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quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Estante de Livros (“Roque Santeiro ou O Berço do Herói”, de Dias Gomes)


I- Introdução

A peça O berço do herói deveria ter sido encenada pela primeira vez em 1965, mas o Brasil passava pela ditadura militar e, duas horas antes da estréia, a peça foi proibida pela censura. Mais tarde, com o nome de Roque Santeiro, quase virou novela, mas também foi censurada. Toda essa perseguição deve-se ao fato da peça abordar o tema do mito [herói militar], desconstruindo esse mito. Esse era um tema muito delicado para o momento que atravessava o país. Somente em 1985, já com o processo de democratização, a novela foi ao ar, alcançando grande sucesso e tornando personagens inesquecíveis, como o Sinhozinho Malta e a viúva Porcina. É interessante esclarecer que o livro O berço do herói tem o formato de uma peça teatral.

II- Tempo

A história acontece no período da Segunda Guerra Mundial e Roque retorna à Asa Branca quinze anos depois do final da guerra, quando o governo concedeu anistia aos desertores. Porém, é claro que Dias Gomes utiliza esse tempo passado, como forma de se referir ao tempo em que o livro foi escrito, na ditadura militar da década de 60. Por falar de um herói militar, Dias Gomes tentou criticar o comportamento das Forças Armadas e só pôde fazer isso através de uma história fictícia, deslocada do tempo real, ao qual ele se referia.

III- Espaço

A cidade de Asa Branca acaba se transformando em uma metonímia do Brasil.

IV- Personagens

CABO ROQUE: Natural de Asa Branca, foi convocado a participar da Segunda Guerra Mundial, contra os nazistas. No meio da guerra, fugiu e se refugiou cerca de 15 anos na Europa. Antes de ir para a guerra, porém, prometeu à Mocinha que voltaria para buscá-la. Anos depois, quando os desertores receberam anistia do governo, voltou para ver Mocinha e encontrou sua estátua na praça e percebeu que tinha se transformado em herói devido a uma confusão. Sua fuga foi interpretada como um ato de coragem e ele foi tido por toda a cidade como herói de guerra morto. Asa Branca enriqueceu às custas desse mito, tornou-se uma cidade do progresso e Porcina, uma empregada que teve um caso rápido com Roque, ganhou status de viúva de herói. Além dela, Chico Malta, Zé das Medalhas e muitos outros exploravam a imagem e, por isso, se interessavam em manter o mito.

PORCINA: é uma mulher de 35 anos, muito vulgar e despudorada. Morava em Salvador, onde era arrumadeira e se envolvia com os soldados que iam ficar na hospedaria em que ela trabalhava. Foi assim que se relacionou por uns dias com Roque. Um dia, conheceu Chico Malta, morador de Asa Branca e se apaixonaram. Chico decidiu levá-la para Asa Branca, mas tinha medo de ter problemas, porque era casado. Para resolver tudo, ambos inventaram a estória de que ela era a viúva do falecido Cabo Roque que morrera lutando na guerra. Assim, ela ficou rica e respeitada na cidade toda.

SINHOZINHO MALTA [CHICO MALTA]: Fazendeiro rico e chefe político de Asa Branca. Corrupto e sem caráter, enriqueceu explorando o mito de Roque Santeiro.

FLORINDO ABELHA: Prefeito de Asa Branca, sem personalidade, é o homem de confiança de Chico Malta, pois depende de seu prestígio e se submete a ele. Tenta ser um administrador moderno, mas não manda em nada.

DONA POMBINHA: mulher do prefeito e mãe de Mocinha. Sua religiosidade se aproxima do fanatismo.

MOCINHA: Filha de Dona Pombinha e Florindo. Foi a primeira namorada de Roque e depois que ele foi para a guerra e espalhou-se a notícia de sua morte, decidiu ser casta. Tem um temperamento marcado pela frustração sexual. Encarna a figura da ‘virgem abandonada’. É desencantada com o amor, porque acha que Roque a traiu, casando-se com Porcina.

PADRE HIPÓLITO: é uma figura contraditória [representa a contradição da Igreja no período militar]. É a única pessoa da cidade que possui uma visão crítica sobre o desenvolvimento desigual da cidade. Combate também as prostitutas da cidade.

ZÉ DAS MEDALHAS: é o mais bem-sucedido de todos os moradores da cidade. Enriqueceu fabricando medalhinhas do herói Roque. Monopoliza esse comércio e quer expandir seus negócios para o exterior.

MATILDE, NINON E ROSELI: Prostitutas da cidade, Matilde é a proprietária do bordel. Querem construir uma boate chamada Sexual, porém são impedidas pelo padre e pelas beatas.

TONINHO JILÓ: representa o povo. É manipulado pelos políticos e figurões da cidade.

GENERAL: representa os militares. Ao ser comunicado por Chico Malta sobre a volta de Cabo Roque, vai à Asa Branca atrás dele e não admite que o exército passe pelo vexame de ter reverenciado um covarde, que fugiu da guerra.

V- Enredo

- 1º ATO

1º quadro A peça tem início com uma batalha. Soldado Roque, que carregava em uma das mãos um fuzil e na outra a bandeira brasileira, foge da trincheira, com medo. Sua fuga é interpretada como um ato corajoso , como se ele tivesse decidido enfrentar o exército inimigo sozinho, e tivesse sido metralhado. Essa morte trágica encoraja os outros soldados, que avançam em massa e derrotam as tropas nazistas na Itália. [Essa é a versão que se espalhou por toda a cidade. Na verdade Roque, fugiu no meio de um bombardeio e não morreu].

2º quadro Toninho Jiló [o povo] inicia esse quadro cantando:

Vamos, minha gente, vamos / melhorar nossa cultura / o ABC de Cabo Roque / A estória que vão ler / se passou lá nas Oropa / e demonstra que na guerra / brasileiro não é sopa / quando entra numa briga / não teme sujar a roupa.

Nessa parte, o autor passa a demonstrar a vida da cidade de Asa Branca. Percebemos que o suposto feito heróico do cabo Roque elevou sua cidade à categoria de berço do herói. O lugar passou a ser visitados por muitas pessoas e ali foi construída uma estátua de Roque. Além disso, faziam festas para comemorar data de nascimento, data de morte, data da primeira comunhão e outras mais, tudo isso para explorar a figura do herói. Foi feito até um filme contando sua história e medalhas eram vendidas por todos os lados.

3º quadro A história praticamente começa nesse quadro, pois Porcina está em casa com seu amante, Chico Malta. Conversavam sobre o lucro que Roque dava àquela cidade, até pensavam em uma maneira de transformá-lo em santo. Malta demonstra preocupação em esconder seu envolvimento com Porcina, pois ele é casado. Ressalta que ela precisa ser vista por todos como a viúva do morto, uma mulher virtuosa. Enquanto conversavam, Matilde, a dona do bordel, bate na porta e Sinhozinho Malta sai pela porta dos fundos. Matilde comenta com Porcina sua vontade de abrir uma boate e entrega dinheiro para Porcina levar à igreja. Matilde convida Porcina a ir no bordel e ela responde: Oxente, eu sou a viúva de Cabo Roque, viúva de um herói. Tenho que manter a dignidade.

4º quadro Zé das Medalhas vai visitar o bordel e leva medalhas de ouro de Roque para as meninas. Nessa quadro, o autor localiza o leitor no estilo de vida dos moradores ilustres da cidade, todos os que viviam em função do mito.

5º quadro É o início da complicação, pois chega na cidade um rapaz de uns trinta e cinco anos, com uma maleta de viagem nas mãos. Surpreso, pára diante da estátua aonde está escrito: 'O povo a seu herói'. Ao cruzar com Matilde na praça, pergunta o que é aquilo e ela explica que é o herói da cidade, que fazia de Asa Branca um lugar importante. Acrescenta ainda que Seu Chico Malta era quem cuidava de tudo. O rapaz decide procurá-lo e vai á casa da viúva Porcina, pois Matilde indica esse lugar.

6º quadro Porcina abre a porta e quando encara o rapaz, grita: Meu Deus!... Não, não pode ser! Tou vendo a alma de um defunto... Como é que eu podia esquecer? Roque... Diante dessa situação, Roque responde: ...Nunca poderia esperar encontrar você, tanto tempo depois, na primeira casa em que eu entro. Como veio parar aqui? Me disseram que aqui mora uma viúva... É a sua patroa?

Na verdade, Roque se dirigiu à casa de Porcina, sem saber que ela era a viúva dele. Eles se conheceram na época em que ele foi convocado para o exército. Porcina era a empregada de uma pousada e eles chegaram a ter um romance rápido.

Roque e Porcina relembram os velhos tempos e Porcina procura omitir muita coisa, com medo da situação. Começa a seduzi-lo e o leva para dentro. Cansado da viagem, Roque acaba dormindo.

7º quadro Sinhozinho Malta chega na casa de Porcina e se espanta com a história. Vai ao quarto dela, onde Roque dorme e verifica que realmente é ele:

MALTA: Espere, também não é assim. Um homem vira estátua, vira fita de cinema, de repente aparece de cueca, de bunda pra cima, na cama da minha amante.

PORCINA: Sou viúva de um homem que nunca morreu e que nunca foi meu marido. Agora o falecido taí. Quero ver como vamos explicar isso a ele. A ele e a todo mundo, porque amanhã a notícia vai correr de boca em boca.

MALTA: Ninguém deve saber. É preciso que ele não saia daqui, que não apareça a ninguém. Até eu decidir o que vamos fazer. Não é só o seu caso. A volta desse rapaz vai criar muitos casos.

Depois dessa conversa, Malta vai embora desesperado e ambos prometem pensar rapidamente em uma solução.

8º quadro Roque acorda cedo, antes de Porcina, e vai passear pela praça onde encontra o padre Hipólito. O padre não o reconhece, mas ele insiste: Não se lembra mais de mim? Fui seu coroinha... seu aluno de catecismo. O padre finge lembrar, mas sai apressado para sua caminhada. Logo em seguida, Porcina vem correndo e pede que ele não saia de casa, para que a cidade não descubra que ele voltou e está vivo. Sem entender nada, Roque pensa que ela se refere ao fato de ele ter abandonado a guerra, pensa que foi tido como desertor. Percebendo isso, Porcina explica que a estátua da cidade era para ele e que, para todos de Asa Branca, ele morreu lutando, dando a vida pela pátria, o primeiro soldado brasileiro que morreu pela democracia. Roque se espanta ao descobrir que é um herói.

Malta chega e Roque conta como fugiu da guerra, no meio de um bombardeio, ficando apenas ferido no ombro. Confessa que foi um covarde e completa: Talvez tenha feito coisas ainda piores pra não morrer. E o que fizeram comigo, em nome da democracia, da liberdade, da civilização cristã e de tantas outras palavras?

No meio dessa constatação, percebendo a chegada de alguém, Roque se esconde. É o padre Hipólito que veio buscar o dinheiro que a prostituta Matilde deu à Porcina e aproveita para comentar com Malta o encontro na praça. O padre explica que lembrou quem era depois e que era o Roque. Além disso, afirma que já comentou com o prefeito e com Zé das Medalhas. Logo em seguida, chegam os dois apavorados. Diante da comprovação, procuram o que fazer:

MALTA: Há quinze anos que a cidade vive de uma lenda. Uma lenda que cresceu e ficou maior que ela. Hoje, a lenda e a cidade são a mesma coisa. Na hora em que o povo descobrir que Cabo Roque tá vivo, a lenda tá morta. E com a lenda, a cidade também vai morrer. Tou certo ou tô errado?

Todos chegam à conclusão que se o povo descobrir a verdade, Asa Branca vai acabar e com ela a fonte da riqueza de todos ali. Resolvem então chamar Roque e propor que ele volte à Itália.

ROQUE: [eu vou embora] E todos continuam aqui cultuando a memória do herói. E vivendo à sombra de uma mentira. Já disse que não tenho vocação para mártir. Não acredito nisso, não posso acreditar que um homem seja mais útil morto do que vivo. Do contrário ia ter que acreditar também que todos aqueles infelizes que morreram na guerra foram muito úteis. E que a guerra é uma necessidade porque fabrica heróis em série.

Diante da negação dele, Malta decide ir ao Rio denunciá-lo ao exército.

9º quadro [encenação] todos cantam

À sombra dessa estátua / uma cidade cresceu / cresceu, cresceu, cresceu / à sombra dela cresceu / E agora que fazer / Que a estátua virou / virou, virou, virou / de novo gente virou.

- 2º ATO

10º quadro O autor começa descrevendo a praça, que está toda enfeitada com faixas e cartazes: Bem-vindo Cabo Roque – A cidade recebe com orgulho seu heroico filho. O comentário geral é que Roque sobreviveu á guerra e que está voltando para sua cidade.

No meio dessa confusão Chico Malta volta do Rio com um general e fica surpreso diante da decoração do lugar. Porcina o chama e explica que na ausência dele, todos decidiram contar para a cidade que ele está vivo e inventaram a história de que ele ia chegar com todas as glórias que merece. Malta gosta da ideia, chama o general e explica que Roque é um herói militar e por isso merece as honras do exército. O general entretanto, não aceita ser cúmplice dessa mentira e diz que essa decisão é incompatível com a dignidade militar.

11º quadro Mocinha desconfia que Roque Santeiro já estava em Asa Branca e entra na casa de Porcina escondida. Encontra Roque na sala. A moça o questiona, inconformada porque acha que ele realmente é casado com Porcina. Roque se surpreende com essa informação, mas não tem tempo de se explicar para o seu grande amor, porque Porcina chega e a menina sai correndo. Ele descobre finalmente, porque chamam a mulher de viúva: ela é viúva dele. Porcina conta para Roque essa invenção de Malta para levá-la à Asa Branca sem despertar a desconfiança da mulher do Sinhozinho. Entretanto, se oferece para ser sua mulher de verdade, mas ele não aceita, alegando que é ele quem decide sua vida. Porcina acaba deixando escapar que o general está na cidade e Roque decide fugir para o bordel.

12º quadro As prostitutas o recebem e querem saber o que ele fez durante todos esses anos. O autor se utiliza dessa cena para fazer algumas reflexões sobre a questão do herói militar:

ROQUE: Profissão? Herói! [arrumei essa profissão] Na guerra! Lutei sozinho contra Hitler, Mussulini...Sozinho contra os alemães...Ah, mas é muito dura a profissão de herói. Se eu tivesse morrido, era fácil. Ou se eu tivesse sido herói por acaso, sem querer, como muitos. Mas sou um herói por convicção. Um herói de corpo inteiro.

TODOS: É um mundo estranho esse / em que o amor ao pêlo pode ser / um gesto revolucionário / e provocar a ira dos que nos querem enterrar.

13º quadro Sinhozinho Malta procura Roque na casa de Porcina e ela fala que ele fugiu. Malta começa a pensar em dar um fim nele, crendo que essa é a melhor solução. Para a cidade que espera sua volta devido às faixas espalhadas por todos os lugares, eles falariam que era um louco que se fez passar por Roque. Porcina pede que o deixe fugir, mas Malta acha melhor não.

14º quadro Chico Malta, Florindo e o general procuram o fugitivo e vão ao bordel. Lá, o general passa a questioná-lo e ele confirma ser o Cabo Roque. Isso deixa o militar com raiva, porque Roque era da sua tropa na guerra. Além disso, havia um batalhão do exército que tinha o nome dele. Percebendo que sua vida estava por um fio, o Cabo pergunta se eles querem que ele volte para a Itália, porém, o general responde que não, pois ele pode querer chantagear o exército e a honra militar não pode ficar nas mãos de um canalha.

GENERAL: A verdade é que não tem nenhum sentido ele estar vivo. A morte dele consta da ordem de dia 18 de setembro de 1944 do 6º Regimento de Infantaria. Foi uma morte heróica, apontada como exemplo de bravura do nosso soldado. Atentem bem os senhores o que significa: há um batalhão com o nome dele. Isso é definitivo. Para o exército ele está morto e deve continuar morto.

ROQUE: Parece que a única maneira de não desmentir o boletim do meu Regimento é eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só que me falta coragem...Sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Hoje o mundo é outro. E vocês ficam aí cultuando a memória de um herói absurdo. Absurdo sim, porque imaginam ele com qualidades que não se pode ter. Caráter, coragem, dignidade... não vêem que tudo isso é absurdo?

Malta deixa os dois discutindo e sobe para conversar com Matilde e promete patrocinar sua boate se ela der uma bebida envenenada a Roque. A proposta é aceita e todos decidem ir embora. Roque fica sem entender nada, mas fica bebendo com as meninas do bordel. Começa a sentir seu corpo cambalear e cai. Isso coincide com a chegada das beatas à porta do bordel para protestarem contra a abertura da boate, jogando pedras lá dentro.

15º quadro Essa cena tem início com o corpo de Roque estendido no bordel, com um lençol acima e velas em volta. Matilde explica que uma das pedras jogadas pelas beatas atingiu a cabeça dele e isso foi fatal. Pouca gente fica sabendo do ocorrido, pois nem sabiam da presença de Roque lá dentro.

PORCINA: Desde que ele chegou que eu senti que alguma coisa ruim ia acontecer

MALTA: A ele ou a todos nós. É nisso que a gente deve pensar. A uma cidade inteira

FLORINDO: Não seria um crime muito maior matar uma cidade? Em compensação, teremos uma estrada

MALTA: Uma estrada asfaltada para chegar na capital em duas horas.

PORCINA: Que bom. Vou a Salvador toda semana.

MALTA: E ninguém constrói uma estrada dessas sem sacrificar muitas vidas. É a paga do progresso.

A culpa do homicídio recai sobre o padre e as beatas, principalmente Mocinha que se sente culpada por também ter jogado pedras. Devido a isso, o padre é obrigado a aceitar a boate na cidade. Malta propõe abafarem o caso, alegando que se ele pudesse escolher, preferiria ter morrido na guerra.

16º quadro As prostitutas conseguem abrir a Boate Sexus. Na abertura o prefeito discursa:

FLORINDO: Declaro inaugurada esta casa que é, em seu gênero, uma das melhores do país, quiçá da América do Sul. Quero declarar também que isso não seria possível sem o espírito empreendedor de dona Matilde... que tanto tem colaborado com o nosso plano de turismo. Plano que, se Deus quiser, há de fazer de Asa Branca uma cidade digna de Cabo Roque, aquele que morreu lutando pela democracia e pela civilização cristã.

A peça termina com uma fala de Malta:

MALTA [canta]: Assim, senhoras e senhores / foi salva a nossa cidade / Com pequenos sacrifícios / de nossa dignidade / com ligeiros arranhões / em nossa castidade / e algumas hesitações / entre Deus e o Demônio / conseguimos preservar / todo o nosso patrimônio.

VI- COMENTÁRIOS

Linguagem: A linguagem do livro é muito coloquial e simples. Dias Gomes inclui em seu texto palavras do linguajar popular, utilizando até mesmo palavra chulas. Além disso, há em diversos fragmentos ressonâncias das cantigas populares do Brasil.

Personagens: As personagens, em grande parte, são caricaturas de tipos que articulavam o poder em nosso país.

Os militares são vistos, através do general, como autoritários. Além disso, queriam manter o que estabeleciam como verdade, mesmo que isso não fosse verdade. A morte de Roque era tida como verdade, então precisava ser, ou seja, Roque vivo precisava morrer para que a palavra do exército não fosse desmoralizada, custasse isso qualquer o preço.

A Igreja por sua vez, tem dois ângulos no livro. Tem um lado crítico, que rejeita omito progresso, que esconde falsos valores, mas também manipula beatas. Dias Gomes deixa bem clara sua opinião: no período da ditadura foi omissa e muitas vezes conivente com os abusos. Sua preocupação era em manter a falsa moral e não a verdade.

Os políticos como Florindo, o prefeito, demonstram que, segundo Dias Gomes, o poder político não estava com quem tinha sido eleito pelo povo, mas sim com aqueles que detinham o poder econômico, como o Sinhozinho Malta. Malta é também o retrato do que ocorre nas cidades do interior do Brasil, onde os poderosos amedrontam e dominam o povo.

Por outro lado, o capitalismo selvagem é analisado através de quem explora a ingenuidade do povo, vendendo medalhas de um falso herói, como é o caso de Zé das Medalhas. Diante de tudo isso, o povo [representado no livro por Toninho Jiló] nunca conhece a verdade e acaba sempre sendo levado por aquilo que os poderosos querem que ele acredite.

Herói: Dias Gomes questiona um conceito muito interessante do herói. No lugar de simplesmente desconstruir essa figura, apresentando o anti-herói, o autor procura demonstrar como o herói é construído.

Seu livro trata da necessidade do brasileiro de criar figuras maravilhosas. Para isso, expõe a carência das pessoas ao crerem em alguém que é o ser humano ‘ideal’, dotado de virtudes que não temos. A partir disso, aqueles que são mais espertos passam a explorar essa imagem e o mito se consolida. Depois de consolidado, entretanto, aqueles que o criaram acabam perdendo o controle sobre ele e ele passa a ter uma importância que ultrapassa até o bom senso. O mito é também incorporado ao progresso.

Roque precisava morrer, porque ele era um ‘herói’ e essa imagem é mais importante do que a realidade. A personalidade verdadeira do Cabo Roque é totalmente diferente da do herói Roque. O primeiro é um covarde, egoísta e o segundo é cheio de virtudes, como a coragem e o nacionalismo. O que complica tudo isso é o fato dele ser um herói militar, de quem se espera bravura. Ele ter fugido da guerra acaba com a idealização em torno das Forças Armadas.

História Real X História Ideal

Temos no livro dois enfoques da história: a real – Roque foi um covarde e fugiu da guerra – e a ideal – Roque foi um herói e deu a vida pelo país.

Desconstrução da guerra

Se os heróis são necessários para o povo, a guerra também é, porque fabrica heróis em série. O autor procura desconstruir isso e demonstra que o povo não precisa de heróis e que a guerra, ao contrário da visão idealizada que se faz dela, é uma destruição.

Fonte: Estudo da Professora Maria Laura Muller da Fonseca e Silva, disponível no site Algo Sobre. http://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/roque-santeiro-ou-o-berco-do-heroi.html, acesso em 2.02.2008.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Jaqueline Machado (“A pequena sereia”, de Hans Christian Andersen)

A Pequena Sereia: um conto sobre sonho, ingratidão e falsos amores...  

A principal versão do conto "A pequena sereia", de Hans Christian Andersen, diz que no fundo do mar havia um reino, com um rei, uma rainha e seis irmãs: as princesas do mar. As sereias eram livres para irem onde quisessem, menos para um lugar: a superfície. Exceto, no 15o.  aniversário, quando teriam permissão para se aventurar na superfície.  Mas só por um dia. 

Na data certa e com a devida permissão, a pequena sereia emerge das águas e vê um príncipe que está a naufragar. Salva sua vida. Sim. Neste conto, a princesa salva o príncipe. E se encanta por ele. A partir deste momento, passa a desejar ter pernas, ser humana.  

Ao acordar, o príncipe se depara com outra princesa ao seu lado, e pensa ter sido salvo por ela. Então, arrasada, a sereia nadou até às profundezas do oceano onde vivia a bruxa do mar. E falou do seu amor e da sua vontade de ter pernas para ser feliz com seu príncipe. A bruxa concede o desejo. Mas alerta: se ao chegar à superfície e não for capaz de encontrar o verdadeiro amor, você se transformará em espuma do mar. A pequena sereia concordou. A promessa foi forjada. O elo, feito. Mas ao encontrar seu príncipe, descobriu que seu coração ainda pertencia à mulher da beira da praia, com quem ele escolhera casar. 

Este conto nos remete a refletir sobre relacionamentos familiares, de amizades e, principalmente, amorosos.  Eis que a sereia sublime em seu habitat, em sua beleza, em seu cantar, se deixa encantar pelas coisas de um mundo que não a pertence. E acaba por ignorar todas as próprias riquezas e poderes, para conquistar o coração de um humano, que não foi capaz de perceber que ela havia salvo sua vida e ainda dá seu coração a outra. 

Com isso, a Pequena Sereia, por amor a alguém, perde-se, e vira espumas do mar. 

A mensagem de Andersen é muito clara ao que se refere a sonho, ingratidão e falsos amores. Vem para nos lembrar que a protagonista do conto era mais livre sem pernas, como sereia, porque essa era a sua natureza, e que somos o nosso próprio reino, e que mesmo quando perdidos de amor, não podemos nos abandonar, nos anular, nem permanecer em longas esperas, caso contrário, corremos o sério risco de deixarmos de ser quem de fato somos, e virarmos espumas do mar…

Fonte: Texto enviado pela autora 

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Estante de Livros (“Thais”, de Anatole France)


Thaís é um livro de Anatole France. Publicado pela primeira vez em 1889. 
A obra se passa no Egito, parte da literatura francesa e uma crítica aos costumes da época.

Com um estilo fluente, cético e sarcástico Anatole France foi um dos escritores mais característicos da literatura francesa. Nascido em Paris, foi coerente com sua paixão e, por isso, adotou o pseudônimo France. Mas, seu nome verdadeiro era Anatole Jacques Thibault. Crítico feroz aos costumes e instituições do seu tempo, fez-se a voz da cidade, daquela Paris herdeira e centro da cultura da sabedoria e da arte do mundo ocidental. Anatole France – um filósofo epicurista – produziu várias e sucessivas obras-primas, e em 1912 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.

Thais é a obra que assinala o zênite da força criadora do autor. Ambientada no Egito, é a história de uma meretriz e de um monge. O triunfo do corpo sobre a alma – Epícuro contra o estoicismo – foi mais finamente traçado, com tanta beleza e melodia de estilo.

Thais se passa na Alexandria, é a história de uma meretriz, que no livro é chamada de ''comediante'', e de um monge, Paphnucio, que se enamora dela, mas logo entra em conflito com suas convicções religiosas por conta desse amor. Ora, Paphnucio é um cristão primitivo, e um de seus objetivos na vida se trata de obter um tal grau de pureza espiritual que o obrigaria a passar por caminhos que pressupunham privações extremas, não só a supressão dos desejos carnais, como também os cuidados básicos de higiene, insistindo em ver no sofrimento causado por infecções, causadas por prolongados jejuns, uma forma de aproximar-se de Deus. Chega mesmo a fazer do alto de uma das colunas de um velho monumento em ruínas, o seu lar, para se elevar acima do resto da humanidade e chegar mais perto de Deus.

Pode-se perceber que Paphnucio, bastante radical, não aceita a beleza, a saúde e o bem-estar como algo bom, mas como coisas que afastam o ser humano do divino. O monge originava-se de uma abastada família de Alexandria, e foi educado para seguir o princípio do prazer; porém curiosamente, desvia-se do caminho que sua família havia traçado para ele, e resolve seguir uma nova e ainda estranha para muitos, filosofia: o Cristianismo, que então já começava a se espalhar entre as classes mais ricas, sofrendo nessa época, menor perseguição do que em seus primórdios.

Thais, jovem e bonita, desfruta de tudo o quanto a vida e a sua beleza podem oferecer; riqueza, fama, homens, arte. O monge, por sua vez, vive uma vida de castidade e preces no deserto até o momento em que, perturbado por pequenos demônios, decide deixar o monastério e ir para a cidade, em busca de Thais.

Paphnucio em seu afã, exagera em sua convicção, que se torna bastante radical, e acaba por destruir a própria vida e a da mulher amada.

Na obra, o monge faz de seu objetivo de vida fazer com que a meretriz Thaís abandone a vida devassa e, dessa forma, conseguisse a salvação de sua alma. Entretanto, o monge se apaixona pela meretriz e depois que percebe que a alma dela está salva, percebe que não era isso que ele queria.

O enredo é muito bem construído, com certa dose de crítica e sátira (que ao meu ver é incomum para a época - 1890), e é de uma leitura gostosa, muito embora tenha um vocabulário um tanto quanto rústico.

De um modo geral o autor redige a trama com doses de entranhamento filosófico e um toque de sátira sem perder um estilo artístico e literário mais refinado. De maneira objetiva, também retrata muito bem o cristianismo, ainda nos seus primeiros séculos de existência (aproximadamente em 300 d. C.)
Fontes:
Ana Ruppenthal, disponível em skoob 

sábado, 28 de outubro de 2023

Estante De Livros (Alceste, de Eurípides)


Esta é a mais antiga das obras conservadas de Eurípides. Admeto está condenado a morrer cedo, mas o deus Apolo convence as Parcas a permitirem que ele se livre da morte no dia marcado pelo destino, desde que encontre alguém disposto a morrer em seu lugar. Os velhos pais do rei se recusam a salvar o filho, e somente sua mulher, Alceste, prontifica-se ao sacrifício e deve morrer naquele mesmo dia. Hércules, grande herói trágico que se hospeda nesse mesmo dia na casa de Admeto se oferece para salvar Alceste das garras da Morte.

Conhecem-se diferentes versões do fim da estória de Alceste. Ora os deuses apiedam-se e permitem à rainha retornar à vida, ora o herói Héracles desce aos infernos e a resgata.

O poeta retrata Alceste como uma figura de grande virtude, esposa, mãe e rainha piedosa. a morte de Alceste é, em Eurípides, uma escolha motivada pelo amor, uma decisão que não lhe era obrigatória e que ela, como os pais de Admeto, poderia ter recusado

A Alceste, além do final feliz, apresenta alguns aspectos que a aproximam do drama satírico; é uma tragédia leve, considerada precursora do gênero melodrama.

A figura de Alceste foi vista, durante toda a Antiguidade, como um exemplo maior da virtude feminina. Platão afirma que os deuses mesmos a admiravam e Juvenal, cujas opiniões sobre o sexo oposto não eram menos que misoginia, menciona-a como um paradigma de decência ao qual as mulheres romanas, adúlteras e criminosas, não se podiam igualar. Em um epigrama funerário grego, uma mulher declara-se uma “nova Alceste”, porque morreu por seu marido, o único homem que amou. A partir da época romana, a imagem de Alceste, com a cabeça e os ombros cobertos em sinal de modéstia, era um dos motivos preferidos da decoração sepulcral.

O sacrifício voluntário de Alceste nunca cessou de inspirar poetas e artistas, dos quais só damos poucos exemplos. Christoph Wilibald Gluck fez da estória uma das mais belas óperas do período clássico (Alceste, 1767). Rainer Maria Rilke cantou a o amor incorruptível e devoção da mulher que permite ao homem um vislumbre do transcendental (Alkestis, 1907).
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RESUMO

Alceste era a mais bela das filhas do rei Pélias. Por isso foi pedida em casamento por vários reis e príncipes. Mas para não arriscar sua posição política recusando alguns desses reis e príncipes, o rei Pélias declarou que àquele que conseguisse atrelar um javali e um leão em um mesmo carro de corrida e o dirigisse em torno do estádio, seria concedida a mão de Alceste.

Ao ter conhecimento disso, Admeto, rei de Feras, invocou o deus Apolo e rogou-lhe que o ajudasse a cumprir as exigências do rei Pélias para obter a mão de Alceste. E tendo-lhe atendido o deus, conseguiu Admeto, com uma mãozinha de Héracles, atrelar os animais e dirigir o carro puxado por esses ao redor do estádio.

Tendo sucesso na empreita, Admeto fez um sacrifício à deusa Artêmis antes de se casar com Alceste. Mas não se sabe por qual razão ele omitiu esse sacrifício, o que deixou a deusa furiosa, querendo rapidamente puni-lo. Na noite de núpcias do rei, não havia uma linda esposa esperando-o, mas um gigantesco nó de serpentes.

Recorrendo novamente ao deus Apolo, Admeto conseguiu que esse interviesse com a deusa, o que acabou acontecendo, pois ele ofereceu o sacrifício esquecido. Porém, para obter sua amada de volta o rei deveria, quando chegasse a hora, sacrificar sua vida, a não ser que algum membro da família o substituísse por amor a ele, sacrifício em nome do amor.

O dia inesperado da morte de Admeto chegou mais cedo que o imaginado. Hermes (deus mensageiro) entrou em seu palácio certa noite e o intimou ao Tártaro (lugar para onde vão os mortos). 

Admeto não se preocupa muito com essa condição pensando em todos seus servos que lhe deviam favores e que gostavam muito dele e fica muito alegre com a nova esperança. No momento de sua morte, porém, ninguém se habilita, nem seus velhos pais; apenas Alceste oferece-se como substituta. Admeto tinha muito amor à vida, mas não desejava mantê-la a tal custo. Porém a condição das Parcas fora satisfeita e enquanto Admeto ia recuperando as forças, Alceste adoecia. Mas o trágico e também mágico é que, por amor, Alceste tomou veneno e se sacrificou por seu amado, indo para o Tártaro em seu lugar e cumprindo a promessa feita à deusa Artêmis. Hércules, que passava por lá ouve o lamento dos servos que não queriam perder uma querida senhora e tão dedicada esposa, espera na porta do quarto de Alceste a chegada da Morte. Quando esta chega Hércules a agarra e obriga-a a desistir de seu intento de roubar a vida de Alceste. Assim ela vai se recuperando e pôde continuar a viver ao lado de seu amado marido.

Portanto, quem se sacrifica por alguém, acaba sendo recompensado, pois o amor sempre se identifica no outro que nos completa. E Alceste completou Admeto que a tinha trazido de volta.

Fontes:
– João Francisco Pereira Cabral. in "Admeto e Alceste". Brasil Escola. 
– Gabriel Nocchi Macedo, in Alceste ou a morte em troca da vida (Excertos). Estadão 26/08/2017. 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Estante de Livros (Dia de São Nunca à tarde, de Roberto Drummond)


Dia de São Nunca à Tarde foi a primeira obra do jornalista Roberto Drummond, autor de sucessos como Inês é morta, A Morte de DJ em Paris, Hilda Furacão, que foi publicada postumamente. O livreto contém menos de 100 páginas, escritas com uma sensibilidade e uma profundidade impressionantes.

A obra conta a história de Gabriel, o menino prodígio no time de futebol do colégio interno de padres; Gabriela, sua irmã gêmea idêntica; Frei Vicente, que faz milagres; Frei Tanajura, um homem intransigente e que tem pavor a uma certa tribo indígena; os alunos do internato e os padres fantasmas que vivem ali.

No colégio, há uma aura de apreensão porque o campeonato de futebol está prestes a começar, e Gabriel não retornou das férias na casa da mãe. Passam-se dias, até que ele chega, sendo trazido pela mãe - descrita como uma mulher extremamente sensual e perfumada, que desperta sensações intensas, e pela irmã, por quem um dos padres fantasmas é apaixonado.

Gabriel e Gabriela decidem trocar de lugar um com o outro - uma brincadeira que serve para que eles possam se colocar na pele um do outro, e assim entender melhor como é estar no lugar do outro. Então, no colégio, quem acaba ficando é Gabriela, que acaba dando início a um romance com os dois melhores amigos de seu irmão.

O livro descreve de forma sucinta, mas não menos cheia de detalhes e sensações, as cenas de cada momento da história. A forma de narrar do autor nos leva a crer que tudo o que estamos lendo faz parte de um sonho que ele teve em uma noite qualquer, fruto de um sono pesado e revigorante.

Em suma, é uma leitura prazerosa e rápida, capaz de despertar em nós diversas sensações, de nos levar para viagens na imaginação, e de nos tirar brevemente da realidade.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Estante de Livros (A filha dos rios, de Ilko Minev)

Com o intuito de homenagear os habitantes da região amazônica e de preservar a história local, Minev descreve com detalhes a paisagem do mundo onde moram nordestinos , portugueses, italianos, espanhóis, árabes e judeus, que desbravaram aquele território imenso desde o primeiro ciclo da borracha.

Romance ambientado na Amazônia, marcado pela história de mulheres resolutas e fortes diante de adversidades rotineiras na segunda metade do século XX. Filhas do rio, apesar do título referir-se, primordialmente, a Maria.

Aborda pontos históricos como o garimpo e seringais, despertando um encanto ou curiosidade na descrição da natureza e da vida social.

A obra inicia com a história de Maria, em uma sucessão de eventos fortemente arraigados na cultura ribeirinha, principalmente de décadas passadas, mostrando a protagonista da adolescência à maturidade de mulher calejada e pilar em sua família. Maria é uma cabocla de olhos verdes. Aos 16 anos, ela é levada de Igarapó Mirim por Adriano, a pedido de sua mãe, Eulalia. Descendo pelo Rio Purus, eles chegam a Surara, onde se instalam. É lá que Maria aprende a cozinhar e que o amor entre ela e Adriano aflora. Maria e Adriano seguem viagem até Manaus, onde conhecem Benjamim Melul e sua esposa Nina e, juntos, partem para Quatro Ases, um seringal na fronteira do Brasil com a Bolívia. Após cinco anos, quando decidem se mudar, o grupo é pego por um surto de febre amarela e apenas Maria e três crianças sobrevivem . Determinada a educar seus dois filhos e Alice, a filha do casal de amigos, Maria trabalha como cozinheira, em uma boate e na draga de prospecção de ouro de Oleg Hazan, um jovem judeu búlgaro.

O ambiente é retratado de forma rústica, isolada e decadente, principalmente em relação ao resgate seringalista.

Na segunda parte o autor apresenta Sandra, que tem uma história ligada a antepassados judaicos e com muitas revelações quanto a trajetória pessoal e de seu povo. O autor fala de eventos ocorridos na Europa que são desconhecidos do grande público, como a organização Zwi Migdal (máfia que atuou no tráfico de mulheres para a América do Sul). Nessa parte os eventos giram em torno do garimpo e sua efervescência comum ligada a bordéis e pirataria.

O livro encerra de forma nostálgica, em uma revisitação dos cenários, deixando em paralelo histórias amazônidas, reais ou fictícias, como tantas que ocorreram ou se passam por aqui.

A história de Maria, retorna apagada na segunda parte, sem o carisma cativante e admirável em sua primeira passagem.

É o segundo romance de Ilko Minev, publicado em 2015, com personagens ligados a "Onde estão as flores?", obra de 2013.

Fontes:
Amazon 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Estante de Livros (“Uns braços”, de Machado de Assis)

O conto está em

https://singrandohorizontes.blogspot.com/2011/01/machado-de-assis-uns-bracos.html


A desconstrução do discurso romântico em Uns Braços, de Machado de Assis,

pelo Prof. Edir Alonso
 
O presente escrito tem como propósito analisar criticamente o conto Uns braços, de Machado de Assis, buscando identificar nesse microcosmo da narrativa machadiana elementos que evidenciem uma perspectiva Realista. Dentre esses elementos, enfatizaremos a análise psicológica das personagens e a desconstrução do discurso romântico.

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, em 05/11/1885, já na maturidade do escritor, e, posteriormente em 1893, no volume de contos intitulado Várias Histórias, o conto em análise se constitui em uma urdidura engenhosa, que envolve o leitor, conduzindo-o a uma atmosfera de romance, que, ao término da trama se dissolve, evidenciando a oposição entre a fantasia e a realidade, e a consequente prevalência da moral socialmente estabelecida e das instituições sobre os sonhos e as pulsões humanas.

Tratemos de forma resumida, sob o risco evidente de simplificação, do enredo de Uns braços. Inácio, rapaz de 15 anos, filho de um barbeiro, é colocado pelo pai como estagiário de Borges. Este vive maritalmente com D.Severina, e abriga Inácio em sua casa, irritando-se constantemente com as distrações do moço. A verdade é que Inácio se apaixona por D. Severina; se encanta especialmente com os braços da jovem senhora. Quando percebe os olhares de Inácio, a mulher passa ao conflito: ele ainda é muito jovem, ela é uma mulher comprometida. Mas são apenas olhares. Em um domingo Borges sai de casa, e D. Severina observa que Inácio dorme suavemente na rede. O rapaz está a sonhar com ela e, neste instante se dá uma incrível coincidência: ao sonhar com o beijo de D. Severina, Inácio é realmente beijado pela mulher. Depois do ato impulsivo, D. Severina passa a se reprimir pelo que fizera e passa a tratar o rapaz secamente e a cobrir os braços com um xale. Inácio, ainda mais distraído da realidade com seus sonhos, não percebe a mudança da senhora. Após uma semana, Borges irá dispensá-lo sem nenhum sinal de rudez, embora não permita que Inácio se despeça de Severina, alegando que ela estaria com muita dor de cabeça. Os anos se passam e Inácio nunca teve sensação igual à daquele beijo, que para ele não passara de um sonho.

Dentro da tradição Realista, o conto privilegia o cenário doméstico da família burguesa, na segunda metade do século XIX: “Passava- se isto na Rua da Lapa, em 1870.”. O episódio em questão suscita a temática do adultério feminino, ainda que de forma extremamente sutil, se comparado àqueles relatados em Madame Bovary (1857) ou em O Primo Basílio (1878). A herança de Flaubert também se evidencia no tema da leitura e do devaneio romântico. Assim como Emma Bovary, o personagem Inácio alimenta uma visão de mundo romântica a partir da leitura de folhetins:

“Inácio passava-os [os domingos] todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. [...]Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham.”

Essa cena da leitura culmina com o sono e com o sonho de Inácio, que se concretizará sem que ele perceba. Curiosamente, ao contrário das narrativas fundadoras da escola realista, em Uns Braços não é a mulher quem se desprende da realidade a partir da imersão em um universo romântico, mas o rapaz.

Desse modo, à superficialidade de Inácio contrapõe-se a profundidade da personagem feminina. A análise psicológica, como traço Realista, se evidencia na exploração do conflito de D. Severina. A descrição física da personagem é o ponto de partida para revelar o caráter ambíguo típico da mulher machadiana:

Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.”

O fato de não se poder defini-la como sendo bonita ou feia, os cabelos presos, o lenço escuro e a ausência de adornos apontam para a sexualidade reprimida de mulher casada, condição sintetizada pelo paradoxo dos “vinte e sete anos floridos e sólidos”. A sensualidade e a feminilidade mascaradas pela solidez do papel social atribuído à mulher da época.

Esse equilíbrio aparente é rompido quando D. Severina percebe os olhares de Inácio:

"Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa Rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada (grifo nosso). E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim."

O monólogo interior revela que a protagonista vai, gradualmente, admitindo a ideia de estar sendo admirada pelo rapaz, passando, inclusive a comprazer-se pelo fato de ser desejada (ou desejável). Nesse sentido, não temos em D. Severina a constituição linear das heroínas românticas, dada a sua volubilidade. Ademais, não está ela apaixonada pelo jovem, o qual, longe de qualquer idealização, sequer é visto como homem. De certo modo, a protagonista apaixona-se por si própria ao descobrir sua feminilidade.

Por outro lado, Inácio caracteriza-se como uma perfeita representação do Romantismo. Suas constantes distrações, motivadas pela paixão que nutre por D. Severina, levam-no a distanciar-se totalmente da realidade. O mundo de sonhos construído pelo rapaz se cristaliza no discurso:

“[...] retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor.”

De forma magistral, o narrador machadiano passa à perspectiva do personagem, construindo uma poética tipicamente romântica, associando as emoções da personagem às imagens da natureza. Dessa forma, se estabelece no conto a tensão dialógica entre Realismo e Romantismo, tomando-se como referência o conceito bakhtiniano de dialogismo:

“Com base no que foi dito, pode-se afirmar que na composição de quase todo enunciado do homem socialdesde a curta réplica do diálogo familiar até as grandes obras verbal-ideológicas (literárias, científicas e outras) existe, numa forma aberta ou velada, uma parte considerável de palavras significativas de outrem, transmitidas por um ou outro processo. No campo de quase todo enunciado ocorre uma interação tensa e um conflito entre sua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou de esclarecimento dialógico mútuo (...)”(Bakhtin, 1988:153)


Essa tensão evolui num crescendo, até chegarmos ao clímax da narrativa:

"Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, - ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.

Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. [...]"


O beijo, sonhado por Inácio, de fato ocorre, sem que ele perceba. Aqui fica evidente a distância intransponível entre os universos representados pelos protagonistas, pois o que se afigura real para D. Severina é apenas um sonho para o jovem. A atmosfera de romance é abruptamente rompida pelo senso de realidade da personagem feminina:

"A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na ideia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o (grifo nosso). Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio."

O gesto impulsivo é imediatamente reprimido. A culpa desencadeia na personagem um mecanismo defensivo, em que passa a buscar justificativas para o que acabara de fazer. Neste momento, vem à tona outra problemática interessante do conto. D. Severina e Borges “viviam maritalmente há anos”, sem filhos, pelo que se pode presumir. A complexidade do conflito interno da protagonista ainda pode fazer com que ela projete no rapaz não apenas os instintos sexuais recalcados, mas também o filho desejado. Daí a imagem ambígua do rapaz:

"Uma criança! disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta ideia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.
- Uma criança!"


Essa ambiguidade pode ser reforçada pela seguinte passagem:

"D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe (grifo nosso), que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão."

O próprio Inácio sente-se confuso em relação à D. Severina, em parte pelas atitudes dúbias da mulher, em parte pelo próprio complexo edipiano. O rapaz, inserido na casa de Borges, vê-se afastado de seu contexto familiar: “Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs [...]”. Borges passa a cumprir o papel de pai, a lei, a autoridade, a castração. D. Severina passa a ser a figura feminina presente em sua vida, a representação da mãe.

A profundidade da narrativa machadiana nos permite um amplo leque de leituras, em especial no que diz respeito à análise psicológica das personagens. No presente estudo, como já havíamos exposto anteriormente, tal enfoque reforça a percepção do conto Uns Braços como discurso permeado por elementos da tradição Realista.

Nesse sentido, passaremos a considerar alguns artifícios na construção da trama que apontam para a desconstrução do discurso romântico.

Uma leitura ingênua do conto pode levar à impressão de que o tema central é o triângulo amoroso. Inicialmente, teríamos diversos elementos que consubstanciam uma expectativa romântica, que, mais tarde, será frustrada. Além da diferença de idade, há um desnível social entre Inácio, filho de um barbeiro e D. Severina. A esses impedimentos soma-se o fato de a protagonista estar presa ao papel de mulher de Borges. São os “liames sociais” a que se refere o narrador.

É sabido que a tônica da maior parte das narrativas românticas é o amor proibido, o que suscita a oposição entre o indivíduo e a sociedade, sendo a transgressão, a superação dos liames sociais, a condição para a realização do herói.

A atmosfera vai se construindo nos devaneios de Inácio e nas divagações de D. Severina, envolvendo o leitor em uma teia, fazendo-o acreditar no surgimento de um romance. Nesse sentido, o narrador lança, como uma isca, uma reveladora antecipação: “Afinal, porém, [Inácio] teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.” Neste instante imagina-se que algo aconteceu entre a mulher e o rapaz. Especula-se, inevitavelmente, que Borges possa ter descoberto o suposto enlace amoroso e, consequentemente, expulsado o moço de sua casa.

As próximas cenas serão carregadas de uma tensão crescente, como se evidencia em passagens como:

“A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se.”

“Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo [...]”;

“[D. Severina] estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca [...] Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada.”

“D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou”

 
Assim, o próprio leitor poderá sentir seu coração a bater com veemência até o clímax: a cena do beijo.

D. Severina passará então à autocensura, o que se evidencia quando ela passa a cobrir os braços com um xale, e tratará o rapaz secamente. Por fim, passados alguns dias, Borges irá dispensar o moço, sem maiores explicações. Ora, não veríamos “como e porque” Inácio teria de sair? Assim, não apenas frustram-se as expectativas românticas estimuladas no leitor, mas a também se desconstitui a possibilidade de encerrar-se a história com um entendimento definitivo do que acontecera.

Teria Borges descoberto o beijo ou desconfiado de algo? Nesse sentido, observe-se o curto diálogo final entre ele e Inácio:

“- Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.
- Sim, senhor. A Sra. D. Severina...
- Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela.”


Borges o teria impedido de falar com D. Severina. Mas, nesse caso, porque não agira de forma agressiva? Quanto a essa suposta agressividade, destacamos uma passagem que trata das ameaças de Borges.

"E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau."

Por outro lado, Inácio era constantemente repreendido por suas distrações, mostrando-se inapto para o trabalho. Desse modo, Borges teria todos os motivos para mandá-lo embora, mesmo desconhecendo a situação entre o rapaz e D. Severina.

Por fim, há uma terceira e provável hipótese, em que D. Severina, como típica mulher machadiana, teria manipulado Borges, induzindo-o a demitir o rapaz sem que ele suspeitasse de nada.

Assim, é possível que o leitor sinta o desconforto oriundo do fato de não lhe ser oferecido um desfecho conclusivo para a história. À perspectiva linear e a consequente previsibilidade inerentes ao pacto narrativo do Romantismo contrapõe-se a omissão do narrador. A sensação de que nada acontecera ou de que ignoramos os acontecimentos vem acompanhada da frustração da expectativa de um final feliz ou melodramático, comuns às narrativas sentimentalistas da primeira metade do século XIX.

Nesse sentido, é interessante observar que a trama se encerra com a ignorância de Inácio a respeito de tudo o que acontecera:

"Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:
- E foi um sonho! um simples sonho!"


A perspectiva romântica do rapaz faz com que sua condição de “sonhador” siga inalterada ao longo de toda a história. Assim se dá a vinculação do romantismo, personificado por Inácio, à ignorância, à incapacidade de compreender a realidade.

É dessa forma que Uns Braços se constitui como uma narrativa surpreendente, complexa e passível de diversas leituras. Em um plano mais particular, é possível sondar aspectos da psicologia das personagens na oposição entre a moral e as pulsões do indivíduo, como observamos no conto a exploração dos desejos recalcados e o conflito edípico. Atingindo a universalidade, o texto ainda pode ser percebido em uma perspectiva metaliterária: a relação dialógica entre o Realismo, vinculado às atitudes de D. Severina, e o Romantismo, associado aos devaneios de Inácio termina por evidenciar a falência do idealismo romântico.

Fonte:
Literatura – Edir
http://literatura-edir/analise-do-conto-uns-bracos-de-machado.html. 18 março 2009

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Estante de Livros (“Uma lágrima de muher”, de Aluísio de Azevedo)


Uma lágrima de mulher (1880), novela de estreia de Aluísio Azevedo, apresenta a faceta romântica desse autor responsável pela introdução do Naturalismo no Brasil.

A narrativa constitui-se com estrutura de folhetim. O leitor acompanhará a desventura amorosa de Miguel, jovem de origem humilde que não mede esforços para unir-se à Rosalina. Com expressiva carga de emotividade e em estilo adjetivado, a ideia de que a infelicidade está associada à soberba e de que o excesso de dinheiro gera a corrupção dos princípios morais firma-se como principal advertência nesse relato que antecipa alguns dos temas explorados no romance realista.

O relacionamento não é bem aceito pelo pai de Rosalina e eles se separam. Parece que o risco da morte e nem mesmo a distância, são obstáculos suficientes para impedir o coração apaixonado de Miguel, em busca de rever sua amada. Mas será que, caso se reencontrem, ainda haverá amor correspondido?

RESUMO
O romance narra a história dos amigos italianos Miguel e Rosalina, que viveram desde a infância em uma pequena comunidade de pescadores chamada Lipari. Rosalina morava com o pai Maffei, a velha Ângela e o cão Castor em uma casinha branca. Miguel era um vagabundo abandonado a sorte, seus pais já tinham partido desta vida e nenhuma fortuna deixou a ou pupilo senão uma rabeca e o dom de tocá-la.

O velho Maffei tendo a filha moça já feita partira em busca de fazer fortuna e a deixara sob os cuidados de Ângela. Mal sabia o desgraçado que a menina tomaria por namorado Miguel, o moço fazia composições à namorada e lhe declarava ao som da rabeca nos finais de tarde. Assim decorreram dois anos de ausência e de namoro, até o retorno do velho pescador que logo fez romper o romance que reprovou assim quando soube. Rosalina rapidamente escreveu ao amado sobre o fim do romance e a partida para Nápoles que se daria em breve, no mesmo papel pedia um encontro para dar-lhe adeus.

Findando a tarde os enamorados se encontraram bem próximos à casinha branca, tomados pelo choro misturados a leves e confusos sorrisos sentiram seus lábio uma atração que somente os que amam sentem e o beijo se fez. Mas logo se desfez com a invasão da luz vermelha da lanterna manobrada por Maffei, este fez o jovem casal o acompanhar até a casinha, Miguel levava a amada nos braços desfalecida e ao chegar a deitou em seus aposentos, em seguida acompanhou o velho para fora da casa e próximo a um penhasco que desabava no mar. Lá travaram uma luta como duas feras lutando por sobrevivência, até que o mais forte viu rolar no precipício o corpo do jovem músico. Após o regresso da luta, raiado o dia o velho partiu com a família deixando pra trás o cão e uma casinha banca agora tomada por fogo e por cinzas.

A jovem saiu do campo e foi apresentada a uma vida de luxo, já não mais vestia, comia e falava como antes. Aprendeu a ser uma senhora, que vivia e se apropriara dos altos salões. Esquecera, durante os quatro anos, que um dia sofreu com a morte do jovem Miguel. Até que um dia saiu atordoada do salão de sua elegante casa e foi para seu aposento, estendendo um lenço de renda na janela e lembrando a figura do tocador de rabeca.

O que sucedeu na noite da batalha viria a perturbar o futuro. Miguel havia sobrevivido ao acidente e logo amanheceu já estava em terra firme, resistira ao mar e se pôs a caminhar até a casinha branca, onde não encontrou muito além de cinzas e o pobre Castor, com quem compartilhou de sua desgraça. O tempo e a necessidade o fizeram mestre de quatro pupilos, meninos que ficaram inconformados com o dia em que Miguel avisou a partida em busca da amada. Soubera que a fidalga estava prometida a um nobre.

Miguel recebeu a parte em dinheiro que lhe era direito por o tempo de serviço e partiu com o pescador Sombra da Noite, o velho conhecia a vida de ostentação que Maffei mantinha, bem como a estrutura da elegante mansão em Nápoles. Partiu com eles o dócil companheiro Castor. Lá chegando logo se dirigiram a tal residência donde no salão os pares bailavam, Miguel fez um caminho indicado pelo seu guia e se dispôs a tocar a rabeca em frete a janela do quarto da amada, até que o músico não correspondido voltou aos navegantes, para o lugar onde estavam hospedados.

Logo recomendou à Sombra da Noite que entregasse um bilhete marcando encontro com Rosalina. A grande noite chegou e o lencinho de renda francesa foi posto à janela como sinalização a entrada do amante. Os dois estremeceram, Rosalina estava mudada e superficial, dizia ser o pai único culpado de sua sorte e Miguel partiu com essa informação e uma idéia a ser materializada.

Um sábado a noite a casa de Maffei estava esplêndida, era aniversário de Rosalina, as portas se escancaravam ao público. O moço tocador de rabeca estava no jardim como um bicho que fareja sua presa e lá estava: o velho fidalgo sentado em um banco se afastara do barulho de salão. Miguel de pronto o surpreendeu, e o sugou a vida roubando-lhe o ar. Ao amanhecer um dos funcionários deu conta do corpo estirado ao jardim…Sucederam dias de pesar e tristeza, logo suplantados pelo casamento da moça com o nobre a que estava destinada, assim teria a manutenção da vida que já tinha se habituado nas altas camadas da sociedade. Quanto ao seu matrimônio, o noivo dava-se por satisfeito por ter acesso a herança, enquanto a esposa se prostituía com os amantes que saltavam sua janela nas noites.

Até que um dia o esperançoso Miguel deu seu salto, agora não tendo mais o velho Maffei a jovem voltaria para seus braços e partiriam para a pacata colônia. Porém não tinha o músico notícias da vida da amada. Rosalina ficou surpresa, mas logo criou lamúrias e falseou a má sorte que a assolara. Não tendo mais o que criar, apontou ao amante um pequeno copo que estava em que quarto e informou que nele não mais havia veneno porque ela mesma o tomou e que em instantes partiria de seu infortúnio. E assim dramatizou, como que dá adeus ao mundo dos vivos. Miguel chorava junto ao corpo da amante até que se pôs junto dela e silenciou. Rosalina, incomodada com a situação e a insistência suscitou a vida e indagou ao amante se ele não partiria, mas o silêncio persistiu. Miguel estava morto. Pela primeira vez rolou uma lágrima pura e feminina, de quem pela primeira vez amava, agora a um cadáver. Foi assim que naquela face escorreu uma lágrima de mulher!

Fontes:
AMAZON
Resumo de ReginaMSChaves

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Jaqueline Machado (O Fantasma da Ópera e a tríade da consciência)

O Fantasma da Ópera, do escritor francês Gaston Leroux, é uma misteriosa Tríade Mental formada por Erik, a mente da alma, Christine, a mente da vida, e Raoul, a mente das coisas do mundo.  

A moça, bela e talentosa, ouvia em sua cabeça uma voz que lhe inspirava a cantar. Ela pensava estar ouvindo a voz do anjo da Música, o qual seu pai, grande músico, havia dito que lhe enviaria quando não estivesse mais presente... Ao cantar, ela assemelhava-se a uma taça transbordando bebida doce e suave a quem tem sede... O seu canto era um canto de sereia a encantar a todos ao seu redor. Ela era o espírito da casa de espetáculos, e toda essa magia foi descoberta ao substituir Carlota, estrela principal do Teatro.

O Anjo da Música, Erik, era um homem que vivia escondido nos porões da casa, devido a uma má formação no seu rosto. Tornaram-se cúmplices: a moça emprestava-lhe a beleza, enquanto ele, lhe emprestava a voz. Ou seja, ela era o amor, o encanto, o útero da vida a transbordar possibilidades, talentos... Mas ele, era alma escura, o mistério, as sombras do ser... Perdido nos breus de uma profunda solidão, sofria a impossibilidade de ser amado. Mesmo assim, apaixonou-se por Christine que, por sua vez amava Raoul, namoradinho de infância, e que na história, representa as riquezas do mundo, o direito à escolha, o livre arbítrio.  

O entrelace entre a jovem e o rapaz despertou no fantasma a ira de todos os demônios. Obcecado, passou a estrategiar maneiras de separar o casal. Tudo e todos que separavam Christine de seu espaço, ele matava ou tornava distante.

Em certo momento, Christine quase aceitou se unir ao anjo, mas ela tinha medo do que é oculto, do que é subterrâneo, do que pertence aos mistérios da alma... No fim, optou pelo amor de Raoul. Achou melhor casar com as coisas do mundo, a unir-se a sua alma. Não entendeu que as perversidades de Erik, na verdade, eram uma tentativa de afastá-la do que é perecível, mas ela temia o mistério, e o via como um monstro.

A realidade do “eu” das almas, é vista de forma desfigurada diante da realidade do mundo. Inconformado, o fantasma aprisiona o casal de namorados. Mas percebendo que era inútil desejar separá-los, os liberta.

Christine morreu antes do marido. E certo dia, Raoul foi ao cemitério visitá-la. E lá, próximo ao túmulo, estava a rosa do seu eterno rival.  A tríade se reúne novamente, pois são inseparáveis...

Resumo da minha pequena Ópera explicativa: o espetáculo, o fantasma e Raoul, são os três estados de consciência de Christine. Mais do que isso, são os três estados de consciência de todos nós seres humanos.

Fonte:
Texto enviado pela autora

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Estante de Livros (Nós: uma antologia de literatura indígena)

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exto por Laura Brand

Nós: uma antologia de literatura indígena é uma coletânea de contos de indígenas brasileiros. Com pouco mais de 120 páginas, o livro reúne alguns mitos e contos que sobreviveram a gerações e preserva parte de uma rica história de alguns dos primeiros povos brasileiros.

Estamos acostumados a mergulhar na literatura estrangeira e, quando nos aventuramos na literária nacional, optamos por aquela escrita por brasileiros brancos, de descendência europeia. Ter contato com as narrativas indígenas é algo raríssimo para a maior parte de nós e o livro organizado e ilustrado por Maurício Negro é uma forma de tentar mudar essa realidade, principalmente para jovens leitores.

Nós: uma antologia de literatura indígena é um livro composto por onze contos escritos por descendentes ou nativos de tribos indígenas brasileiras. Além de uma belíssima ilustração abrindo cada capítulo, os contos acompanham um glossário dos termos utilizados, uma mini biografia de cada autor ou atores dos contos e uma breve explicação sobre aquele povo ao qual o conto faz referência ou ao qual a história está inserida. Isso faz com que o livro seja ainda mais enriquecedor, principalmente para os leitores que não estão habituados com determinadas narrativas ou que nunca ouviram falar desses povos. E como os contos são bem curtinhos, o livro se torna uma leitura rápida, divertida e muito rica.

Por meio dos contos escritos por autores de diferentes povos indígenas, Nós: uma antologia de literatura indígena ajuda a exemplificar a rica diversidade existente até hoje no nosso país. O livro é editado e publicado pelo selo Companhia das Letrinhas e isso em si foi um ponto interessante. Isso porque, ao escolher os jovens como foco de um livro de narrativas indígenas, é possível perceber uma preocupação em formar uma nova geração de leitores acostumados a ouvir e buscar outras perspectivas que não apenas estadunidenses e/ou europeias. Foi uma excelente escolha do Grupo Companhia das Letras e abre espaço para novos diálogos e vozes.

Nós: uma antologia de literatura indígena é uma homenagem à verdadeira ancestralidade brasileira. Um livro que reúne memórias e sabedorias milenares de alguns dos povos originários do nosso país e que, por meio da literatura, ainda resistem e expõem sua cultura para o resto do mundo.

Tive pouco contato com esse tipo de narrativa, mas Nós me deixou com um gostinho de quero mais. Não consegui deixar de pensar que o livro poderia ser uma alternativa às ficções europeias que os pais costumam ler para os filhos. Nós é uma forma de conhecermos mais sobre os verdadeiros brasileiros e de abrimos espaço para pensarmos e ouvirmos diferentes vivências e experiências. Mais uma vez a literatura se mostra poderosa.

“Nesta belíssima antologia ilustrada, o leitor vai conhecer dez histórias contadas ou recontadas por escritores de diferentes nações indígenas.

A menina Yacy-May era tão especial que fez com que o sol se apaixonasse por ela, deixando a lua enciumada. O peixe-boi surgiu a partir da união de Guaporé, filho do grande chefe dos peixes, com Panãby’piã, filha do governante dos Maraguá, e sinalizou a paz entre os humanos e os peixes. A velha misteriosa Pelenosamo tem um dia a casa invadida por uma garota curiosa, que resolve investigar o que ela fazia com os galhos secos que sempre levava recolhia e não dividia com ninguém. Essas são algumas prévias das histórias reunidas nesta antologia, contadas ou recontadas por escritores das nações indígenas Mebengôkre Kayapó, Saterê-Mawé, Maraguá, Pirá-Tapuya Waíkhana, Balatiponé Umutina, Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurâ Bakairi.

Tratando dos mais diversos temas — dos mitos de origem às histórias de amor impossível —, as narrativas conduzem o leitor por situações e desenlaces muito próprios, sempre acompanhadas por um glossário e um texto informativo sobre o povo indígena de origem de cada autor. Esta é uma chance preciosa para todos aqueles que desejam entrar em contato com as raízes mais profundas de nossa cultura, ainda pouco valorizadas e respeitadas, por puro desconhecimento.”

Fonte:
Site Nostalgia Cinza, de Laura Brand
https://www.nostalgiacinza.com.br/2019/12/resenha-nos.html