sábado, 26 de julho de 2008

Stendhal (O Vermelho e o Negro)

Julien Sorel é o anti-herói romântico por excelência. Carente de recursos, sua ambição o leva a encarar duas carreiras como possibilidade de alcançar o sucesso - a eclesiástica e a das armas. Sua trajetória constrói-se entre o vermelho e o negro. Envolve-se com duas mulheres - Madame Renal e Mathilde de la Mole.

Filho de um humilde carpinteiro,Julien Sorel sonha com uma vida intensa e gloriosa. Sua desmedida ambição o leva a conviver com a burguesia provinciana e com a aristocracia parisiense. Ainda assim Julien continua a ser um pobre no mundo dos ricos. A partir desses elementos, Stendhal criou um magistral romance psicológico, considerado o mais significativo da literatura francesa do século XIX.

Alguns comentários iniciais sobre o 'O Vermelho e o Negro'.

a] As intenções de Stendhal.

As sucessivas revoluções [Revolução Francesa, Consulado, Império Napoleônico e a Restauração] provocaram, ], num curto espaço de tempo, profundas transformações nos costumes e hábitos do povo francês. A imagem que a literatura produzia da França, contudo, estava defasada, segundo Stendhal.

'A França moral é ignorada no estrangeiro, eis por que, antes de tratar do romance do senhor de S[tendhal], foi preciso declarar que nada se assemelha menos à França alegre, divertida, um pouco libertina, que de 1715 a 1789 constituiu o modelo da Europa, do que a França grave, moral, triste , que nos legaram os jesuítas, as congregações e o governos dos Bourbons de 1814 a 1830'[1958:318]

Para Nobert Elias 'a especial sensibilidade dos escritores permitiu-lhes, como uma espécie de vanguarda da sociedade, perceber e expressar mudanças que estavam ocorrendo no campo mais amplo das sociedades em que viviam' [1994:87]. O que Stendhal se propôs foi traçar uma imagem fiel dos costumes das cidades e da província francesa e da relação entre indivíduo e sociedade. Para Stendhal sua caneta funcionava como um espelho: deveria refletir com precisão sua época. Buscava a objetividade.

'Senhores, um romance é um espelho que é levado por uma grande estrada. Umas vezes reflete aos vossos olhos o azul dos céus, e outras a lama da estrada. E ao homem que carrega o espelho nas costas vós acusareis de imoral! O espelho reflete a lama e vós acusais o espelho! Acusai antes a estrada em que está o lodaçal, e mais ainda o inspetor das estradas que deixa a água estagnar-se e formar-se o charco. '[: 345/46]

Para alcançar este objetivo, Stendhal colhia no mundo real o material para elaboração de suas obras. A própria história de Julien Sorel, é baseada em fatos verídicos, somando traços de sua personalidade e fatos que aconteceram na sua vida particular para constituição da personalidade de Julien Sorel. Segundo Cândido, 'Stendhal era incapaz de inventar um sistema fictício. O culto à experiência, ao fato constatado, assim como o amor à concatenação, levaram-no sempre a tomar como ponto de partida algo concreto e quase sempre meio elaborado. Para alguém tão convencido da realidade da experiência, a sensação e a impressão da leitura eram células germinais da criação fictícia'[1978:146].

A atenção maior era dada, não aos fatos em si, daí não ser um 'plagiador dos fatos reais', mas a como as pessoas os vivenciavam, interagiam. Ao mesmo tempo que Stendhal descreve encontros entre as pessoas, nos deixa penetrar nos seus pensamentos, através do fluxo de suas consciências, permitindo-nos escutar como os personagens racionalizavam as situações concretas, medindo as possibilidades de avanços e/ou recuos. As ações dos personagens são o resultado da ' interiorização da exteriorização e da exteriorização da interiorização' [Bourdieu, 1983:47]. Mais precisamente no caso de Sorel: 'os acontecimentos constituem Julien Sorel tanto quanto Julien os provoca ou com eles se confronta' [Perrone-Moisés, s/r: 22]

Para entender a dinâmica dos personagens que se encontram em espaços sociais estruturados, movidos por interesses particulares, mas que tinham que agir em conformidade com as normas desse espaço, Stendhal adequa um estilo de escrever, caracterizado pela economia de descrições. Nada sabemos sobre a forma dos vestidos que a Sra. Renal e a Srta. Mathilde usavam, ou sobre os móveis das mansões do bairro nobre Saint German. Ficaria a critério do leitor imaginá-los. Sua preocupação principal era contar como estava a sociedade francesa; o processo de interiorização por parte dos indivíduos dessa situação e, como estes agiam diante de situações concretas, negociando posições dentro das estruturas.

Para implementar seu projeto [descrever a França de sua época ], Stendhal nos fez entrar em contato com a vida na província [principalmente o jogo de poder político], com o mundo religioso, com a vida da alta sociedade parisiense. Que pode ser considerado como três campos: o campo político, o religioso e o campo da aristocracia. Outro tema que aparece constantemente ao longo do livro: o amor.

Esse vasto olhar sobre a vida social francesa, uma ambição totalizadora do conhecimento do seu mundo, nos chega através das ações do herói Julien Sorel.

b] Julien Sorel e sua época.

'Uma efêmera nasce às nove horas da manhã nos longos dias de verão, para morrer às cinco horas da tarde; como haveria ela de compreender a palavra noite?'
Há algum tempo escutei essas frases ditas por um personagem do filme 'Camilla'. Curiosa por saber o contexto daquelas frases que ficaram na minha cabeça como eco, encontrei-as no 'O Vermelho e O Negro' de Stendhal. Contextualizando-as, elas assumiam para mim uma nova dimensão: estavam inseridas no drama do jovem Julien Sorel, condenado a ser guilhotinado por um quase-crime que cometera.

Através de sua história, entramos em contato com o mundo social francês, tal qual representada por Stendhal. A intenção de Stendhal, nessa obra, era construir um quadro que demonstrasse a sociedade francesa da Restauração, daí ele não priorizar um campo determinado. Este quadro é construído através das andanças e aventuras de Julien Sorel. Assim, não temos uma situação onde o ator, portador de um habitus e de um capital, entra em determinado campo, ali se fixa, disputando o objeto em torno do qual o campo se mantém, investindo energia e, pela combinação de suas ações e de situações concretas, garantindo a manutenção do campo [reprodução] ao mesmo tempo que sua posição no seu interior muda [ou no sentido de ocupar um lugar de dominante - ortodoxa - ou permanecer como dominado - heterodoxa].

Embora encontremos essa situação constantemente ao longo do livro, não é especificamente o caso de Julien. A vida [fatos concretos] de Julien é antes uma 'câmara giratória' que circula em vários campos : um olhar vasto que aproxima e distancia o foco. Sua consciência é uma 'metralhadora giratória'. Por onde passou, encontrou a marca registrada do seu século: hipocrisia, medo, onde a palavra só servia para esconder o pensamento. Século da intriga, da suspeita.

Entender a personalidade de Julien, materializada nas suas ações, descolado de um contexto é impossível. Suas ações e a interpretação que ele tem do mundo são fruto da 'interiorização do exterior e exteriorização do interior' [Bourdieu , 1983:47]. A narrativa do romance é construída num sistema de relações, em que o tempo e o espaço onde ela se desenvolve tem um papel fundamental para entender o porquê de Julien agir de determinada forma.

Julien fazia parte de uma sociedade dividida em classes sociais. Cada uma com concepções de mundo diferentes, disputadas violentamente. Em cerca de trinta e três anos a França passou pela Revolução Burguesa, Consulado, o Império Napoleônico e a Restauração. Quatro anos depois que entramos em contato com a história de Julien, 1826, então com dezenove anos, eclode a Revolução de Julho.

As camadas do solo que Julien pisava estavam num processo de ajustamento, de movimento constante, gerando um sensação de insegurança e medo permanente. Crenças democráticas radicais coexistindo com o pensamento liberal, nostalgia pelo Ancien Régime. A idéia permanente era de dualidade, transição. Tal situação interfere nas relações entre os indivíduos, modificando-as: 'as pessoas só podem conviver harmoniosamente como sociedade quando suas necessidades e s socialmente formadas, na condição de indivíduos, conseguem chegar a um alto nível de realização; e o alto nível de realização individual só pode ser atingido quando a estrutura social formada e mantida pelas ações dos próprios indivíduos é construída de maneira a não levar constantemente as tensões destrutivas aos grupos e aos indivíduos' [ Elias, 1994: 122]. Com Julien Sorel há um desajuste entre seu habitus social e as situações objetivamente confrontadas, assim como era elevado o grau de desvio do seu habitus social e o habitus individual. Daí aparecer a noção de desajuste. Porém, conforme veremos mais à frente, Julien sempre tentava agir de acordo as normas e regras dos campos sociais por onde passava, sempre à custa de um enorme esforço de interiorizar as estruturas.

Durkheim [1992] foi um dos sociólogos mais preocupados com o fenômeno do individualismo nas sociedades modernas , apontando a alta taxa de suicídio como uma das patologias causadas por esse processo, principalmente aqueles do tipo anômico. A morte de Julien pode assim ser interpretada: ausência de valores morais sólidos compartilhados, fosse um grupo ou classe, que conferisse sentido para suas ações, para sua vida. Embora eu não esteja inteiramente de acordo com a forma objetivista de abordar o fenômeno do suicídio, por Durkheim, ela nos ajuda a compreender o porquê, no caso de Julien, a morte não o amedrontava; ao contrário, a idéia do suicídio lhe ocorria como uma imagem cheia de encantos, um delicioso descanso: 'um copo de água gelada oferecida ao miserável que, no deserto, morre de sede e de calor.' [ :346]

A possibilidade de coesão social na França de Julien estava restrita aos campos que conseguiam, através dos seus membros, reforçar a crença do campo, reproduzindo-o. Porém, quando tentamos perceber o nível de integração ou de comunicação entre os diversos campos, o que vemos, via Julien, é um processo de desintegração, de esgarçamento do tecido social. É neste quadro que Julien se movimenta.

3. 'O Vermelho e o Negro'

Primeiro Ato: 'Um jovem preceptor '

Julien Sorel, filho caçula de uma família camponesa , odiava sua origem e o futuro que lhe aguardava: trabalhar como serrador de tábuas. Não tinha músculos, nem disposição para este tipo de trabalho. Seus dois irmãos e seu pai o consideravam um preguiçoso, odiavam, acima de tudo, a principal mania do jovem filho: a leitura.

Sua ambição era fazer carreira militar. Tinha a mente povoada pelas campanhas vitoriosas e os grandes feitos do seu maior ídolo: Napoleão Bonaparte. Esta época , porém , fazia parte da história da França. Qual a alternativa então? Qual o campo que possibilitaria a um jovem camponês fazer fortuna?

'Quando Bonaparte deu que falar de si, a França tinha medo de ser invadida; o mérito militar era necessário e estava na moda. Hoje, a gente vê padres de quarenta anos com l00.000 francos de vencimentos, três vezes mais do que percebiam os famosos generais de divisão Napoleão. E ainda têm quem se dobre ante eles... Preciso ser padre.'[ :33]

O hábito preto: o uniforme do seu século. A opção de Sorel nos remete à teoria da prática de Bourdieu; as ações sociais são materializadas pelos agentes sociais, mas as chances de efetivá-las estão estruturas no interior da sociedade. Entre a vocação e a sua realização há condições [ou a falta delas] que escapam ao controle do sujeito. O agir dos agentes sociais encontra-se ajustado às chances objetivas. Foi essa mediação que Sorel fez. A opção em fazer-se padre não era nenhum grande lance de originalidade ou maquiavelismo. No seminário de Besançon, onde Julien passou algum tempo, os camponeses hegemonizavam. Há um nível de previsibilidade nas opções práticas que os sujeitos fazem.

Logo o prefeito da provinciana Verrières, Sr. Rênal, tem notícias de um jovem estudioso das Escrituras Sagradas, portador de uma memória invejável, capaz de recitá-la toda de cor em latim. Muito mais para aumentar seu prestígio diante do Sr. Valenod, diretor do asilo de mendicidade de Verrières, o prefeito contrata Sorel como preceptor dos seus filhos.

Entre o Sr. Rênal e o Sr. Valenod, existia uma relação de cordialidade, mas eram inimigos, disputavam posições dentro do campo político. O prefeito conseguiu ocupar melhores posições. Seus trunfos: um esposa milionária, defensora extremada da Restauração. Como num jogo, a vitória é feita de lances, vitórias parciais: quem tem os melhores cavalos, quem sabe receber melhor, quem oferece os melhores vinhos, os cristais mais raros, as melhores relações com a Côrte parisiense. Quem tem condições de ter um preceptor para seus filhos. Para estes senhores, Julien representa não mais que um símbolo, uma cartada a favor do Sr. Rênal que contribuiria para sua imagem pública.

O Sr. Valenod fora durante muito tempo protegido do senhor Rênal, mas começa a sentir-se ameaçado por ele. Sente que ele passa a ocupar gradativamente posições de destaque na vida política e social de sua cidade. O Sr. de Valenod é jesuíta, ousado, habilidoso, ambicioso, não se sentia humilhado diante de nada, prestava-se a todo tipo de papel. No decorrer das disputas entre ambos, o Sr. de Valenod torna-se sucessivamente barão e membro da câmara dos deputados.

O jovem preceptor está fora deste campo. Não disputa o objeto em jogo: o poder político. Mas queria tirar proveito da posição que ocupava: primeiro era preciso saber aonde estava pisando, fazer um mapa mental das posições dos freqüentadores da casa do Sr. Rênal. Esse processo de investigação silenciosa permitiu-lhe chegar a algumas conclusões: jamais revelar sua paixão por Napoleão, nem sua admiração pelas idéias Iluministas, principalmente por Rousseau; estava cercado de inimigos, tinha horror e ódio à alta sociedade em que, a bem dizer, era recebido com reservas. Sabia que por mais que tentasse se distanciar de sua classe de origem, os outros sempre o veriam como um portador do habitus camponês, identificado com o mau gosto, a rudeza, 'um saco de batatas' [ Marx].

Não foi difícil para ele perceber que o Sr. Valenod cobiçava-lhe e fazia todo o possível para levá-lo para sua casa. O Sr. Rênal também sabia. O medo de perder o preceptor fez o Sr. Rênal aumentar-lhe o salário. E sempre que Julien queria um tempo para se isolar ou para visitar o amigo Fouqué, burguês que tinha no trabalho o único valor moral, era-lhe concedida licença. Todas as vezes que encontrava com este seu amigo, ele lhe oferecia sociedade no seu negócio de madeiras. Poderia rapidamente ficar rico. Julien de certa forma 'arquivou' a proposta : caso não conseguisse fazer fortuna dentro da Igreja, a mesma poderia ser uma alternativa.

Cada ação de Sorel, ao longo do livro , é antecedida por um processo de racionalização que busca, em primeiro lugar, fazer o reconhecimento do meio social no qual se encontra [as regras, normas de conduta, qual posição que cada indivíduo ocupa] para, a partir daí, representar seu papel. Contudo, fazer esse reconhecimento e se movimentar com facilidade num espaço social onde as pessoas agiam de acordo com um habitus diferente do seu, levava um certo tempo. Tinha pavor de passar por ridículo, de não se comportar de acordo. Mesmo tendo uma memória invejável, tinha o cuidado de anotar em pequenos pedaços de papel o nome dos freqüentadores da casa, sua posição social e outras observações que achasse conveniente para não se perder, afinal ' ele vivia entre camponeses; nunca tivera grandes modelos. Mais tarde, logo que lhe foi dado aproximar-se de gente distinta, tornou-se admirável nos gestos como nas palavras' [ :54/55]. Com a ajuda dessa técnica e de uma conduta pautada num profundo arrivismo, conseguiu atualizar seu habitus a situações concretas.

Depois de algum tempo como preceptor, Julien tem que abandonar a casa dos Rênal: tornara-se amante da Sra. Rênal e fora denunciado por uma carta anônima, depois reconhecida como tendo sido escrita pelo Sr. Valenod.

Inicialmente o sentimento que levou Julien a envolver-se com esta senhora não foi a paixão ou algo parecido. Colocara-se como um desafio tê-la, fazê-la apaixonar-se. Estabelecia s. A cada etapa vencida [um toque de mão, um olhar mais demorado, visitas noturnas a seu quarto], ele suspirava feliz: ' Sim, eu ganhei uma batalha... Isso é puro Napoleão'[ :75]. Mas , eis que o imprevisto nos planos do nosso estrategista do amor acontece: ele se apaixona por aquela senhora tão suave e boa 'mas que fora criada no campo inimigo'. [ : 102]

Porém, seu tempo de amante acabara. Depois da carta anônima, não resta outra saída: Julien vai para o seminário em Besançon. Ali conhecerá o campo religioso.

Segundo Ato: No Seminário

No Seminário Julien assumiu um postura arrogante. Enxergava aqueles seminaristas como seres grosseiros; camponeses que preferiam ganhar o pão recitando algumas frases decoradas do latim à cultivar a terra. Uma situação que, na verdade , não era tão diferente da sua. Mas seu gosto pela leitura e a capacidade de julgar por si mesmo o faziam diferente. Contrastando sua capacidade com a dos outros, deu-se conta de sua superioridade . Através dessa observação, que fizera nos primeiros dias, sonhou com sucessos imediatos e viu-se ocupando posições de destaque. Nosso jovem herói, tão dado a pensar a vida como uma guerra, errou. Esqueceu de fazer o reconhecimento do campo inimigo [conhecer as regras do jogo] e a partir daí definir suas táticas. Esqueceu de que, para saber agir como padre, para ser padre, deveria dominar e interiorizar o funcionamento do campo religioso. Havia um conjunto de pressupostos consolidados que davam sustentação a esse campo, independente da vontade de Julien.

O esforço que Julien fazia para ser o primeiro nos diversos cursos de dogma e de história eclesiástica era visto como um enorme pecado. O inimigo número um da igreja naquele momento eram os livros. O Iluminismo e a Revolução Burguesa deixaram uma lição: a única coisa importante é a submissão do coração. Vencer nos estudos, mesmo sacros, é suspeito. O pensamento, a busca do conhecimento, trás em si o poder de libertação, de subversão. Todo raciocínio ofende.

A atitude de Julien, olhando sempre direto nos olhos, com ares de quem está sempre pensando, manteve os companheiros à distância. Ninguém queria relacionar-se com o jovem 'Martinho Lutero', como ficou conhecido. Julien era como uma nota musical entoada fora do tom. Desafinava . Percebeu, depois de algum tempo, que a diferença não se tolerava e que nada conseguiria com aquele seu jeito de agir.

Para adaptar-se àquele novo espaço social, Julien teve que ajustar suas ações às normas de conduta daquele campo: a maneira de andar, de mover os braços, os olhos, o tom da voz, o conteúdo das conversas. Tudo deveria ser feito com resignação, numa economia constante de energia. Julien percebeu, então, que 'no seminário, é o modo de se comer um ovo que revela os progressos feitos na vida devota'[ :218].

Além desse esforço de comportar-se de forma mais condizente com os padrões de um jovem padrezinho, Julien teve o cuidado de observar as disputas de posição entre aqueles que representavam a ortodoxia e, a partir daí, definir qual o melhor partido a tomar. Entre o diretor do Seminário, o abade Pirard , jansenista, e seu inimigo, o senhor de Frilair, Vigário Geral de Besançon, jesuíta. Julien alia-se ao primeiro, tomando-o como confessor e amigo .
Pela postura sempre tão calculista e maquiavélica de Julien , esperávamos que se aliasse ao senhor de Frilair, representado internamente no Seminário pelo Padre Castanède. Talvez por uma leitura errada das posições naquele campo Julien tenha se aproximado do Abade Pirard. Isso num primeiro momento. Depois a atenção e carinho que o Abade tinha por ele o conquistaram definitivamente.

O abade Pirard foi diretor do seminário durante quinze anos, boa parte dos quais envolvido em brigas com o senhor de Frilair. As disputas, que aconteciam ao nível da ortodoxia, refletiam nos seguidores de uma [jansenismo] ou outra posição [jesuítas]. Julien pôde sentir isso na pele.

O abade Pirard nomeou Julien, seu protegido, o explicador do Novo e Antigo Testamentos. Na prática, isso lhe conferia uma posição mais elevada na hierarquia em relação aos outros seminaristas [representava que seu capital tinha aumentado]: podia comer sozinho, tinha a chave do jardim podendo passear quando quisesse. Pouco a pouco tornou-se de mau gosto chamá-lo de 'Martinho Lutero'.

Chegou a época dos exames. Os examinadores eram nomeados pelo Vigário Geral de Frilair. Um examinador pôs-se a falar de Horácio, Virgílio e outro autores profanos. Julien aprendera de cor um grande número de passagens daqueles autores. Arrastado pelo sucesso, esqueceu em que lugar se achava e na companhia de quem. Depois de vários minutos recitando e parafraseando com entusiasmo odes de Horário, percebeu que caíra numa cilada: o examinador fechou a cara e reprovou-lhe o tempo perdido com estudos e idéias inúteis. Foi com prazer que o Vigário Geral colocou o número 198 ao lado do nome de Julien: o protegido do abade Pirard não conseguira uma colocação melhor. Através de Julien, o Vigário atingira seu inimigo.

Mas , por que Julien, tão ambicioso, não se aliara ao Vigário? A forma como as ações de Julien são construídas nos indica a complexidade de sua personalidade. Julien não é vilão, nem mocinho. Nada se distancia mais dele do que o tipo ideal desses dois extremos, imortalizado pelos personagens das novelas medievais. O carinho e a preocupação que o velho abade Pirard tinha por ele, fez Julien considerá-lo como um pai.

Inicialmente construímos a imagem de um jovem que ocultava sob um rosto singelo, a resolução 'inquebrantável de expor-se a mil mortes, contanto que chegasse a fazer fortuna '[ :33] Porém, muitas vezes diante de situações onde esperamos uma determinada conduta , ele nos surpreende e se surpreende. É no processo de conhecimento do mundo que ele realiza o auto-conhecimento. Mas, quem pode dizer que se conhece ou tem a capacidade de prever todas suas ações em todos momentos da vida social?

Todos nós somos portadores de determinado sistema de disposições duráveis, que nos capacita a compartilhar determinadas realidades sociais. Se entre o habitus e as situações concretas há um nível de previsibilidade das ações [conforme visto anteriormente], também há o da imprevisibilidade. Isto aparece em Julien quando se envolve com alguém, sente carinho. Neste momentos seu racionalismo, que procura numa ardente meditação interior suas razões de agir, volatiza-se. Não consegue pensar antes de agir e nem de pensar como o outro está pensando para lhe surpreender com um xeque-mate. Isso é mais visível quando está apaixonado. Aí se estabelece um duelo interior infernal entre a razão e o coração.
***
O inevitável na história do abade Pirard acontece: é obrigado a pedir demissão do seu cargo, devido ao crescente número de intrigas e da certeza que seria demitido. O abade Pirard tinha como amigo e aliado em Paris o Marquês de La Mole. Preocupado com os rumos que a vida do jovem Sorel poderia tomar naquele seminário com a sua ausência , o Abade convence o Marquês a torná-lo como seu secretário particular.

Terceiro Ato: Nos salões de Saint -Germain

Julien não se continha de tamanha felicidade. Finalmente deixaria aquele lugar sombrio, sem vida. Depois daquela temporada interno no seminário, entendeu que a cor do hábito não poderia ser outra. Iria para Paris. Quem poderia imaginar, um jovem camponês nos salões da alta sociedade parisiense ? Nem ele próprio.

O provinciano Sorel tudo admirava naquela cidade cheia de brilho, de pessoas, cavalos, damas perfumadas, prédios. Seus olhos pareciam querer saltar do rosto para conseguir absorver tudo quanto lhe rodeava. Quando entrou no Palácio dos La Mole, para assumir suas tarefas, pensou: 'Então é assim que eles vivem'. A alta sociedade provinciana, com a qual tivera contato, era composta de pessoas que ocupavam essa posição pelo adquirido e não pelo herdado, embora de um adquirido que ainda procurava se disfarçar sob a aparência deste. Era precisamente o caso do Sr. Rênal que se envergonhava de ter sido industrial antes de 1815.

Na alta sociedade parisiense o nome e o nascimento eram o principal passaporte para torna-se um freqüentador dos salões e ser reconhecido como par. Eram barões, duques, condes, marqueses que sabiam localizar com precisão o lugar que ocupavam na árvore genealógica dos Retz, Tolly, Croisenois, Caylus. A tradição, o passado dava o sentido do presente. É sua posição presente e passada na estrutura social que esses indivíduos transportam com eles todo tempo e lugar, sob a forma de um habitus assentado num conjunto de símbolos. O traje, o cetro, o manto, a coroa real representavam o máximo de capital: eram símbolos do capital social.

A posição que cada indivíduo ocupava dentro desse campo dependia do seu capital, objetivado em títulos, cruzes e outros símbolos. Havia disputas para conseguir títulos, que os colocariam numa posição mais elevada na hierarquia aristocrática. O objeto em torno do qual estas pessoas giravam era um 'sistema simbólico' [Bourdieu], que funcionava como instrumentos de conhecimento e de comunicação, exercendo um poder estruturante na medida que são estruturados, funcionando assim , como instrumentos de integração social.

Era outro mundo que Julien entrava em contato. Um mundo onde 'a história dos antepassados eleva-os acima dos sentimentos vulgares, e eles não têm de pensar continuamente na própria subsistência! Que miséria! Sou indigno de raciocinar sobre esses grandes assuntos. Minha vida não passa duma seqüência de hipocrisias, porque eu não tenho 1000 francos de renda para o pão '[ :293]. Ali ninguém se preocupava em trabalhar, encarava este como o pior dos males.
Durante os dias, Julien ocupava-se com suas funções de secretário. À noite, jantava com os donos do Palácio e com seus convidados. A presença de um plebeu inicialmente incomodou bastante, a ponto da Sra. de La Mole propor ao marido mandá-lo desempenhar uma missão qualquer nos dias em que tivessem certos personagens à mesa.

O medo de passar ridículo e a intenção de melhor orientar-se, fez Julien proceder da mesma forma que na casa dos Rênal: escreveu os nomes e uma frase sobre o caráter das pessoas que entravam no salão. A precaução de Julien lhe ajudou muito pouco. Todos caçoam de sua falta de jeito em se portar. Comportava-se como um subalterno inoportuno a quem ninguém se dava o trabalho de esconder o que achasse a seu respeito.

Passado algum tempo pôde perceber com mais clareza o código de conduta dos salões. O sentimento de admiração inicial cedia lugar ao menosprezo pelo mundo da alta sociedade parisiense. Participar todas as noites daqueles encontros tornara-se para ele uma suplício. Nos salões podiam comentar tudo livremente, menos fazer piadas 'a respeito de Deus, nem dos padres, nem do rei, nem das pessoas de posição, nem dos artistas protegidos pela corte, nem de tudo o que está estabelecido; contanto que não falassem bem de Béranger, nem dos jornais da oposição, nem de Voltaire, nem de Rousseau, nem de todos os que se permitiam certa linguagem franca; contanto, sobretudo, que nunca falassem em política, podiam comentar tudo livremente. ' [ :246]

Não havia espaço para qualquer idéia viva. O código dos salões era implacável. Não se admitia qualquer nível de imprevisibilidade nos comportamentos ou opiniões, fosse dos jovens ou velhos aristocratas. As maneiras encantadoras, tão alegres na aparência, careciam de idéias, de originalidade. Julien só enxergava cópias. Viviam à sombra de uma revolução. Buscavam voltar-se para dentro. Nada poderia transpor aquela parede invisível entre o mundo lá fora, em ebulição, e o dos salões. Podia-se sentir, contudo, que pairava o medo no ar, medo de outra revolução e da volta da aristocracia à guilhotina.

Julien sentia-se asfixiado. A única coisa que diminuía seu tédio eram as longas conversas que tinha com a Srta. Mathilde de La Mole. Eles tinham alguns pontos em comum: prazer nas leituras sérias e proibidas [tipo Voltaire], faziam a mesma interpretação do século em que viviam. Porém, enquanto Julien tinha como modelo Napoleão e Danton, Mathilde ia buscar em épocas muito mais longínquas seus modelos: na Côrte de Catarina de Médicis, quando os homens lutavam por uma causa, eram capazes de expor-se ao perigo. Eram de homens como seu antepassado, La Mole, que deu a vida pelo amor de Margarida, que carecia sua classe. Mathilde orgulhava-se profundamente do seu nome.

O ódio que ambos nutriam pelo seu século rendeu longas conversas e uma paixão que mudou o futuro de Julien. A jovem aristocrata sentiu-se atraída por Sorel por tê-lo na conta de um homem inteligente, um novo Danton. Embora fosse aristocrata, odiando tudo que lembrasse 1792, admirava as ações dos indivíduos ousados.

A história de amor de Mathilde e Julien é marcada por avanços e recuos: Mathilde, depois que consegue ter Julien, arrepende-se, sente-se envergonhada. Como se permitira se apaixonar por um criado da casa, um camponês?

Desprezado por Mathilde, Julien volta-se para dentro, tal qual casulo. Nunca sua situação de classe lhe pesara tanto. O ódio que nutria pela aristocracia foi domesticado. Sentia vergonha de sua origem e de não poder ter sua amada.

O processo para reconquistá-la assemelha-se a uma enorme batalha. Julien joga, provoca a orgulhosa Mathilde, despreza-a. Recuperou a razão . Pensava'...não pense Srta. Mathilde que eu esqueço meu lugar. Farei com que compreenda e sinta que é pelo filho de um carpinteiro que a senhora atraiçoa um descendente do famoso Guy de Croisenois'[ : 321].

Julien venceu. Teve sua amada de volta aos seus braços. Pouco depois, ela engravida. O Sr. La Mole quase enlouquece: 'Este século está destinado a confundir tudo, e nós marchamos para o caos! ' [ : 427]. A filha de um aristocrata grávida de um plebeu. A bela Mathilde com casamento marcado com o nobre Croisenois. Paris toda zombaria da Casa dos La Mole! Nada que o pai argumentava, a fazia reconsiderar: ia casar-se com Julien e dá o nome Sorel ao seu filho. Agora era o amor paixão que falava mais alto e não o cerebral. O amor paixão que nasce como uma força interior, representando a vitória da intimidade, do 'eu'.

O Sr. de La Mole consegue uma patente de Tenente de Hussardos para Julien, forja uma condição de nascimento nobre. Passaria a chamar-se Julien Sorel de La Vernay. Tudo que Julien sempre sonhara estava realizando: tornara-se um militar, conseguira ter seu amor correspondido, seria pai. Parecia que sua guerra com a sociedade findara.

Mas, então por que Julien não agiu de forma mais fria e racional, quando leu a carta da Sra. de Rênal, que o descrevia como egoísta, um homem que só pensava em dinheiro ? Por que ele correu até Verrières e atentou contra a vida dela , quase matando-a? Essa atitude reforça a idéia, a complexidade das ações e reações de Julien, acima colocadas.

Julien é preso. Durante o tempo que durou o processo, Mathilde dedica-se totalmente ao seu amado. Mas este vê ressurgir o amor pela Sra. Rênal.

As longas noites e dias na prisão são preenchidos por pensamentos profundos, filosóficos. No seu julgamento estava cheio desses pensamentos e ousou quebrar a regra de ouro do seu século; usou as palavras para expressar qual sua posição diante da sociedade: ' Senhores, eu não tenho a honra de pertencer à vossa classe; vós vedes em mim um camponês que se revoltou contra a baixeza de sua condição. . . Sou culpado. . . mereço a morte, mas mesmo que eu fosse menos culpado, vejo homens que, sem contemplação para o que a minha juventude possa merecer de piedade, hão de querer punir em mim e desencorajar para sempre os jovens que, oriundos, de uma classe inferior e de qualquer forma oprimidos pela pobreza, têm a felicidade de conseguir uma boa educação e a audácia de imiscuir-se naquilo que o orgulho da gente rica chama 'sociedade'. '[: 487]

Falando assim, ele decretou sua própria sentença. O Sr. de Valenod, presidente dos jurados, a lera: guilhotina.

Pouco antes de subir ao cadafalso, pensava; ' Uma efêmera nasce às nove horas de um lindo dia verão para morrer às cinco horas da tarde; como haveria ela de compreender a palavra noite ?'

Quando a lâmina afiada separou o corpo da cabeça de Julien, Mathilde não ficou desesperada. Agora ela via que estava certa : Julien era audacioso. Sentia-se a própria Margarida de Navarra. Pegou a cabeça de Julien , colocou-a à sua frente e beijou-lhe a fronte. E ela mesma a enterrou, com muita pompa.

Fontes:
http://www.algosobre.com.br/
http://www.leonardodavinci.com.br/ (imagem)

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Tereza Novaes (O Preto no Branco da Criação Literária)

Aos 70 anos, depois de ter publicado obras-primas como "O Aleph" e "Ficções", Jorge Luis Borges (1899-1986) começou uma aula sobre a arte de escrever dizendo: "Dediquei a maior parte de minha vida à literatura e só posso lhes oferecer dúvidas".

Se, para um dos maiores criadores do século 20, a literatura continuou sendo um enigma, o mistério pode parecer insolúvel para quem pretende se tornar um escritor. Não existe uma chave certa, apenas lanternas que ajudam a orientar o autor nos primeiros passos do espinhoso caminho.

Duas são de fácil acesso: a leitura dos manuais e a participação nas oficinas literárias. Além delas, há grupos de discussão na internet, revistas especializadas em novos autores (afinal, não existem escritores sem leitores) e concursos para iniciantes -úteis para quem quer testar o "valor" de seu trabalho.

Mas a maioria dos escritores concorda que um ponto é essencial: para escrever bem, é preciso ler muito. O escritor mineiro Autran Dourado, 77, autor de mais de 19 livros e ganhador do Prêmio Camões em 2000, também recomenda: "Leia os que sabem escrever bem. Não leia coisas ruins". Dourado diz que costuma reler Machado de Assis todos os anos, para "limpar a língua". O conselho está no livro mais recente do escritor, "Breve Manual de Estilo e Romance" (Editora UFMG, 75 págs.), que trata justamente do fazer literário, misturando suas memórias e sua experiência com dicas para os aprendizes da escrita.

"Se você quer ser mesmo um escritor, um escritor de verdade, um escritor criativo, lembre-se sempre de que escrever é um ato mimético de apropriação e astúcia. Daí a necessidade de ler constantemente os bons autores, conscientemente imitá-los (antes de você ser realmente um escritor), parodiá-los nos seus exercícios", recomenda Dourado. Outro mandamento é buscar o exemplo dos autores consagrados, mas ele faz uma ressalva: "Evite os gênios, porque você, por ignorância, poderá escolher um gênio louco e irá sofrer muito".


Ideais para quem só quer cumprir a tríade "plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro" -e não necessariamente "viver da poesia"-, dois manuais dão receitas rápidas para escrever um romance: "O Escritor de Fim de Semana - Como Escrever um Romance com Criatividade em 52 Fins de Semana" (Ática, 292 págs.) do norte-americano Robert J. Ray, e "Você Já Pensou em Escrever um Livro? Informações Fundamentais para Tornar-se um Escritor de Sucesso" (Samm Editora, 126 págs.) de Sonia Belloto.

"O Escritor de Fim de Semana" apresenta um passo-a-passo para a produção de um livro no prazo de um ano. O autor, que recomenda até os tipos de caneta e caderno que o autor recém-chegado ao ofício deveria usar, exemplifica seu método usando trechos de um best-seller, "O Turista Acidental", de Anne Tyler. Ray traça um plano de ação bastante pragmático para a construção de um romance, com tópicos que explicam o desenvolvimento dos personagens e a criação da cena de abertura, por exemplo.

Lançado há poucos meses, "Você Já Pensou em Escrever um Livro?" é a segunda obra de Sonia Belloto, 47, que há três anos trocou a musicoterapia pelos livros, "sua paixão".

Escrito em duas semanas, o guia apresenta as técnicas da oficina organizada pela autora para a formação de escritores, inspirada em cursos norte-americanos de expressão. O método reproduz a jornada do herói publicada no livro "O Herói de Mil Faces", de Joseph Campbell. Sonia explica ainda o funcionamento das editoras, analisa o mercado editorial e dá dicas de marketing. "A capa é o que faz vender dentro da livraria; o miolo, fora", ensina.

"Não existem histórias desinteressantes, existem formas desinteressantes de contá-las", crê Sonia. Para ela, qualquer pessoa pode escrever.

Já a escritora Ana Miranda, 52, acredita que o processo é lento e individual: "Não há uma formação clássica. Na literatura, você tem de se formar sozinho. A matéria não pode ser transmitida de modo científico. É um processo pessoal", opina a autora de "Boca do Inferno" e "Desmundo". Durante 2003, Ana, que já publicou nove livros, percorreu as unidades do IMS (Instituto Moreira Salles), lecionando concorridas oficinas literárias com duração de quatro dias. "Quando começo o curso, digo que não escrevemos o que queremos, escrevemos o que somos", conta.

"Se no início eu tivesse tido essa oportunidade [fazer uma oficina], teria sofrido menos. Tive de bater muito a cabeça, aprendendo e errando sozinha", diz a escritora, que também destaca a importância da leitura na aprendizagem: "A única maneira é ler os outros". E acrescenta: "São três palavras mágicas: trabalho, trabalho e trabalho".

"A oficina me ajudou a descobrir que é preciso dedicação", diz o arquiteto Paulo Pereira, 35, que participou da última oficina com Ana Miranda. Entusiasta dos romances - costuma ler dois por mês -, ele considera as oficinas uma forma de perceber melhor o desafio. "O problema é ter tempo. Para escrever, a pessoa tem de deixar muita coisa de lado, se isolar. É um trabalho de introspecção", avalia.

Como outros institutos ou organizações, o IMS mantém um programa regular de oficinas de prosa e poesia com vários escritores. Mas quem não pode participar de uma oficina ao vivo tem como fazê-lo pela internet. O site do Sesc-SP, por exemplo, oferece um curso semestral, coordenado pelo escritor e jornalista João Silvério Trevisan.

"O clima é muito íntimo. É duro para as pessoas mexer nos textos, há questões muito pessoais. Já tivemos casos de gente com problemas emocionais durante a oficina", comenta Trevisan. Realizada há cinco anos, a oficina promove 25 encontros de três horas numa sala de bate-papo. A Balaio de Textos é outra oficina coordenada por Trevisan, mas menor e na qual são discutidos textos enviados pelos internautas.

Além de ponto de encontro, a internet é também um meio de encontrar concursos para escritores iniciantes e oportunidades de publicação, o balão-de-ensaio que precede o livro. "É menos glamourizado publicar na internet", diz a "recém-escritora" Ana Peluso, 37. Ela acaba de publicar poemas na antologia "Dezamores", que reúne autores que passaram por oficinas de Trevisan.

"Publicar em fanzines, revistas e blogs é um modo de começar a publicar e de submeter seu trabalho à apreciação. Essa prática é essencial para avaliar o poder de fogo do texto, antes de engessá-lo num suporte com vida mais longa, como o livro", diz Joca Reiners Terron, 35, que está lançando seu quinto livro, "Curva de Rio Sujo". Seu livro anterior, "Hotel Hell", é uma compilação do blog homônimo.

Fonte:
http://www.nlnp.net/
http://www.olimbo.globolog.com.br (imagem)

Sonia Belloto (Você Já Pensou em Escrever um Livro?)

Numa linguagem dinâmica e cativante, Você já pensou em escrever um livro? É um instrumento de trabalho para quem lida com a escrita no dia a dia e para quem deseja tornar-se um escritor de sucesso. Você aprenderá métodos valiosos para romper seus bloqueios e produzir textos originais e eficazes. Vai saber como arranjar tempo para escrever, qual é o seu estilo pessoal, como dar vida aos tetos e como desenvolver seus potencial criativo. Além disso, terá orientação especial sobre a criação de personagens, diálogos e cenas que cativam os leitores. Percorrerá todas as etapas que precisam ser cumpridas, desde a idéia inicial para um livro até os detalhes finais de publicação e comercialização. Este livro é indispensável como roteiro para conhecer todos os segredos desta instigante e admirável profissão de escritor. Um verdadeiro marco editorial.

A autora busca desmistificar certos tabus e defende que todo mundo é capaz de escrever. Começa argumentando que o investimento na atividade de escritor é muito pequeno em relação a outros negócios, os gastos são reduzidos e o material para produção é ilimitado. Defende que escrever deve ser uma atividade prazerosa.

Para escrever um texto bom não há regras, mas é necessário conhecer o leitor, dominar o assunto e dominar algumas técnicas de escritas (que não são necessariamente de ortografia ou gramática, mas que algo torne possível uma narrativa fluida). É necessário ter cuidado, principalmente os iniciantes, para não escrever um texto que tenha significado somente para o autor e que não crie identificação no público. Ou um texto que tenha um linguajar refinado e muita informação técnica somente para exibicionismo do autor. Por mais bem intencionado que seja, o texto requer planejamento.

O autor que busca o sucesso deve assumir diversos papéis. Deve pesquisar, planejar, escrever, revisar e divulgar sua obra.

As narrativas devem ser ilustrativas, mas não é recomendado fornecer todas informações, de forma que acione a imaginação do leitor e ele visualise a cena a partir de seu próprio repertório.

A autora frisa que a inspiração para escrever boas histórias pode vir principalmente de obras já consagradas, e que isso não é considerado plágio, mas referência.

Os diálogos devem ser trabalhados de acordo com o contexto em que estão inseridos, adequados aos personagens e sempre com o objetivo de dar ritmo ao texto e torná-lo interessante.
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veja excerto do livro abaixo.

Sonia Belloto (É Bom Ser Escritor)

O escritor como empresário

Imagine que você resolveu ter seu próprio negócio. Você está pensando em abrir um restaurante. Sabe o que vai acontecer se você o fizer? Para começar, vai assumir uma porção de responsabilidades. Terá de fazer um investimento considerável e descobrirá que o retorno financeiro vai demorar alguns anos. Vai ter de respeitar o horário comercial e contratar funcionários. Ficará às voltas com contador, fornecedores e aluguel. Terá de pensar na compra de mercadorias e, muitas vezes, ir de lá para cá até encontrar os produtos de que precisa. Os funcionários podem ficar doentes ou faltar por qualquer motivo, e você vai ter de se preocupar com isso. Sim, porque você vai querer que seu negócio dê certo. E você já ouviu dizer que o boi só engorda diante dos olhos do dono.

Mas, caso você resolva ser escritor, não precisará passar por esses aborrecimentos. Quer saber por quê? Então responda a esta pergunta: Em que lugar você pode escrever?

Em qualquer lugar. Portanto, não precisará se preocupar em comprar ou alugar um ponto comercial. Também não precisará se deslocar até o local de trabalho, já que sempre estará nele. Imagine um daqueles dias de chuva em que o trânsito está insuportavelmente lento. Como escritor, você poderá olhar pela janela, saboreando uma xícara de café bem quentinho, o aparelho de som tocando sua música preferida, a cabeça cheia de idéias, e você dirá:

— Que dia maravilhoso! Perfeito para escrever mais um capítulo.

Parece boa essa sensação?

E o que dizer do horário? Não terá hora certa nem para entrar nem para sair, tampouco para interromper o trabalho quando estiver na melhor parte. Sem chefe e sem grandes investimentos. A matéria-prima dos escritores são as idéias, e os produtos são os textos. Assim, você nunca terá problemas com fornecedores.

Seus funcionários não exigirão salário, férias, nem décimo terceiro. Não perderão um dia de trabalho e nunca ficarão doentes. Na verdade, eles responderão por um outro nome: personagens. Você terá um poder divino sobre eles. Aliás, se desejar, poderá fazê-los adoecer, morrer e até ressuscitá-los.

O escritor Arthur Conan Doyle, por exemplo, criou Sherlock Holmes, um personagem que se tornou famoso. Certa vez, cansado de escrever histórias sobre Sherlock Holmes, o autor resolveu dar um fim ao personagem e escreveu uma cena de luta na qual ele morria ao despencar de um penhasco. Já imaginou o poder de matar Sherlock Holmes e não ser preso por isso?

Mas aconteceu algo inesperado. Os leitores se indignaram com a morte do detetive e escreveram inúmeras cartas de protesto. Pressionado, Doyle não pensou duas vezes e ressuscitou o personagem no livro seguinte.

Os escritores podem tudo. Podem fazer chover, realizar milagres, promover a justiça, dar sentido à vida, ensinar, fazer rir e chorar, despertar as mais diferentes emoções, viajar sem sair do lugar. Sem dúvida, são possuidores de poderes divinos.

Como patrões de seus personagens, os escritores também são dispensados de respeitar as leis trabalhistas. Sabemos que não é permitido o trabalho infantil, no entanto, a escritora J. K. Rowling criou um garoto de apenas onze anos, batizou-o de Harry Potter e o colocou para trabalhar. Ao contrário do que aconteceria em uma empresa convencional, ninguém reclamou. Aliás, o que muita gente quer é ver o menino em ação.

Outra importante vantagem de ser escritor é que você não precisa abandonar seu atual modo de vida. Escrever é uma atividade que pode ser desenvolvida em paralelo a qualquer outra.

Muitos escritores têm outras atividades. Machado de Assis e Carlos Drummond eram funcionários públicos. Michael Crichton, Moacyr Scliar e Drauzio Varella são médicos. John Grisham é advogado. Não importa o que você faz, sempre é possível conseguir algum tempo para escrever.

Os escritores também não enfrentam barreiras de idade. Cora Coralina teve seu primeiro livro publicado aos 76 anos. E quando tinham apenas 18 anos, Françoise Sagan escreveu Bom dia, tristeza, e Mary Shelley, Frankenstein.

Viver muitas vidas

Os escritores vivem várias vezes. Uma vez na vida comum e outras nas histórias que criam. Escrever é um estado alterado de consciência. É sonhar acordado.

Quando escrevemos, podemos criar mundos com realidades distintas. Vivenciamos experiências que jamais teríamos em nossas vidas comuns. Isso faz com que os escritores percebam o mundo de uma forma diferente. E todo o árduo trabalho diante do papel ou do computador é largamente recompensado.

Escrever é uma atividade sedutora. Quando você descobrir isso, não terá mais escolha, desejará escrever. Verá seu primeiro livro desabrochar diante dos olhos e ficará surpreso ao perceber que é capaz de fazer. Ao ver seu livro publicado, você vai explodir de felicidade!

E, por favor, não se esqueça de me convidar para a sessão de autógrafos. Faço questão absoluta de ser a primeira da fila.

Outras vantagens de ser escritor

Escrever é uma atividade absolutamente democrática. Não há restrição quanto ao sexo, raça, idade, posição social, forma física, aparência etc.

Como vimos anteriormente, não há idade para começar a escrever. Nunca é cedo ou tarde demais. Eu mesma, apesar de ter começado a fazer as minhas tentativas aos seis anos de idade, só fui escrever meu primeiro livro quando tinha quarenta e cinco anos.

Ser escritor não exige nenhum diploma ou registro profissional. No entanto, você precisa gostar de ler e de contar histórias. Sim, porque, no caso do romance, o aspecto fundamental é contar histórias.

Também não são necessários equipamentos especiais para o trabalho. Basta que você tenha um bloco de notas e uma caneta ou um computador.

Você não precisa estar em um lugar específico, podendo escrever aonde desejar. Seja num parque, em uma cafeteria, em sua própria casa, ou mesmo se estiver viajando. Portanto, em qualquer lugar poderá escrever.

Escrever é uma atividade que pode ser desenvolvida em paralelo a qualquer outra. Logo, há flexibilidade no horário do trabalho. E você pode morar aonde quiser, porque hoje em dia é possível enviar o seu texto ao editor, por meio da internet.

Fonte:
BELLOTO, Sonia. Você já pensou em escrever um livro? São Paulo: Ediouro, 2008.

Entrevista com Sônia Belloto (1957)

Sónia Belloto dedicou grande parte da sua vida profissional à Musicoterapia, mas, há cerca de 7 anos, descobriu uma nova paixão: os livros. Em 2001, escreve “Facilitando a Felicidade”, e sente que o domínio da escrita e da indústria de edição poderia ser ensinado. Publica, então, “Você já pensou em escrever um livro?”, em 2003, com essas reflexões e com um método que vem provando sucesso ao longo destes anos. Hoje lidera duas editoras de sucesso, a SAMM e a Alley, além de ministrar o seu método na sua escola de escrita criativa, a Fábrica de Textos.

Entrevista com Sônia Belloto

- Até se formar em psicologia, em que outras áreas você atuou?
SB: Na área de música, desde os quatro anos de idade, quando iniciei em dança até me tornar bailarina clássica. Também, aos oito anos de idade, fui aluna do Conservatório Vila-Lobos. Daí para frente desenvolvi meus estudos em música.

- Por que decidiu estudar psicologia? O que te atraía na profissão e quais especializações você realizou depois?
SB: Descobri que a música tinha influência no humor das pessoas e quis saber mais sobre este processo. Nesta mesma época já estudava também medicina chinesa, e o que mais me atraía era, com o conhecimento adquirido, poder libertar as pessoas de situações constrangedoras em relação à falta de questionamento sobre elas mesmas, porque nunca acreditei em doença e em perdedores, sempre acreditei na capacidade e no potencial do ser humano. Nós somos vítimas de vítimas e há um momento em que as pessoas precisam cortar estes vínculos ameaçadores e, às vezes, aterrorizantes. Por este motivo me especializei em distúrbios de ansiedade.

- Em que momento decidiu largar a psicologia para tornar-se escritora e dona de uma editora?
SB: Eu sempre fui “obsessiva” por livros, desde criança, e em 2001, resolvi escrever meu primeiro livro. Acontece que eu escrevia algumas matérias para jornais sobre meu trabalho na época, e várias pessoas comentavam que eu tinha uma maneira muito interessante de escrever, que as atraía a ponto de não conseguirem parar de ler. Desta maneira, um pouco cansada de responder sobre como eu liberava as pessoas tão rapidamente do trabalho terapêutico, resolvi, então, escrever um livro sobre valores e crenças que chamei de “Facilitando a felicidade”. O livro vendeu bem, até que conheci o Roberto Lopes, médico, e que também tinha o mesmo amor que eu pelos livros. Por coincidência ele também escrevia matérias para uma revista e as pessoas gostavam muito de ler. O Roberto me disse que pretendia escrever um livro, e foi o primeiro que publiquei como editora, “O livro da bruxa”, depois do meu. Bem, o amor pelas letrinhas é tanto que depois de publicar estes dois livros eu não tinha outra opção a não ser me envolver completamente com o mundo dos livros.

- Que conhecimentos da psicologia você aplica atualmente como escritora e editora?
SB: Eu penso que inteligência é o que você faz com o seu conhecimento. E uma vez que eu tenho o conhecimento da psicologia, é impossível não aplicar na minha vida. Mas isso não quer dizer que eu fique todo o tempo analisando as pessoas. Pelo contrário, eu uso este conhecimento para entusiasmar as pessoas. E na verdade é isso que eu faço todo o tempo, onde estiver e com quem estiver. E entusiasmo tem a ver com a alegria da alma e a satisfação criadora.

- A Fábrica de Textos descobre talentos a cada curso. Você acredita que o mercado literário tem capacidade para absorver todos eles?
SB: Claro que sim! Há uma demanda muito grande de leitores a cada dia, como há em qualquer outro segmento. Na minha opinião, não existe concorrência em nenhum segmento. O mundo e as pessoas, a cada dia, descobrem novas possibilidades de crescimento. Eu acredito muito no ser humano, em potencial no povo brasileiro. E este está querendo adquirir mais conhecimento.

– Até hoje quantos alunos se formaram? Quantos se tornaram escritores profissionais?
SB: A Fábrica de Textos já formou mais de 2.000 novos escritores. Quanto à quantidade dos que se tornaram escritores profissionais, ainda é pequena, porque o mercado editorial brasileiro ainda é resistente aos novos escritores, e a nossa escola tem somente três anos. Levando-se em conta que estamos mudando os conceitos deste mercado, e como tudo é um processo, só agora nosso curso está com uma qualidade insuperável. Mas nosso resultado é bastante estimulante e gratificante. Com toda certeza, com as novas propostas de divulgação do nosso trabalho e a aceitação e o apoio dos grandes editores, em breve teremos resultados surpreendentes, como o Kissy Ysati, nosso aluno, que foi publicado pela Novo Século e está na lista dos trinta mais vendidos da editora. Atualmente temos mais cinco alunos publicados pela Yendis, um aluno que está sendo negociado para uma editora americana e mais alguns que estão sendo analisados por editoras comerciais no Brasil e na Espanha.

- Qual a importância do livro na vida das pessoas?
SB: Para mim, é tudo! O livro é o companheiro de todas as horas, que ensina, entretém, emociona, faz pensar. Não consigo imaginar a vida sem livros. O mais fantástico é que por causa de um livro, “Poema sujo”, o nosso poeta tão querido, Ferreira Gullar, voltou ao Brasil, em 1977. Não é maravilhoso saber que o Vinícius de Moraes, através do livro escrito pelo Gullar, um poema de cem páginas, conseguiu trazê-lo de volta? Eu poderia escrever um livro sobre os livros, porque não sou capaz de ler um livro sem humanizá-lo.

- Você cita duas frases bastante significativas: “Os livros não mudam o mundo, os livros mudam as pessoas, as pessoas é que mudam o mundo”. E também cita a frase do Ziraldo: “É mais importante ler do que estudar”. O que essas frases representam para você? Em que grau elas te influenciam?
SB: Estas frases me emocionam, porque o livro é um caminho de descoberta e crescimento e está aberto para quem quiser. Às vezes, estudar, quando é imposto, pode ser muito maçante. Se você deixar os adolescentes escolherem seus livros é bem possível que possam nos surpreender, porque, embora não pareça, eles são muito mais seletivos do que imaginamos quando se sentem responsáveis por eles mesmos. E são as pessoas que se movimentam no mundo, não? Então... Mário Quintana, como sempre, tinha razão.

- No mundo literário, quem são suas fontes de inspiração?
SB: Há tantos!... Como Júlio Lobos, Jorge Luis Borges, Joseph Campbell, Arthur Conan Doyle, Monteiro Lobato, Thomas Mallory, Veríssimo (o pai e o filho), Voltaire, Rosa Montero, Clarissa Pinkola Estés, Cecília Meirelles, Lewis Carroll, Stephen Law, Sue Monk Kidd, Antoine Galland, Caroline Myss, Fernando Pessoa, e tantos outros.

Como você colheu material para a realização do curso de “Escrita Criativa da Fábrica de Textos?”.
SB: Eu não posso deixar de lembrar que no início o Roberto Lopes era meu sócio, e nós dois idealizamos o curso de escrita da Fábrica de textos. Conhecemos a “Gotham Writers Workshop”, em Nova York e nos apaixonamos pelo curso de escrita deles. Então encomendamos todos os livros possíveis sobre escrita que existiam nos Estados Unidos, traduzimos e adaptamos para a nossa cultura. O nosso curso, como todo processo de evolução e amadurecimento, foi sendo modificado à medida que, na prática, encontrávamos alguns obstáculos. Depois, o Roberto, como médico e escritor, não conseguia conciliar seu tempo com o nosso trabalho, e optou pela medicina. Eu já precisei fazer algumas modificações. Hoje o curso está totalmente integrado com a necessidade do mercado editorial brasileiro, mas mesmo assim, com a quantidade de livros sobre escrever livros e cursos de escrita criativa que existe na Europa e Estados Unidos, estou sempre buscando novidades para criar outros cursos de escrita que darão seqüência ao curso inicial. Em breve, ainda este ano, teremos novos cursos de aperfeiçoamento para quem deseja escrever e publicar livros.

– Explique sobre a filial da Belloto Editora na Espanha.
SB: Meu livro, “Você já pensou em escrever um livro?”, foi publicado também em Portugal e África, em outubro de 2005, pela “Texto editores”. Vendeu muito bem e a editora publicou o livro na Espanha, em abril de 2006, e eu fui para Madrid, para o lançamento do livro lá. Para minha surpresa, logo depois da publicação do livro na Espanha eu comecei a receber e-mails de leitores espanhóis, elogiando o livro e pedindo o curso de escrita criativa da Fábrica de textos. Em setembro de 2006, decidi ficar três meses na Espanha, para conhecer de perto meus leitores e o mercado de livros na Europa. Fui a Frankfurt, na Alemanha, para a Feira de Livros, e a Paris, para conversar com editores, escritores e profissionais do mercado. Percebi que na Europa o nosso curso possui um diferencial, que é o aluno concluir seu livro no final do curso. Editores, escritores e agentes literários da Europa, como a Mônica Antunes, que vive na Espanha e é a agente literária do Paulo Coelho, se mostraram surpresos com o desenvolvimento da Fábrica de Textos. Bem, com todo o apoio que recebi, especialmente na Espanha, inclusive do Consulado Brasileiro, não precisei pensar duas vezes, não é? Estou abrindo a Belloto Editora, a Alley Editora e a Fábrica de Textos em Barcelona (que é maravilhosa!), na Espanha, em parceria com o Toni Manrique, que é um administrador e louco por livros. E o principal é que através da Belloto Editora da Espanha publicaremos somente livros de autores brasileiros. E, porque a Espanha também têm autores fascinantes, publicaremos seus livros no Brasil. Tenho certeza que será um intercâmbio cultural magnífico.

– Você acredita que os escritores brasileiros têm um mercado a ser explorado fora do País?
SB: E por que não? Se você olhar nas estantes das livrarias brasileiras vai encontrar uma infinidade de livros de autores internacionais. Você vê alguma diferença em seres humanos que escrevem? Claro que não! Se até agora isto não aconteceu foi pura falta de divulgação. E é isto que eu vou fazer na Europa: publicar e divulgar os nossos talentosos, novos escritores brasileiros. E se nós nos unirmos neste projeto vamos fazer a diferença, porque são as pessoas, unidas, que fazem a diferença. Isso o nosso Brasil é capaz de conquistar.

- Que objetivo você pretende atingir através do seu trabalho?
SB: Fazer com que, através dos escritores brasileiros, o Brasil possa fazer a diferença e vencer. Eu acredito em Deus, incondicionalmente, e estou certa que um trabalho dignificante como este só pode ter o aval Dele, não acha? E se Ele é um vencedor, vencer é a única solução.

Fontes:
http://www.fabricadetextos.com.br/br/noticias/002-noticia.htm
http://www.escritacriativa.com/modules/news2/print.php?storyid=16

Lima Barreto (Foi Buscar Lã...)

A sua aparição nos lugares do Rio onde se faz reputação, boa ou má, foi súbita.

Veio do Norte, logo com a carta de bacharel, com solene pasta de couro da Rússia, fecho e monograma de prata, chapéu-de-sol e bengala de castão de ouro, enfim, com todos os apetrechos de um grande advogado e de um sábio jurisconsulto. Não se podia dizer que fosse mulato; mas também não se podia dizer que fosse branco. Era indeciso. O que havia nele de notável era o seu olhar vulpino, que pedia escuridão para brilhar com força; mas que, à luz, era esquivo e de mirada erradia.

Aparecia sempre em roda de advogados, mais ou menos célebres, cheio de morgue tomando refrescos, chopes, mas pouco se demorando nos botequins e confeitarias. Parecia escolher com grande escrúpulo as suas relações. Nunca se o viu com qualquer tipo aboemiado ou mal vestido. Todos os seus companheiros eram sempre gente limpa e de vestuário tratado. Além do convívio das notabilidades do bureau carioca, o doutor Felismino Praxedes Itapiru da Silva apreciava também a companhia de repórteres e redatores de jornais, mas desses sérios, que não se metem em farras, nem em pândegas baratas.

Aos poucos, começou a surgir seu nome, subscrevendo artigos nos jornais diários; até, no Jornal do Comércio, foi publicado um, com quatro colunas, tratando das "Indenizações por prejuízos resultantes de acidentes na navegação aérea" As citações de textos de leis, de praxistas, de. comentadores de toda a espécie, eram múltiplas, ocupavam, em suma, dois terços do artigo; mas o artigo era assinado por ele: doutor Felismino Praxedes Itapiru da Silva.

Quando passava solene, dançando a cabeça como cavalo de coupé de casamento rico, sobraçando a rica pasta rabulesca, atirando a bengala para adiante muito para adiante, sem olhar para os lados, havia quem o invejasse, na Rua do Ouvidor ou na avenida, e dissesse: — Este Praxedes é um " águia" ! Chegou noutro dia do Norte e já está ganhando rios de dinheiro na advocacia! Esses nortistas...

Não havia nenhuma verdade nisso. Apesar de ter carta de bacharel pela Bahia ou por Pernambuco; apesar do ouro da bengala e da prata da pasta; apesar de ter escritório na Rua do Rosário, a sua advocacia ainda era muito "mambembe". Pouco fazia e todo aquele espetáculo de fraques, hotéis caros, táxis, cock-tails, etc., era custeado por algum dinheiro que trouxera do Norte e pelo que obtivera aqui, por certos meios de que ele tinha o segredo. Semeava, para colher mais tarde.

Chegara com o firme propósito de conquistar o Rio de Janeiro, fosse como fosse. Praxedes era teimoso e, até, tinha a cabeça quadrada e a testa curta dos teimosos; mas não havia na sua fisionomia mobilidade, variedade de expressões, uma certa irradiação, enfim, tudo o que denuncia inteligência.

Muito pouco se sabia dos seus antecedentes. Vagamente se dizia que Praxedes fora sargento de um regimento policial de um Estado do Norte; e cursara como sargento a faculdade de Direito respectiva, formando-se afinal. Acabado o curso, deu um desfalque na caixa do batalhão com a cumplicidade de alguns oficiais, entre os quais, alguns eram esteios do situacionismo local. Por único castigo, tivera baixa do serviço, enquanto os oficiais lá continuaram. Escusado é dizer que os " dinheirosa" com que se lançava no Rio, vinham em grande parte das " economias lícitas do batalhão tal da força policial do Estado".

Eloqüente a seu modo, com voz cantante, embora um tanto nasalada, senhor de imagens suas e, sobretudo, de alheias, tendo armazenado uma porção de pensamentos e opiniões de sábios e filósofos de todas as classes, Praxedes conseguia mascarar a miséria de sua inteligência e a sua falta de verdadeira cultura, conversando como se discursasse, encadeando aforismas e foguetões de retórica.

Só o fazia, porém, entre os colegas e repórteres bem comportados. Nada de boêmios, poetas e noctívagos, na sua roda! Advogava unicamente no cível e no comercial. Isto de "crime", dizia ele com asco, "só para rábulas".

Pronunciava — "rábulas" — quase cuspindo, porque devem ter reparado que os mais vaidosos com os títulos escolares são os burros e os de baixa extração que os possuem.

Para estes, ter um pergaminho, como eles pretensiosamente chamam o diploma, é ficar acima e diferente dos que o não têm, ganhar uma natureza especial e superior aos demais, transformar-se até de alma.

Quando fui empregado da Secretaria da Guerra, havia numa repartição militar, que me ficava perto, um sargento amanuense com um defeito numa vista, que não cessava de aborrecer-me com as suas sabenças e literatices. Formou-se numa faculdade de Direito por aí e, sem que nem porque, deixou de me cumprimentar.

São sempre assim...

Praxedes Itapiru da Silva, ex-praça de pré de uma polícia provinciana, tinha em grande conta, como coisa inacessível, aquele banalíssimo trambolho de uma vulgar carta de bacharel; e, por isso, dava-se à importância de sumidade em qualquer departamento do pensamento humano e desprezava soberbamente os rábulas e, em geral, os não formados.

Mas, contava eu, o impávido bacharel nortista tinha um grande desdém pela advocacia criminal; à vista disso, certo dia, todos os seus íntimos se surpreenderam quando ele lhes comunicou que ia defender um dado criminoso, no júri.

Era um réu de crime hediondo, cujo crime deve estar ainda na 1embrança de todos. Lá, pelas bandas de Inhaúma, num lugar chamado Timbó, vivia num "sítio" isolado, quase só, um velho professor jubilado da Escola Militar, muito conhecido pelo seu gênio estranhamente concentrado e sombrio. Não se lhe conheciam parentes; e isto, há mais de quarenta anos. Jubilara-se e metera-se naquele ermo recanto do nosso município, deixando mesmo de freqüentar o seu divertimento predileto, por deficiência de condução. Consistia este no café-concerto, onde houvesse anafadas mulheres estrangeiras e saracoteios de raparigas no palco. Era um esquisitão, o doutor Campos Bandeira, como se chamava ele. Vestia-se como ninguém se vestiu e se vestirá: calças brancas, em geral; colete e sobrecasaca curta, ambos de alpaca; chapéu mole, partido ao centro; botins inteiriços de pelica; e sempre com chapéu-de-chuva de cabo de volta. Era amulatado, com traços indiáticos e tinha um lábio inferior muito fora do plano do superior. Pintava e, por sinal, muito mal, os cabelos e a barba; e um pequeno pince-nez, sem aros, de vidros azulados, acabava-lhe a fisionomia original.

Todos o sabiam homem de preparo e de espírito; tudo estudava e tudo conhecia. Dele contavam-se muitas anedotas saborosas. Sem amigos, sem parentes, sem família, sem amantes, era, como examinador, de uma severidade inexorável. Não cedia a empenhos de espécie alguma, viessem donde viessem. Era o terror dos estudantes. Não havia quem pudesse explicar o estranho modo de vida que levava, não havia quem atinasse com a causa oculta que o determinava. Que desgosto, que mágoa o fizera assim ? Ninguém sabia.

Econômico, lecionando, e muito particularmente, devia possuir um pecúlio razoável. Os rapazes calculavam em cento e tantos contos.

Se era tido como estranho. ratão original, mais estranho, mais ratão, mais original pareceu ele a todos, quando se foi estabelecer, depois de jubilado. naquele cafundó do Rio de Janeiro: — Que maluco! — diziam.

Mas o doutor Campos Bandeira (ele não o era, mas assim o tratavam), por não os ter, não ouviu amigos e meteu-se no Timbó. Hoje, há lá uma magnífica estrada de rodagem, que a prefeitura em dias de lucidez construiu; mas, naquele tempo, era um atoleiro. A maioria dos cariocas não conhece essa obra útil da nossa municipalidade; pois olhem: se fosse em São Paulo, já os jornais e revistas daqui teriam publicado fotografias, com artigos estirados, falando da energia paulista, dos bandeirantes, de José Bonifácio e da valorização do café.

O doutor Campos Bandeira, apesar da péssima estrada que lá havia, por aquela época, e vinha trazê-lo ao ponto dos bondes de Inhaúma, lá se estabeleceu, entregando-se de corpo e alma aos seus trabalhos de química agrícola.

Tinha quatro trabalhadores para a roça e tratamento de animais; e, para o interior de casa, só tinha um serviçal. Era um pobre diabo de bagaço humano, espremido pelo desânimo e pelo álcool, que acudia, nas vendas dos arredores, pelo apelido de "Casaca", por andar sempre com um fraque rabudo.

O velho professor o tinha em casa mais por consideração do que por qualquer outro motivo. Quase não fazia nada. Bastava-lhe possuir alguns níqueis, para que não voltasse a casa a fim de procurar serviço. Deixava-se ficar pelas bodegas. Pela manhã, mal varria a casa, fazia o café e moscava-se. Só quando a fome apertava aparecia.

Campos Bandeira, que fora tido, durante quarenta anos, por frio, indiferente, indolor, egoísta e, até, mau, tinha, entretanto, por aquele náufrago da vida ternuras de mãe e perdões de pai.

Uma manhã, "Casaca" despertou e, não vendo o seu amo de pé, foi até os seus aposentos receber ordens. Topou-o na sala principal, amarrado e amordaçado. As gavetas estavam revolvidas, embora os móveis estivessem nos seus lugares. "Casaca" chamou por socorro; vieram os vizinhos e desembaraçando o professor da mordaça, verificaram que ele ainda não estava morto. Fricções e todo o remédio que lhes veio à mente empregaram, até tapas e socos. O doutor Campos Bandeira salvou-se, mas estava louco e quase sem fala, tal a impressão de terror que recebeu. A polícia pesquisou e verificou que houvera roubo de dinheiro, e grosso, graças a um caderno de notas do velho professor. Todos os indícios eram contra o "Casaca" O pobre diabo negou. Bebera, naquela tarde, até os botequins fecharem-se, por toda a parte, nas proximidades. Recolhera-se completamente embriagado e não se 1embrava se tinha fechado a porta da cozinha, que amanhecera aberta. Dormira e, daí em diante, não se 1embrava de ter ouvido ou visto qualquer coisa.

Mas... tamancos do pobre diabo foram encontrados no local do crime; a corda, com que atacaram a vítima, era dele; a camisa, com que fizeram a mordaça, era dele. Ainda mais, ele dissera a "Seu" Antônio " do botequim" que, em breve, havia de ficar rico, para beber na casa dele, Antônio, uma pipa de cachaça, já que ele recusava fiar-lhe um "calisto". Foi pronunciado e compareceu a júri. Durante o tempo do processo, o doutor Campos Bandeira ia melhorando. Recuperou a fala e, ao fim de um ano, estava são. Tudo isto se passou no silêncio tumular do manicômio. Chegou o dia do Júri. "Casaca" era o réu que o advogado Praxedes ia defender, quebrando o seu juramento de não advogar no " crime" A sala encheu-se para ouvi-lo. O pobre "Casaca" , sem pai, sem mãe, sem amigos, sem irmãos, sem parati, olhava tudo aquilo com o olhar estúpido de animal doméstico num salão de pinturas. De quando em quando, chorava. O promotor falou. O doutor Felismino Praxedes Itapiru da Silva ia começar a sua estupenda defesa, quando um dos circunstantes, dirigindo-se ao presidente do tribunal, disse com voz firme: — Senhor juiz, quem me quis matar e me roubou, não foi este pobre homem que aí está, no banco dos réus; foi o seu eloqüente e elegante advogado.

Houve sussurro; o juiz admoestou a assistência, o popular continuou: — Eu sou o professor Campos Bandeira. Esse tal advogado, logo que chegou do Norte, procurou-me, dizendo-se meu sobrinho, filho de uma irmã, a quem não vejo desde quarenta anos. Pediu-me proteção e eu lhe pedi provas. Nunca mas deu, senão alusões a coisas domésticas, cuja veracidade não posso verificar. Vão já tantos anos que me separei dos meus... Sempre que ia receber a minha jubilação, ele me escorava nas proximidades do quartel-general e me pedia dinheiro. Certa vez, dei-lhe quinhentos mil réis. Na noite do crime, à noitinha, apareceu-me, em casa, disfarçado em trajes de trabalhador, ameaçou-me com um punhal, amarrou-me, amordaçou-me. Queria que eu fizesse testamento em favor dele. Não o fiz; mas escapou de matar-me. O resto é sabido. O "Casaca" é inocente.

O final não se fez esperar; e, por pouco, o "Casaca" toma a si a causa do seu ex-patrono. Quando este saía, entre dois agentes, em direitura à chefatura de polícia, um velho meirinho disse bem alto:

— E dizer-se que este moço era um "poço de virtudes" !

América Brasileira, Rio, maio 1922.

Fonte:
http://www.dominiopublico.gov.br

Lygia Fagundes Telles (Herbarium)

Todas as manhãs eu pegava o cesto e me embrenhava no bosque, tremendo inteira de paixão quando descobria alguma folha rara. Era medrosa mas arriscava pés e mãos por entre espinhos, formigueiros e buracos de bichos (tatu? cobra?) procurando a folha mais difícil, aquela que ele examinaria demoradamente: a escolhida ia para o álbum de capa preta. Mais tarde, faria parte do herbário, tinha em casa um herbário com quase duas mil espécies de plantas. "Você já viu um herbário" - ele quis saber.

Herbarium, ensinou-me logo no primeiro dia em que chegou ao sítio. Fiquei repetindo a palavra, herbarium. Herbarium. Disse ainda que gostar de botânica era gostar de latim, quase todo o reino vegetal tinha denominação latina. Eu detestava latim mas fui correndo desencavar a gramática cor de tijolo escondida na última prateleira da estante, decorei a frase que achei mais fácil e na primeira oportunidade apontei para a formiga saúva subindo na parede: formica bestiola est. Ele ficou me olhando. A formiga é um inseto, apressei-me em traduzir. Então ele riu a risada mais gostosa de toda a temporada. Fiquei rindo também, confundida mas contente: ao menos achava alguma graça em mim.

Um vago primo botânico convalescendo de uma vaga doença. Que doença era essa que o fazia cambalear, esverdeado e úmido quando subia rapidamente a escada ou quando andava mais tempo pela casa?

Deixei de roer as unhas, para espanto da minha mãe que já tinha feito ameaças de cortes de mesada ou proibição de festinhas no grêmio da cidade. Sem resultado. "Seu eu contar, ninguém acredita" - disse ela quando viu que eu esfregava para valer a pimenta vermelha nas pontas dos dedos. Fiz minha cara inocente: na véspera, ele me advertira que eu podia ser uma moça de mãos feias, "ainda não pensou nisso?" Nunca tinha pensado antes, nunca me importei com as mãos mas no instante em que ele fez a pergunta comecei a me importar. E se um dia elas fossem rejeitadas como as folhas defeituosas? Ou banais. Deixei de roer unhas e deixei de mentir. Ou mentir menos, mais de uma vez me falou no horror que tinha por tudo quanto cheirava falsidade, escamoteação. Estávamos sentados na varanda. Ele selecionava as folhas ainda pesadas de orvalho quando me perguntou se já tinha ouvido falar em folha persistente. Não? Alisava o tenro veludo de uma malva-maçã. A fisionomia ficou branda quando amassou a folha nos dedos e sentiu seu perfume. As folhas persistentes duravam até mesmo três anos mas as cadentes amareleciam e se despregavam ao sopro do primeiro vento. Assim a mentira, folha cadente que podia parecer tão brilhante mas de vida breve. Quando o mentiroso olhasse para trás, veria no final de tudo uma árvore nua. Seca. Mas os verdadeiros, esses teriam uma árvore farfalhante, cheia de passarinhos - e abriu as mãos para imitar o bater das folhas e asas. Fechei as minhas. Fechei a boca em brasa agora que os tocos das unhas (já crescidas) eram tentação e punição maior. Podia dizer-lhe que justamente por me achar assim apagada é que precisava de me cobrir de mentira como se cobre com um manto fulgurante. Dizer-lhe que diante dele, mais do que diante dos outros, tinha de inventar e fantasiar para obrigá-lo a se demorar em mim como se demorava agora na verbena - será que não percebia essa coisa tão simples?

Chegou ao sítio com suas largas calças de flanela cinza e grosso suéter de lã tecida em trança, era inverno. E era noite. Minha mãe tinha queimado incenso (era sexta-feira) e preparou o Quarto do Corcunda, corria na família a história de um corcunda que se perdeu no bosque e minha bisavó instalou-o naquele quarto que era o mais quente da casa, não podia haver melhor lugar para um corcunda perdido ou para um primo convalescente.

Convalescente do quê? Qual doença tinha ele? Tia Marita, que era alegrinha e gostava de se pintar, respondeu rindo (falava rindo) que nossos chazinhos e bons ares faziam milagres. Tia Clotilde, embutida, reticente, deu aquela sua resposta que servia a qualquer tipo de pergunta: tudo na vida podia se alterar menos o destino traçado na mão, ela sabia ler as mãos. "Vai dormir feito uma pedra" - cochichou tia Marita quando me pediu que lhe levasse o chá de tília. Encontrei-o recostado na poltrona, a manta de xadrez cobrindo-lhe as pernas. Aspirou o chá. E me olhou: "Quer ser minha assistente? perguntou soprando a fumaça. - A insônia me pegou pelo pé, ando tão fora de forma, preciso que me ajude. A tarefa é colher folhas para minha coleção, vai juntando o que bem entender que depois seleciono. Por enquanto, não posso mexer muito, terá que ir sozinha" - disse e desviou o olhar úmido para a folha que boiava na xícara. Suas mãos tremiam tanto que a xícara transbordou no pires. É o frio, pensei. Mas continuaram tremendo no dia seguinte que fez sol, amareladas como os esqueletos de ervas que eu catava no bosque e queimava na chama da vela. Mas o que ele tem? perguntei e minha mãe respondeu que mesmo que soubesse, não diria, fazia parte de um tempo em que doença era assunto íntimo.

Eu mentia sempre, com ou sem motivo. Mentia principalmente à tia Marita que era bastante tonta. Menos à minha mãe porque tinha medo de Deus e menos ainda à tia Clotilde que era meio feiticeira e sabia ver o avesso das pessoas. Aparecendo a ocasião, eu enveredava por caminhos os mais imprevistos, sem o menor cálculo de volta. Tudo ao acaso. Mas aos poucos, diante dele, minha mentira começou a ser dirigida, com um objetivo certo. Seria mais simples, por exemplo, dizer que colhi a bétula perto do córrego, onde estava o espinheiro. Mas era preciso fazer render o instante em que se detinha em mim, ocupá-lo antes de ser posta de lado como as folha sem interesse, amontoadas no cesto. Então ramificava perigos; exagerava dificuldades, inventava histórias que encompridavam a mentira. Até ser decepada com um rápido golpe de olhar, não com palavras, mas com o olhar ele fazia a hidra verde rolar emudecida enquanto minha cara se tingia de vermelho o sangue da hidra.

"Agora você vai me contar direito como foi: - ele pedia tranqüilamente, tocando na minha cabeça. Seu olhar transparente. Reto. Queria a verdade. E a verdade era tão sem atrativos como a folha da roseira, expliquei-lhe isso mesmo, acho a verdade tão banal como esta folha. Ele me deu a lupa e abriu a folha na palma da mão: "Veja então de perto." Não olhei a folha, que me importava a folha? mas sua pele ligeiramente úmida, branca como papel com seu misterioso emaranhado de linhas, estourando aqui e ali em estrelas. Fui percorrendo as cristas e depressões, onde era o começo? Ou o fim? Demorei a lupa num terreno de linhas tão disciplinadas que por elas devia passar o arado, ih! vontade de deitar minha cabeça nesse chão. Afastei a folha, queria ver apenas os caminhos. O que significa este cruzamento, perguntei e ele me puxou o cabelo: "Também você, menina?!"

Nas cartas do baralho, tia Clotilde já lhe desvendara o passado e o presente. "E mais desvendaria" - acrescentou ele guardando a lupa no bolso do avental banco, às vezes vestia o avental. O que ela previu? Ora, tanta coisa. De mais importante, só isso, que no fim da semana viria uma amiga buscá-lo, uma moça muito bonita, podia ver até a cor do seu vestido de corte antiquado, verde-musgo. Os cabelos eram compridos, com reflexos de cobre, tão forte o reflexo na palma da mão!

Uma formiga vermelha entrou na greta do lajedo e lá se foi com seu pedaço de folha, veleiro desarvorado soprado pelo vento. Soprei eu também, a formiga é um inseto! gritei, as pernas flexionadas, pendentes os braços para diante e para trás no movimento do macaco, hi hi ! hu hu! é um inseto! um inseto! repeti rolando no chão. Ele ria e procurava me levantar, você se machuca, menina, cuidado! Fugi para o campo, os olhos desvairados de pimenta e sal, sal na boca, não, não vinha ninguém, tudo loucura, uma louca varrida essa tia, invenção dela, invenção pura, como podia? Até a cor do vestido, verde-musgo? E os cabelos, uma louca, tão louca como a irmã de cara pintada feito uma palhaça, rindo e tecendo seus tapetinhos, centenas de tapetinhos pela casa, na cozinha, na privada, duas loucas! Lavei os olhos cegos de dor, lavei a boca pesada de lágrimas, os últimos fiapos de unha me queimando a língua, não! Não. Não existia ninguém de cabelo de cobre que no fim da semana ia aparecer para buscá-lo, ele não ia embora nunca mais, NUNCA MAIS! repeti e minha mãe que viera me chamar para o almoço acabou se divertindo com a cara de demônio que fiz, disfarçava o medo fazendo caras de medo. E as pessoas se distraíam com essas caras e não pensavam mais em mim.

Quando lhe entreguei a folha de hera com formato de coração (um coração de nervuras trementes se abrindo em leque até as bordas verde-azuladas) ele beijou a folha e levou-a ao peito. Espetou-a na malha do suéter: "Esta vai ser guardada aqui." Mas não me olhou nem mesmo quando eu saí tropeçando no cesto. Corri até a figueira, posto de observação onde podia ver sem ser vista. Através do rendilhada de ferro do corrimão da escada, ele me pareceu menos pálido. A pele mais seca e mais firme a mão que segurava a lupa sobre a lâmina do espinho-do-brejo. Estava se recuperando, não estava? Abracei o tronco da figueira e pela primeira vez senti que abraçava Deus.

No sábado, levantei mais cedo. O sol forcejava a névoa, o dia seria azul quando ele conseguisse rompê-la. "Aonde você vai com esse vestido de maria-mijona? - perguntou minha mãe me dando a xícara de café com leite. Por que desmanchou a barra?" Desviei sua atenção para a cobra que disse ter visto no terreiro, toda preta com listras vermelhas, seria um coral? Quando ela correu com a tia para ver, peguei o cesto e entrei no bosque, como explicar-lhe? Que descera todas as barras das saias para esconder minhas pernas finas, cheias de marcas de picadas de mosquitos. Numa alegria desatinada fui colhendo as folhas, mordi goiabas verdes, atirei pedras nas árvores, espantando os passarinhos que cochichavam seus sonhos, me machucando de contente por entre a galharia. Corria até o córrego. Alcancei uma borboleta e, prendendo-a pelas pontas das asas, deixei-a na corola de uma flor, te solto no meio do mel! gritei-lhe. O que vou receber em troca? Quando perdi o fôlego, tombei de costas nas ervas do chão. Fiquei rindo para o céu de névoa atrás da malha apertada dos ramos. Virei de bruços e esmigalhei nos dedos os cogumelos tão macios que minha boca começou a se encher d’água. Fui avançando de rastros até o pequeno vale de sombra debaixo da pedra. Ali era mais frio e maiores os cogumelos pingando um líquido viscoso dos seus chapéus inchados. Salvei uma abelinha das mandíbulas de uma aranha, permiti que saúva-gigante arrebatasse a aranha e a levasse na cabeça como uma trouxa de roupa esperneando mas recuei quando apareceu o besouro de lábio leporino. Por um instante me vi refletida em seus olhos facetados. Fez meia-volta e se escondeu no fundo da fresta. Levantei a pedra: o besouro tinha desaparecido mas no tufo raso vi uma folha que nunca encontrara antes, única. Solitária. Mas que folha era aquela? Tinha a forma aguda de uma foice, o verde do dorso com pintas vermelhas irregulares como pingos de sangue. Uma pequena foice ensangüentada foi no que se transformou o besouro? Escondi a folha no bolso, peça principal de um jogo confuso. Essa eu não juntaria às outras folhas, essa tinha que ficar comigo, segredo que não podia ser visto. Nem tocado. Tia Clotilde previa os destinos mas eu podia modificá-los, assim, assim! e desfiz na sola do sapato o cupim que se armava debaixo da amendoeira. Fui andando solene porque no bolso onde levara o amor levava agora a morte.

Tia Marita veio ao meu encontro, mais aflita e gaguejante do que de costume. Antes de falar começou a rir: "Acho que vamos perder nosso botânico, sabe quem chegou? A amiga, a mesma moça que Clotilde viu na mão dele, lembra? Os dois vão embora no trem da tarde, ela e linda como os amores, bem que Clotilde viu uma moça igualzinha, estou toda arrepiada, olha aí, me perguntou como a mana adivinha uma coisa dessas!"

Deixei na escada os sapatos pesados de barro. Larguei o cesto. Tia Marita me enlaçou pela cintura enquanto se esforçava para lembrar o nome da recém-chegada, um nome de flor, como era mesmo? Fez uma pausa para estranhar minha cara branca, e esse branco de repente? Respondi que voltara correndo, a boca estava seca e o coração fazia um tuntum tão alto, ela não estava ouvindo? Encostou o ouvido no meu peito e riu sacudindo inteira, quando tinha minha idade pensa que também não vivia assim aos pulos?

Fui me aproximando da janela. Através do vidro (poderoso como a lupa) vi os dois. Ela sentada com o álbum provisório de folhas no colo. Ele, de pé e um pouco atrás da cadeira, acariciando-lhe o pescoço e seu olhar era o mesmo que tinha para as folhas escolhidas, a mesma leveza de dedos indo e vindo no veludo da malva-maçã. O vestido não era verde mas os cabelos soltos tinham o reflexo de cobre que transparecera na mão. Quando me viu, veio até a varanda no seu andar calmo. Mas vacilou quando disse que esse era nosso último cesto, por acaso não tinham me avisado? O chamado era urgente, teriam que voltar nessa tarde. Sentia perder tão devotada ajudadora mas um dia, quem sabe?... Precisaria perguntar à tia Clotilde em que linha do destino aconteciam os reencontros.

Estendi-lhe o cesto mas ao invés de segurar o cesto, segurou meu pulso: eu estava escondendo alguma coisa, não estava? O que estava escondendo, o quê? Tentei me livrar fugindo para os lados, aos arrancos, não estou escondendo nada, me larga! Ele me soltou mas continuou ali, de pé, sem tirar os olhos de mim. Encolhi quando me tocou no braço: "E o nosso trato de só dizer a verdade? Hem? Esqueceu nosso trato?" - perguntou baixinho.

Enfiei a mão no bolso e apertei a folha, intacta a umidade pegajosa da ponta aguda, onde se concentravam as nódoas. Ele esperava. Eu quis então arrancar a toalha de crochê da mesinha, cobrir com ela a cabeça e fazer micagens, hi hi! hu hu! até vê-lo rir pelos buracos da malha, quis pular da escada e sair correndo em ziguezague até o córrego, me vi atirando a foice na água, que sumisse na correnteza! Fui levantando a cabeça. Ele continuava esperando, e então? No fundo da sala, a moça também esperava numa névoa de ouro, tinha rompido o sol. Encarei-o pela última vez, sem remorso, quer mesmo? Entreguei-lhe a folha.

Fonte:
http://www.academia.org.br

Zitkala-Sa (1876 - 1938)

tradução por José Feldman

Gertrude Simmons Bonnin, Zitkala-Sa (Pássaro Vermelho), era uma mulher nativa americana extraordinariamente talentosa e educada que lutou e triunfou em um tempo que o preconceito severo prevaleceu na cultura nativa americana em relação às mulheres. Os talentos dela e contribuições no mundo da literatura, música e políticas desafiam convicções existentes há muito que a cultura do homem branco é a melhor, e nativas americanas são pecadores selvagens. Zitkala-Sa começou a criar a compreensão entre o branco dominante e culturas nativas americanas. Como uma mulher de ascendência americana branca e nativa misturadas, ela incorporou a necessidade de as duas culturas viverem cooperativamente dentro do mesmo espaço de terra. Os trabalhos dela criticaram dogmas, e a vida dela como uma mulher nativa americana era dedicada contra os males de opressão.

Zitkala-Sa nasceu em 1876, na Reserva de Cume Pínea em Dakota do Sul. O pai dela era um homem branco nomeado Felker, sobre quem pouco é conhecido. A mãe dela era Ellen Tate Iyohinwin (Ela Alcança para o Vento) Simmons, um Sioux de raça pura. Zitkala-Sa era a terceira criança de Simmons. Só aos oito anos de idade, decidiu deixar a mãe dela e a reserva para participar do Instituto de Trabalho Manual dos Brancos em Wabash, Indiana. Esta era uma escola fundada pelo Quakers.

Depois de quatro anos, ela voltou para casa, entretanto, se registrou, contra o desejos da mãe dela, na Escola Normal de Treinamento Santee. Ela escolheu esta escola porque estava perto da mãe dela. Em 1895, ela decidiu se mudar e foi aceita para bolsas de estudos de Faculdade de Earlham em Indiana.

Embora a maioria notasse o gênio literário e político dela, Zitkala-Sa também era uma violinista e até mesmo ganhou uma bolsa de estudos para estudar no Conservatório de Boston de Música. Em 1913, ela e o compositor de música clássica William Hanson escreveram uma ópera chamada Dança de Sol. A criação foi apreciada por alguns nativos americanos mas, desde 1937, não foi publicada, pois era uma ópera escrita por uma nativa americana. A música era o amor verdadeiro dela, contudo sentia mais importante lutar pelos direitos das pessoas semelhantes a ela por literatura e políticas.

Depois dos estudos dela no Conservatório de Boston, aceitou uma posição pedagógica na Carlisle Indian School. A escola foi fundada por Richard Henry Pratt, um oficial do exército que viu educação como um dos meios para mover " de selvageria a civilização " e acreditava que " Nós temos que matar o selvagem para salvar o homem ". Pratt explorou os estudantes abusivamente para o trabalho enquanto ao mesmo tempo recebia fundos de governo para cada estudante que freqüentava a escola. A permanência de Zitkala-Sa na Escola durou dois anos.

Como uma escritora, ela adotou o pseudônimo " Zitkala-Sa " e, em 1900, começou a publicar artigos que criticam a Carlisle Indian School. Ela se ressentiu com a degradação que os estudantes foram sujeitados, do Cristianismo que castigava severamente por falar em idiomas nativos. Ela foi muito criticada na ocasião.

Teve duas propostas de matrimônio na vida dela. O primeiro foi feita por Carlos Montzuma, um ativista de Yavapai e médico. Ela desmanchou este noivado porque os próprios planos dela para a vida dela ia além das esperanças dele por ela ser o ajudante dele e mãe de seus filhos. A segunda proposta que ela aceitou, era do Capitão Raymond Bonnin. Ele era de sangue misturado Nakota se mantendo na reserva e trabalhando para a Agência de Negócios índios. Infelizmente, o matrimônio foi prejudicial realmente à carreira dela, pois era forçada a seguir o marido na carreira dele, indo de reserva para reserva. Tiveram um filho chamado Ohiya (o Vencedor).

Em uma reserva em Utah, os Bonnins tomaram parte da Sociedade de índios americanos dos quais ela foi eleita secretária em 1916. Os Bonnins se mudam para Washington, D.C. onde Gertrude continuou o trabalho dela com a Sociedade e começou a editar a Revista índia americana, então.

Uma voz política forte para nativos americanos, Bonnin escreveu para o Oklahoma's Poor Rich Indians sobre a Exploração das Cinco Tribos Civilizadas e Roubo Legalizado. Este trabalho, publicou em 1924, com dois co-autores brancos, expondo os roubos e assassinatos em Oklahoma de pessoas nativas americanas e conduziu ao Ato de Reorganização índio de 1934, restabelecendo a verdade das terras dos índios. Zitkala-Sa também ganhou os direitos de cidadania e o voto para nativos americanos. Ela fez isto buscando unidade entre todas as tribos e um poder político pan-índio. Assim começara a Deliberação Nacional de índios americanos em 1926.

Morreu em 1938. Ela foi enterrada em Arlington National Cemetery. A lápide dela é gravada " Zitkala-Sá da Nação Sioux. Ironicamente, a honra de enterro não era devida às grandes contribuições dela para o EUA, mas por causa da posição do marido dela como um capitão de exército.

Dos trabalhos literários dela, "Por que eu Sou uma Pagã " explica as convicções religiosas dela. Foi publicado primeiro em dezembro de 1902, um tempo no qual a sociedade foi acostumada e esperavam composições nativas americanas sobre conformações para o cristianismo.

Junto com um capítulo - " As grandes maçãs vermelhas ", impressões de uma Infância índia, a composição é contra o cristianismo tradicional e religioso. Os dois trabalhos são fascinantes, e eles formam expressa as indignações sofridas pelos nativos americanos nas mãos de cristãos.
Zitkala-Sa estava ardentemente contra a opressão de nativos americanos na cultura Ocidental, entretanto ela viu isto como uma interiorização da linguagem dos "cara-pálidas".

Alude habilmente à história Bíblica de Adão e a queda de Eva como uma metáfora para a sedução dos nativos americanos através de brancos em " As grandes maçãs vermelhas ". Eva foi seduzida pela cobra por causa da ambição dela pelo conhecimento. Zitkala-Sa criou um paralelo à própria experiência de infância dela dos "cara-pálidas", do vir do Leste para a reserva dela procurando as crianças índias para recrutar para a escola deles. Estes homens prometeram " Sim, pequena menina, as melhores maçãs vermelhas são para aqueles que as escolher" no Leste. Assim contra o desejos da mãe dela, Bonnin comeu da árvore proibida e assumiu o Leste.

O uso magistral do idioma por Zitkala-Sa e as alusões ao Oeste acrescentaram efetividade á sua escrita. Como muitos outros escritores minoritários, ela aprendeu sobre a cultura que a oprime e desenvolveu técnicas de escrita, de modo a que a sua voz pudesse ser ouvida, esperançosamente entendida pela cultura dominante. Se tivesse usado insinuações a histórias nativas americanas e o idioma nativo dela, ela não teria atingido o público-alvo dela, os cara-pálidas opressivos. "As grandes maçãs vermelhas " fazem os leitores brancos re-pensar as conquistas tradicionais Cristãs sugerindo que o índio foi corrompido pela cultura dominante. " Por que eu Sou uma pagã", é um modo reverente e religioso cristão de ver a beleza das crenças índias, o amor deles pela natureza, apreciação deles pela maravilha do universo, e aceitação de tudo (até mesmo o "cara-pálida") como fazendo parte da criação de Deus. A imagem de um Deus-temeroso, aceitando, e o amando é um contraste acentuado à imagem de um guerreiro selvagem.

Em " Por que eu sou uma Pagã, " Zitkala-Sa adora um Deus que criou a beleza no mundo e uma religião que abraça a todos e todas as partes deste vasto universo ". Contrasta isto com o cristianismo para o qual o primo dela subscreveu " me ensinou (ele) também a loucura de nossas velhas convicções ". Ela argumentava que Deus não chamou o homem branco para destruir uma cultura nativo americano bonita, roubar as pátrias deles, colocá-los em reservas, ou bater as crianças índias por falar na língua materna. Embora ela se ressentisse com este mau trato, Bonnin ainda buscou atravessar uma abertura entre as diferenças vastas do branco dominante e culturas nativas americanas. Ela não se deixou ser seduzida em acreditar que as tradições nativas americanas eram loucura ou pecado. Como uma pessoa de sangue misturado, a vida dela poderia ser olhada em como um exemplo da beleza e realizações podem ser feitas quando as duas culturas puderem viver cooperativamente. Zitkala-Sa percebeu que odiar a diferença era odiar a vida; era um amante de vida. Talvez está na hora que o EUA tenha um cemitério nacional para honrar os iguais a Zitkala-Sa que buscaram paz e amaram a vida, em vez de matar isto.

Trabalhos pela Autora (podem ser obtidos no Projeto Gutemberg)
- Oklahoma's Poor Rich Indians: An Orgy of Graft, Exploitation of the Five Civilized Tribes, Legalized Robbery (1924)
- Impressions of an Indian Childhood (1899)
- Old Indian Legends (1985)
- American Indian Stories (1985, 2003)
- Dreams and Thunder: Stories, Poems and the Sun Dance Opera, edited by P. Jane Hafen (2001)
- Iktomi and the Ducks and Other Sioux Stories, retold by Zitkala-Sa; foreword by Agnes M. Picotte; introduction by P. Jane Hafen (2004)

Fontes:
http://voices.cla.umn.edu/vg/Bios/entries/bonnin_gertrude_simmons_zitkala-sa.html
http://en.wikipedia.org/

Inajá Martins de Almeida (O Ato de Ler)

Dê-me uma meada de lã e eu teço um agasalho.
Dê-me uma palavra e eu formulo uma frase.
Dê-me uma frase e eu escrevo um texto.
Dê-me um texto e eu componho um livro”.

Definições, conceitos, significações, frases, textos, livros, são atributos de que nos valemos, quando nos predispomos a fazer uma pesquisa mais acurada de algo que queremos conhecer melhor.

Definimos, conceituamos, buscamos significados, formulamos frases, elaboramos textos, compomos livros, tudo para perpetuar nossa idéia e percebemos que:

"Os livros que em nossa vida entraram, são como a radiação de um corpo negro, apontando pra expansão do Universo, porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (e, sem dúvida, sobretudo o verso) é o que pode lançar mundos no mundo".

O livro que entra em nossa vida, portanto, já não é mais o mesmo: já deixou de ser estático num canto da estante; agora, ele, descortinou novos horizontes para nós; já nos enriqueceu um pouco mais; já nos tirou da ignorância verbal e oral; já nos transformou; já nos cativou; já se tornou responsável por aquele que cativou.

Ah! Bendito os que semeiam livros ... livros a mão cheia ... e faz o povo pensar ... em verso cantava Castro Alves e, se bendito são os que semeiam livros, abençoados são os que lêem, os que pensam, os que informam, os que se informam, os que transformam, os que se transformam.

Percebemos, contudo, que antes mesmo de lermos a palavra, já lemos a imagem; Paulo Freire diz que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, porque na realidade estamos lendo o que nos permeia, tudo o que está a nossa volta é uma leitura que se faz, de acordo com quem olha.

Mas uma vez que nos tornamos leitores da palavra, invariavelmente estaremos lendo o mundo sob a influência dela, quer tenhamos consciência disso ou não. Nesse momento, a leitura, até então oral e ágrafa, amplia-se, oferece-nos outras perspectivas para ler o mundo. Dá-nos condição de encontro com novas maneiras de interpretar a sociedade, seus conflitos e a própria natureza humana. A partir de então, mundo e palavra permearão constantemente nossa leitura e inevitáveis serão as correlações, de modo intertextual, simbiótico, entre realidade e ficção”.

Mas afinal, por que lemos?

Lemos porque a necessidade de desvendar caracteres, letreiros, números, faz com que paremos a olhar, a questionar, a buscar decifrar o desconhecido. Antes mesmo de ler a palavra, já lemos o universo que nos permeia: um cartaz, uma imagem, um som, um olhar, um gesto:

"Lemos, intensamente por várias razões, a maioria das quais conhecidas: porque na vida real, não temos condições de "conhecer" tantas pessoas, com tanta intimidade; porque precisamos nos conhecer melhor; porque necessitamos de conhecimento, não apenas de terceiros e de nós mesmos, mas das coisas da vida", argumenta Harold Bloom. Embora considere "a busca de um prazer sofrido" como o principal motivo quando se lê. São muitas as razões para a leitura. Cada leitor tem a sua maneira de perceber e de atribuir significado ao que lê”.

Para que lemos?

Lemos para nos comunicar; para resolver uma questão proposta por nós ou por alguém; para nos aperfeiçoar; para nos informar; para adquirir mais conhecimento; para saciar nossa sede do saber; para recreação, quem sabe: cada um sabe para que lê. Leonardo Boff nos diz que cada um lê com os olhos que tem. E “a melhor maneira de se ensinar uma criança a ler é lendo” nos fala a escrita Ana Maria Machado.

O que lemos?

Uns lêem cartas geográficas, outros cartas de informação – como a carta do descobrimento do Brasil. “Caminha não podia imaginar que sua carta se tornaria, principalmente no século XX, uma das fontes de inspiração para romancistas e poetas brasileiros”; outros tantos cartas de amigos.

As cartas fascinam tanto porque são parte da expressão humana. Porque nelas estão as fraquezas, os bons augúrios e, quase sempre, espelhos da alma de quem as escreve. Quando as lemos, é como se fôssemos ouvindo o remetente em nosso ouvido a conversar conosco. É como se Mário falasse conosco. Ler as cartas que Mário escrevia a seus amigos é encontrar um pouco com a alma do nosso povo, de nós mesmos. Sua prosódia oscila entre o popular e o erudito, embala o leitor em sua linguagem, deixa-o confortavelmente deleitar-se com sua escrita”. Numa delas, esta a Carlos Drummond de Andrade, dizia “só nos domingos que posso escrever. Tenho atualmente a vida mais deliciosamente burguesa que a gente pode imaginar. Sou homem de domingos. Só no domingo que me divirto, visito os amigos, escrevo pros de longe visto roupa nova e descanso ... São onze horas do dia. Tenho meia-horinha pra você ...” .

Se lemos gibis, poesias, jornais, textos científicos, textos literários, textos... livros... enfim, não importa o que lemos, se lemos por algum motivo ou razão. “Primeiro devemos deixar ler, para depois orientar, porque ler é um direito do cidadão e da criança”, exorta nossa imortal da literatura infantil Ana Maria Machado.

Porque lemos realmente dará sentido a todos os outros questionamentos, pelo fato de que: “Ler é olhar o mundo para enxergar mais além do que o nosso interior. É entender o processo coletivo. É observar a tribo para analisar a globalização. É ler imagens para ultrapassar a aventura. É aventurar-se pelos escaninhos mais recônditos do subconsciente para entender a lucidez dos discursos que untados em votos (eletrônicos para serem modernos) prometem zerar qualquer coisa”.

Nessa frase, parei por uns minutos mais prolongados em “ler imagens” e, um fato curioso, me fez retornar ao passado, quando então se pensou que esta – a imagem – substituiria a palavra, a partir de um slogan, veiculado através da televisão, onde se dizia que uma imagem valia mais do que mil palavras.

Ledo engano aquele; a palavra continuaria cada vez mais forte, sendo produzida em larga escala incessantemente porque, segundo nos premia Millôr Fernandes “a imagem só pode se transformar em instrumento de comunicação quando podemos dela falar - usando palavras”.

E as palavras continuaram permeando o universo, conquistando espaços, ganhando mais e mais adeptos – seus leitores. Quem não se sente solto e livre a vagar pelo ar, a viajar sem sair do próprio lugar ao se deleitar com uma fantástica leitura – palavras, frases, textos ... – quem não se enriquece interiormente; quem não cresce em conhecimento e cultura; quem não se inquieta, não questiona, não se torna investigativo a querer galgar novas plagas, quebrar barreiras, ultrapassar fronteiras; quem não voa com asas de águia percorrendo parágrafos, grifando palavras, bailando, girando como folhas ao vento; quem não se torna livre ao ter um livro nas mãos. Quem não quer se aventurar por “mares nunca d’antes navegados

São muitas as razões para a leitura. Cada leitor tem a sua maneira de perceber e de atribuir significado ao que lê. Essa particularização da leitura é que estimula, por meio de um processo artístico, emoções e vivências diferentes no leitor permitindo-lhe o conhecimento de si mesmo; o reconhecimento do outro, a descoberta do mundo”.

Sim ... em meio a tanto questionamento “livros nos tornam livres” , na medida em que:

Ler é alimentar-se espiritualmente, é adquirir aquela inquietação interior — bem como uma série de convicções — a indescritível riqueza íntima de quem está atento à vida, de quem carrega consigo a vontade de conhecer e amar infinitamente".

E quem não se torna criança ao adentrar no mundo encantado do faz de conta, do era uma vez no País das Maravilhas da Alice; quem não se sente o próprio David ao derrotar o gigante Golias, personagens estes que ultrapassam o tempo, tornam-se presentes, jamais esquecidos, sempre lembrados, sempre lidos, sempre recontados – o tempo não os consumiu.

Ler é multiplicar a própria idade, é ganhar tempo, é expandir-se para todos os tempos, e, quem muito lê vai reunindo em si mais lembranças e conhecimentos do que se tivesse mil anos de idade. Vai se universalizando no tempo, e também no espaço.

Numa fração de segundos, podemos retornar a infância, acordar de um profundo sono, como Bela Adormecida, ao beijo suave do príncipe encantado e se tornam felizes para sempre; aí se faz presente a arte, que toca o âmago do ser sensível – a arte da palavra, então:

se olho demoradamente para uma palavra descubro, dentro dela, outras tantas palavras. Assim, cada palavra contém muitas leituras e sentidos. O meu texto surge, algumas vezes a partir de uma palavra que, ao me encantar, também me dirige. E vou descobrindo, desdobrando, criando relações entre as novas palavras que dela vão surgindo. Por isso digo sempre: é a palavra que me escreve”.

Se cada leitor percebe em cada palavra tantas outras, em cada leitura pode sentir a magia do encantamento que a arte proporciona, depreendemos que:

Ler é uma arte, e, como toda a arte, requer do seu artista uma sábia flexibilidade, a capacidade de utilizar os meios de acordo com a finalidade primordial a ser alcançada”.

Essa arte que quebra barreira, extrapola horizontes infindáveis, essa arte que nos tira do anonimato, que nos dá poder de investigação, de interagir na sociedade, de conquistar o inimaginável, sim

Ler é uma arte que pode ser de muitos, que pode nos devolver a nós mesmos. Ler é poder, é conhecer-nos e aos outros.

Suzana, cita palavras de Richard Bargenguer, extraídas do seu livro “Como incentivar o hábito da leitura” quando nos diz que:

Ler é a tarefa do futuro, quando as pessoas necessitarão de uma espécie de auto-educação permanente ou seja: deverão promover a pesquisa, a reflexão, o crescimento intelectual por conta própria. Deverão desenvolver de modo autônomo sua competência, enfim”.

Eu, contudo, não consigo ver um cidadão completo, que não saiba ler e interpretar as situações que o rodeiam, porque "quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê", já nos alertava Monteiro Lobato.

Sob meu ponto de vista, uma vez que “cada ponto de vista é a vista de um ponto” , leitura não significa simplesmente o que os textos nos apresentam, mas qualquer percepção depreendida em nosso cotidiano: das conversas entre amigos, da fala do professor a nossa frente, da interpretação de um filme – o que os personagens nos transmitem através da tela – dos homens de Deus nos púlpitos ao ministrar a Palavra aos fiéis; leitura também é decifrar imagens.

Alberto Mangel, escritor argentino, entende a leitura como forma de decifrar sinais, interpretar códigos e se expressa:

Eu vejo a leitura não apenas como um modo de entender textos, mas também de decifrar sinais. O ser humano é um decifrador de sinais. Nós interpretamos até mesmo códigos que não são feitos para serem lidos, como o relevo, o céu, o rosto das pessoas".

A riqueza que nos proporciona o ato de ler e interpretar palavras, encontro nas Cartas que o apóstolo Paulo enviava às igrejas e cidadãos da sua época – esta aos Coríntios – uma passagem que, em especial, chamou-me atenção. Escrita há dois mil anos atrás, exortava o povo a se expressar de forma clara, dizendo que:

“... se com a língua não falardes palavras bem distintas, como se entenderá o que se diz? Estareis como que falando para o ar” e acrescenta dizendo que “há infinidade de sons e contudo nenhum sem sentido, e que se não soubermos interpretar esses sons, seremos como bárbaros para o que fala assim como bárbaro para o que ouve”.

E chegando a atualidade, Gabriel Perissé, citando Bernardo Gusbanov, diz:

Ler e compreender o que se lê é uma capacidade que deve ser desenvolvida. Quem não lê e não compreende o que lê está excluído socialmente. Torna-se uma pessoa com pobreza no uso do vocabulário e dificuldades de expressão, que se refletem tanto na vida social quanto profissional".

Portanto, após tantas falas, depreende-se que

Há mais valor na sabedoria do que na tolice, quanto mais valor na luz do que nas trevas...

A era da informação, exige que avancemos incessantemente; o mundo globalizado pede pessoas cada vez mais preparadas para o mercado competitivo, e onde buscar essa preparação, a não ser através de leituras diversas. Não se concebe mais o cidadão com escolaridade básica, há que ter mais, tanto a que se conquista nos bancos acadêmicos, quanto e, principalmente, aquela que se busca através da “auto-educação”, como nos alerta Bargenguer.

Na era da informação, não é simples ficar sintonizado e atualizado: o mundo dobra o conhecimento a cada dezoito meses e é preciso, portanto, correr atrás de atualização o tempo todo: comportamental, emocional, de mercado, de vida...”

Não se permite mais esperar. “Esperar não é saber”, porque “quem sabe faz a hora e não espera acontecer”, já nos dizia o músico e compositor Geraldo Vandré na década de 60 – Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores – quando, em plena ditadura militar, falando de flores, alertava o povo sobre a opressão que os soldados armados impunham, mas que caminhando e cantando, seguindo a canção interior poderíamos sim ensinar uma nova lição; mudar o curso da vida; contar a própria história: poderíamos ser, enfim, a própria história, porque:

vem uma geração, e vai outra geração, mas a terra permanece eternamente... e os olhos nunca vêem o bastante, nem os ouvidos se enchem de ouvir”.

Porém, quando pensamos que geração vem e passa e que não temos tempo para ver, ouvir tudo o que gostaríamos, buscamos nas leituras várias, abstrair uma realidade distante e, ao lermos um livro, pensamos e criamos nossa própria realidade, porque cada leitor se torna um co-autor, uma vez que:

cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita... Cada um lerá e relerá conforme forem seus olhos. Compreenderá e interpretará conforme for o chão que seus pés pisam... E para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura”.

Contudo, para muitos, a leitura é um passatempo, para outros tantos um aprendizado incessante; para alguns, apenas um fardo para cumprir uma tarefa, muitas vezes imposta, muito embora transformar a leitura num dever, numa obrigação curricular, pode ser um equívoco, porém, se pararmos para pensar que "a leitura é muito mais do que uma simples relação dos olhos com os livros... iremos perceber que, a leitura é um espaço, um lugar predileto, uma luz escolhida, um ritual em que importa até a época do ano."

Há, também, quem diga que “leitura é essencial. Não mata a fome, sequer a de espírito como se insinua pois espírito não tem fome, mas mata a falta de lucidez, cria consciência” e outro que "a leitura torna o homem completo; a conversação torna-o ágil e o escrever dá-lhe precisão" .

O que podemos entender então! Entendemos sim, que somente através da leitura podemos desvendar o desvendável – o conhecimento; conhecimento esse que nos dá mais segurança para dialogar e até para expressar idéias, opiniões, interagir na sociedade, e com tudo isso, maior mobilidade para nos expressar através da escrita.

Torna-se imprescindível que se forme o hábito, da leitura, porque este, hoje, tornou-se artigo de primeira necessidade.

Através da palavra tudo se forma – “Haja luz ... e houve luz ..."

Nas palavras há, portanto, força e, alerta-nos o pensador Confúcio “sem conhecer a força das palavras é impossível conhecer os homens”, porque "quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma", como complementa o poeta português Fernando Pessoa.

No princípio Deus criou o céu e a terra ... e a terra estava sem forma e vazia... e Deus disse: haja luz; e houve luz

Para que haja uma criação é necessária uma vontade: a vontade de criar algo, assim

A palavra não cria as coisas do nada. Mas retira, sim, as coisas da sombra, do esquecimento, do exílio, ou do passado, ou do futuro. As palavras são embaixatrizes da realidade. Elas trazem para o nosso meio todo o universo. Trazem reinos, aves exóticas, estrelas do céu, flores de aromas impensáveis, anjos, demônios. Falamos a palavra, e o universo responde ao chamado, e os mortos ressuscitam, e nós mesmos nos iluminamos”.

O que é então o ato de ler senão tomar posse do texto, do livro. Livro que nos fala por meio das palavras. Palavras que vão tomando forma e cor, aos olhos atentos do leitor. Palavras que podem descobrir as vozes dos enredos, as cenas que desfilam através das entrelinhas do texto.

Jean Paul Sartre, extasiado com a interpretação que sua mãe fazia, ao contar-lhe histórias para embalar-lhe o sono, premia-nos com o texto As palavras, onde nos transporta, também, para aquele rosto que transformava-se a cada fala; para aquela voz que ele desconhecia e por fim, para aquela resposta aos porquês daquela performance:

daquele rosto de estátua saiu uma voz de gesso. Perdi a cabeça: quem estava contando? O quê? E a quem? Minha mãe ausentara-se: nenhum sorriso, nenhum sinal de conivência, eu estava no exílio. Além disso, eu não reconhecia sua linguagem. Onde é que arranjava aquela segurança? Ao cabo de um instante, compreendi: era o livro que falava".

Uma “leitura bem feita é uma inteligente e apaixonada conversa com o autor” e, quando “consciente, empenhada, reflexiva, desperta a vida do livro, aciona toda aquela fecundidade que o autor nos legou ao concluir o seu trabalho e que permanece ali, nas páginas impressas... “

Sim, o livro nos fala, quando percebemos que a “leitura é um diálogo profundo e uma intensa experiência de vida, na medida em que põe o leitor no interior de “realidades”, de “ambientes”, de “idéias” e de “pessoas” — criados ou recriados pelo cronista ou pelo memorialista, enfim, pelo autor que esteja sendo lido”.

E, quando do término de uma leitura, jamais devemos questionar o que o autor nos quis dizer, e sim o que sentimos, uma vez que “em educação, a emoção precede a cognição, e a cognição ajuda a despertar mais emoção”.

Em assim pensando, após tantos momentos, tantas reflexões, não nos permitimos mais “viver sem razão” ;

precisamos nos tornar uma nação leitora, porque o cidadão comum de uma nação moderna, é alguém que chega à vida adulta, capacitado para ler e entender manuais, embalagens de produtos, instruções de uso e advertências, relatórios, poesias, formulários, atlas, contos, gráficos, tabelas, artigos de jornal e revista e todas as demais formas da escrita cotidiana impressa ou eletrônica” e, “Ler com atenção, a rigor, significa compreender. E compreender significa também interpretar, discernir, captar em profundidade, discordar, ampliar...”

Porque

Entender um texto é compreender claramente as idéias expressas pelo autor para, então, interpretar e extrapolar essas idéias. Nesse momento o leitor deve ajustar as informações contidas no contexto em análise às que ele possui em seu arquivo de conhecimento”.

Quando se pensa então em “arquivo de conhecimento”, pressupõe-se que muitas informações foram buscadas; muitas leituras foram feitas, muitos foram os conhecimentos adquiridos e armazenados nos escaninhos do cérebro.

A medida que adentramos o universo da leitura, descortinando autores, e temas os mais variados, percebemos que vamos nos familiarizando cada vez mais com a palavra, que, com intimidade passeia, rodopia, baila suavemente em nossa mente ávida pelo conhecimento, porque “o prazer da leitura de um texto não pode ser avaliado. É coisa subjetiva; quem ama ler tem nas mãos as chaves do mundo”.

“... para ser ‘leitor útil’ há que existir a vontade, o desejo de ler, em primeiro lugar, mas também são necessários livros para serem lidos, uma quantidade e variedade suficientes para que cada um eleja o seu gênero predileto, os seus temas, os seus enredos, os seus “clássicos”, aqueles livros que nunca acabam de dizer o que têm para dizer, como definiu Ítalo Calvino. Livros que “viciem” o leitor, pois a leitura inquieta, desloca, preenche, responde, diverte, cria novas perguntas, possibilita usos pessoais da criação de um escritor”.

De todos os prazeres – a música, a dança, o cinema, passeios diversos – o mais inebriante para mim é a leitura; percebi, desde muito cedo, que esta realmente pode influenciar grandes mudanças, grandes transformações – a leitura dá poder, que vai além do simples prazer de ler por ler: “leitura pressupõe busca de informação

Pensar nesse universo – da leitura – é jamais cair no marasmo, na mesmice; é jamais se entediar, uma vez que para cada leitura, podemos fazer novas releituras, aprendendo, ensinando, enriquecendo-nos, porque “os livros têm seu próprio destino... o destino dos livros está ligado ao destino dos leitores”, assim eu os convido a fazerem-se co-criadores “do mundo criado e por criar”, conforme nos convida Leonardo Boff.

Podemos perceber, então, que o ato de ler, está atrelado a maneira com que cada leitor o faz, uma vez que a cada leitor o seu livro, a cada livro seu leitor, como nos orientava o grande bibliotecário Ranganathan, nas suas Leis da Biblioteconomia, que o bibliotecário tão bem conhece.
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Inajá Martins de Almeida
bibliotecária e coordenadora de projetos na Fundação Educandário Coronel Quito Junqueira e presidenta da ONG Educare Est Vita

Fonte:
http://www.amigosdolivro.com.br/