Mostrando postagens com marcador Contos e Lendas do Mundo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Contos e Lendas do Mundo. Mostrar todas as postagens

domingo, 3 de março de 2024

Contos das Mil e Uma Noites (Joias de Goha)

Conta-se, ó afortunado rei, nos antigos anais dos sábios, que vivia certa vez na cidade do Cairo um camarada de aparência idiótica que ocultava, sob uma bufonaria extravagante, uma fonte inesgotável de sagacidade e saber. Era o mais divertido, o mais instruído e o mais irônico homem de seu tempo. Seu nome era Goha. Não exercia profissão alguma, embora substituísse vez ou outra o pregador nas mesquitas. 

Certa vez, perguntou a um grupo de homens: “Ó muçulmanos, sabeis por que Alá não deu asas ao camelo e ao elefante?” 

Responderam: “Nós não sabemos. Mas tu, para quem nenhuma ciência tem segredos, podes com certeza esclarecer-nos.” 

Explicou Goha: “Se o camelo e o elefante tivessem asas pousariam nas flores em vossos jardins e, sendo muito pesados, esmagariam as flores.” 

Outra vez, um amigo bateu na porta de Goha, dizendo: “Em nome da amizade, ó Goha, empresta-me teu burro, pois preciso fazer uma viagem urgente.” 

Goha, que não confiava no homem, respondeu: “Atenderia com prazer a teu pedido. Infelizmente, já vendi meu asno.” 

Neste momento, o asno pôs-se a zurrar e zurrar. 

O amigo gritou: “Mas teu asno está aqui!” 

Numa voz que simulava profunda ofensa, Goha replicou: “Se confias na palavra de um asno mais do que na de um sábio, és um tolo e não quero mais ver tua cara.” 

Outra vez, Goha estava viajando com uma caravana que dispunha de poucos mantimentos. Na hora da refeição, sentaram-se para comer e dividiram igualmente o que havia. Todos sabiam que Goha tinha um apetite de camelo. Naquele dia, porém, retraiu-se discretamente. Seus companheiros insistiram para que apanhasse o rolo de pão e o ovo cozido que eram seu quinhão. 

Respondeu: “Não! Não! Pelo nome de Alá, comei e ficai felizes! Mas se fizerdes mesmo questão de que coma algo, que cada um de vós me dê a metade de seu rolo de pão e a metade de seu ovo, pois meu estômago não pode engoli-los inteiros.”

Goha foi certa vez ao açougue e disse ao dono: “Estou oferecendo uma festa hoje em casa. Dá-me o melhor pedaço de um cordeiro gordo!” 

O açougueiro deu-lhe um lombo de carneiro de peso considerável. Goha levou-o para casa e pediu à mulher que preparasse quebabs (espeto de carne) temperados com cebola. E foi dar uma volta no mercado. Assim que saiu, a mulher preparou a carne às pressas e comeu-a toda com o irmão. Quando Goha voltou, esfomeado, com o apetite aguçado pela expectativa, a mulher serviu-lhe um pão mofado e um pedaço de queijo grego. 

– Onde estão os quebabs? perguntou. 

- O gato comeu-os todos quando saí por um momento. 

Goha levantou-se sem dizer uma palavra, apanhou o gato e pesou-o na balança da família. Não pesava nem a metade da carne comprada. Goha virou-se para a mulher com raiva: “Sórdida filha de mil cachorros, se este peso é da carne, cadê o gato? E se é do gato, cadê a carne?” 

Certa noite, os amigos de Goha disseram-lhe: “Ó Goha, como sabes tudo sobre a astronomia, dize-nos o que acontece à lua após o último quarto.” 

- Não vos ensinaram nada na escola? ironizou Goha. Após o último quarto, Alá tritura a lua para fazer estrelas. 

Um dia, o terrível conquistador Timur Lenk, que não era somente zarolho e coxo, mas também extremamente feio, estava conversando com Goha enquanto o barbeiro real cortava-lhe o cabelo. Quando o homem passou-lhe o espelho, olhou-se a si mesmo e pôs-se a chorar. Goha pôs-se a chorar também. Quando ambos haviam chorado e suspirado durante três horas, Timur-Lenk se acalmou, mas Goha prosseguiu nas suas lamentações. 

- Qual é o problema? perguntou o conquistador, surpreso. Chorei porque vi minha feiura no espelho, enquanto tu, que não tens motivos para sentir-te infeliz, continuas a verter lágrimas. 

- Só posso responder com franqueza e respeito, ó soberano do mundo. Se choraste três horas por uma simples olhada à tua feiura no espelho, será surpreendente que teu escravo chore horas ilimitadas por ter que olhar para essa mesma feiura ao longo dos dias. 

Em vez de ficar enraivecido, Timur-Lenk riu até que as lágrimas lhe vieram aos olhos. 

Um dia, o califa perguntou a Goha:

“Ó Goha, sabes quantos doidos há em Bagdá?” 

– A relação seria um pouco longa, meu senhor, respondeu. 

- Assim mesmo, peço-te prepará-la, e vê que seja completa. 

Goha deu uma risada e disse: “Como detesto qualquer trabalho pesado, farei uma lista das pessoas de bom senso que vivem em Bagdá. Os que não figurarem nela são os doidos.” 

O mestre dos provérbios disse: “Quando alguém é um cão, filho de um cão, neto de um cão, e toda a sua linhagem é formada de cães, como poderá deixar de ser um cão e de agir como cão?” Disse também: “Felizes os cegos e os surdos porque não se expõem às calamidades que resultam para nós do que entra pelos olhos e os ouvidos.” 

Dizem a Goha: “O tempo passa.” E ele não compreende, pois nada vê passar. 

Dizem a Goha: “Nossa hora chegará.” E ele, examinando o céu azul, o acha vazio e nada vê chegar. 

Os homens com quem dialoga mostram-lhe um relógio: “Vê. Cada vez que esta pequena agulha faz a volta do quadrante, um dia se vai.” 

Goha pergunta: “Será este o tempo? E em que m interessa? A agulha gira sem tocar em mim.” 

Dizem-lhe: “A cada volta da agulha, a cada palavra que pronuncias, o tempo passa.” 

– E se eu ficar calado? 

- O tempo passa da mesma forma. 

- Para os outros, não para mim. 

- Para ti como para os outros. 

- E se eu for dormir no deserto? 

- O tempo passará assim mesmo, pois em teu peito teu coração continuará a bater. 

- E se fizer parar meu coração? 

- Farás parar o tempo. 

Uma turma de jovens maliciosos, querendo brincar, convidam Goha a uma festa. Ele aceita e fica surpreendido com a magnífica recepção que lhe reservam. Mas sua surpresa dura pouco. Incapaz de discernir a ironia nos discursos enfáticos que lhe dirigem, breve sente-se igual a eles. Uaddah As-Salem, Makram Kendi e Abu-Zeid apressam-se em volta dele e enchem-no de guloseimas e de adulações. Goha sente um bem estar celestial. Responde espontaneamente a todas as perguntas e ri com os outros, sem perceber que se riem dele. 

- Suponhamos, diz Uaddah, que uma beduína, montada num camelo, seja detida no seu caminho por uma ponte, pois a sua cabeça ultrapassa a altura da ponte. Que deve ela fazer? 

- Demolir a ponte, responde gravemente Makram Kendi. 

- Cortar as pernas do camelo, retruca AbuZeid no mesmo tom sério. 

- Por quê? reclama Goha. Basta-lhe abaixar a cabeça.

Ao ouvir essas palavras, os moços apoderam-se de Goha, beijam-lhe as faces, abraçam-no com força e gritam: “Ó flor da inteligência! Tu, o mais formoso entre nós!” 

Goha aperta as mãos que se lhe estendem e, a garganta sufocada pela emoção, repete:

- Basta-lhe abaixar a cabeça.

- Vem cá, Mohamed, grita Uaddah a um servente. O filho de Hajji Mahmud falou! Está morrendo de sede. Traze bebidas! 

Um dia, Goha recebeu a visita de um de seus amigos, que o encontrou estendido num divã, com os pés cruzados sob o corpo, à maneira oriental, o narguilé na boca e, sobre uma grande mesa, sua bebida e seus aperitivos.

- Dize-me como te arranjas para viver tão bem quando não fazes nada o dia todo, disse o amigo.

- É muito simples, replicou Goha. Com minhas economias, comprei o único poço da aldeia, e meu asno gira a roda doze horas por dia, fornecendo-me jarras e jarras de água, que vendo a toda a população. 

- Mas quem te diz que teu asno não para de trabalhar? Do interior de tua casa, não podes vigiá-lo. 

- Quando a sineta que amarrei a seu pescoço deixa de tocar, sei que ele não está mais trabalhando. 

– Mas supõe que teu asno se senta e agita a cabeça da direita para a esquerda: pensarás que está trabalhando quando está repousando. 

- Quando meu asno se tornar tão inteligente assim, concluiu Goha, então tomará meu lugar e eu girarei a roda do poço.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Beatrix Potter (O Conto de Benjamin Coelho)


Certa manhã, um coelhinho estava sentado em um banco. Ele aguçou as orelhas e ouviu o trit-trot, trit-trot de um pônei.

Um espetáculo estava chegando ao longo da estrada; era dirigido pelo Sr. McGregor, e ao lado dele estava a Sra. McGregor em seu melhor gorro.

Hop, skip

Assim que eles passaram, o pequeno Benjamin Coelho deslizou para a estrada e partiu – com um salto, salto e salto – para visitar seus parentes, que viviam na floresta nos fundos do jardim do Sr. McGregor.

Aquela floresta estava cheia de buracos de coelho; e no buraco mais limpo e arenoso de todos viviam a tia de Benjamin e seus primos – Flopsy, Mopsy, Rabo de Algodão e Peter.

A velha Sra. Coelho era viúva; ela ganhava a vida tricotando luvas e cachecóis de lã de coelho (uma vez comprei um par em um bazar). Ela também vendia ervas, chá de alecrim e tabaco de coelho (que é o que chamamos de lavanda).

O pequeno Benjamin não queria muito ver sua tia.

Ele deu a volta por trás do abeto e quase caiu em cima de seu primo Peter.

Peter estava sentado sozinho. Ele parecia mal e estava vestido com um lenço de bolso de algodão vermelho.

“Peter”, disse o pequeno Benjamin, num sussurro, “quem está com suas roupas?”

Peter respondeu: “O espantalho no jardim do Sr. McGregor”, e descreveu como ele foi perseguido pelo jardim e deixou cair os sapatos e o casaco.

O pequeno Benjamin sentou-se ao lado de seu primo e assegurou-lhe que o Sr. McGregor havia saído em uma carruagem, e a Sra. McGregor também; e certamente seria o dia inteiro, porque ela estava usando seu melhor gorro.

Peter disse que esperava que chovesse.

Nesse ponto, ouviu-se a voz da velha Dona Coelha dentro da toca do coelho, chamando: “Rabo de algodão! Rabo de algodão! Traga mais camomila!”

Peter disse que achava que poderia se sentir melhor se fosse dar uma caminhada.

Eles foram embora de mãos dadas e chegaram ao topo plano da parede no fundo da floresta. Dali eles olharam para o jardim do Sr. McGregor. O casaco e os sapatos de Peter podiam ser vistos claramente sobre o espantalho, encimado por um velho gorro do Sr. McGregor.

O pequeno Benjamim disse: “Estraga a roupa se espremer debaixo do portão; a maneira correta de chegar é descendo pelo pé de pera.”

Peter caiu de cabeça; mas não teve importância, pois o chão abaixo estava recém-arrumado e bastante macio.

Fora semeado com alface.

Eles deixaram muitas e estranhas marcas de pés por todo lugar, especialmente o pequeno Benjamin, que usava tamancos.

O pequeno Benjamim disse que a primeira coisa a fazer era recuperar as roupas de Peter, para que pudessem usar o lenço de bolso.

Eles os tiraram do espantalho. Chovera durante a noite; havia água nos sapatos e o casaco estava um pouco encolhido.

Benjamin experimentou o gorro, mas era grande demais para ele.

Então ele sugeriu que enchessem o lenço de bolso com cebolas, como um presentinho para sua tia.

Peter não parecia estar se divertindo; ele continuou ouvindo ruídos.

Benjamin, ao contrário, estava perfeitamente à vontade e comeu uma folha de alface. Disse que tinha o hábito de ir ao jardim com o pai buscar alface para o jantar de domingo.

(O nome do pai do pequeno Benjamin era o velho Sr. Benjamin Coelho.)

As alfaces certamente eram muito boas.

Peter não comeu nada; ele disse que gostaria de ir para casa. Logo ele derrubou metade das cebolas.

O pequeno Benjamim disse que não era possível subir no pé de pêra com uma carga de legumes. Ele liderou o caminho corajosamente em direção à outra extremidade do jardim. Fizeram uma pequena caminhada sobre tábuas, sob uma ensolarada parede de tijolos vermelhos.

Os camundongos sentavam-se na soleira de suas portas quebrando caroços de cerejeira; eles piscaram para Peter e o pequeno Benjamin.

Logo Peter soltou o lenço de bolso novamente.

Eles se misturaram a vasos de flores, molduras e banheiras. Peter ouviu barulhos piores do que nunca; seus olhos ficaram grandes como pirulitos!

Ele estava um ou dois passos à frente de seu primo quando parou de repente.

E o que foi que ele viu naquela esquina?

O pequeno Benjamin deu uma olhada e, em menos de meio minuto, escondeu a si mesmo, Peter e as cebolas debaixo de uma grande cesta…

A gata levantou-se e espreguiçou-se, aproximou-se e cheirou o cesto.

Talvez ela gostasse do cheiro de cebola!

De qualquer forma, ela se sentou em cima da cesta.

Ela ficou sentada lá por cinco horas.

Não posso fazer um desenho de Peter e Benjamim debaixo da cesta, porque estava muito escuro e porque o cheiro de cebola era terrível; fez Peter e o pequeno Benjamin chorarem.

O sol estava por trás da floresta e já era bem tarde; mas o gato ainda estava sentado em cima da cesta.

Por fim, houve um tamborilar, mais ruídos e alguns pedaços de argamassa caíram da parede acima.

O gato olhou para cima e viu o velho Sr. Benjamin Coelho saltitando ao longo do topo da parede do terraço superior.

Ele estava fumando um cachimbo de tabaco para coelhos e tinha um pequeno cajado na mão.

Ele estava procurando por seu filho.

O velho Sr. Coelho não tinha opinião alguma sobre gatos.

Ele deu um tremendo salto do topo da parede para cima do gato, o empurrou para fora da cesta, e o chutou para dentro da estufa, arrancando um punhado de pelo.

O gato ficou surpreso demais para lutar de volta.

Quando o velho Sr. Coelho jogou o gato na estufa, ele trancou a porta.

Então ele voltou para a cesta e pegou seu filho Benjamin pelas orelhas, e o bateu com uma pequena vara.

Então ele pegou seu sobrinho Peter.

Sr. Coelho pegou o lenço de cebolas e marchou para fora do jardim.

Quando o Sr. McGregor voltou cerca de meia hora depois, ele observou várias coisas que o deixaram perplexo.

Parecia que alguém andava por todo o jardim com um par de tamancos – só que as pegadas eram ridiculamente pequenas!

Também não conseguia entender como a gata conseguiu se trancar dentro da estufa, trancando a porta por fora.

Quando Peter chegou em casa, sua mãe o perdoou, porque ela ficou muito feliz em ver que ele havia encontrado seus sapatos e casaco. Rabo de Algodão e Peter dobraram o lenço de bolso, e a velha Dona Coelha pendurou as cebolas no teto da cozinha, com os molhos de ervas e o tabaco para coelho.

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto de Benjamin Coelho. Publicado originalmente em 1902 como The Tale of Benjamin Bunny. Disponível em Domínio Público

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Irmãos Grimm (Os Elfos e o Sapateiro)


Um dia, um sapateiro pobre, sem nenhuma culpa, mal tinha couro suficiente para fazer mais um par de sapatos. À noite ele cortou o couro, para que pudesse fazer os sapatos pela manhã, e foi para a cama. Mas para sua surpresa, encontrou dois sapatos acabados na sua mesa de trabalho na manhã seguinte. Confuso, ele olhou para os sapatos e viu que eles foram feitos com grande precisão e cuidado.

Pouco tempo depois, um cliente veio à sua loja e queria experimentar os sapatos. Ele andou por um tempo e ficou muito satisfeito, tanto que pagou muito mais pelos sapatos do que o costume. Com esse dinheiro, o sapateiro podia comprar couro suficiente para dois pares de sapatos. Naquela noite ele cortou o couro, para que pudesse fazer os sapatos pela manhã, mas quando acordou os sapatos já estavam prontos. Algumas horas depois ele tinha vendido os sapatos e tinha dinheiro suficiente para comprar couro para quatro pares de sapatos.

E de novo na manhã seguinte, ele encontrou quatro pares de sapatos perfeitos. Isso continuou por algum tempo: todo o couro que ele cortava à noite, pela manhã magicamente se tornava um par de sapatos perfeito. E logo o sapateiro não era mais pobre e vivia uma vida próspera.

Uma noite, pouco antes do Natal, quando o homem tinha cortado o couro, ele disse à sua esposa: ‘Vamos ficar acordados e ver quem nos ajuda?’ 

Sua esposa achou que era uma boa ideia e eles se esconderam no canto da sala. À meia-noite, dois lindos homenzinhos nus apareceram. Eles se sentaram na mesa de trabalho e fizeram os sapatos. Quando o trabalho estava pronto, eles rapidamente correram para longe.

Na manhã seguinte, sua esposa disse: ‘Esses homenzinhos nos trouxeram muita prosperidade, vamos mostrar a eles como somos gratos. Eles devem estar com frio, sem roupas. Eu vou fazer para eles algumas camisas, suéteres, casacos, calças e meias. E você pode fazer para eles um par de sapatinhos minúsculos. Eles vão ficar quentinhos no Natal.’

Não foi preciso dizer mais nada. Eles colocaram os presentes na mesa e se esconderam no canto de novo para que pudessem ver a reação deles. 

À meia-noite, os homens entraram na sala. Eles queriam começar a trabalhar, mas em vez de couro eles só viram presentes. No começo eles ficaram surpresos, mas logo ficaram felizes. Eles rapidamente vestiram as roupas e cantaram:

“Agora somos meninos tão bonitos de ver,
Por que deveríamos ser sapateiros por mais tempo?”

Eles dançaram e saltaram sobre as cadeiras e sofás. Quando terminaram de dançar, eles desapareceram pela porta. Nunca mais ninguém ouviu falar deles. 

O que sabemos é que o sapateiro e sua esposa viveram felizes para sempre.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Contos e Lendas da Espanha (Notícias do céu)

Era uma vez uma viúva que voltou a se casar.

Certo dia, enquanto que o marido trabalhava, um mendigo manco bateu à porta e pediu uma ajuda. A mulher, que gostava muito de conversar, perguntou-lhe de onde vinha. O mendigo, animado com a perspectiva de conseguir uma boa esmola, disse:

— Venho do Céu, com a permissão de Deus. Quero ver se arranjo aqui na Terra algumas coisas que facilitem minha vida lá em cima.

A mulher reagiu surpresa:

— Quer dizer que os habitantes do Paraíso também passam necessidade?

— E como, senhora! — o mendigo exclamou. — Nem mesmo no Céu existe igualdade de direitos. Lá, os que têm muito vivem melhor do que os que têm pouco... Exatamente como aqui.

A mulher ficou pensativa por alguns momentos. Por fim, disse ao mendigo:

— Meu primeiro marido deve estar por lá, pois era um homem bondoso e sábio. Talvez o senhor o conheça.

— Talvez — o mendigo repetiu, com gravidade. — Como é o nome dele?

— Pello Bidegain — disse a mulher.

O mendigo sorriu;

— Claro, como não haveria de conhecê-lo se ele é justamente o meu melhor amigo!

— Que incrível coincidência! — a mulher exclamou encantada.

— Pois estou lhe dizendo, senhora. Lá em cima, eu e seu primeiro marido somos como unha e carne.

Ansiosa, a mulher pediu:

— Então, dê-me notícias de meu Pello Bidegain. Como é que ele está?

— Infelizmente, não muito bem — o mendigo respondeu, meneando a cabeça com uma expressão de pesar. — Para ser franco, Pello Bidegain anda em sérias dificuldades.

— Que tipo de dificuldades, senhor?

— Financeiras, senhora... Anda sempre mal vestido e nunca tem dinheiro para nada, nem mesmo para as necessidades mais básicas.

— Pobre querido — a mulher murmurou. De súbito, teve uma ideia: — Diga-me, o senhor não poderia levar algumas coisas para ele?

— Claro que sim.

— Então, espere um minuto, por favor.

A mulher entrou em casa e logo voltou com muitos presentes para o falecido:

— Aqui estão dois pares de sapatos e algumas peças de roupa; calças, meias, camisas e também a boina da qual Pello Bidegain nunca se separava. O pobrezinho deixou tudo aqui, antes de ir para o Céu. Naturalmente, nem de longe poderia imaginar que a vida lá em cima fosse tão parecida com a que levamos aqui na Terra...

— É mesmo, senhora. Ninguém adivinharia. — Então o mendigo perguntou: — A senhora não teria também algo de comer?

— Claro que sim. — E a mulher explicou: — Providenciei um pouco de toucinho, chouriço, queijo e alguns pães.

— Está ótimo, senhora. Aposto que Pello Bidegain ficará muito feliz. Mas, depois de se vestir condignamente e saborear todas essas delícias, com certeza desejará coroar a refeição com um bom vinho.

— E o senhor acha que já não pensei nisso? — Sorrindo, a mulher entregou-lhe três garrafas do melhor vinho que tinha em casa.

— Ah, minha senhora, Pello Bidegain ficará tão agradecido!

O mendigo guardou tudo num grande saco que trazia às costas. Já se preparava para ir embora, quando ocorreu-lhe uma nova ideia:

— A senhora não teria também algum dinheiro para mandar a Pello Bidegain?

– Pois era justamente nisso que eu estava pensando.

A mulher deu ao mendigo uma moeda de cinquenta pesetas e pediu:

— Entregue-a para ele, por favor. Diga-lhe que o amo mais do que a qualquer outro homem, inclusive mais do que a Mikel, que é meu atual marido.

— Eu direi, senhora.

Assim, o falso enviado do Céu partiu, coxeando, curvado ao peso dos presentes que levava. Estava tão feliz, que até sentia vontade de dançar ao som de castanholas.

Enquanto isso, Mikel, o segundo marido da mulher, voltava para casa. Ao vê-lo, a esposa disse radiante:

— Você nem imagina o que aconteceu.

— O que foi? — o marido perguntou com estranheza.

— Por que toda essa euforia?

— É que tive notícias de meu querido Pello Bidegain. Soube que ele está no Céu... Mas não tão bem quanto eu imaginava.

— Você diz cada disparate, mulher. O Céu é o lugar ideal para as boas almas que partiram deste mundo. Se Pello Bidegain foi para lá, não poderia ter melhor sorte.

— Acontece que a vida lá em cima é muito parecida com a vida aqui embaixo.

Intrigado, o marido perguntou:

— Mas, afinal, quem foi que lhe deu essa notícia?

— Um mendigo manco que desceu do Céu com a permissão do Senhor — a mulher respondeu. — Aliás, ele foi muito gentil e aceitou levar algumas roupas, alimentos, vinho e dinheiro para Pello Bidegain, que está passando necessidade, pobrezinho.

Compreendendo o que havia acontecido, Mikel saiu de casa. Munido de um grande bastão, montou seu cavalo e já ia partir, quando a mulher gritou:

— Ei, aonde você vai?

— Também tenho um presente para aquele enviado do Céu — ele respondeu sem se voltar. — Mas preciso correr, se quiser alcançá-lo.

Enquanto galopava, Mikel ia pensando na surra que daria naquele mendigo mentiroso e aproveitador. Mas o mendigo, astuto como uma raposa, já esperava por represálias. Caminhava pela estrada receoso e a toda hora olhava sobre os ombros para ver se alguém o
seguia.

A certa altura, avistou um cavaleiro a galope, levantando uma nuvem de poeira. Agindo com rapidez, o mendigo escondeu o grande saco atrás de uns arbustos e sentou-se à beira do caminho.

Quando Mikel o viu, fez com que o cavalo parasse e perguntou:

— Você não viu um mendigo manco, levando um enorme saco nas costas?

— Sim, senhor. Eu o avistei ainda há pouco. Percebi até que ele estava assustado, pois volta e meia olhava para trás e corria, arrastando a perna direita. E quanto mais olhava para trás, mais depressa o pobre diabo tentava correr. Por fim, acabou entrando naquela trilha cheia de espinheiros. Mas aposto que não conseguirá chegar muito longe, por ali. O senhor nao terá dificuldade alguma em alcançá-lo.

— Acontece que a trilha é estreita demais para meu cavalo.

Então vá a pé, senhor, e vá tranquilo, que eu tomarei conta do animal.

— Nesse caso, eu lhe agradeço.

Enquanto Mikel se embrenhava na trilha, o mendigo pegou o saco que havia escondido, pendurou-o na sela, montou o cavalo e partiu, congratulando-se com o destino.' Decididamente, aquele era seu dia de sorte.

Horas depois, Mikel voltou para casa, triste e abatido. Mas fingiu-se muito calmo, até alegre, para que a mulher não o importunasse com perguntas que ele não gostaria de responder.

Ao vê-lo entrar, ela disse:

— E então? Conseguiu alcançar o mendigo?

— Claro.

— E o que foi que você lhe deu?

– O cavalo... Para que chegasse mais rápido ao Céu.

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Hans Christian Andersen (O guardador de porcos)

Era uma vez um príncipe pobre; ele tinha um reino muito pequeno, mas mesmo assim grande o bastante para que ele se casasse. E casar era o que ele queria, era mesmo seu maior desejo. Mas é claro que ele ia ser muito atrevido se perguntasse logo à filha do Imperador: “Você quer casar comigo?” Pois foi justamente o que ele fez.

Seu nome ilustre era conhecido por toda parte, e havia centenas de princesas que lhe diriam “sim” na mesma hora, felizes da vida de ir morar com ele em seu pequeno reino.

E a filha do Imperador? Que será que ela respondeu? Pois é o que vamos ver agora.

Sobre o túmulo do pai do príncipe, crescia uma roseira, uma roseira maravilhosa. Só florescia de cinco em cinco anos, e ainda assim dava apenas uma rosa de cada vez. Mas não era uma rosa como as outras; tinha um perfume tão doce, que fazia as pessoas esquecerem todos os desgostos e preocupações.

Além da rosa, o príncipe tinha um rouxinol; um rouxinol que cantava tão bem, que era como se as mais lindas melodias morassem em sua pequena e delicada garganta.

Essa rosa e esse rouxinol o príncipe quis dar de presente à princesa; para isso, foram enviados a ela dentro de duas caixas de prata. O Imperador ordenou que as caixas fossem levadas ao grande salão, onde a princesa brincava com suas damas de honra. Quando ela viu aquelas caixas com os presentes, bateu palmas de alegria.

– Ah, que bom se eu ganhasse um gatinho! – disse ela.

Mas o que saiu da primeira caixa foi uma rosa lindíssima e perfumada.

– Oh, que coisinha mais bem feita! – exclamaram todas as damas de honra.

– Ela é mais do que bem feita. É fascinante! – disse o Imperador.

A princesa, porém, tocou na rosa e logo começou a chorar:

– Que coisa horrível, Papai! Não é uma rosa artificial, é de verdade! – reclamou ela, aborrecida, jogando a rosa no chão.

– Que coisa horrível! É uma rosa de verdade! – disseram também todas as damas de honra. É que elas achavam uma rosa de verdade muito pouco elegante e nobre, pois se encontra por toda parte. Ninguém reparou em seu doce perfume, ninguém se abaixou para pegá-la do chão, e logo ela foi esquecida. Mais tarde, uma serva do palácio jogou-a no lixo.

– Antes de ficarmos zangados, vamos primeiro verificar o que veio na outra caixa – disse então o Imperador. Com todo o cuidado, a caixa foi aberta, e o que apareceu foi o rouxinol. Dois pajens tiveram de trazer um suporte de ouro com uma argola pendurada, e um deles pousou o passarinho naquele aro dourado. E, apesar de ser bem simples, sem cores vivas, seu canto era tão maravilhoso, que ninguém conseguiu falar mal dele.

As damas de honra ficaram escutando, encantadas, o Imperador pôs as mãos no peito, comovido, e a princesa sentou-se numa poltrona sem dizer nada e prestando a maior atenção.

– Superbe! Charmant! – disseram as damas de honra, pois todas falavam francês, cada uma pior que a outra.

Com isso, elas queriam dizer que o canto do passarinho era magnífico e fascinante. A linda voz do rouxinol ressoou por todo o castelo, de modo que foram aparecendo mais e mais ouvintes: o mestre-de-cerimônias e os ministros, o camareiro do Imperador e a criada de quarto da princesa.

– Como esse passarinho me faz lembrar a caixinha de música da saudosa Imperatriz! – disse um velho ministro – Ah! O tom é o mesmo, e a maneira de cantar também!

– Tem razão – disse o Imperador, chorando como uma criança, pois começou a pensar em sua boa esposa, que havia morrido há poucos anos.

De repente, a princesa disse:

– Tenho a impressão de que esse passarinho canta como se estivesse vivo. Não me digam que é um passarinho de verdade!

O Imperador indagou dos mensageiros que tinham trazido os dois presentes, e eles responderam:

– Sim, é um passarinho de verdade.

– Então, podem soltá-lo – disse a princesa, e não deixou que o príncipe viesse ao palácio.

Os servos tiveram de abrir a janela e deixar o passarinho sair voando.

As damas de honra ainda comentaram:

– Deve ser muito sem educação esse príncipe, para mandar de presente uma rosa de verdade e um passarinho vivo.

Apesar de tudo, o príncipe não desanimou. Pintou o rosto de marrom, afundou o chapéu na cabeça até a testa e foi bater à porta do castelo. E aconteceu que quem abriu foi o próprio Imperador; o príncipe tirou o chapéu e disse:

– Bom dia, senhor Imperador! Seria possível arranjar para mim um trabalho no castelo?

– Pois é – respondeu o Imperador – tanta gente vem pedir emprego aqui… Mas eu não sei se temos alguma coisa para você fazer. Vou pensar… Ah, espere um pouco! Lembrei que preciso de alguém para tomar conta dos porcos, pois nossos porcos são muitos.

E assim o príncipe arranjou um emprego de guardador imperial de porcos. Deram-lhe um quartinho miserável ao lado do chiqueiro, e lá ele teve de morar; mas durante o dia todo ele trabalhou e, ao anoitecer, tinha feito uma panelinha com alegres guizos pendurados em volta; e, assim que a panelinha fervia, os guizos tocavam a antiga melodia:

“Oh, meu Agostinho,
perdeste tudinho!”

Mas a panelinha sabia fazer uma porção de outras coisas, pois não era uma panela comum. Só de pôr o dedo na fumaça que saía dela, a gente ficava sabendo que comida estava sendo preparada em todos os fogões da cidade. Na casa do alfaiate imperial, ia-se comer linguiça no espeto; a mulher do caçador da corte estava assando uma perdiz, que seu marido tinha reservado para eles depois da última caçada; na casa do sapateiro, as batatas pulavam dentro d’água, e na casa do professor da escola, por ser dia de aniversário, uma galinha estava sendo ensopada. E – vejam só! – o mendigo, que todos os dias pedia esmola no castelo, tinha até um suculento pedaço de carne em sua sopa e mingau de aveia para a sobremesa. Pois é, a panelinha era bem diferente da rosa de verdade e do rouxinol vivo. Então, certo dia, quando a princesa estava por acaso passeando ali perto com todas as suas damas de honra, ouviu a música dos guizos e parou toda contente; é que ela também sabia tocar “Oh, meu Agostinho”. Aliás, era a única música que ela sabia tocar, e assim mesmo com um dedo só.

– Essa é a cantiga que eu toco! – disse ela – Deve ser bem educado esse guardador de porcos. Vá falar com ele e pergunte quanto custa esse instrumento que eu quero tanto comprar.

Então, uma das damas de honra teve de ir até o chiqueiro, mas precisou calçar tamancos, pois o lugar era muito cheio de lama.

– Quanto você quer pela panelinha? – perguntou a dama de honra, tampando o nariz e pisando na ponta dos pés.

– Quero dez beijos da princesa – respondeu o jovem guardador de porcos.

– Deus me livre! – disse a dama de honra, e quase desmaiou com aquela exigência.

– Por menos eu não vendo. Afinal ela não é uma panela comum – replicou o guardador de porcos.

A dama de honra foi até onde as outras estavam, e a princesa perguntou:

– Que foi que ele disse?

– Eu nem posso contar – respondeu ela.

– Pois então fale aqui no meu ouvido!

Quando a princesa ficou sabendo o que o guardador de porcos queria, disse:

– Que sem-vergonha! Que sujeito malcriado! – e foi embora dali.

Mas, foi só andar um pouco, que os guizos tocaram:

“Oh, meu Agostinho,
perdeste tudinho!”

– Olhem – disse a princesa – voltem lá e perguntem se ele aceita dez beijos de minhas damas de honra.

– Muito obrigado – respondeu o guardador de porcos – Quero dez beijos da princesa ou nada de panelinha.

– Está muito chato esse vai e vem! – disse a princesa – Vocês todas fiquem então em volta de mim, para que ninguém veja.

Assim, as damas de honra fizeram uma roda esticando as pontas dos vestidos, e o guardador de porcos ganhou dez beijos, e a princesa recebeu a panelinha.

Foi uma alegria, que só vendo! O dia inteiro a panela ferveu; e elas agora sabiam o que estava sendo cozinhado em todos os fogões da cidade, tanto na casa do camareiro como na casa do sapateiro ou do alfaiate. As damas de honra dançavam e batiam palmas, dizendo:

– Sabemos quem vai comer sopa doce e omelete e quem vai ganhar mingau e carne assada. Que coisa mais interessante!

– Interessantíssima! – exclamou a mestre-sala.

– É, mas guardem segredo, pois eu sou a filha do Imperador.

– Pode deixar, pode deixar! – disseram todas.

O guardador de porcos, isto é, o príncipe – só que ninguém sabia que ele era o príncipe – não deixava passar um dia sem fazer alguma coisa, e dessa vez ele fez uma matraca. E era só girar a matraca que ela tocava todas as valsas e polcas do mundo.

– Que maravilha! – exclamou a princesa quando passou por perto – Nunca ouvi música mais linda. Ouçam, vá uma até o chiqueiro e pergunte ao guardador de porcos quanto custa esse instrumento: só que beijos eu não dou mais!

– Ele quer, em troca, cem beijos da princesa – disse a dama de honra que tinha ido lá perguntar.

– Acho que ele ficou maluco! – retrucou a princesa, saindo dali.

Entretanto, depois de andar um pouco, parou.

– Em nome da arte, é preciso fazer alguma coisa. Afinal, eu sou a filha do Imperador! Diga que vou dar dez beijos, como da outra vez. O resto ele pode receber de minhas damas de honra.

– Ah, mas nós não temos vontade nenhuma de fazer isso! – disseram as damas de honra.

– Que enjoamento de vocês! – reclamou a princesa – Pois se eu posso beijar, vocês também podem. Além disso, é de mim que vocês recebem alimento e salário!

Assim, querendo ou não, as damas de honra foram de novo ao chiqueiro.

– Cem beijos da princesa – respondeu o guardador de porcos – senão cada um fica com o que é seu!

– Então, ponham-se todas na minha frente – disse ela.

As damas de honra obedeceram, e o guardador de porcos ganhou os beijos da princesa.

– Mas que ajuntamento é aquele lá no chiqueiro? – perguntou o Imperador, que tinha saído para o terraço.

Ele esfregou os olhos e pôs os óculos.

-É… São as damas de honra que fazem esse barulho todo; preciso ir ver o que está acontecendo!

E… zás-trás… lá foi ele bastante afobado.

Assim que chegou mais perto, começou a andar bem devagarinho. As damas de honra estavam tão ocupadas contando os beijos, para que fosse um negócio honesto, que nem repararam no Imperador.

– Que é isso? – exclamou ele, ao ver a princesa e o guardador de porcos se beijando.

Já haviam sido trocados oitenta e seis beijos, quando o Imperador começou a dar sapatadas na cabeça dos dois.

– Fora daqui! – gritou ele, furioso.

E a princesa e o guardador de porcos foram expulsos do reino. Do lado de fora, a princesa ficou chorando, o guardador de porcos reclamando, enquanto o maior temporal começou a cair.

– Ai, ai! Coitada de mim! – gemia a princesa – Se ao menos eu tivesse casado com aquele belo príncipe! Ah, como eu sou infeliz!

O guardador de porcos foi então para trás de uma árvore, limpou o rosto tirando dele a tinta marrom, livrou-se dos trapos horríveis que usava e apareceu vestido de príncipe. Estava tão bonito, que a princesa curvou-se, respeitosamente.

– Por você, só sinto desprezo – disse ele – pois não quis um príncipe honesto, não aceitou a rosa nem o rouxinol, mas beijou um guardador de porcos em troca de uns brinquedinhos; agora, você recebeu o que merecia!

E com essas palavras o Príncipe foi embora, deixando a Princesa sozinha na chuva.

(Tradução Ruth Salles)

Fonte> Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Contos das Mil e Uma Noites (As estranhas coincidências da vida)

Ao inspecionar certo dia o seu reino, acompanhado por seu vizir Jafar, o califa Harun Al-Rachid viu, sendo retirado do rio Tigre, o corpo de uma mulher assassinada. 

O califa comoveu-se e disse a Jafar: “Se não descobrires o assassino desta pobre mulher, serás enforcado no seu lugar.” 

Jafar teve sorte, pois o assassino se apresentou por si mesmo ao califa e contou a seguinte história:

“Sabei, ó Comandante dos Fiéis, que esta mulher era minha mulher, mãe de meus três filhos. Amava-a, e ela me amava. No início deste mês, adoeceu e disse-me: – “Tenho, ó Ali, o desejo de comer uma maçã.” 

“Corri ao mercado, determinado a comprar maçãs até por um dinar a unidade. Mas não havia maçãs no mercado. E um agricultor me disse: – “Esta fruta é rara. Só pode ser encontrada em Basra no jardim do califa.” 

“Por amor à minha mulher fiz a viagem até Basra em quinze dias e quinze noites. E convenci o jardineiro do califa a me vender três maçãs por três dinares cada. Ao voltar, encontrei minha mulher ainda mais doente. Colocou as três maçãs de lado e não as comeu. 

“Fui à minha loja e comecei a comprar e vender quando vi passar um negro alto e forte, segurando na mão uma das três maçãs. Disse-lhe: – “Ó bom escravo, conta-me onde conseguiste esta maçã para que consiga outra igual para mim.” 

“Respondeu: “Foi-me dada por minha amante. Voltei ontem de viagem e fui visitá-la. Encontrei-a doente com três maçãs a seu lado. Disse-me: “Meu marido foi até Basra comprá-las para mim.” Comi e bebi com ela, e fiquei com uma das três maçãs.”

“Ao ouvir estas palavras, ó Comandante dos Fiéis, o mundo ficou preto aos meus olhos. Fechei minha loja e voltei para casa. Lá, vi apenas duas maçãs. 

– “Onde está a outra maçã?” perguntei à mulher. 

“Respondeu languidamente que não sabia. Convenci-me de que as palavras do escravo eram verídicas e, na minha raiva, saquei de meu punhal, matei minha mulher e joguei-a no Tigre. De volta para casa, achei meu filho mais velho chorando. 

– “Por que está chorando, meu filho? – perguntei-lhe”.

“Respondeu: -“Tomei uma das três maçãs da mamãe para brincar com ela; mas um negro alto e forte arrancou-a das minhas mãos. Chorei e contei-lhe que meu pai tinha ido até Basra comprar três maçãs para curar a doença de mamãe. Mas ele não me deu atenção. Levou a maçã e foi embora.” 

 “Aí, entendi a trama e lamentei meu erro. Mas era tarde demais. Sou culpado. Mereço a morte, ó Comandante dos Fiéis,” concluiu o comerciante. 

O califa ficou furioso contra o escravo caluniador e mandou Jafar descobri-lo dentro de três dias. “Senão, serás enforcado em seu lugar.”

Jafar não teve sorte desta vez. Procurou em vão pelo escravo criminoso. No terceiro dia, estava se despedindo da família antes de se apresentar à forca quando, ao abraçar a filha, sentiu algo redondo dentro de sua roupinha. 

- O que é isto, minha filha? perguntou. 

- É uma maçã , respondeu. Rohan, nosso escravo, trouxe-a há quatro dias e só aceitou me dar contra dois dinares. 

Jafar chamou seu escravo e perguntou-lhe: “Onde conseguiste esta maçã?” Respondeu: “Ó meu amo, a mentira às vezes nos salva. Mas eu falarei a verdade. Há cinco dias, passando na rua, vi-a nas mãos de um menino desconhecido e arranquei-a. O garoto chorou e disse que seu pai tinha ido até Basra comprar três maçãs para curar a mãe doente. Mas não me importei. Trouxe a maçã e dei-a a esta minha pequena ama.” 

Jafar ficou abismado ao saber que toda a tragédia fora causada por seu escravo. Levou o escravo ao califa e fê-lo repetir a história. O califa maravilhou-se com tantas coincidências e riu até que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Perdoou o escravo e fez um rico presente ao viúvo infeliz.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

sábado, 20 de janeiro de 2024

Contos e Lendas da Espanha (A pereira da Tia Miséria)

Tia Miséria era uma mulher muito pobre e já idosa, viva numa cabana nos arredores de um povoado.

Tudo o que possuía era um colchão de palha para dormir, uma velha cadeira para sentar-se e um cesto para recolher os frutos da pereira que havia no quintal. A pereira era uma árvore generosa; todos os anos dava muitos frutos, que Tia Miséria vendia. Com isso, além do que ganhava pedindo esmolas, a velha senhora conseguia se manter. 

Mas havia um problema: como as peras eram muito saborosas, os meninos do povoado vinham roubá-las, antes mesmo que amadurecessem. Assim, Tia Miséria só conseguia colher as poucas que sobravam no pé. Além do mais, como Tia Miséria era de idade avançada, não conseguia correr atrás dos meninos, por muito tempo. Tampouco podia vigiar a pereira o dia todo, pois precisava pedir esmolas e fazer os serviços da casa.

Tia Miséria também tinha um filho que se chamava Ambrosio, devido à fome que passava. Mas o rapaz já não vivia com ela. Na verdade, a velha senhora nem sabia por onde ele andava.

Tia Miséria possuía ainda um cachorro vira-latas que era sua única e fiel companhia. Às vezes, atiçava o cachorro nos meninos... Em vão, pois eles espantavam o pobre animal a pedradas.

Numa tarde de inverno, depois de uma forte tempestade de neve, um mendigo bateu à porta de Tia Miséria, que o convidou a entrar. Generosamente, dividiu com ele um pão que ganhara pela manhã. O mendigo estava muito cansado e transido de frio. Tia Miséria, penalizada, cedeu-lhe seu colchão de palha e deitou-se no chão, sobre um monte de trapos, para dormir.

Na manhã seguinte, ao ver que o mendigo se levantava para partir, ela disse:

— Espere um pouco, enquanto vou ao povoado buscar a sopa que ontem me prometeram. Assim, você poderá se alimentar, antes de ir embora. É muito ruim andar de barriga vazia.

O mendigo quis recusar, mas Tia Miséria insistiu tanto que, por fim, ele se viu obrigado a contar que na verdade era um santo do céu. E que Deus o havia enviado ao mundo para ver como as pessoas estavam praticando a solidariedade. Assim, ele viera bater à sua porta. Depois de revelar tudo isso, o mendigo disse:

— Já que você tem um coração bondoso, vou lhe conceder uma graça. Pode me pedir o que quiser.

A princípio. Tia Miséria disse que não queria nada. Mas então se lembrou de suas agruras com a pereira e decidiu:

—Já sei o que vou pedir: quem subir na minha pereira, só poderá descer quando eu autorizar.

— Assim será — respondeu o santo.

No outono do ano seguinte, quando as primeiras peras começaram a aparecer, os meninos chegaram, como sempre, para roubá-las. Subiram na árvore para colhê-las e ali ficaram, grudados, sem poder descer. Quando Tia Miséria chegou, no final do dia, deu-lhes umas boas palmadas no traseiro. E, o cachorro, umas mordidas nas pernas. Por fim Tia Miséria deixou-os ir. Os meninos fugiram apavorados.

Logo correu a notícia do que acontecia a quem ousasse subir na pereira da Tia Miséria. Desde esse dia, nenhum garoto se atreveu a roubar sequer uma pera. E, claro, como agora podia vender os frutos na época em que amadureciam, a velha senhora conseguia um dinheirinho para aliviar sua pobreza.

O tempo passou. E Tia Miséria ultrapassou os noventa anos. Um dia, bateu à sua porta um vulto que parecia ao mesmo tempo homem e mulher. Estava coberto com uma grande capa negra e trazia uma foice no ombro.

— Vamos, Miséria, que chegou sua hora — disse o vulto.

Reconhecendo a Morte, ela protestou com veemência:

— Mas, veja só! Agora que eu estava passando uns anos tranquilos, que estava vivendo tão bem com minhas quatro riquezas: a pereira, o colchão, a cadeira e o cachorro, você resolve aparecer... Francamente!

—Já chega de conversa, minha velha — disse a Morte. — Acompanhe-me, vamos.

— Mas eu não quero morrer!

Tia Miséria argumentou de todas as maneiras. Por fim, vendo que não poderia escapar, disse à Morte:

— Está bem, eu irei. Enquanto me apronto, faça-me o favor de pegar aquelas três peras que restam na pereira, pois quero levá-las na viagem.

A Morte obedeceu e subiu na árvore para colher os frutos. Mas, quando ia descer, viu que estava grudada nos galhos. Fez todos os esforços possíveis para se soltar... Em vão. Não havia como descer da pereira.

Tia Miséria, que observava tudo por trás de uma janela, disse à Morte:

— Fique aí, minha amiga, enquanto eu continuo aqui levando a vida adiante. E pode desistir de tentar, pois, sem minha permissão, você não conseguirá descer.

Alguns anos se passaram. E o mundo começou a sentir a ausência da Morte. Ninguém morria; os velhos ficavam mais velhos, os doentes ficavam mais doentes. Aqueles que, desesperados, tentavam o suicídio, acabavam apenas ficando muito feridos.

Muitos enfermos pediam aos médicos que os matassem. Os médicos, por sua vez, não davam conta de tantos pacientes e começavam a procurar um jeito para que as pessoas morressem. Nem mesmo nas guerras havia mortos.

O desespero era grande e aumentava a cada dia. Muita gente começava a odiar a vida e tentava se desfazer dela. Mas não havia como, pois a Morte estava pendurada na pereira da Tia Miséria.

Entre todos, os médicos eram os mais aflitos. Tanto, que fizeram uma reunião secreta. E então correu a notícia de que haviam decidido encontrar a Morte, custasse o que custasse.

Assim, os médicos espalharam-se pelo mundo, para procurá-la em todos os lugares plausíveis e até mesmo nos mais improváveis. Foi assim que um médico acabou passando perto da cabana de Tia Miséria, Ao vê-lo, a Morte gritou:

— Ei, doutor, venha cá!

Ele a reconheceu de imediato;

— Ora, ora, aí está você, minha cara Morte! — exclamou, louco de alegria por reencontrar aquela velha amiga.

O médico tinha motivos de sobra para tratar a Morte com tanta consideração. Pois, na verdade, muita gente já havia morrido em suas mãos. Por isso, a Morte lhe devotava uma deferência especial;

— É um prazer revê-lo, doutor.

– O prazer é todo meu. Mas por onde você andou durante esse tempo? Saiba que eu e meus colegas já percorremos meio mundo à sua procura. Agora venha comigo, pois há muito trabalho a fazer.

— Então, tire-me daqui, pois estou presa a esta pereira.

— Nem é preciso pedir duas vezes, minha amiga.

Sem hesitar, o médico subiu na pereira para ajudar a Morte a descer, mas acabou ficando preso também. Assim esteve por dias e noites, junto à Morte, até que seus familiares, que moravam por perto e estavam à sua procura, o encontraram agarrado à árvore.

Tão logo ouviram as explicações do médico, resolveram chamar outros moradores do povoado, e também o prefeito. Horas depois, uma verdadeira multidão invadiu o quintal, armada de machados, para derrubar a pereira. Nisso, Tia Miséria apareceu e gritou:

— Não me cortem esta árvore, que é o bem mais precioso que possuo no mundo!

E todos responderam;

— Teremos de fazer isso para libertar a Morte. Os doentes, velhos e feridos do mundo inteiro não aguentam mais tanto sofrimento, tanta calamidade.

— Ainda que vocês cortem a pereira, nem a Morte, nem o médico, poderão se soltar dela — disse Tia Miséria. — Portanto, eu libertarei os dois, mas com uma condição.

— Qual? — perguntou a Morte.

— Que você só venha me buscar, e a meu filho Ambrosio, quando eu chamá-la três vezes — respondeu Tia Miséria.

— De acordo — disse a Morte. — Agora me solte, de uma vez por todas.

— Está bem. — Tia Miséria deixou a Morte ir embora, junto com o médico. A multidão acompanhou-os, comemorando a volta à normalidade.

A Morte, assim que se viu livre, retomou sua função. Pessoas começaram a morrer em toda parte. Morriam aos milhares, velhos, doentes, feridos... E houve mais guerras do que nunca. A Morte quase não dava conta de tanto trabalho. Havia muito tempo que a procuravam e ela precisava atender a todos, dia e noite, sem descanso. Assim, a Morte ceifou vidas como jamais se viu antes.

Enquanto isso, Tia Miséria continuava tranquilamente em sua cabana, com sua pereira, seu colchão, sua cadeira e seu cachorro, pedindo esmolas e vendendo peras durante o outono.

E lá está, até hoje.

Tia Miséria ainda não chamou a Morte, por isso continua existindo neste mundo. Ela e seu filho Ambrosio viverão para sempre, pois não têm a menor intenção de morrer.

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.