monumental Amazônia, digna de admiração e que continua envolta por muita magia, escondendo segredos e mistérios que aguçam a curiosidade do homem moderno". - Termina a introdução de sua obra, citando palavras do escritor Amorim Neto: -"A Amazônia será eternamente bruta e indomável... Inteligência alguma descreverá a sua beleza e rebeldia"... E exalta, ao terminar: - "Dentro das tuas selvas sombrias guardarás, por toda a vida, os tesouros da tua riqueza fabulosa e os mistérios das tuas lendas fascinantes".

A Lenda do Guaraná

Esta lenda tem por base um casal de índios que não tinha filhos, embora muito desejasse ter... pelo menos um. E isto era motivo de grande sofrimento.

O deus Tupã, reconhecendo o merecimento do jovem casal, acabou por satisfazer-lhe esse desejo. 

O menino chegado foi recebido com muita alegria pela tribo inteira. Crescia cercado de muito afeto e carinho, o que acabou por enciumar Jurupari, deus da escuridão e do mal, que, envenenado pela inveja, tramou-lhe a morte.

Numa tarde, a criança embrenhada na floresta procurava frutos. Jurupari, sob o aspecto de uma cobra venenosa, consumou sua vingança! A triste notícia espalhou-se rapidamente pela tribo e uma tempestade violenta, precedida por trovoada e relâmpagos, apavorou toda a aldeia.

Para a desesperada mãe do menino morto, aqueles trovões soaram como se fossem "mensagem expressa de Tupã, a aconselhá-la a "plantar" os olhos da criança, no local em que ela fora morta - o que daria origem a uma viçosa planta, cujos frutos seriam sempre muito doces".

O conselho foi seguido. E, naquele lugar onde os olhinhos do menino foram "plantados", nasceu o guaraná, cujas sementes negras, cercadas por uma película branca, muito se parecem com olhos humanos.

A Lenda da Uiara ou lara 

A riqueza das lendas da Amazônia! Talvez a mais conhecida e uma das mais belas seja a Lenda da Iara, ou Uiara, entidade meio mulher, meio peixe, sempre sentada à beira d'água, a pentear seus cabelos verdes como algas, enquanto o fascínio da sua beleza leva para o fundo do lago os incautos apaixonados atraídos pela magia do seu mavioso "canto de sereia".

Contam alguns que os cabelos da Iara não eram verdes, e, sim, negros, e que ela era, a princípio, não uma sereia, mas uma jovem índia, que vivia com o pai e dois irmãos. Estes, enciumados pela atenção que o pai dedicava à irmã, decidiram-se a eliminá-la. Ao perceber o perigo, a Iara, tentando defender-se, acabou por matá-los. 

Temerosa da ira do pai, fugiu, então, para a floresta, chegando exausta à beira do rio Solimões, sendo adotada pelos peixes e acabando por transformar-se naquela Sereia que sobe à superfície das águas e atrai jovens incautos com sua voz melodiosa. Sentada à margem do rio, ela penteia os longos cabelos verdes (ou negros), escondendo sempre a cauda de peixe, que é mantida mergulhada nas águas.

É assim que a Iara consegue arrastar para o fundo do lago (lagoa ou rio), os jovens ingênuos que se deixam enfeitiçar pela maviosidade da sua voz - ao concretizar sua vingança de punir os homens, que ela diretamente implica no fato que a levou a ser transformada em Sereia.

Origem do Rio Amazonas (lenda)

A criação do Rio Amazonas tem várias explicações, dentro do imaginário. Segundo uma delas, o imenso rio foi criado pelas lágrimas derramadas pela Lua, ao ver-se separada do seu amado, o Sol, sabendo-se condenada a brilhar apenas à noite, enquanto ele somente durante o dia poderia aparecer. Deste modo, aos dois enamorados, Cuara e Jassy (Sol e Lua), por determinação do deus Tupã, jamais seria permitido um encontro, uma vez que a ardência daquele amor, tão grande e impetuoso, poderia pôr em risco o equilíbrio do próprio mundo!

Boiuna de Prata

A Boiuna de Prata, diz a lenda, é o reflexo da própria Lua, "que chega até a Terra, a afundar navios, a fascinar e desencaminhar meninas, sob a forma de uma grande cobra de prata (o luar), que se esgueira coleante por entre a mata".

"Atraídas pelo fascínio do luar, ou seja, pela Boiuna de Prata, as meninas incautas acabam por ter sua felicidade roubada". Os olhos dessa cobra "iluminam, como dois grandes faróis". 

Ao arremate do assunto que envolve o riquíssimo folclore amazonense, impossível esquecer Macunaíma, esse "herói sem nenhum caráter", "esculpido em letras" pelo paulistano Mário de Andrade, que, no romance, lançado em 1928, usa como protagonista essa mesma figura vivificada, anos antes, por Theodor Koch-Grünberg, etnologista alemão, cujas pesquisas sobre os indígenas, lendas e mitos amazônicos, continuamente exploradas pelos estudiosos, teriam dado base ao trabalho de Mário de Andrade, o que resultou numa acusação de plágio. Entretanto, aquele Macunaíma, ativado e elaborado pelo escritor paulistano, acabou por ampliar e fazer crescer bastante o interesse pelo folclore amazonense, acabando por tomar-se protagonista de um filme. Nesta obra, escrita com bastante humor e linguagem peculiar, Mário de Andrade acentua a falta de caráter dessa personagem clonada do tal "jeitinho brasileiro", feito da contumaz esperteza e malandragem, que esbanja e que fingimos tolerar, embora nos desabone aos olhos do mundo.

Conduzido por Mário de Andrade, Macunaíma tripudia dentro do folclore nacional, imiscuindo-se em suas lendas, mitos e crendices. O sucesso da obra, porém, embora tropece em algumas críticas, acaba por trazer de retorno ao autor a prestigiosa conceituação de ter escrito "uma das mais importantes obras modernistas, numa época em que ele, Mário de Andrade, ferrenho defensor da Semana de Arte Moderna de 22, procurava, por todos os meios, "ridicularizar a maneira de expressão usada pelo Romantismo".

Outro nome, ligado ao acervo folclórico do Amazonas, é o do compositor Waldemar Henrique, que, embora nascido no Pará, inspirou-se bastante no folclore amazonense ao compor grande parte do seu alentado acervo musical, a exemplo das músicas: - Foi boto, Sinhá!, Cobra grande, Coco peneruê, Uirapuru, Curupira, e outras mais.

Fonte:
Enviado pela autora.
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: 
publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Carolina Ramos (Folclore Brasileiro) Estado do Acre

O Folclore acreano é rico em lendas. E quem as descreve com autoridade é Francisco Peres de Lima, cujo livro tem esse nome.

A lenda mais conhecida do Acre é a do Mapinguari, herdada dos índios. Achavam eles que as pessoas, depois de certa idade, transformavam-se num monstro de aparência assustadora. Habitante das florestas, tal monstro era uma espécie de macaco peludo, com um só olho na testa, pele grossa como couro de jacaré, violento e de cheiro forte. 

Suas vítimas, os incautos e desavisados. Ou mesmo caçadores que, acreditando ouvir alguém gritar, como se perdido na floresta, respondem a tais gritos e são em seguida atacados e mortos pelo próprio Mapinguari.

A Lenda da Alma de Bom Sucesso ou Lenda da Mulher Milagreira conta que uma determinada mulher, perdida num seringal, deu à luz a duas meninas, mas, sem socorros, morreram tanto a mãe como as duas crianças. O povo contrito, que chama essa mulher de Santa Raimunda, ergueu, no meio do seringal onde ela se perdera, a Capelinha Milagreira do Bom Sucesso, nome da cidade onde a santinha vivia. Essa capelinha é sempre muito visitada pelo povo devoto.

O mito do Gogó de Sola é bastante curioso. Aliás, é preciso esclarecer que ninguém sabe ao certo se é mesmo um mito, realidade ou lenda. O que circula é que o Gogó de Sola lembra um pequeno macaco que tem o pescoço revestido por uma espécie de couro duro. Sua mordida é muito forte e só larga a presa quando a cabeça é decepada. Aterroriza as redondezas porque ataca com fúria, como se estivesse enlouquecido. Embora pequeno, é muito ágil, o que dificulta as tentativas de atingí-lo com arma de fogo.

Outro mito é o Rasga-mortalha, ave de mau agouro, ou seja, a coruja, que prenuncia mortes por onde passa, a emitir o som de seda rasgada, o que lhe dá esse nome.

Outra lenda acreana é a do Cipó Hoasca, ou Ayahuasca, que se apoia nos troncos das árvores, enroscando-se nelas e alcançando grandes proporções, o que acontece, geralmente, às margens dos igarapés.

Uma vez adulto, este cipó emite ruídos misteriosos, lembrando um tambor. Ruídos incrementados por uma zoeira de vozes ininteligíveis. As pessoas atraídas por aquele som contam que, paradoxalmente, quando se situam nas proximidades da árvore que sustenta o estranho cipó, a tal zoeira não é ouvida.

O Cipó Hoasca dá lindas flores brancas e, "dele, é extraída uma beberagem chamada Daime, que é tratada convenientemente para que provoque certos efeitos desejados e, atualmente, é usada em movimentos de fundo religioso".

Fonte:
Enviado pela autora.
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: 
publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Luís da Câmara Cascudo (A Missa dos Mortos)

(Região Sudeste)

De todas as coisas, porém, capazes de arrepiar cabelo, e que ouvi em minha infância ouro pretana, nenhuma tão tremenda como a Missa dos Mortos, na Igreja das Mercês de Cima.

Quem m'a contou é pessoa conhecida em toda a cidade de Ouro Preto, e exercia funções incompatíveis com o uso da falsidade em suas informações.

Foi João Leite, o saudoso João Leite, pardo, miudinho, anguloso, sempre montado em seu cavalinho branco, minúscula montaria de hábitos austeros, que se contentava de viver da escassa relva do adro da Igreja.

Seria possível que uma pessoa estimável e honesta como João Leite, sacristão de confiança de uma irmandade, zelador de um templo, tivesse coragem de depois de pregar uma mentira envolvendo mortos respeitáveis, fosse tranquilamente dormir na sacristia, tendo ao lado um cemitério?

Tenho dúvidas. João Leite era ele próprio uma figura mista, metade deste mundo, metade do outro. Suas origens eram misteriosas. Foi enjeitado, com horas de nascido, à porta da Santa Casa, em época que não se sabe. Não se sabe, ainda, quando começou a funcionar como sacristão das Mercês. As mais velhas pessoas da cidade já o conheciam desde criança, nesse mister, com a mesma cara, sempre com o mesmo cavalinho branco.

Quando alguém indagava de João Leite suas origens ou o tempo que servia Nossa Senhora das Mercês, em sua Igreja, João Leite sorria e não respondia nada Um belo dia, há alguns anos, foi encontrado morto diante do altar-mor, deitado no chão, com as mãos sobre o peito, arrumadinho como se estivesse dentro de um caixão. O cavalinho branco sumiu sem que dele ninguém desse notícias.

Pois João Leite, segundo narrativa que lhe ouvi, já lá vão mais de trinta anos, assistiu a uma Missa dos Mortos.

Morando na sacristia do templo cuja conserva lhe era confiada, achava-se recolhido altas horas da noite, quando ouviu bulha na capela. A noite era fria e João Leite estava com a cabeça coberta para esquentar-se melhor. Descobriu-a e abrindo os olhos viu claridade.

Seriam ladrões? Mas a Igreja era pobre e qualquer ladrão, por mais estúpido que fosse, saberia que a Igreja das Mercês, sendo paupérrima, não dispunha de prataria, de qualquer outra coisa de valor mercantil. Enfim, podia ser, raciocinou João Leite.

Estava nessa dúvida quando ouviu sussurrado por vozes cavas em coro, o "Deus vos salve" do começo da ladainha.

Ergueu-se e foi resolutamente pelo corredor até a porta que dá para a nave. A Igreja estava toda iluminada, altares, lustres; e completamente cheia de fiéis.

No altar-mor, um sacerdote paramentado celebrava missa.

João Leite estranhou a nuca do padre, muito branca, não se lembrando de calvície tão completa no clero de Ouro Preto.

Os fiéis que enchiam a nave trajavam todos de preto, e entre eles alguns de cogulas, e algumas senhoras com o hábito das Mercês; todos de cabeças baixas.

Quando o Padre celebrante se voltou para dizer o Dominus Vobiscum, João Leite verificou que era uma simples caveira que ele tinha em lugar da cabeça.

Assustou-se, e nesse momento reparando nos assistentes, agora de pé, viu que também eles não eram mais do que esqueletos vestidos. Procurou logo afastar-se dali, e, caminhando, deu com a porta que deitava para o cemitério completamente escancarada.

O melhor que tinha a fazer, fez. Recolheu-se à cama, cobriu a cabeça, transido de medo, e ficou quietinho ouvindo o sussurro das vozes orando, o tinir da campainha na "Consagração" e no Domine nom sum dignus, até que voltou de novo o pesado silêncio das frias noites de Vila Rica.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Sílvio Romero (A mulher gaiteira)

(Folclore do Rio de Janeiro)

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Havia uma mulher casada e que não tinha filhos. Defronte dela morava um padre, pelo qual a mulher apaixonou-se. Ela chamava-o de Rabo de Galo, por ele ter os cabelos muito bonitos.

O padre não correspondia e mesmo nem sabia de tal paixão.

A mulher já não governava mais a casa e só queria estar na janela para ver o padre. Estava já tão doida, que chegava a dizer ao marido: “Não é bonito aquele padre?” O marido fingia não compreender e afirmava o que ela dizia.

Não satisfeita de ver o padre só da janela, a mulher não perdia missa um só dia, a pretexto de ir rezar, e o marido suportando tudo calado. Querendo ver até que ponto chegava aquela mulher, pretextou uma viagem e escondeu-se perto de casa, recomendando à negra que lhe fizesse sabedor de tudo o que sua mulher praticasse na sua ausência.

Não tardou em que a negra lhe viesse entregar um bilhete que a senhora ia mandar por ela ao padre, no qual pedia-lhe uma entrevista à noite, visto o marido não estar em casa. O homem apoderou-se do bilhete, disse à negra que dissesse à senhora que o tinha entregado ao padre, e escreveu, disfarçando a letra, outro bilhete, dizendo ser do padre, aceitando o convite e marcando a hora da dita entrevista.

Trouxe a negra o bilhete e deu-o à senhora. Esta não cabia em si de contente, e à hora marcada, entrou o marido, que se disfarçou no padre, vestido de batina, e com um grande chicote de couro cru escondido. A mulher convidou-o a entrar no quarto para descansar.

Aí não teve dúvida; o marido empurrou-lhe o chicote a torto e a direito, ainda fingindo ser o padre e dizendo: “Mulher casada, sem vergonha, como é que seu marido não está em casa, e manda-me um bilhete convidando-me para vir aqui! Tome juízo”, dizia o padre, e empurrava o chicote na mulher.

Ela, desesperada com as bordoadas, dizia: “Vai-te embora, padre dos diabos, se eu soubesse que tu eras tão mau, não tinha caído nesta. Sai, malvado, tu queres me matar? Basta, não me dês tanto.”

O marido, depois que deu-lhe muito, saiu deixando a mulher quase morta de pancadas. Mudou toda a roupa, e veio para casa, fingindo ter chegado da viagem. Perguntou pela mulher e disseram-lhe que ela estava doente. Ele, muito penalizado, perguntou que moléstia era aquela, pois ele a tinha deixado tão boa. Ela respondeu que sentia muitas dores pelo corpo, mas que também não sabia o que era. Mal pôde dizer estas palavras ao marido, e começou logo a gritar, tão forte era o seu sofrimento. Então o marido disse que ela estava muito mal, e que ele ia mandar chamar aquele padre, que morava defronte, para confessá-la.

A mulher ouvindo isto, exclamou: “Não, marido, por Nossa Senhora não me mande chamar aquele padre.”

O marido replicou: “Pois mulher, você não o acha tão bonito, e como não quer que ele venha lhe confessar?”

E para apreciar bem o efeito da surra, mandou chamar o padre do Rabo de Galo, como a mulher o chamava, e este veio confessá-la, alheio a tudo o que tinha se passado. A mulher, assim que foi vendo o padre, foi dizendo: “Sim, seu diabo, ainda achou pouca a surra que me deu, e ainda se atreve a vir aqui?

“Sai, diabo, vai-te embora.” O padre ficou espantado, e acreditou que a mulher estava com efeito muito doente, que talvez estivesse com o diabo no corpo, e então benzia-a e dizia: “Filha, acomoda-te, lembra-te de Deus, que estás para morrer. Eu esconjuro este mau espírito, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém”.

“Sim”, dizia a mulher: “Eu esconjuro é a surra que tu me deste.”

O padre, depois de muita reza retirou-se, e o marido quase que não podia conter o riso. Passados muitos dias, de cama, levantou-se a mulher curada da grande surra. A primeira coisa que fez foi pregar a janela que dava para a casa do padre, com uns pregos bem fortes, o que, vendo o marido, disse-lhe que não fizesse aquilo, que aquela janela era para ela se distrair nas horas vagas. Por mais que o marido pedisse, a mulher não foi capaz de deixar de pregar a janela e nunca mais olhou o padre.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Luís da Câmara Cascudo (O Sonho de Paraguaçu)

Com destino ao mar Pacífico, tomaram o vento do porto de San Lucas de Barrameda, na Andaluzia, em dias de setembro de 1534, duas naus castelhanas tripuladas por 250 marinheiros, soldados e colonos. Destes, não poucos nobres. Dirigia a jornada Dom Simão de Alcaçovas e Soutomaior, fidalgo português a serviço de Carlos V. A expedição tinha por fim explorar e povoar duzentas léguas de costa, desde o povoado de Chincha até o estreito de Magalhães, ao sul do vasto e riquíssimo império que Francisco Pizarro acabava de conquistar para a Espanha, e doadas ao dito Alcaçovas pela Imperatriz Isabel, com o título de Província de Novo Leão.

Tendo navegado em mui curta extensão o estreito, tão trabalhosa e arriscada se lhe prefigurou a travessia, tais dificuldades teve de enfrentar desde logo, que se viu forçado a retroceder, procurando abrigo na ilha dos Lobos, onde sua gente revoltada o assassinou.

Tomou a direção da esquadrilha um Juan de Echearcaguana, que fez degolar os capitães das naves, pondo em seguida a capa sobre o Norte, em busca de São João de Porto Rico, no mar dos Caraíbas. Após haverem navegado em conserva durante dois dias, os baixéis perderam-se de vista.

Viajava aquele em que tremulara a insígnia do desditoso Alcaçovas, sempre amarrado ao litoral e ao atingir a altura de Boipeba, revoltou-se ainda uma vez a tripulação, encalhando-o num recanto da costa da ilha, que até hoje guarda, por isso, o nome de ponta dos Castelhanos. Foi no dia do Apóstolo São Tiago, Ia de maio de 1535. Metendo-se nos botes e numa chalupa, os amotinados abandonaram a embarcação, em busca de terra, onde foram amistosamente recebidos pelos índios tupinambás. Ao fim, porém, de breves dias, pilhando-os desprecatados, chacinaram-nos sem piedade. Poucos dos castelhanos escaparam à sangueira.

A outra nave, denominada "San Pedro", governada pelo piloto Juan de Mori, veio jornadeando igualmente sem perder a costa do horizonte. Fome e enfermidade flagelaram-lhe a tripulação, que de novo se revoltaria se, em tempo, o capitão não metesse nos ferros os mais salientes.

Cinquenta dias eram passados que sobre o mar corria a nau, quando entrou nas águas da baía de Todos os Santos, onde os mareantes toparam Diogo Álvares, Caramuru, em companhia de nove homens brancos, vivendo pacificamente entre os índios das vizinhanças.

Pouco depois chegou ao porto a chalupa do navio soçobrado em Boipeba, com dezessete sobreviventes da traição do gentio, quase todos feridos de flecha, narrando quanto lhes acontecera, dizendo mais que possivelmente outros dos seus companheiros haveriam escapado à mortandade, refugiando-se em qualquer parte da ilha.

Atendendo às súplicas do Mori, dirigiu-se Diogo Álvares ao local sinistro, vinte léguas ao sul de sua aldeia, encontrando ali noventa cadáveres em putrefação e quatro homens milagrosamente poupados da fúria dos selvagens, embora feridos.

Somente a 18 de agosto, a "San Pedro" largou as velas em rumo da Península, tendo alguns tripulantes ou passageiros da malograda expedição ficado na terra com o Caramuru, ao passo que dos companheiros deste alguns quiseram ir-se embora. Em troca de mantimentos que recebera de Diogo Álvares, largou-lhe Juan de Mori a chalupa e duas pipas de vinho.

Um pormenor que define a intensidade do sentimento religioso entre os homens da época, sem, infelizmente, torná-los menos cruéis: antes de partir, o capitão castelhano entendeu ser obra de misericórdia sondar a alma do voluntário exilado minhoto, submetendo-o a uma sabatina de catecismo. Nada havia esquecido, pois, diz um cronista: - "E falou-se-lhe em alguma coisa da Fé, e, ao que mostrou, estava bem nela".

Teve Diogo uma carta de agradecimento do grande Imperador Carlos V - vai por conta de Rocha Pita e do Padre Simão de Vasconcelos – pelo socorro prestado aos náufragos de sangue azul. Que quanto aos plebeus, certamente, pouco importaria ao magnífico senhor de meio universo que levassem eles o capeta.

Eis aí o caso narrado com algumas divergências pelos historiadores. Veja-se agora a seguinte lenda, que se relaciona com o naufrágio do navio castelhano em Boipeba. Na sua aldeia, à entrada da baía de Todos os Santos, residia Diogo Álvares. Em certa manhã de maio de 1536, sua esposa, a celebrada Catarina Paraguaçu, contava-lhe singular sonho por duas vezes tido àquela noite: em extensa praia vira um navio destroçado, homens brancos rotos, encharcados os trapos que mal lhes resguardavam a pele, transidos de frio e inânimes de fome, estando entre eles uma jovem mulher muito alva, de estranha e fascinadora beleza, tendo aos braços não menos bela e alva criancinha.

Mandou Caramuru explorar a costa próxima, desde a entrada da barra até além do rio Vermelho, a ver se nela algum navio fizera naufrágio, pois enxergara no sonho de Catarina celeste aviso para ir em auxilio de cristãos que por aquelas redondezas houvessem sido vítimas
das insídias do mar. Tais pesquisas resultaram negativas.

Nessa noite, Paraguaçu teve outra vez o mesmo sonho. Ordenou Diogo novas buscas, até muito longe estendidas. Passaram-se dias, e vieram os índios trazer-lhe novas de haver-se despedaçado uma embarcação de gente branca na costa da ilha de Boipeba, Boipeba, achando-se em terra os seus tripulantes, a curtir privações. Sem demora, partiu Caramuru em socorro dos náufragos, que eram castelhanos, trazendo-os com ele. Entre os náufragos, porém, não estava mulher alguma. E que não viera a bordo pessoa de outro sexo, asseguraram-lhe. Entretanto, à noite de sua volta, a linda mulher tornou aparecer a Catarina, agora sozinha - dizendo-lhe que a mandasse buscar para a sua aldeia e lhe fizesse uma casa.

Era-lhe a voz tão harmoniosa, que Paraguaçu despertou extasiada, rogando insistentemente ao marido que fosse de novo à ilha, à procura.

Diogo partiu pela segunda vez, e em todas as aldeias vizinhas do lugar do sinistro, deu rigorosa batida, julgando haverem os tupinambás em custódia a moça que se mostrava à esposa adormecida. Finalmente, na palhoça dum indígena, encontrou pequena arca, que dos destroços do navio soçobrado o mar atirara à praia. Abrindo-a, encontrou uma imagem da Virgem Maria, com o Menino Jesus nos braços. Ao ver a imagem, Paraguaçu exultou de alegria, nela reconhecendo os traços fiéis da moça dos sonhos. Diogo fez elevar com presteza, perto da sua habitação, uma ermida de taipa, onde colocou o santo vulto. E porque lhe ignorasse a invocação, deu-lhe a de Nossa Senhora da Graça, pelo que fizera aos náufragos, promovendo-lhes o salvamento, e à Catarina revelando-lhe o seu paradeiro. Mais tarde, Caramuru construiu outra igrejinha, mais bem-cuidada, de pedra e cal, no mesmo sítio de hoje, reedificada em 1770.

Desde o começo do povoamento da terra por cristãos, a Santa Virgem começou também a favorecê-los com muitas graças, sendo frequentes, nos tempos de antanho, as romarias de fiéis que procuravam o seu templo. Aos náufragos, especialmente, e isto logo que foi posta ali, socorreu por multiplicadas vezes. Quando algum navio era sinistrado nas costas próximas, reza a lenda, apareciam umedecidas as vestiduras da santa imagem, testemunhando assim, de maneira irrefragável, a intervenção da Senhora na salvação das vítimas das ondas furiosas e bancos de areia traiçoeiros.

Vindo Dom João de Lencastro governar o Brasil, em 1694, um dos primeiros cuidados que teve ao chegar a esta cidade foi dirigir- se reverentemente à Igreja de Nossa Senhora da Graça, a quem tributava especial devoção, e depor lhe aos pés o bastão de governador, rogando-lhe, com a mais viva fé, que lhe guiasse os passos na administração da república. Ouviu-lhe Maria Santíssima a súplica, pois os seus longos nove anos de gestão do Estado do Brasil resultaram de muito proveito para os povos, quer nas coisas pertinentes ao temporal, quer nas atinentes ao espiritual.

A Capela que Diogo Álvares elevara, bem como o terreno em derredor, doou-os Catarina Paraguaçu, na penúltima década do século de quinhentos, aos padres de São Bento, após haver obtido do Sumo Pontífice - asseveram-no Frei Vicente do Salvador e Padre Simão de Vasconcelos - muitas relíquias e indulgências para os romeiros.

Eis aí, segundo a história e a lenda, a crônica da tradicional Abadia de Nossa Senhora da Graça, onde jazem as cinzas da piedosa esposa de Diogo Álvares, Caramuru.

A imagem que ainda hoje se venera no altar mor é a mesma que foi por aquele encontrada no tejupá do índio de Boipeba, vai por mais de quatro séculos, medindo uns seis palmos de altura. Na sacristia veem-se três antigos óleos em que figura a celebrada princesa brasílica.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Sílvio Romero (A onça, o veado e o macaco)

(Conto do Sergipe de origem indígena)


Uma vez, amiga onça convidou amigo veado para ir comer leite (*) em casa de um compadre, e amigo veado aceitou. No caminho tinham de passar um riacho, e a onça enganou o veado, dizendo que ele era muito raso, e não tivesse medo. O veado meteu o peito e quase morreu afogado. A onça passou por um lugar mais raso e não teve nada.

Seguiram. Adiante encontraram umas bananeiras, e a onça disse ao veado: “Amigo veado, vamos comer bananas; você suba, coma as verdes, que são as melhores, e me atire as maduras.”

Assim fez amigo veado, e não pôde comer nenhuma, e a onça encheu a pança. Seguiram; adiante encontraram uns trabalhadores capinando uma roça.

A onça disse ao veado: “Amigo veado, quem passa por aqueles trabalhadores deve dizer: ‘Diabo leve a quem trabalha.”

Assim foi; quando o veado passou pelos homens gritou: “Diabo leve a quem trabalha!” Os trabalhadores largaram-lhe os cachorros, e quase o pegaram.

A onça, quando passou, disse: “Deus ajude a quem trabalha.”

Os homens gostaram daquilo, e a deixaram passar.

Adiante encontraram uma cobrinha de coral, e a onça disse: “Amigo veado, olhe que linda pulseira para você levar à sua filha!”

O veado foi apanhar a cobra, e levou uma dentada; pôs-se a queixar-se da onça, e ela lhe respondeu: “Quem manda você ser tolo?”

Afinal chegaram à casa do compadre da onça; já era tarde e foram dormir. O veado armou sua redinha num canto e ferrou no sono. Alta noite, a onça se levantou devagarzinho de pontinha de pé, abriu a porta, foi ao curral das ovelhas, sangrou uma das mais gordas, aparou o sangue numa cuia, comeu a carne, voltou para casa, largou a cuia de sangue em cima do veado para o sujar, e foi-se deitar.

Quando foi de manhã o dono da casa se levantou, foi ao curral e achou uma ovelha de menos. Foi ver se tinha sido a onça, e ela lhe respondeu: “Eu não, meu compadre, só se foi amigo veado, veja bem que eu estou limpa.”

O homem foi à rede do veado e achou-o todo sujo de sangue.

“Ah! Foi você, seu ladrão!”

Meteu-lhe o cacete até o matar. A onça comeu bastante leite e foi-se embora.

Passados tempos, ela tomou um capote emprestado ao macaco e o convidou para ir comer leite em casa do mesmo compadre. O macaco aceitou e partiram. Chegando adiante, encontraram o riacho, e a onça disse: “Amigo macaco, o riacho é raso, e você passe adiante e por ali.”

O macaco respondeu: “Ah! Você pensa que eu sou como o veado que você enganou? Passe adiante se quiser, senão eu volto...”

A onça, que viu isto, passou adiante. Quando chegaram nas bananeiras, ela disse:

“Amigo macaco, vamos comer bananas; você coma as verdes, que são as melhores, e me atire as maduras.”

— “Vamos”, disse o macaco, e foi logo se trepando. Comeu as maduras e atirou as verdes para a onça.

Ela ficou desesperada, e dizia: “Amigo macaco, amigo macaco!... Eu te boto a unha!...”

— “Eu vou-me embora se você pega com histórias.”

Assim respondia o macaco e foram seguindo. Quando passaram pelos trabalhadores a onça disse: “Amigo macaco, quem passa por aqueles homens deve dizer: — Diabo leve a quem trabalha; porque ali eles estão obrigados.”

O macaco, quando passou, disse: “Deus ajude a quem trabalha.”

Os trabalhadores ficaram satisfeitos, e o deixaram passar. A onça passou também.

Adiante avistou uma cobrinha de coral, e disse ao macaco: “Olhe, amigo, que lindo colar para sua filha! Apanhe e leve.”

— “Pegue você!”, e não quis o macaco pegar.

Afinal chegaram à casa do compadre da onça e foram-se deitar porque já era tarde. O macaco, de sabido, armou sua rede bem alto, deitou-se e fingiu que estava dormindo. A onça, bem tarde, saiu de pontinha de pé, foi ao chiqueiro das ovelhas, sangrou a mais bonita, comeu a carne, e foi com a cuia de sangue para derramar no macaco.

Ele, que estava vendo tudo, deu-lhe com o pé, e o sangue caiu todo em riba da onça. Quando foi de para manhã, o dono da casa foi ao curral, e achou uma ovelha de menos, e disse: “Sempre que a malvada desta comadre dorme aqui, falta-me uma criação!”

Largou-se para casa, e já encontrou o macaco de pé e apontando para a onça, que fingia que estava dormindo. O homem a viu toda suja de sangue, e disse: “Ah, é você, sua diaba!”

Deu-lhe um tiro e a matou. O macaco comeu muito leite, e foi-se embora muito satisfeito.
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* leite: comer coalhada, provavelmente.


Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Sílvio Romero (Barceloz)

(Folclore do Pernambuco)


EM UMA NOITE CHUVOSA de fazer horror estavam três fadas cumprindo o seu fado no jardim que ficava ao lado da casa de Barceloz, namorador das flores em botão, no que levava as noites todas velando. Como eram, por esse motivo, as fadas privadas de cumprir com sua missão naquele lugar, combinaram encantar a Barceloz na ocasião em que estivesse namorando o bogari. Apareceram nessa noite tenebrosa as três fadas, e na ocasião em que chegou o moço à janela puseram-se a julgá–lo.

Dizia a primeira: “Este, que nos tem atrapalhado, há de sete anos não falar, e tendo esta flor para seu sustento.”

A segunda disse: “Neste tempo há de tornar-se em mato virgem, não vindo alma viva nestes ermos durante os sete anos.”

A terceira disse: “Só há de ser desencantado pela filha da Peregrina, que está cumprindo a mesma pena.”

Ditas estas palavras Barceloz encantou-se, a casa e todos que nela existiam. Quando Barceloz estava com seis anos de encanto a Ninfa, filha da Peregrina, completou os sete, e seguiu o mesmo destino de sua mãe, retirando-se em direção ao Reino da Torre de Ouro.

Anoitecendo-lhe no meio do caminho, e sendo noite escura e chuvosa, ela, como mulher, teve medo de ficar nas matas medonhas, e continuou a andar, a ver se encontrava alguma casa. Perdendo a esperança de a encontrar procurou uma árvore bem copuda e agasalhou-se debaixo à espera do sol.

Alta noite chegaram as fadas, e então disse a primeira: “Fademos, manas, fademos; no Reino da Torre de Ouro tem de haver uma grande festa, e tem-se de fazer uma escolha para desencantarem a mata que foi Barceloz, o Campo Negro, e a Bela das Belas. Estes três reinos têm de ser desencantados pelas três Peregrinas. Ninfa desencanta a Barceloz, a Morena desencanta a Bela das Belas, e Nandi o Campo Negro.”

Ninfa que aí estava ouviu toda a conversa, pôs-se quieta e assustada. Ao romper do dia pôs-se em caminho, e chegou trêmula de fome à beira de um rio, onde estava uma velha lavando roupa.

A velha disse: “Minha netinha, o que faz você por aqui? Como é tão bonitinha! Eu quero levá-la para minha casa: quer morar comigo?”

A moça respondeu: “Não posso ficar morando, posso ficar uns dias para descansar da viagem.”

— “Eu”, disse a velha, “só quero ter o gosto de te ver em minha casa.”

Seguiram ambas. Chegando elas à casa, tiniam todas as coisas como se fossem repiques de sinos, e a Peregrina ficou pasmada de ouvir tanto rumor em sua chegada.

A velha respondeu: “Isto é meu filho que te desconheceu.”

A velha apresentou a Peregrina ao filho, e este perguntou-lhe para onde ia.

“Vou”, respondeu a moça, “ao Reino da Torre de Ouro; vou desencantar a um infeliz que está encantado no Reino das Matas.”

Disse então o moço: “Ainda este ano lá não chegarás, e podes ir descansada que não hás de desencantar a Barceloz, pois só um beija-flor que ele tem a beijar; o bogari dar-te-á cabo da pele, e também uma serpente ao pé da janela, que só o vê-la faz horror; mas como minha mãe muito te quer, eu te vou dar alguns esclarecimentos. Leva este bogari e esta bola de vidro; acharás por estes dois objetos avultada quantia, que não deves aceitar. O rei também há de querer comprá-los; também lho não vendas. Ao chegares a Barceloz deve ser ao meio-dia, hora em que o beija-flor foi à fonte, e a serpente dorme; põe a flor na boca de Barceloz, e a bola na boca da serpente, e espera que venha o beija-flor; na chegada dele tira a flor do ramo e guarda. Quando o passarinho beijar a flor que está na boca de Barceloz, o passarinho cai, e a serpente acorda e quer morder, mas quebra os dentes na bola. Barceloz então se desencanta, aparece o palacete, e deves tirar do dedo do moço um anel que deves guardar para quando fores chamada pelo rei, e ele há de servir de sinal para casares com o moço, vencendo as invejosas.”

Assim fez a Ninfa. Depois de tudo acabado, foi ela ter à presença do rei. Todos os sábios duvidaram que essa tivesse tanto ânimo. Ela mostrou o anel, que todos reconheceram. De repente chegou outra mulher, dizendo que ela é que tinha desencantado a Barceloz, e a Ninfa foi condenada à morte; mas foi livre por não ter a outra apresentado prova alguma; foi então aquela condenada à morte, casou-se Ninfa com Barceloz, havendo muita festa pra festa.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Luís da Câmara Cascudo (O frade e a freira)

(Lenda do Sudeste)


QUANDO A REGIÃO se povoava no trabalho da terra, vieram também os semeadores da Fé, pregando e sofrendo ao lado dos homens pecadores.

Um frade ali missionou, ensinando orações e espalhando exemplos de esperança. Era moço, forte, soldado da milícia que vencia o mundo, batalhando por Jesus Cristo.

Na aldeia, não mais acampamento indígena e ainda não Vila-del-Rei, freiras divulgavam a ciência do esforço e do sacrifício, silenciosa e contínua como o correr de um rio na solidão.

Aqueles que se deram a Deus, só a Ele pertencerão eternamente. O amor divino é absoluto e completo. Nada restará para a esmola a outros amores.

Frade e Freira, servo e esposa de Cristo, amaram-se, tendo os sinais visíveis do juramento a um outro amor, inviolável e severo.

Foram amando e padecendo, abafando no coração a chama alta do desejo fremente, invasora, sonora de paixão. As razões iam desaparecendo na marcha alucinante de um amor tão vivo e maravilhoso como a terra virgem que o acolhia.

De furto, orando, chorando, penando, encontravam-se para um olhar mais demorado e uma recordação mais cruel e deliciosa. Nas margens do Itapemirim andavam as duas sombras negras, juntas, numa procissão de martírio, resistindo às tentações da floresta, do silêncio e da vontade envolvedora.

Se foram ou não um do outro, num milagre humano de esquecimento, não recorda a memória popular. Apenas, uma vez, não voltaram às suas casas. Faltou um frade nas matinas e houve um lugar vago entre as freiras.

Às margens do Itapemirim, claro e rápido, sobre fundamentos de granito, ergueu-se o casal, num diálogo que atravessa os séculos, ouvido pelas tempestades e compreendido pelos passarinhos.

É o grupo do Frade e a Freira...

Transformou-os Deus em duas estátuas de pedra-, reconhecíveis, identificáveis, perfeitas. Não os separou nem os uniu num abraço perpétuo à face dos homens.

Deixou-os próximos e distanciados, nas atitudes de meditação e de reza, de sonho e de resignação, frente a frente, imagem da imóvel fidelidade, da obstinação amorosa, esperando o infinito.

E assim, eternamente, ficarão...

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Sílvio Romero (Cova da Linda Flor)

Folclore do Rio de Janeiro.

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HOUVE NOUTRO TEMPO um rei que tinha o hábito de jogar, e todos com quem jogava perdiam. Uma vez convidou a um outro rei para jogar, e, no dia marcado, este se apresentou; mas perdeu todas as mãos do jogo, até que se desenganou e despediu-se para se ir embora. O dono da casa, que o desejava matar, marcou-lhe um outro dia para ir a palácio, o que era seu costume fazer com todos com quem jogava.

O outro foi avisado disto, e dirigiu-se a um ermitão para lhe aconselhar o que havia de fazer para evitar a morte. Este, não sabendo o conselho que lhe havia de dar, mandou que fosse ter com outro segundo seu irmão, que ainda o enviou para terceiro. Este último aconselhou ao rei que se pusesse debaixo de uma árvore, que lhe indicou, e que tivesse cuidado nos pássaros que nela se assentassem, afim de apanhar um escrito que um deles levaria no bico e largaria no chão, e que ele seguisse o que o tal escrito ensinasse.

Assim fez. Encaminhou-se à árvore indicada, sentou-se debaixo, e daí a uma hora vieram chegando os pássaros, até que também chegou um que tinha o peito amarelo que trazia o escrito, e o largou. O rei apanhou o papel, e leu as seguintes palavras: “O rei com quem jogaste tem três filhas encantadas, que hão de ir se lavar no rio, virando-se em três patas. Põe-te escondido na beira do rio até que elas cheguem; depois que elas tirarem a roupa para se banharem, deves apanhar a roupa da última que se despir e esconder-te com ela. Depois do banho as princesas hão de procurar a sua roupa, e a mais moça, não encontrando a sua, há de ficar muito aflita e prometer livrar de todo o mal a quem lha restituir.”

Assim fez. Seguindo para a beira do rio, se escondeu até que chegaram as três princesas irmãs; tiraram todas três as suas roupas, puseram-se nuas, viraram-se em três patas e atiraram-se ao rio. Depois que se fartaram de banhar-se saíram da água para se vestirem e tornarem para o palácio.

As duas que tinham roupa vestiram-se; a mais moça, como faltasse a sua para fazer o mesmo, ficou desesperada por não poder seguir suas irmãs. Como desconfiasse que lhe tinham escondido a roupa, e não enxergando pessoa alguma, pediu a quem lhe a tivesse tirado que lhe entregasse; porém o rei se fez surdo e não apareceu. Pediu a princesa pela segunda vez e nada; pediu pela terceira, prometendo a quem lha entregasse de livrar do mal que tivesse de lhe acontecer.

Então saiu o rei do esconderijo onde estava e dirigiu-se para a princesa, dizendo: “Aqui está a vossa roupa que eu tinha escondido afim de me livrar, por vossos conselhos, da morte que vosso pai me quer dar.”

A moça respondeu: “Tenho por costume cumprir o que prometo, e disto não me afasto; meu nome é Cova da Linda Flor; hoje é o dia que tendes de ir à casa do rei meu pai; chegando lá batei na porta, ela vos será aberta; assobiareis até chegardes à porta da sala, a qual achareis também fechada; batei, por dentro vos abrirão, ao abrir encostai-vos na parede para vos esconder a dita porta; não vos assusteis com um foguetão que há de sair da sala, que é para dar fim à vossa vida; passando o foguetão, entrai na sala e falai com o rei, meu pai”.

Assim fez. Quando o rei julgava que o foguetão tinha dado cabo do outro, foi que este se apresentou em sua frente. Ficou o pai das princesas muito chateado por ser aquele o primeiro que tinha escapado daquele trama. Ordenou-lhe então que fizesse amanhecer o seu palácio no meio do mar, sob pena de perder a vida. O rei jurado recolheu-se ao seu aposento no palácio muito triste e pensativo, temendo perder a vida no dia seguinte.

Dirigindo-se então a princesa para onde estava ele, perguntou-lhe a causa da sua tristeza. Respondeu que tinha de perder a vida no dia seguinte, se não fizesse aparecer o palácio no meio do mar, conforme seu pai lhe tinha ordenado.

Ela  lhe prometeu que dessa vez ainda não morreria; que dormisse descansado, que quando amanhecesse estaria no meio do mar. O que tudo aconteceu com admiração de todos.

Como o pai da Cova da Linda Flor não pudesse desta segunda vez matar o rei, seu companheiro, ordenou-lhe que desse conta dum anel que sua mulher tinha perdido no mar, com pena de perder a vida no dia seguinte.

Retirou-se o hóspede ao seu aposento outra vez triste e pensativo; o que sabendo a princesa, para lá se dirigiu e perguntou-lhe o motivo. “Tenho de morrer amanhã se não der conta de um anel que a rainha vossa mãe perdeu no mar.” A moça prometeu-lhe que estivesse descansado, que tinha de achar o anel. Deu então ao rei uma varinha, indicando-lhe uma laje que havia no mar, que, quando amanhecesse, se dirigisse à dita laje e batesse com a varinha, que havia de começar a sair os peixes que estavam no fundo da laje, que havia de ver um de papo amarelo, que o agarrasse e o abrisse que dentro encontraria o anel.

Assim foi. Tudo se passou como a princesa ensinou; arranjado o anel o rei foi levá-lo ao outro que logo o reconheceu e percebeu que isto eram artes da Cova da Linda Flor, e resolveu acabar também com ela. Porém a moça adivinhando isto foi ter ao aposento do seu protegido e lhe disse que fosse à estrebaria de seu pai, que lá encontraria três cavalos, um muito gordo e grande que andava como a água, outro mais abaixo na figura que andava como o vento, e outro ainda mais abaixo que andava como o pensamento, que ele pegasse neste e viesse para fugirem ambos.

Indo o rei à estrebaria, não encontrou o que lhe disse a moça e pegou no cavalo do meio, que andava como o vento, o que desagradou bastante a princesa. Como já fosse perto do dia, montaram-se ambos no cavalo, e fugiram.

Amanhecendo, o rei achou falta de sua filha e indo ao quarto do outro rei, também o não encontrou, indo também à estrebaria não encontrou o cavalo que andava como o vento. Mandou aparelhar o cavalo que andava como o pensamento, e seguiu atrás dos fugitivos. Quando os estava para alcançar, a princesa fez virar o cavalo em que fugia num estaleiro, a sela num toro de pau, o freio numa serra, o rei em cima do estaleiro e ela embaixo, ambos com a serra na mão a serrar.

Chegando o rei,  perguntou se tinham visto passar um homem com uma moça na garupa. A resposta que teve foi: “Serra, serra, serrador. Eu também sei serrar.”

Cansado de perguntar e sem ter uma resposta, o rei voltou desapontado. Chegando contou à rainha o que tinha encontrado, ao que ela disse: “És muito inocente; o estaleiro é o cavalo, o toro a sela, o freio a serra, e os dois eram o rei e a nossa filha.”

O rei volta para ver se os pegava; no caminho já não encontrou mais os serradores. Seguiu, e quando já estava a pegar os fugitivos, estes se viraram numa ermida, dentro dela um altar, no altar uma imagem, ao pé do altar um ermitão rezando em um rosário. Perguntando-lhe o rei se tinha visto passar um homem com uma moça na garupa, a resposta do frade era: “Padre Nosso, Ave Maria.”

Cansado o rei de perguntar, voltou de rédea, e foi-se embora. Chegando à casa contou à rainha o acontecido, ao que esta respondeu: “És muito tolo; a ermida era o cavalo, o altar a sela, a imagem a princesa, o ermitão o rei, que voltes quanto antes.” O rei partiu, e pelo caminho não encontrou mais ermida, nem ermitão.

Depois de muito andar encontrou num cercado uma roseira com uma rosa, e uma mamangaba beijando a rosa; perguntou à mamangaba se tinha visto passar por ali um homem a cavalo com uma moça na garupa. A mamangaba voou em torno da rosa; assim uma segunda vez. Na terceira pergunta ela voou em cima do rei e deu-lhe uma ferroada.

O rei voltou desapontado, contou à rainha o que se tinha passado, e ela lhe respondeu: “És ainda muito tolo; a roseira era a sela, a rosa nossa filha, o cercado o cavalo, a mamangaba o rei, portanto volta quanto antes.”

O rei não quis voltar, e a rainha de zangada pediu a Deus que o rei fugitivo fosse ingrato com sua filha e a desprezasse.

Assim aconteceu. Depois que estiveram residindo numa cidade por algum tempo se separaram, e o rei esqueceu de todo a Cova da Linda Flor. Então ele contratou casamento com outra princesa, e quinze dias antes do casamento mandou fazer anúncios para se apresentarem as pessoas que melhores doces soubessem fazer. Entre as que se apresentaram apareceu uma moça que se encarregou de fazer um casal de pombas que falassem, com a condição de serem postas em cima de uma mesa diante de todo o povo na véspera do casamento.

O rei concordou e no dia marcado mandou chamar todo o povo da cidade para presenciar aquela fonção*. Estando todos presentes, disse a pomba para o pombo: “Pombo, não te lembras quando o rei, meu pai, te convidou para jogar, para procurar um meio de te matar, e tu para te livrares escondeste a minha roupa, quando fui me banhar no rio, e eu te prometi livrar de todo o perigo se me desses a roupa? Pombo, não te lembras quando meu pai te chamou ao seu palácio para te tirar a vida, e te salvaste por meus conselhos? Não te lembras quando ele te ordenou que fizesses amanhecer seu palácio no meio do mar, e depois que lhe desses conta de um anel que minha mãe tinha perdido também no mar, sob pena de perderes a vida, o que tudo conseguiste por meus conselhos? Não te lembras quando fugimos, para escapar da morte, no cavalo que corria tanto como o vento, e, sendo perseguido por meu pai, nos salvamos por meus encantos? Não te lembras que isto aconteceu por três vezes, que na última nos viramos numa roseira com uma rosa, e uma mamangaba, que tudo fiz para te salvar a vida, e tu ingrato me esqueceste e vais te casar com outra?”

O pombo ia levantando a cabeça à proporção que o rei se ia lembrando do que se tinha passado com ele, e o rei desfez o trato do casamento e recebeu por mulher aquela que o tinha livrado da morte.
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* Função, no sentido de festa, brincadeira, pagode. [N. do A.]

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Filemon Martins (A Lenda do Ipupiara)

A lenda do monstro marinho conhecido como Ipupiara ou ainda Hypupiara, percorreu o mundo no século XVI. Habitava as profundezas das águas e assombrava, inicialmente, os indígenas do litoral brasileiro, passando depois a atormentar pescadores e marinheiros.

Há relatos sobre esse monstro horripilante e asqueroso do cronista português, Pero de Magalhães Gandavo, na Vila de São Vicente, SP, a primeira Vila do Brasil, dessa forma: "sendo já alta a noite, acertou de sair fora de casa uma índia escrava do capitão e lançando os olhos a uma várzea pegada ao mar, viu andar nela um monstro, movendo-se com passos e meneios desusados, e dando alguns urros tão feios que lhe parecia uma visão diabólica... andava ali uma coisa tão feia, que não podia ser senão o demônio. Chamado o capitão Baltasar Ferreira que, ao ver o monstro, enfrentou-o e o abateu a golpes de espada".

O cronista português descreveu o monstro como tendo "quinze palmos de cumprido e era semeado de cabelos pelo corpo e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes".

O jesuíta Fernão Cardim e o padre José de Anchieta fizeram referência a esses monstros e, segundo eles, o Ipupiara, era um ser "bestial, faminto, repugnante, de ferocidade primitiva e brutal". Anchieta escreveu: "Também há outro (demônio), nos rios, aos quais chamam Ipupiara, isto é, moradores da água, os quais igualmente matam os índios". Arrola o Ipupiara como uma das figuras do Demônio que afligiam os índios, ao lado do Curupira e do Boitatá.

A lenda do Ipupiara é tão forte e viva em São Vicente, que construíram um monumento em sua homenagem na Praça 22 de janeiro. Quando morei em Itanhaém, tive oportunidade de conhecer a estátua e a Praia da Biquinha, onde dizem os moradores houve a última aparição do ser monstruoso em dezembro de 1975, quando um jovem surfista de 17 anos afirmou ter sido atacado por um monstro numa noite quente de verão ao se refrescar no mar na praia da Biquinha. Essa estátua, infelizmente, pegou fogo e foi destruída em 2016. A obra, de autoria de Daniel Gonzalez, artista plástico falecido em setembro de 2011, foi inaugurada em 22 de janeiro de 1999. Filho do ator Serafim Gonzalez, o escultor é autor de outras obras de destaque na Baixada Santista, como a do Praiamar Shopping e O Surfista, no José Menino. Mencione-se também que o ator Serafim Gonzalez era escultor e autor do monumento Mulheres de Areia, em Itanhaém.

O sociólogo Gilberto Freyre, em sua obra Assombrações do Recife Velho, Rio de Janeiro, (2000) escreveu sobre a lenda; "Mais danados que todos, os hipupiaras eram homens marinhos que espalhavam o terror pelas praias. Os hipupiaras não comiam da pessoa que pegavam a carne toda, mas apenas uma parte ou outra. O bastante, entretanto, para deixar a vítima um mulambo. Comiam-lhe os olhos, narizes, e pontas dos dedos dos pés e mãos, e as genitálias. O resto deixavam que apodrecesse pelas praias".

Sérgio Buarque de Holanda também escreveu: "A fantástica ipupiara, com seu jeito particular de matar os homens, que é beijá-los e abraçá-los fortemente até fazê-los em pedaços, ficando ela inteira, e como os sente mortos, põe-se a chorar (sem que isso a impeça de devorar-lhes as partes do corpo que julga mais delicadas)”.

No caso de São Vicente, hoje, admite-se que é provável que tenha sido um grande leão-marinho, animal pouco conhecido e assustador para os caiçaras que habitavam o litoral paulista.

Um fato curioso, contudo, me intriga; nasci numa cidade do interior da Bahia, que se chamava inicialmente Campos Belos (1842), Fundão de Brotas (1865), Fortaleza de São João (1906), Jordão de Brotas (1911), Vanique (1935) e a partir de 1936, Ipupiara, com o Decreto-lei estadual n° 141, de 1943, confirmado depois pelo Decreto estadual n" 12.978, de 1944. Nasci, portanto, na cidade de Ipupiara, região da Chapada Diamantina. Quando aqui aportei, tomei conhecimento da fascinante lenda que correu o mundo.

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.