quinta-feira, 5 de março de 2009

Fagundes Varela (Teia de Poesias)



Amor e vinho

Cantemos o amor e o vinho,
As mulheres, o prazer;
A vida é sonho ligeiro
Gozemos até morrer
Tim, tim, tim
Gozemos até morrer

A ventura nessa vida
É sonho que pouco dura
Tudo fenece no mundo,
Na louça da sepultura
Tim, tim, tim
Na louça da sepultura

Não sou desses gênios duros,
Inimigos do prazer,
Que julgam que a humanidade
Só nasceu para morrer
Tim, tim, tim
Só nasceu para morrer
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Sombras

Não me detestes, não! Se tu padeces
Também minh'alma teu sofrer partilha
E sigo em prantos de suplício a trilha
Curvado ao peso da tremenda cruz

Para nós ambos apagou-se a luz,
Tudo é tristeza no deserto vário,
Inda está longe o cimo do Calvário
Não para ti, mas para mim, precito!

Tenho na face o desespero escrito
Todos me odeiam - quando toco é pó!
Neste mundo tu me amaste, e só,
E em troco desse amor tiveste o inferno!

Pálida rosa do alcaçar eterno!
Cândida pomba que a inocência nutre!
Melhor te fôra a sanha de um abutre
Que estas profanas mãos que te roçaram!

Aos céus os anjos teu chorar levaram,
Irmãos preparam-te, amorosos,
E eu ainda fico!... E tenho por castigo
Sentir-me vivo quando tudo expira!

Oh! Quando à noite o vendaval se atira
Qubrando as vagas turbulentas, frias,
E lasca o raio as broncas penedias
Onde a chuva despenha-se escumando

Penso que Deus se abranda e vem chegando
A última cena de meu torvo drama
Mas do fuzil que passa à rubra chama
Vejo ainda longe o pouso derradeiro

Andar e sempre andar! O globo inteiro
Pendido atravessar como Caim!
Não achar um repouso, um termo, um fim
A dor que rói, lacera e não descansa

E jamais antever uma esperança!
Uma réstia de luz na escuridão!
Uma voz que me fale de perdão
E parta o bronzeo selo da agonia!

Ah! é cruel! Mas talvez um dia
Compreendas tão funda expiação
E o pobre nome que detestas hoje
Murmures entre lágrimas então!
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Arquétipo

Ele era belo; na sua espaçosa fronte
O dedo do Senhor gravado havia
O sigilo do gênio; em seu caminho
O hino da manhã soava ainda,
E os pássaros da selva gorjeando
Saudavam-lhe a passagem neste mundo.

Sim, era uma criança, e no entanto
Friez de morte lhe coava n'alma!
O seu riso era triste como o inverno,
E dos olhos cansados, nem um raio
Nem um clarão, nem pálido lampejo
Da mocidade o fogo revelavam!

Era-lhe a vida uma comédia insípida,
Estúpida e sem graça, - ele a passava
Com a fria indiferença do marujo
Que fuma o seu cachimbo reclinado
Na proa do navio olhando as vagas,
- Vivia por viver.... porque vivia.

Em nada acreditava; há muito tempo
Que a idéia de Deus soprara d'alma
Como das botas a poeira incômoda.
O Evangelho era um livro de anedotas,
Beethoven torturava-lhe os ouvidos,
A Poesia provocava o sono.

Muita donzela suspirou por ele,
Muita beleza lhe dormiu nos braços,
Mas frio como o gênio da descrença,
Após um'hora de gozar maldito,
Saciado as deixou, como o conviva
A mesa do festim, - farto e cansado. -

Era mais caprichoso, - mais bizarro
Do que um filho de Álbion, mais volúvel
Que um profundo político; uma tarde
Após haver jantado, recordou-se
Que ainda era solteiro; pelo Papa!
- É preciso tentar, disse consigo.

Quatro dias depois tinha cansado.
Escolhera uma noiva descuidoso,
Como um brinco chinês - um livro in-fólio,
Ao altar conduziu-a, distraído,
E as juras divinais do casamento
Repetiu, bocejando ao sacerdote.

Como tudo na vida, o matrimônio
Bem cedo o aborreceu; após três meses
Disse Adeus à mulher que pranteava,
E acendendo um cigarro, a passos lentos
Dirigiu-se ao teatro onde assistiu
Um drama de Feuillet, - quase dormindo. -

Por fim de contas, uma noite bela,
Depois de ter ceado entre dous padres,
Em casa de morena Cidalisa.
Pegou numa pistola e entre as fumaças
De saboroso - Havana - à eternidade
Foi ver si divertia-se um momento.
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Noturno

Minh'alma é como um deserto
Por onde romeiro incerto
Procura uma sombra em vão;
É como a ilha maldita
Que sobre as vagas palpita
Queimada por um vulcão!

Minh'alma é como a serpente
Que se torce ébria e demente
De vivas chamas no meio;
É como a doida que dança
Sem mesmo guardar lembrança
Do cancro que rói-lhe o seio!

Minh'alma é como o rochedo
Donde o abutre e o corvo tredo
Motejam dos vendavais;
Coberto de atros matizes,
Lavrado das cicatrizes
Do raio, nos temporais!

Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram,
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!

Tombam as selvas frondosas,
Cantam as aves mimosas
As nênias da viuvez;
Tudo, tudo, vai finando,
Mas eu pergunto chorando:
Quando será minha vez?

No véu etéreo os planetas,
No casulo as borboletas
Gozam da calma final;
Porém meus olhos cansados
São, a mirar, condenados
Dos seres o funeral!

Quero morrer! Este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel!
Minha esperança esvaiu-se,
Meu talento consumiu-se
Dos martírios ao tropel!

Quero morrer! Não é crime
O fardo que me comprime
Dos ombros lançá-lo ao chão;
Do pó desprender-me rindo
E, as asas brancas abrindo,
Perder-me pela amplidão!

Vem, oh! morte! A turba imunda
Em sua ilusão profunda
Te odeia, te calunia,
Pobre noiva tão formosa
Que nos espera amorosa
No termo da romaria!

Virgens, anjos e crianças,
Coroadas de esperanças,
Dobram a fronte a teus pés!
Os vivos vão repousando!
E tu me deixas chorando!
Quando virá minha vez?

Minh'alma é como um deserto
Por onde o romeiro incerto
Procura uma sombra em vão;
É como a ilha maldita
Que sobre as vagas palpita
Queimada por um vulcão!
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Voz do Poeta

Perdão, Senhor meu Deus! Busco-te embalde
Na natureza inteira! O dia, a noite,
O tempo, as estações mudos sucedem-se,
Mas eu sinto-te o sopro dentro dalma!
Da consciência ao fundo te contemplo!
E movo-me por ti, por ti respiro,
Ouço-te a voz que o cérebro me anima,
E em ti me alegro, e canto, e penso!

Da natureza inteira que aviventas
Todos os elos a teu ser se prendem,
Tudo parte de ti e a ti se volta;
Presente em toda a parte, e em parte alguma,
Íntima fibra, espírito infinito,
Moves potente a criação inteira!
Dás a vida e a morte, o olvido e a glória!
Se não posso adorar-te face a face,
Oh! basta-me sentir-te sempre, e sempre!

Eu creio em ti! eu sofro, e o sofrimento
Como ligeira nuvem se esvaece
Quando murmuro teu sagrado nome!
Eu creio em ti! e vejo além dos mundos,
Minha essência imortal brilhante e livre,
Longe dos erros, perto da verdade,
Branca dessa brancura imaculada
Que os gênios inspirados nesta vida
Em vão tentaram descobrir no mármore!
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Estâncias

O que eu adoro em ti não são teus olhos,
Teus lindos olhos cheios de mistério,
Por cujo brilho os homens deixariam
Da terra inteira o mais soberbo império.

O que eu adoro em ti não são teus lábios,
Onde perpétua juventude mora,
E encerram mais perfumes do que os vales
Por entre as pompas festivais da aurora.

O que eu adoro em ti não é teu rosto
Perante o qual o marmor descorara,
E ao contemplar a esplêndida harmonia
Fídias, o mestre, seu cinzel quebrara.

O que eu adoro em ti não é teu colo,
Mais belo que o da esposa israelita,
Torre de graças, encantado asilo,
Aonde o gênio das paixões habita.

O que eu adoro em ti não são teus seios,
Alvas pombinhas que dormindo gemem,
E do indiscreto vôo duma abelha
Cheias de medo em seu abrigo tremem.

O que eu adoro em ti, ouve, é tu'alma,
Pura como o sorrir de uma criança,
Alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de crenças, rica de esperança.

São as palavras de bondade infinda
Que sabes murmurar aos que padecem,
Os carinhos ingênuos de teus olhos
Onde celestes gozos transparecem!...

Um não sei quê de grande, imaculado,
Que faz-me estremecer quando tu falas,
E eleva-me o pensar além dos mundos
Quando, abaixando as pálpebras, te calas.

E por isso em meus sonhos sempre vi-te
Entre nuvens de incenso em aras santas,
E das turbas solícitas no meio
Também contrito hei-te beijado as plantas.

E como és linda assim! Chamas divinas
Cercam-te as faces plácidas e belas,
Um longo manto pende-te dos ombros
Salpicado de nítidas estrelas!

Na doida pira de um amor terrestre
Pensei sagrar-te o coração demente...
Mas ao mirar-te deslumbrou-me o raio...
Tinhas nos olhos o perdão somente!
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O Foragido

(Canção)

Minha casa é deserta; na frente
Brotam plantas bravias no chão,
Nas paredes limosas - o cardo -
Ergue a fronte silente ao tufão.

Minha casa é deserta. O que é feito
Desses templos benditos d'outrora,
Quando em torno cresciam roseiras,
Onde as auras brincavam n'aurora?

Hoje a tribo das aves errantes
Dos telhados se acampa no vão,
A lagarta percorre as muralhas,
Canta o grilo pousado ao fogão.

Das janelas no canto, as aranhas
Leves tremem nos fios dourados,
As avencas pululam viçosas
Na umidade dos muros retados.

Tudo é tredo, meu Deus! o que é feito
Dessas eras de paz que lá vão,
Quando junto do fogo eu ouvia
As legendas sem fim do serão?

No curral esbanjado, entre espinhos,
Já não bala ansioso o cordeiro,
- Nem desperta-se ao toque do sino -
- Nem ao canto do galo ao poleiro. -

Junto à cruz que se eleva na estrada
Seco e triste se embala o chorão,
Não há mais o esfumar das acácias,
Nem do crente a - sentida oração.

Não há mais uma voz nestes ermos
Um gorjeio das aves no val,
Só a fúria do vento retroa
Alta noite agitando o ervaçal!

Ruge, oh vento gelado do norte,
Torce as plantas que brotam no chão,
Nunca mais eu terei venturas
Desses tempos de paz que lá vão!

Nunca mais desses dias passados
Uma luz surgirá dentre brumas!
As montanhas se embuçam nas trevas,
As torrrentes se vendam de espumas!

Corre pois vendaval das tormentas,
Hoje é tua esta morna solidão!
Nada tenho, que um céu lutulento
E uma cama de espinhos no chão!

Ruge, voa, que importa! sacode
Em lufadas as crinas da serra,
Alma nua de crença e esperanças
Nada tenho a perder sobre a terra!

Vem, meu pobre e fiel companheiro,
Vamos, vamos depressa, meu cão,
Quero ao longo perder-me das selvas
Onde passa rugindo o tufão!
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Tristeza

Eu amo a noite quando deixa os montes
Bela, mas bela de um horror sublime
E sobre a face dos desertos quedos
Seu régio selo de mistério imprime

Amo os lampejos, verde-azul, funéreos
Que às horas mortas erguem-se da terra,
E enchem de susto o viajante incauto
No cemitério de sombria serra

Eu amo a noite com seu manto escuro
De tristes goivos coroada a fonte
Amo a neblina, que pairando ondeia
Sobre o fastígio de elevado monte

Amo nas plantas, que na tumba crescem
De errante brisa o funeral cicio;
porque minh'alma, como a noite, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio

Amo o silêncio, os areais extensos,
Os vastos brejos e os sertões sem dia
Porque meu seio como a sombra é triste
Porque minh'alma é de ilusões vazia

Amo o furor do vendaval que ruge
Das asas densas sacudindo estrago
Silvos de bala, turbilhões de fumo
Tribos de corvos em sangrento lago

Amo ao silêncio do ervaçal partido
Da ave noturna o funerário pio
Porque minh'alma, como a noite, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio

Amo a tormenta, o prepassar dos ventos
A voz da morte no fatal parcel;
Porque minh'alma só traduz tristeza,
Porque meu seio se abrevou de fel

Amo o corisco que deixando a nuvem
O cedro parte da montanha, erguido,
Amo do sino, que por morto soa,
O triste dobre n'amplidão perdido

Amo na vida de miséria e lodo,
Das desventuras o maldito selo,
Porque minh'alma se manchou de escárnios,
Porque meu seio se cobriu de gelo

Amo do nauta o doloroso grito
Em frágil prancha sobre mar de horrores
Porque meu seio se tornou de pedra,
Porque minh'alma descorou de dores

Como a criança, do viver nas veigas
Gastei meus dias namorando as flores
Finos espinhos os meus pés rasgaram
Pisei-os ébrio de ilusões e amores

Tenho um deserto de amargura n'alma
Mas nunca a fronte curvarei por terra
Tremo de dores ao tocar nas chagas
Nas vivas chagas que meu peito encerra

A paz, o amor, a quietação, o riso
A meus olhares não têm mais encanto,
Porque minh'alma se despiu de crenças
E do sarcasmo se embuçou no manto
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A Sonâmbula

Virgem de loiros cabelos
- Belos, -
Como cadeia de amôres,
Onda vás tão triste agora
- Hora -
De tão sinistros horrores?

Sob nuvem lutulenta,
- Lenta, -
Se esconde a pálida lua;
Nas sombras os gênios combatem;
- Batem -
Os ventos a rocha nua.

Noite medonha e funesta
- Esta -
Fundos mistérios encerra!
Não corras, olha, repara,
- Pára, -
Escuta as vozes da serra!...

Dos furacões nas lufadas,
- Fadas -
Traidoras passam nos ares!
Cruentos monstros e espiam!
- Piam -
As corujas nos palmares!

Bela doida, se soubesses
- Êsses -
Êsses gritos o que dizem,
Ah ! por certo que ouviras,
- Viras -
Que tredas coisas predizem!

Mas, infeliz, continuas!
- Nuas -
As tuas espáduas são!
E sob teus pés mofinos,
- Finos, -
Prendem-se às urzes do chão!

O orvalho teu rosto molha;
- Olha -
Como branca e fria estás!
Virgem de loiros cabelos,
- Belos -
Por Deus! conta-me onde vás!

Nestes ervaçais sem têrmos,
- Ermos -
Ninguém pode te acudir...
Toma sentido, sossega,
- Cega! -
Vê, são horas de dormir!

Teus olhos giram incertos;
- Certos -
Contudo teus passos vão!
Teu ser que a ilusão persegue
- Segue -
O impulso de oculta mão!

Ai! dormes! Talvez risonho
- Sonho -
Te chame a bailes brilhantes!
Talvez vozes que te encantam
- Cantam -
A teus ouvidos amantes!

Talvez eus ligeiros passos
- Paços -
Pisem d'oiro construidos!
Talvez quanto há de perfume
- Fume -
Pra agradar teus sentidos!

Mas ah ! Na cabana agora,
- Ora -
Tua pobre mãe por ti;
E teu pai além divaga,
- Vaga -
Sem saber que andas aqui!

Virgem de loiros cabelos
- Belos, -
Como cadeia de amôres,
Onda vás tão triste agora
- Hora -
De tão sinistros horrores?
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Eu Amo a Noite

Eu amo a noite quando deixa os montes,
Bela, mas bela de um horror sublime,
E sobre a face dos desertos quedos
Seu régio selo de mistério imprime.

Amo o sinistro ramalhar dos cedros
Ao rijo sopro da tormenta infrene,
Quando antevendo a inevitável queda
Mandam aos ermos um adeus solene.

Amo os penedos escarpados onde
Desprende o abutre o prolongado pio,
E a voz medonha do caimã disforme
Por entre os juncos de lodoso rio.

Amo os lampejos verde-azuis, funéreos,
Que às horas mortas erguem-se da terra
E enchem de susto o viajante incauto
No cemitério de sombria serra.

Amo o silêncio, os areais extensos,
Os vastos brejos e os sertões sem dia,
Porque meu seio como a sombra é triste,
Porque minh'alma é de ilusões vazia.

Amo o furor do vendaval que ruge,
Das asas densas sacudindo o estrago,
Silvos de balas, turbilhões de fumo,
Tribos de corvos em sangrento lago.

Amo as torrentes que da chuva túmidas
Lançam aos ares um rumor profundo,
Depois raivosas, carcomendo as margens,
Vão dos abismos pernoitar no fundo.

Amo o pavor das soledades, quando
Rolam as rochas da montanha erguida,
E o fulvo raio que flameja e tomba
Lascando a cruz da solitária ermida.

Amo as perpétuas que os sepulcros ornam,
As rosas brancas desbrochando à lua,
Porque na vida não terei mais sonhos,
Porque minh'alma é de esperanças nua.

Tenho um desejo de descanso, infindo,
Negam-me os homens; onde irei achá-lo?
A única fibra que ao prazer ligava-me
Senti partir-se ao derradeiro abalo!...

Como a criança, do viver nas veigas,
Gastei meus dias namorando as flores,
Finos espinhos os meus pés rasgaram,
Pisei-os ébrio de ilusões e amores.

Cendal espesso me vendava os olhos,
Doce veneno lhe molhava o nó...
Ai! minha estrela de passadas eras,
Por que tão cedo me deixaste só?

Sem ti, procuro a solidão e as sombras
De um céu toldado de feral caligem,
E gasto as horas traduzindo as queixas
Que à noite partem da floresta virgem.

Amo a tristeza dos profundos mares,
As águas torvas de ignotos rios,
E as negras rochas que nos plainos zombam
Da insana fúria dos tufões bravios.

Tenho um deserto de amarguras nalma,
Mas nunca a fronte curvarei por terra!...
Ah! tremo às vezes ao tocar nas chagas,
Nas vivas chagas que meu peito encerra!
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Fagundes Varela (1841 - 1875)


Fagundes Varela (Luís Nicolau F.V.), poeta, nasceu em Rio Claro, RJ, em 18 de agosto de 1841, e faleceu em Niterói, RJ, em 17 de fevereiro de 1875. É o patrono da Cadeira nº 11, por escolha do fundador Lúcio de Mendonça.

Era filho do Dr. Emiliano Fagundes Varela e de Emília de Andrade, ambos de famílias fluminenses bem situadas. Passou a infância na fazenda natal e na vila de S. João Marcos, de que o pai era juiz. Depois, residiu em vários locais. Primeiro em Catalão (Goiás), para onde o magistrado fora transferido em 1851 e onde Fagundes Varela teria conhecido o juiz municipal Bernardo Guimarães. De volta à terra natal, residiu em Angra dos Reis e Petrópolis, onde fez os estudos do primário e secundário. Em 1859, foi terminar os preparatórios em São Paulo. Só em 1862 matricula-se na Faculdade de Direito, que nunca terminou, preferindo a literatura e dissipando-se na boêmia. Em 1861, publicara o primeiro livro de poesias, Noturnas.

O ano era de 1841, em 17 de agosto nasce Luiz Nicolau Fagundes Varela, na cidade de Rio Claro, Rio de Janeiro. Família de boa posição era essa que recebia o futuro poeta romântico, Dona Emília de Andrade e Senhor Emiliano Fagundes Varela, este, juiz da Vila de São Marcos, onde Fagundes Varela passou a maior parte da infância.

Fagundes Varela viveu em várias cidades do Rio de Janeiro, consta que passou por Angra dos Reis e Niterói. Mas foi só em 1859 que veio para São Paulo, quando iniciou a Faculdade de Direito.

Iniciou, mas não concluiu. Como era de se esperar, mais inclinado estava para a produção literária, era criador de versos por excelência, e também muito propenso - a verdade aqui deve ser dita - à vida boêmia dos artistas da época. Na Faculdade de Direito, reunia-se a outros estudantes - de mesmo pendor - em cemitérios, como o da Consolação, para noitadas literárias e etílicas. A vida do jovem poeta havia se tornado outra, muito mais agitada e emocionante do que a antiga, que levava no interior do Rio de Janeiro.

Em meio a um desatino e outro, Fagundes Varela conheceu famosa e elegante prostituta, a Ritinha Sorocabana. Viveu com ela grandes e enlouquecidas histórias, que o levaram para ainda mais distante da faculdade (e mais perto do alcoolismo, da falta de dinheiro e da literatura).

O poeta era mesmo muito bonito e encantador, com cabelos longos e olhar voltado à vida mundana, entregara-se às experiências que o tornara, aos olhos da população puritana da época, um grande irresponsável. Em contrapartida, aos olhos dos colegas de faculdade e dos artistas em geral, um sonhador, naturalmente romântico e indiscutível poeta exemplar daqueles tempos.
Sorocaba de fato estava marcada para fazer história em Fagundes Varela, e não ficou apenas por conta do apelido da meretriz.

A cidade representava para a época espaço de curiosidades. Por volta de 1860, havia em Sorocaba a feira de muares. Não é novidade que a feira era bastante conhecida. Por aqui passavam todos os que queriam seguir para o interior e também os que desceriam, em sentido contrário, para São Paulo e para o Sul.

A feira de muares de Sorocaba contava com diversas espécies de animais à venda, comércio de jóias e artesanatos, redes e arreamentos, comidas típicas, como cuscuz de guaru, bolinhos de peixe do rio Sorocaba e doces caseiros. A cidade, durante os meses da feira, transformava-se num grande mercado de variedades e atrações.

Sorocaba tinha também forte influência circense. Era este lugar, para os visitantes, prato cheio de diversões. Sim, pois, como a freqüência de pessoas era intensa, também as distrações deveriam satisfazer aos visitantes.

Um dos circos mais conhecidos da época era o da família Luande, “Circo Eqüestre e Ginástico Cia Luande ”, do artista circense Alexandre Luande. Foi este circo que chegou em São Paulo no ano de 1861, onde a amazona Alice Guilhermina Luande, filha do dono do circo, encantou por completo o coração do poeta Varela com seus números eqüestres apresentado no Teatro São José.

Juntaram-se então as duas histórias, a feira ao circo.

No ano seguinte, Fagundes Varela veio a Sorocaba em época da feira de muares, para encontrar Guilhermina, ela então ainda menor de idade, ele não menos jovem, aos vinte e um anos.

A feira, que reservava um clima agradável e pitoresco, envolveu ainda mais os enamorados. Isto fez com que Fagundes Varela voltasse a São Paulo decidido a casar-se com Guilhermina.

Foi então que começaram os inúmeros problemas com a família do poeta. Já insatisfeito com o rendimento do filho nos estudos, Emiliano Varela foi insistentemente contrário ao casamento do rapaz, o sonhado futuro e bem sucedido advogado da família, com uma artista de espetáculos eqüestre num circo em Sorocaba. Parecia inacreditável demais para o juiz aceitar ver o filho nessas condições. Não sabia ele que o filho era poeta romântico. Se fora capaz de mil e uma loucuras por bebidas, prostitutas e poesias, seria capaz de pelo menos o dobro (senão mais) por um grande amor.

Para conseguir que seu pai autorizasse o casamento, Varela cavalgou de Sorocaba a São Paulo e de lá seguiu até o Rio de Janeiro (desta vez de vapor) para tentar uma conversa séria e sincera com o pai a respeito de suas intenções com Alice Guilhermina. Sobre isto conta o biógrafo Edgard Cavalheiro, segundo Sérgio Coelho de Oliveira , que Fagundes Varela pensou, balbuciou, mas não tomou coragem e nada disse ao pai. A coragem mesmo ficou só por conta do ímpeto de seguir viagem ao Rio de Janeiro, deixando em seu quarto alugado em São Paulo o cavalo que comprara em Sorocaba (é mais do que lógico: o cavalo foi encontrado morto, dias depois pelo dono da pensão, enquanto o poeta tentava algum discurso para convencer o pai do casamento).

De volta a São Paulo, ainda infeliz por nada ter conseguido, recebeu autorização do pai para o casamento. Devia de estar o juiz um pouco mais conformado com o fato de ter um filho poeta e romântico.

O casamento aconteceu no dia 28 de maio de 1862 numa residência, às 18h. O registro consta no Livro de Casamentos da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba, arquivado na Cúria Diocesana e disponível no Museu Histórico Sorocabano, no parque zoológico “Quinzinho de Barros”.

Fagundes Varela e Alice Guilhermina Luande viveram em Sorocaba por alguns anos. O poeta estava mesmo abandonando o futuro no Direito para acompanhar o circo em suas apresentações. Escrevia com freqüência ao Correio Paulistano e contava e declamava suas poesias aos quatro ventos do interior paulista.

Embora apaixonado pela artista amazona, Varela era um boêmio incontrolável. Estava novamente ele envolvido com a vida universitária, com a bebida e com os versos sempre aplaudidos pelos que tomavam contato com ele.

A situação poderia melhorar com a chegada do filho, trazer-lhe mais responsabilidade, talvez. Mas o fato é que piorou.

Nasceu em 4 de setembro de 1863, Emiliano, nome do avô, pai de Varela, e veio a falecer em 11 de dezembro do mesmo ano, com pouco mais de três meses de vida. Foi então que a vida do poeta decaiu o quanto pôde. Escreveu em homenagem ao filho morto o seu poema unanimemente tido como o mais belo e triste de sua obra poética “Cântico do Calvário”.

Sempre maltrapilho, infeliz, sem esperanças, entregou-se por completo à bebida. Nessa época, segundo artigo de Sérgio Coelho de Oliveira , o poeta Fagundes Varela estreitou relações amigáveis com tropeiros, que lhes cediam lugar para dormir e dividiam com ele a comida. É possível inclusive ler em alguns de seus versos essa experiência ao pé da fogueira e ao som da viola tropeira. Eram nesses momentos que a amargura tomava conta do poeta e o levava ainda mais distante da vida antes sonhada pelo juiz, seu pai, e tão mais longe ainda da que ele próprio sonhara no dia de seu casamento.

Numa nova tentativa de organizar sua vida, Fagundes Varela voltou a São Paulo para concluir o curso de Direito e dar novo rumo a sua vida. Isto, porém, levou-o novamente ao encontro das alucinadas e infelizes festas universitárias.

Há, inclusive, uma história muito comentada – e um tanto absurda – na qual nosso poeta teve participação efetiva.

Costumavam, os estudantes da São Francisco, organizar saraus em cemitérios. Este sarau, porém, teve final mais trágico do que o comum. Houve, certa vez, que uma idéia abrilhantou as cabeças alucinadas dos românticos: a coroação de uma musa para a cerimônia no cemitério da Consolação.

A então denominada Rainha dos Mortos, foi escolhida pelos estudantes: uma garota com deficiência mental chamada Eufrásia. Trataram os estudantes de arrumar um caixão, colocaram-na dentro e seguiram caminho ao cemitério, recitando poemas de Byron e bebendo o quanto fosse possível.

O absurdo só foi tomado a sério quando um dos estudantes percebeu que estava a garota Eufrásia morta de fato, não apenas desmaiada de susto como esperavam.

A polícia esteve à procura dos envolvidos com a morte da garota, mas pouco tempo depois o caso fora abafado por completo. Tratava-se, pois, de um grupo de jovens estudantes filhos de pessoas renomadas no Brasil, era esse o caso de Varela, filho de juiz de direito.

O que aconteceu ao poeta foi ter de seguir viagem, quase como que numa fuga, e tentar terminar seus estudos no Recife.

Mas para quem pensa que a vida de um artista romântico tem limite de desgraça, assustar-se-á neste momento da história. Em 1865 , enquanto estava no Recife para finalmente concluir seus estudos, morre Alice Guilhermina Luande, em Rio Claro, cidade natal de Varela. Ela havia sido levada por ele até sua família antes de sua partida para o Recife.

O que restava ao poeta era a poesia, esta que sempre esteve em primeiro lugar em sua vida.

Ele voltou a São Paulo, matriculando-se em 1867 no 4º ano do curso de Direito. Abandonou de vez o curso e recolheu-se à casa paterna, na fazenda onde nascera, em Rio Claro, onde permanece até 1870, poetando e vagando pelos campos. Deixou-se sempre ficar na vida indefinível de boêmio, sem rumo, sem destino determinado. Casou-se pela segunda vez com a prima Maria Belisária de Brito Lambert, com quem teve duas filhas e um filho, este também falecido prematuramente. Em 1870, mudou-se com o pai para Niterói, onde viveu até o fim da vida, com largas estadas nas fazendas dos parentes e certa freqüência nas rodas da boêmia intelectual do Rio.

Vivendo na última fase do Romantismo, a sua poesia revela um hábil poeta do verso. Em "Arquétipo", um dos primeiros poemas, faz profissão de fé de tédio romântico, em versos brancos. Embora o preponderante em sua poesia seja a angústia e o sofrimento, evidenciam-se outros aspectos importantes: o patriótico, em O estandarte auriverde (1863) e Vozes da América (1864); o amoroso, na fase lírica, dos poemas ligados à natureza, e, por fim, o místico e religioso. O poeta não deixa de lado, também, os problemas sociais, como o abolicionismo.

Sempre inquieto e torturado, conseguia refúgio somente junto à Natureza, sua velha conhecida. Por esta razão, sua poesia - com fortes características românticas - expõe, em contraste, a contemplação da vida no campo e a vida na cidade, com seus vícios e, conseqüentemente, o aumento do sofrimento. Revela ainda uma fase de forte espírito religioso. Sua obra inclui: "Cantos Meridionais" (1869), "Cantos do Ermo e da Cidade" (1869), "Anchieta ou Evangelho na Selva" (1875), "Cantos Religiosos" (1878) e "Diário do Lázaro" (1880).

Importa dizer que, além de patrono da cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras, além de legar sua obra poética, deixou seu nome inscrito numa rua em Sorocaba, logo atrás da atual rodoviária. A rua Fagundes Varela, ali, aonde hoje, mais de 140 anos depois, tantos outros viajantes ainda chegam para encantarem-se com a cidade, para encantarem-se com suas histórias e amores. Ali, na mesma rodoviária, aonde tantos outros sorocabanos também vão, a passeio, a estudo ou a ganhar outras ruas mais distantes, carregando a terra rasgada em histórias das mais diversas (felizes ou infelizes), mas histórias de Sorocaba.

OBRAS: Noturnas (1861); Vozes da América (1864); Cantos e fantasias (1865); Cantos meridionais e os Cantos do ermo e da cidade (1869). Deixou inédito o Anchieta ou Evangelho na selva (1875), O diário de Lázaro (1880) e outras poesias. Otaviano Hudson, amigo fiel, reuniu os Cantos religiosos (1878), com o fim de auxiliar a viúva e filhos do poeta. As Poesias completas, org. de Frederico José da Silva Ramos, saíram em 1956.

Fontes:
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/f/fagundesbio.htm
http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u599.jhtm
http://www.sorocaba.com.br/enciclopediasorocabana/

James Joyce (Dublinenses)



Primeiro livro de ficção do escritor irlandês, reúne 15 contos escritos quanto ele tinha 23 anos. O próprio Joyce dividiu as histórias em quatro temas: infância, adolescência, vida madura e vida pública. Os contos acabam formando uma espécie de história moral da Irlanda, como definiu o escritor. O estilo dos textos é naturalista, com clara influência de Flaubert, de Tchecov e de Maupassant.

Síntese

Estes quinze contos que compõem Dublinenses são sem dúvida a melhor porta de entrada para o conhecimento da obra do mais radical inovador da literatura do século 20.

Em narrativas curtas, o jovem irlandês James Joyce (1882-1941) presta aqui o seu tributo à grande tradição realista do século 19, sobretudo a Flaubert e Tchecov. Mas, como não poderia deixar de ser, o realismo de seus precursores é sutilmente subvertido nos pequenos retratos "fora de foco" de sua Dublin natal.

A trama dos contos pode ser vista como uma série de variações sobre temas irlandeses: o catolicismo rígido, a severa educação escolar, as relações familiares pautadas pela autoridade e a violência, o alcoolismo, a vida cinzenta da classe média, o nacionalismo diante da poderosa Inglaterra.

Vistas em conjunto, essas ficções dão forma ao que o próprio escritor definiu como "uma história moral da Irlanda".

História pública, mas vista predominantemente a partir de um ângulo privado: o escritório, a casa, o Irish pub. Sem chegar ao monólogo interior que marcaria as obras da maturidade, Joyce devassa os movimentos íntimos de suas personagens, confundindo o dentro e o fora, a impressão subjetiva e as miudezas cotidianas. Enfim: todos os elementos que seriam expandidos até a explosão em suas obras maiores, Ulisses e Finnegans Wake.

Em 1987, o cineasta norte-americano John Huston fez o último filme de sua carreira baseado no conto mais extenso e mais famoso de Dublinenses: "Os Mortos", incluído em incontáveis antologias dos maiores contos em língua inglesa de todos os tempos.

Trechos do livro Dublinenses
As irmãs

Desta vez não havia esperança para ele: fora o terceiro ataque. Noite após noite, ao passar diante da casa (era tempo de férias), observava o retângulo iluminado da janela e, todas as noites, encontrava-o com a mesma luz pálida e uniforme. Se estivesse morto, pensava, eu veria o reflexo das velas nas cortinas escuras, pois sabia que duas velas devem ser colocadas à cabeceira de um defunto. Dissera-me várias vezes "não ficarei muito tempo neste mundo" e eu julgara vãs suas palavras. Sabia agora que eram verdadeiras. Toda noite, ao olhar a janela, murmurava comigo a palavra paralisia. Ela sempre soara estranha aos meus ouvidos, como a palavra gnômon em Euclides e simonia no catecismo. Agora, porém, soava como o nome de um ente maléfico e pecaminoso. Enchia-me de terror, mas ainda assim ansiava contemplar de perto seu trabalho implacável.

Quando desci para o jantar, o velho Cotter estava sentado junto à lareira, fumando. Enquanto minha tia preparava-me um prato de aveia, ele disse, como retomando uma observação anterior:

- Não, não afirmaria que era exatamente... mas havia nele algo de excêntrico... de misterioso. Em minha opinião...

Começou a tirar baforadas do cachimbo, por certo ganhando tempo para forjar a tal opinião. Velho enfadonho, tolo! No princípio, quando o conhecemos, costumava ser interessante com suas conversas sobre vermes e desmaios, mas logo cansara-me dele e de suas intermináveis histórias a respeito da destilaria.

- Tenho minha teoria sobre isso - prosseguiu. - Penso que se trata de um desses... casos peculiares... Mas é difícil afirmar...

Voltou a aspirar o cachimbo, sem nos expor a teoria. Vendo-me de olhar atento, meu tio dirigiu-se a mim:

- Bem, seu amigo morreu. É uma notícia triste para você.

- Quem?

- O padre Flynn.

- Está morto?

- O senhor Cotter acaba de nos contar. Passou há pouco diante da casa...

Sabia que me observavam e continuei a comer como se o fato não tivesse interesse para mim. Meu tio explicou ao velho Cotter:

- O garoto e ele eram grandes amigos. O velhote ensinou-lhe muitas coisas, compreende? Dizem que o queria muito bem.

- Deus tenha misericórdia de sua alma - murmurou, em tom piedoso, minha tia.

O velho Cotter fitou-me um instante. Senti seus olhos pequenos e negros, redondos como duas contas, examinarem-me. Mas não lhe daria o prazer de desviar meus olhos do prato. Ele retornou ao cachimbo e, passado algum tempo, cuspiu grosseiramente na lareira.

- Não gostaria que um filho meu - recomeçou - tivesse muito a falar com um homem desse tipo. - Que pretende dizer com isso, senhor Cotter? - perguntou minha tia.

- Que não é nada bom para uma criança. Minha opinião é a seguinte: rapazes devem andar e se divertir com rapazes da mesma idade e não... Estou certo, Jack?

- Também penso assim - concordou meu tio. - Ele que aprenda a se defender. Estou sempre dizendo a esse rosa-cruz aí: faça exercícios. Quando eu era rapazote, tomava toda manhã, fosse inverno ou verão, uma ducha fria. É o que me conserva firme até hoje. Cultura é coisa muito boa, mas... Voltou-se para minha tia:

- ... creio que o senhor Cotter apreciaria uma fatiazinha desse carneiro.

- Não, não. Para mim não - recusou o velho Cotter.

Minha tia trouxe a travessa do guarda-comida e colocou-a na mesa:

- Mas por que não é bom para as crianças, senhor Cotter? - insistiu ela.

- Porque são muito impressionáveis. Quando vêem coisas como essas, a senhora sabe, isso tem um efeito...

Enchi a boca de aveia, temendo que minha raiva me traísse. Velho narigudo, enfadonho, imbecil!

Era bem tarde quando adormeci. Embora irritado com o velho Cotter, que me tratara como criança, esforçava-me em compreender o sentido de suas frases inacabadas. Na escuridão do quarto, imaginei estar vendo o rosto severo e grisalho do paralítico. Puxei as cobertas sobre a cabeça e procurei pensar no Natal, mas o rosto continuou a perseguir-me. O espectro movia os lábios e compreendi que desejava confessar-me alguma coisa. Senti a alma retroceder para uma região agradável e corrupta e, também lá, encontrei-o esperando por mim. Começou a confessar-se numa voz murmurada e eu me indagava por que razão ele não parava de sorrir e por que seus lábios estavam tão úmidos de saliva. Recordei-me então que morrera de paralisia e percebi que eu também sorria delicadamente, como para absolvê-lo da simonia do seu pecado.

Na manhã seguinte, após o café, desci para observar a pequena casa da rua Great Britain. Era uma loja modesta, designada pelo vago nome de Armarinhos. Seus artigos consistiam, principalmente, em guarda-chuvas e botas para crianças. Em dias normais, havia uma tabuleta pendurada na vitrina: Recobrem-se guarda-chuvas. Não se via a tabuleta agora, pois as cortinas estavam fechadas. Uma coroa de crepe estava presa à maçaneta por uma fita. Duas mulheres pobres e um garoto entregador de telegramas liam o cartão espetado na coroa:

1.° de julho de 1895

Reverendo James Flynn (outrora da Igreja de Santa Catarina, rua Meath), com a idade de sessenta e cinco anos.

R. I. P.

O cartão convenceu-me de que estava morto e a comprovação perturbou-me. Se estivesse vivo, eu entraria no quarto pequeno e escuro nos fundos da loja, onde o encontraria na poltrona junto à lareira, sumido quase dentro do seu casaco. Titia talvez lhe tivesse mandado um pacotinho de High Toast e esse presente arrancá-lo-ia do entorpecimento. Era sempre eu quem esvaziava o pacote na caixinha, pois suas mãos, trêmulas demais, não permitiriam que ele próprio o fizesse sem derramar metade no chão. Mesmo quando levava o rapé ao nariz, com a mão larga e incerta, minúsculas nuvens de fumo escapavam-lhe por entre os dedos sobre o casaco. Essa constante chuva de tabaco era talvez responsável pela cor verde e surrada de seus paramentos eclesiásticos, pois o lenço vermelho, quase sempre sujo de uma semana, com que tentava remover as migalhas de fumo, mostrava-se de todo ineficaz.

Quis entrar para vê-lo, mas faltou-me coragem de bater à porta. Afastei-me devagar e, enquanto caminhava pela parte ensolarada da rua, ia lendo os anúncios de teatro nas vitrinas das lojas.

Surpreendia-me que nem eu, nem o dia, aparentasse tristeza e fiquei realmente aborrecido ao descobrir em mim uma sensação de alívio, como se sua morte me houvesse de alguma forma libertado. Espantava-me porque, como dissera meu tio na noite anterior, o velho padre instruíra-me muito. Havia cursado o colégio irlandês de Roma e ensinara-me a pronunciar corretamente o latim. Contara-me histórias acerca das catacumbas e de Napoleão Bonaparte; explicara-me o significado das diversas cerimônias da missa e das diferentes vestes usadas pelo sacerdote. Às vezes, divertia-se fazendo-me perguntas difíceis. Perguntava-me o que uma pessoa deveria fazer em determinada circunstância, se este ou aquele pecado era venial, mortal ou apenas imperfeição.

Suas inquirições mostravam-me como eram complexas e misteriosas certas normas da Igreja, que eu sempre tivera como atos muito simples. Os deveres do sacerdote para com a Eucaristia e o sigilo do confessionário pareceram-me tão graves que me admirava ter alguém suficiente coragem para assumi-los. E não me surpreendi ao ouvi-lo dizer que, elucidando aquelas complicadas questões, os padres haviam escrito livros tão grossos como o Anuário do Correio e em letra tão miúda como a das notas jurídicas dos jornais. Eu geralmente não sabia responder ou o fazia de forma tímida e hesitante, diante do que ele balançava a cabeça e sorria. Mandava-me às vezes dizer as réplicas da missa, que me fizera decorar. Enquanto eu tagarelava, ele sorria pensativamente, movendo a cabeça e aspirando, de tempo em tempo, grandes pitadas de rapé numa e noutra narina, alternadamente. Ao sorrir, mostrava grandes dentes enegrecidos e sua língua pendia sobre o lábio inferior - hábito que me causara má impressão no início de nossa amizade, quando ainda não o conhecia bem.

Caminhando pelo sol, recordei-me das palavras do velho Cotter e tentei lembrar a seqüência do sonho. Recordei-me de ter visto longas cortinas de veludo e uma lâmpada antiga oscilando suspensa. Tinha a sensação de haver estado muito longe - na Pérsia, pensei -, mas não pude reconstituir o final do sonho.

À tardinha, titia levou-me com ela para a visita de pêsames. Era quase noite, mas as janelas das casas voltadas para o ocaso refletiam o ouro fulvo de um aglomerado de nuvens. Nannie recebeu-nos no vestíbulo e como se fosse indelicado dirigir-lhe a palavra, titia limitou-se a apertar-lhe a mão. A idosa mulher apontou para cima interrogativamente e, ao assentimento de minha tia, adiantou-se a nós e subiu com esforço a escada estreita, arqueando a cabeça quase ao nível do corrimão. Parou no primeiro patamar e indicou-nos a porta aberta da câmara mortuária. Minha tia entrou. Vendo que eu hesitava, a mulher encorajou-me com repetidos acenos.

Entrei na ponta dos pés. Através das cortinas uma luz fosca e dourada invadia o quarto, empalidecendo a chama das velas. Ele estava no caixão. Nannie fez um sinal e nós três nos ajoelhamos ao pé da cama. Fingi estar rezando, mas não conseguia ordenar meus pensamentos, pois os murmúrios da velha distraíam-me. Reparava na forma grosseira com que sua saia estava presa às costas por um alfinete e nos saltos de suas botas de pano, gastos de um lado só. Ocorreu-me então a idéia de que o velho sorria deitado no caixão.

Mas não. Quando nos levantamos e fomos à cabeceira do leito, vi que não estava sorrindo. Jazia ali, imenso, solene, vestido como para a missa, as mãos segurando molemente um cálice. Na verdade seu rosto, circundado por escassa penugem branca, era truculento, escuro e maciço, com narinas negras e cavernosas. Um odor pesado no quarto: as flores.

Persignamo-nos e saímos. Na saleta, embaixo, encontramos Eliza dignamente sentada na poltrona que pertencera ao morto. Com timidez, dirigi-me à cadeira de costume, no canto, enquanto Nannie apanhava uma garrafa de xerez e alguns cálices no guarda-louças. Colocou-os na mesa e convidou-nos a tomar um pouco de vinho. A um sinal da irmã, serviu o xerez e passou-nos os cálices.

Insistiu para que eu aceitasse alguns biscoitos, mas recusei achando que iria fazer muito barulho mastigando-os. Pareceu um tanto desapontada com minha recusa e, em silêncio, foi sentar-se no sofá, atrás da irmã. Ninguém falava: olhávamos todos para a lareira apagada. Minha tia esperou que Eliza suspirasse e disse:

- Bem, foi para um mundo melhor.

Eliza tornou a suspirar e balançou a cabeça, concordando. Titia bateu com o dedo na haste do cálice, antes de provar um minúsculo gole.

- ... foi... tranqüila? - perguntou ela.

- Oh, muito tranqüila, madame - respondeu Eliza. - Nem se percebeu quando a respiração cessou. Teve uma bela morte, louvado seja Deus!

- E tudo?...

- Padre O'Rourke esteve com ele na terça-feira. Deu-lhe a extrema-unção e preparou-o.

- Então ele sabia?

- Estava totalmente conformado.

- Seu rosto mostra isso - comentou minha tia.

- Foi o que disse a mulher que veio lavá-lo: "Parece estar dormindo, tão resignada e serena é sua expressão." Ninguém podia imaginar que daria um defunto tão bonito.

- É verdade - concordou titia.

Bebeu outro pequeno gole e prosseguiu:

- Bem, senhorita Flynn, de qualquer maneira deve ser um grande consolo para vocês saber que fizeram tudo o que podiam. Foram muito devotadas a ele.

Eliza pôs as mãos nos joelhos, alisando o vestido:

- Ah! Pobre James! - exclamou. - Deus sabe que apesar de nossa pobreza fizemos o que estava ao nosso alcance. Não lhe deixaríamos faltar nada enquanto vivesse.

Nannie reclinara-se na almofada do sofá e parecia prestes a adormecer.

- Veja a pobre Nannie - disse Eliza, fitando-a. - Está esgotada. O trabalho que tivemos, procurando a mulher para lavá-lo, vestindo-o, colocando-o no caixão, cuidando dos preparativos para a missa na capela. Sem o padre O'Rourke, não sei o que seria de nós. Foi ele quem trouxe todas essas flores e os dois castiçais da capela. Escreveu também a nota para o Freeman's General, cuidou de todos os papéis para o enterro e do seguro do pobre James.

- Muita bondade dele, não acha? - disse titia.

Eliza fechou os olhos e balançou a cabeça, lentamente:

- Nas horas difíceis o que vale são os velhos amigos. Amigos em que se pode confiar.

- É bem verdade - aprovou minha tia. - Estou certa de que agora, na vida eterna para onde foi, ele não se esquecerá de vocês e de toda sua dedicação.

- Ah! Pobre James! - lamentou Eliza novamente. - Não nos dava muito trabalho. Não se notava sua presença na casa mais do que agora. No entanto, sei que morreu e...

- Quando tudo terminar é que sentirão sua falta - observou titia.

- Sei disso. Nunca mais lhe trarei a sopa de carne, nem a senhora, madame, o presenteará com o rapé. Oh, pobre James!

Ficou um instante em silêncio, a comungar com o passado, e acrescentou com expressão sagaz: - Sabe, notei que algo estranho lhe ocorria ultimamente. Sempre que lhe trazia a sopa, encontrava-o inerte na poltrona, a boca aberta, o breviário caído no chão.

Pôs um dedo sobre o nariz e franziu a testa:

- Mesmo assim, continuava a dizer que qualquer dia, antes do verão terminar, iria visitar nossa velha casa em Iristown e nos levaria com ele. Se pudesse alugar no Johnny Rush aqui perto, ao menos por um dia - afirmava ele - uma dessas carruagens modernas e silenciosas, com rodas macias para pessoas reumáticas, de que lhe falara padre O'Rourke, então sairíamos os três numa tarde de domingo... Era uma idéia fixa... Pobre James!

- Deus tenha misericórdia de sua alma! - rogou minha tia.

Eliza tirou o lenço e enxugou os olhos. Tornou a guardá-lo no bolso e fitou por um momento a lareira apagada, sem nada dizer.

- Foi sempre tão escrupuloso - recomeçou. - Os deveres do sacerdócio foram pesados demais para ele e sua vida foi, pode-se dizer, frustrada.

- Sim - disse minha tia. - Era um homem desiludido. Percebia-se isso.

Aproveitando o silêncio que se apossou da sala, fui até a mesa, provei meu vinho e retornei silenciosamente à minha cadeira. Eliza parecia ter mergulhado em profundo devaneio.

Respeitosamente, esperamos que ela rompesse o silêncio. Após longa pausa, ela disse lentamente:

- Aquele cálice que ele quebrou... Foi o começo de tudo. Disseram, é claro, que não tinha importância, o cálice estava vazio, creio eu. Mesmo assim... Disseram-lhe também que a culpa fora do coroinha, mas o pobre James era tão nervoso! Que Deus tenha piedade dele!

- Então foi isso? - perguntou minha tia. - Ouvi dizer que...

Eliza balançou a cabeça:

- Isso perturbou-lhe a mente. Depois do acidente, ficou desorientado. Divagava, não falava com ninguém. Certa noite, procuraram-no para atender a um chamado e não o encontraram em lugar nenhum. O sacristão sugeriu que tentassem a capela. Ele, padre O'Rourke e mais outro sacerdote que lá estava apanharam as chaves e levaram uma lanterna para procurá-lo. Imagine que ele estava sentado no confessionário, sozinho, olhos arregalados e rindo consigo mesmo.

Calou-se bruscamente como para ouvir alguma coisa. Também prestei atenção, mas não havia na casa o mínimo rumor e eu sabia que o velho sacerdote continuava no caixão, tal como o havíamos visto, solene e truculento na morte, um cálice inútil sobre o peito.

Eliza recomeçou:

- Os olhos arregalados e rindo sozinho... Naturalmente, ao verem isso, pensaram logo que alguma coisa não andava bem com ele...

Fontes:
http://vestibular.uol.com.br/ultnot/livrosresumos/
Imagem = http://wwwrenatacordeiro.blogspot.com

W Somerset Maugham (O Fio da Navalha)


Larry Darnell, um jovem americano da alta burguesia que conhecera a morte nos campos de batalha da Primeira Guerra na Europa, volta para a cidade em que nascera (Chicago) em estado de choque. Abandona tudo confortos materiais para buscar o sentido da vida. A ação transcorre entre os anos 20 e 40 em lugares tão díspares quanto Chicago, Paris, Marselha, Índia e ranchos no Texas.

Síntese

O século 20 produziu uma quantidade enorme de histórias sobre ex-combatentes de guerra que, ao voltarem para casa, não se reconhecem mais naquilo que vêem e precisam de algum modo reencontrar o fio da meada. No entanto poucas obras literárias se tornaram tão emblemáticas dessa situação quanto este romance de W. Somerset Maugham.

Depois de ver seu melhor amigo morrer nos campos de batalha da Primeira Guerra, o jovem norte-americano Larry Darrell retorna aos Estados Unidos completamente transformado. Em pouco tempo, decide deixar a vida burguesa de Chicago e adiar seu casamento com a bela Isabel. Como muitos jovens de sua geração, Darrell vai passar uma temporada de aprendizado existencial em Paris, onde perambula pelos cafés e começa a ler livros sobre a Índia e o Nepal.

Entusiasmado com as descobertas e a possibilidade de um mundo radicalmente novo, Darrell viaja para esses países em busca de iluminação espiritual --assim como o próprio autor fez na década de 30. Anos mais tarde, de volta a Paris, Darrell reencontra Isabel e vários amigos americanos que haviam deixado os EUA depois da crise financeira de 1929.

O Fio da Navalha, expressão retirada por Maugham de um dos upanixades (textos sagrados da Índia), rendeu várias versões para o cinema, entre elas a de 1946, com Tyrone Power no papel principal, e a de 1984, estrelada por Bill Murray.

Trechos do livro O Fio da Navalha
Capítulo 1

Nunca senti maior apreensão ao começar um romance. E se digo romance é por não saber de que outra maneira chamá-lo. Não tem grande enredo, não acaba com morte nem com casamento. A morte põe termo a todas as coisas e é, portanto, fim lógico para uma história; mas também o casamento é solução muito correta e os blasés fariam mal em escarnecer daquilo que comumente se diz que "acabou bem". O instinto popular anda acertado ao afirmar que, com isto, tudo o que devia ser dito foi dito. Quando, depois de inúmeras vicissitudes, macho e fêmea finalmente se reúnem, sua função biológica foi cumprida e o interesse passa à geração vindoura. Mas estou deixando o meu leitor no escuro. Este livro consiste das recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contato; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar fatos de que tenho conhecimento.

Há anos escrevi um romance intitulado Um gosto e seis vinténs. Nele destaquei um famoso pintor, Paul Gauguin, e, valendo-me do privilégio do romancista, imaginei vários incidentes, no intuito de ilustrar o tipo que eu criara inspirado nos escassos fatos que conhecia da vida do artista francês. Na obra atual nada tentei de semelhante. Não inventei coisa alguma. Para poupar constrangimento a pessoas que ainda vivem, dei aos personagens desta história nomes fictícios e procurei, por outros meios, evitar que sejam reconhecidos. O homem sobre quem escrevo não é célebre; talvez nunca chegue a sê-lo. É possível que, ao atingir o fim da vida, não deixe, de sua passagem pela terra, vestígio maior que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas. Neste caso, se o meu livro for lido, sê-lo-á exclusivamente pelo interesse intrínseco que possa ter. Mas é possível que o gênero de vida que esse homem escolheu para si próprio e a singular força e doçura do seu caráter tenham uma influência sempre crescente sobre seus semelhantes, de modo que, mesmo muito tempo depois de sua morte, talvez se compreenda que nesta época viveu uma criatura extraordinária. Ficará, então, claro sobre quem escrevi neste livro, e aqueles que desejarem conhecer alguma coisa dos primeiros anos da existência desse homem talvez aqui encontrem algo que lhes satisfaça. Creio que o meu livro, dentro de suas possibilidades, que reconheço limitadas, será uma útil fonte de informações para os biógrafos do meu amigo.

Não é minha intenção fazer crer que as conversas foram registradas literalmente. Não tomei nota sobre o que foi dito nesta ou naquela ocasião, mas tenho boa memória quanto ao que me diz respeito e creio que, embora expressas em minhas próprias palavras, essas conversas representam fielmente o que foi dito. Há pouco declarei nada ter inventado; quero agora modificar essa asserção. Tomei a liberdade, que desde o tempo de Heródoto os historiadores têm tomado, de pôr nos lábios dos meus personagens palavras que eu, pessoalmente, não poderia ter ouvido. Agi pela mesma razão que os fez agir; para dar vida e verossimilhança a cenas que teriam sido incolores se apenas relatadas. Quero ser lido, e creio estar no meu direito quando faço o possível para tornar agradável a leitura do meu livro. O leitor inteligente facilmente perceberá em que ocasiões me vali deste artifício e tem toda a liberdade de rejeitá-lo.

Outro motivo que me fez iniciar esta obra com apreensão foi o fato de eu aqui lidar a maior parte do tempo com americanos. É difícil a gente compreender bem as criaturas e não creio que possamos conhecer ninguém a fundo, a não ser os nossos próprios compatriotas. Pois os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos que brincaram quando crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que freqüentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas coisas fizeram deles o que são, e essas coisas ninguém pode conhecê-las somente por ouvir dizer, e sim se as tiver sentido. Só pode conhecê-las quem é parte delas. E, por não se poder conhecer as pessoas de um país estrangeiro a não ser por observação, é difícil torná-las reais nas páginas de um livro. Mesmo um observador sutil e cuidadoso como Henry James, embora tivesse vivido quarenta anos na Inglaterra, jamais conseguiu criar um inglês que fosse cem por cento inglês. Quanto a mim, a não ser em alguns contos, nunca tentei manejar a não ser os meus próprios compatriotas; e, se nas histórias curtas me aventurei à exceção, foi porque nelas o escritor pode tratar os tipos mais sumariamente. Dá ao leitor indicações gerais e deixa por conta dele os detalhes. Possivelmente perguntarão por que motivo, já que transformei Paul Gauguin em inglês, não pude fazer o mesmo com os personagens deste livro. A resposta é simples: não pude. Eles não teriam sido quem são. Não quero dizer que sejam americanos como os americanos vêem a si mesmos; são americanos, sob o ponto de vista inglês. Não tentei reproduzir as singularidades do seu modo de falar. A barafunda que fazem os escritores ingleses quando se atiram à empreitada só pode ser comparada à confusão que fazem os escritores americanos quando tentam reproduzir o idioma inglês como é falado na Inglaterra. A gíria é a grande arapuca. Nos seus contos ingleses, Henry James sempre fez uso dela, mas nunca da mesma maneira que os ingleses; assim sendo, em vez de conseguir o desejado efeito coloquial, a maior parte das vezes dá ao leitor inglês um desagradável sobressalto.
2
Aconteceu-me estar em Chicago em 1919, a caminho do Extremo Oriente, pretendendo, por motivos que nada têm com esta história, ali me demorar durante duas ou três semanas. Pouco tempo antes eu publicara um romance que obtivera sucesso; estando, portanto, em evidência, fui entrevistado assim que desembarquei. No dia seguinte meu telefone tocou. Atendi.

- Quem fala aqui é Elliott Templeton.

- Elliott? Pensei que você estivesse em Paris.

- Não; vim visitar minha irmã. Queremos que você venha almoçar conosco.

- Com muito prazer.

Ele indicou a hora e o endereço.

Meu conhecimento com Elliott datava de quinze anos. Na ocasião em que me telefonou ele devia estar perto dos sessenta anos, homem alto e elegante, de traços agradáveis e espessos cabelos escuros e ondulados, com a nota grisalha apenas suficiente para acentuar a distinção de sua aparência. Ele comprava os acessórios de toalete em Charvet, mas seus ternos, chapéus e sapatos eram de Londres. Tinha em Paris um apartamento na Rive Gauche da elegante Rue St. Guillaume. As pessoas que não o apreciavam diziam que ele era negociante, acusação que o indignava. Elliott tinha gosto e entendia de arte, não se importando de confessar que, em anos idos, quando pela primeira vez se instalara em Paris, dera a ricos colecionadores o favor de sua opinião; e, quando devido às suas relações sociais ouvia falar de algum fidalgo arruinado, inglês ou francês, que estava disposto a vender um bom quadro, ficava satisfeito de poder pô-lo em contato com os diretores de museus americanos que, acontecia ele saber, estavam à procura de uma obra-prima de tal ou tal mestre. Havia na França e na Inglaterra muitas famílias antigas cujas circunstâncias as obrigavam a dispor de uma peça assinada, de Buhl, ou de uma escrivaninha feita pelo próprio Chippendale, se o negócio pudesse ser feito sem alarde, e que gostavam de conhecer um homem de grande cultura e finas maneiras que saberia tratar discretamente do assunto. Supunha-se, naturalmente, que Elliott lucrava com essas transações, mas a boa educação não deixava que se tecessem comentários a respeito. Pessoas pouco generosas afirmavam que em seu apartamento tudo estava à venda e que, depois de ter oferecido a milionários americanos um ótimo almoço, com vinhos velhos, uma ou duas de suas valiosas telas desapareceriam, ou uma cômoda de madeira entalhada seria substituída por uma outra, laqueada. Quando lhe perguntavam por que razão sumira determinada peça, ele muito logicamente explicava que não a achara bem à sua altura e resolvera, portanto, substituí-la por outra de superior qualidade. Acrescentava que era enfadonho estar sempre a ver as mesmas coisas.

- Nous autres américains, nós, americanos, gostamos de variar - dizia ele. - É, ao mesmo tempo, a nossa fraqueza e a nossa força.

Algumas das senhoras americanas residentes em Paris, que se gabavam de saber tudo a respeito de Elliott, diziam que sua família era muito pobre e que, se ele conseguia manter-se no padrão em que vivia, era por ter sido muito hábil. Não sei a quanto montava a sua fortuna, mas o duque de quem era inquilino certamente o fazia pagar muito pelo apartamento que, além do mais, era mobiliado com peças de valor. Havia, nas paredes, desenhos dos grandes mestres franceses, Watteau, Fragonard, Claude Lorraine e outros; tapetes Savonnerie e Aubusson exibiam sua beleza em soalhos de parquete; e na sala de visitas havia um conjunto Luís XV, em petit point, de tal elegância que poderia ter pertencido, como afirmava ele, a madame Pompadour. Em todo caso, Elliott possuía bastante para viver no estilo que considerava correto para um cavalheiro, sem precisar para isso ganhar dinheiro, e o método que no passado usara para consegui-lo era assunto que, a não ser que se quisesse romper relações com ele, era conveniente evitar. Liberto assim de preocupações materiais, ele se dedicou à paixão máxima de sua vida - relações sociais. Suas transações comerciais com os fidalgos empobrecidos, tanto na França como na Inglaterra, consolidaram a posição que ele conseguira ao chegar à Europa, moço, com cartas de apresentação a pessoas importantes. Sua origem o favorecia aos olhos das titulares americanas a quem vinha recomendado, pois ele pertencia à antiga família da Virgínia, e do lado materno podia reclamar parentesco direto com um dos signatários da Declaração da Independência. Tinha boa aparência, era vivo, dançava bem, atirava regularmente e sobressaía no tênis. Era elemento que valia a pena ter-se em qualquer festa. Ninguém mais pródigo, em se tratando de flores e caixas de bombons. Embora recebesse pouco, quando o fazia era com originalidade que agradava; aquelas ricaças achavam divertido ser convidadas a restaurantes boêmios em Soho ou bistrôs no Quartier Latin. Ele estava sempre pronto a servir e não havia favor, por maçante que fosse, que se lhe pedisse, que ele não fizesse com prazer. Esforçava-se bastante por ser agradável a senhoras maduras e rapidamente se tornava o ami de la maison, o queridinho de muita mansão imponente. Era extrema a sua gentileza; nunca se ofendia por ser convidado à última hora, quando alguém deixava a dona da casa em apuros, e a gente podia colocá-lo ao lado de uma velhota enfadonha, tendo certeza de que seria espirituoso e amável como só ele sabia ser.

Dentro de dois anos, tanto em Londres - para onde ia durante a última parte da temporada, e no princípio do outono para fazer algumas visitas a casas de campo - como em Paris, onde se instalara definitivamente, Elliott conhecia todas as pessoas que era possível a um jovem americano conhecer. As senhoras que o tinham introduzido na sociedade surpreenderam-se ao verificar como se alargara o seu círculo de relações. Os sentimentos dessas senhoras eram confusos. Por um lado, ficaram satisfeitas com o sucesso do seu protégé e, por outro, um tanto despeitadas ao vê-lo em tais termos de intimidade com pessoas com quem elas continuavam a manter relações de absoluta cerimônia. Embora Elliott continuasse a ser obsequioso e serviçal, elas tinham a desagradável impressão de que ele as usara como escada para o seu avanço social. Desconfiavam que ele fosse esnobe. Claro que o era. Incrivelmente esnobe. Um esnobe sem a menor vergonha. Ele engoliria qualquer afronta, ignoraria qualquer desfeita, toleraria qualquer descortesia para ser convidado a uma festa a que desejasse ir ou para conseguir aproximar-se de alguma rabugenta duquesa-mãe. Neste particular era incansável. Quando fixava o olhar na presa, perseguia-a com a tenacidade do botânico que, para conseguir uma orquídea rara, desafia enchentes, terremotos, febres e nativos hostis. A guerra de 1914 deu-lhe a sua oportunidade decisiva. Logo no início, entrou para o Corpo de Saúde e serviu, primeiro em Flandres, depois em Argonne; voltou ao fim de um ano com uma fita vermelha na lapela e conseguiu um posto na Cruz Vermelha de Paris. Nessa época, já estava em ótima situação financeira e contribuiu generosamente para obras de caridade patrocinadas por pessoas importantes. Com seu fino gosto e dom de organização, estava sempre pronto a trabalhar para qualquer festa de caridade que fosse amplamente anunciada. Ficou sócio de dois dos mais seletos clubes de Paris. Era ce cher Elliott para as maiores damas da França. Finalmente vencera.

Fontes:
http://vestibular.uol.com.br/ultnot/livrosresumos/ult2755u111.jhtm
Imagem =
http://outrasescritas.blogspot.com

William Somerset Maugham (1874 - 1965)



William Somerset Maugham(Paris, 25 de janeiro de 1874 — Saint-Jean-Cap-Ferrat, 16 de dezembro de 1965)

Infância e educação

O pai de Somerset Maugham era um advogado que se ocupava dos assuntos legais da embaixada britânica em Paris. Uma vez que a lei francesa previa que todas as crianças do sexo masculino nascidas em território francês estavam obrigadas a fazer o serviço militar, Robert Ormond Maugham mobilizou-se para que William nascesse na embaixada, tirando-lhe, assim, a obrigação de envolver-se em futuras guerras francesas e permitindo que, tecnicamente, ele nascesse em território britânico. Seu avô, também chamado Robert, também havia sido um prestigiado advogado e co-fundador da English Law Society (Sociedade Inglesa de Leis) e que pretendia que Willian seguisse os mesmos passos pela estrada jurídica. Porém as coisas não caminharam assim, apesar de seu irmão mais velho Frederic Herbert Maugham ter desenvolvido destacada carreira jurídica, convertendo-se em Lord Chancellor, entre 1938 e 1939.

A mãe de Maugham, Edith Mary (cujo nome de solteira era Edith Snell) sofria com a tuberculose, uma condição para a qual os médicos da época prescreviam ter filhos. Assim, Maugham tinha três irmãos mais velhos, já escolarizados em centros de internato e, desse modo, ele foi criado quase que como filho único. Desafortunadamente, a gravidez não foi remédio para a enfermidade, e Edith May Maugham morreu, aos 41 anos, seis anos depois de dar à luz o seu último filho. A morte de sua mãe deixou Maugham traumatizado por toda a vida e ele sempre teve consigo a foto dela na cabeceira da sua cama até a sua morte, aos 91 anos, em 1965.

Dois anos depois do falecimento de sua mãe, morreu o seu pai, vítima de cancro. William foi enviado para Inglaterra, ficando aos cuidados de seu tio Henry MacDonald Maugham, vigário de Whitstable, em Kent. A mudança foi catastrófica. Henry demonstrou ser frio e emocionalmente cruel. Na The King's School, em Canterbury, quase uma versão do purgatório, como contaria posteriormente o escritor, Willian ficou em regime de internato em seus anos de estudante. Lá foi ridicularizado por falar mal o inglês, já que sua língua materna era o francês, e pela sua baixa estatura, uma herança paterna. Nesse período Maugham desenvolveu a disfemia, que o acompanharia por toda vida, ainda que ela fosse esporádica e dependesse de seu estado de ânimo e das circunstâncias.

Sob os olhos do tio era submetido a um total controle e as emoções estavam proibidas. Foi forçado a esconder seu temperamento e não expressava suas emoções. Como garoto pacífico, reservado, porém, muito curioso, essa negação das emoções dos outros foi para ele tão dura como a negação dos próprios sentimentos. O resultado foi que Maugham viveu em desgraça, tanto na comunidade religiosa do tio, como na escola, onde era maltratado por companheiros. Tal fato fez com que desenvolvesse a habilidade de fazer observações sarcásticas daqueles que o enfureciam. Tal capacidade se refletiria em alguns de seus personagens e em certas narrações.

Aos dezesseis anos, Maugham recusou-se em continuar no The King's School, e seu tio deu-lhe permissão para viajar para a Alemanha, onde durante um ano estudou literatura, filosofia e alemão na Universidade de Heidelberg. Naquele país conheceu, John Ellingham Brooks, um inglês dez anos mais velho que ele, com quem teve sua primeira experiência sexual.

De volta a Inglaterra, seu tio conseguiu-lhe um emprego num escritório de contabilidade. No entanto, após um mês o escritor deixou o seu trabalho e retornou a Whitstable. O tio ficou desgostoso com a situação e procurou um novo emprego para o jovem. O trabalho na igreja foi abandonado, já que um pastor disfêmico pareceria ridículo. Também foi abandonado o emprego público, já que Maugham não se mostrava animado, e também devido às novas leis que obrigavam o candidato a passar por um exame para ingressar na máquina estatal. Para o tio do jovem, tal condição tornava o serviço público algo indecoroso para um cavalheiro.

O médico local sugeriu a medicina e o tio aceitou, mediante certas objeções. Maugham havia começado a escrever aos quinze anos e desejava de forma efervescente dedicar-se à literatura. Porém, por não ser maior de idade, não se atreveu a confessar seus desejos ao tutor. Como conseqüência, passou os cinco anos seguintes de sua vida como estudante de medicina em Londres.

Primeiras obras

Muitos leitores e alguns críticos assumem que os anos de estudante de medicina constituíram-se em um hiato na verve criativa do escritor. Porém, o próprio Maugham era de opinião contrária. Poder viver a agitação da cidade de Londres, conhecer pessoas das classes mais populares, tipos que nunca havia encontrado em outras profissões, ver pessoas em situações de extrema ansiedade e em busca de significados para suas vidas. Nos seus últimos anos, ele declarou o valor literário de tudo o que viu como estudante de medicina: "Vi homens morrerem. Os vi sofrer de dor. Aprendi o que era esperança, o medo e a ajuda...".

Naquele tempo, estavam na moda os livros escritos por homens e mulheres que viviam de maneira mais livre, que descreviam o valor moral de uma vida de padecimentos — porém, Maugham viu claramente, uma e outra vez, como é corrosivo o padecimento para os valores humanos, como a enfermidade envolvia de forma hostil e amarga as pessoas e nunca disso se esqueceu. Aqui finalmente estava a vida em toda a sua crueza e também a oportunidade de examinar toda a gama de emoções humanas.

Maugham cuidava de sua casa, tinha várias idéias literárias e escrevia todas as noites, concomitantemente aos estudos de medicina. Em 1897 apresentou seu segundo livro a uma editora — o primeiro havia sido uma biografia de Giacomo Meyerbeer, escrita aos dezesseis anos, em Heidelberg.

Liza of Lambeth (O Pecado de Liza), uma narração sobre um adultério na classe operária e suas conseqüências, bebe nas experiências do estudante praticante de obstetrícia no subúrbio londrino de Lambeth. A novela se enquadra no realismo social dos "escritores dos baixos fundos", como George Gissing e Arthur Morrison. Com toda a franqueza, Maugham ainda se sentiu obrigado a escrever no prólogo da novela que "... é impossível eliminar os erros de fala de Liza e dos outros personagens, portanto, o leitor terá de recompor seus pensamentos nas imperfeições necessárias dos diálogos".

O Pecado de Liza alcançou êxito entre a crítica e o público e a primeira edição foi vendida em semanas. Isso foi o suficiente para convencer Maugham, que já se havia licenciado, a abandonar a medicina e embrenhar-se na carreira literária, atividade na qual ele militaria por 65 anos. Sobre seu debut na profissão de escritor, ele diria posteriormente que "me senti como um peixe na água".

A vida de escritor lhe permitiu viajar e viver em lugares diferentes, como Espanha e Capri, durante a década seguinte. Porém, suas dez obras posteriores não conseguiram rivalizar com o êxito de O Pecado de Liza. A situação mudou radicalmente em 1907 com o extraordinário sucesso de sua peça de teatro Lady Frederick. Durante o ano seguinte, teve quatro obras teatrais representadas simultaneamente em Londres. A revista Punch chegou a publicar uma charge em que Shakespeare aparece roendo as unhas nervoso diante do grande número de peças encenadas do autor.

Êxito popular - 1914 a 1939

No ano de 1914, Maugham era um homem famoso, com dez obras de teatro representadas e dez novelas publicadas. Era grande demais para alistar-se na primeira guerra mundial. Maugham, porém, serviu na França, como membro da Cruz Vermelha Britânica, no chamado Literary Ambulance Drivers (Condutores de Ambulância Literários), um grupo de 23 conhecidos escritores, entre os quais estavam Ernest Hemingway, John dos Passos e E. E. Cummings. Nesse período, conheceu Frederick Gerald Haxton, um jovem de São Francisco (Estados Unidos da América), que se converteu em seu companheiro até a sua morte, em 1944. Haxton aparece com o nome de Tony Paxton na obra de teatro de Maugham, de 1917, denominada Our Betters. Mesmo durante a guerra, Maugham continuou escrevendo. Corrigiu nesse período as provas de Of Human Bondage (Servidão Humana) numa localidade próxima de Dunquerque, durante um período de folga de suas tarefas como condutor de ambulâncias.

Servidão Humana (1915) foi classificada pelos críticos da época como uma das novelas mais importantes do século XX. O livro parece ser bastante autobiográfico — a gagueira de Maugham se transforma em uma deformação congênita dos pés de Philip Carey, o pastor de Whitestable se converte no pastor de Blackstable, e Philip Carey é um médico —, não obstante, o autor insistiu que a obra se tratava muito mais de ficção que de realidade. Em todo caso, a estreita relação entre realidade e literatura foi uma das características da obra maughaniana, apesar da obrigatória declaração de que os personagens da obra eram fictícios. Em 1938, ele escreveu: "Realidade e ficção estão tão mescladas em minha obra que agora, olhando para ela, dificilmente posso distinguir uma de outra".

Maugham era bissexual. De sua relação com Syrie Wellcomo, filha do fundador de orfanatos Thomas John Barnardo e esposa do empresário farmacêutico inglês, Henry Wellcomo, teve uma filha chamada Mary Elizabeth Maugham, "Liza", nascida Mary Elizabeth Wellcomo, 1915-1998). Henry Wellcome deu entrada no processo de divórcio, designando Maugham como co-responsável. Em maio de 1917, depois da formalização do processo, Syrie e Maugham se casaram. A esposa se converteu em uma famosa decoradora de interiores que popularizou habitações em branco na década de 1920. Em 1922, Maugham lhe dedicou sua coleção de contos On a Chinese Screen (Em Uma Tela Chinesa). Se divorciaram entre 1927 e 1928, depois de um matrimônio tempestuoso agravado pelas freqüentes viagens de Maugham e por sua ininterrupta relação com Haxton.

Maugham voltou à Inglaterra, deixando suas tarefas na unidade de ambulâncias para promover Servidão Humana, porém, tão logo terminou essa divulgação, voltou para o campo de batalha. Incapaz de incorporar-se novamente na unidade de ambulâncias, foi apresentado por Syrie a um oficial da inteligência britânica e, em setembro de 1915, foi trabalhar na Suíça, recolhendo informações para o serviço secreto, apoiando-se em sua condição de escritor.

Em 1916 viajou para o Pacífico, para obter subsídios para sua próxima novela, The Moon and Sixpence, baseada na vida de Paul Gauguin. Foi a primeira das viagens através dos estertores do mundo imperial dos anos 20 e 30, que situaram Maugham de maneira definitiva no imaginário popular como o cronista dos últimos dias do colonialismo na Índia, sudeste asiático, China e Pacífico, ainda que as obras que fundamentam essa reputação não sejam mais que uma fração de toda sua literatura. Nessa viagem, e nas posteriores, esteve acompanhado de Haxton, a quem considerava indispensável para seu êxito como escritor. Maugham era profundamente tímido e o extrovertido Haxton o ajudava constantemente a conseguir material humano que seria convertido em ficção.

Em junho de 1917 foi chamado por Sir Eilliam Wiseman, chefe do Serviço Secreto Britânico, para executar uma missão especial na Rússia, para conseguir implicar o governo provisório russo na guerra, fazendo frente à propaganda pacifista da Alemanha. Dois meses e meio depois, os bolcheviques tomaram o controle do país. O trabalho se tornou impossível, porém Maugham defendeu posteriormente que se tivesse chegado seis meses antes poderia ter obtido êxito.

Tranqüilo e observador, Maugham tinha o temperamento idôneo para o trabalho da inteligência, que ele acreditava ter herdado do homem das leis que fora seu pai: uma destreza para emitir juízos frios e capacidade de não ser enganado pelas aparências. Não deixando perder nenhuma experiência da vida real para a literatura, Maugham aproveitou as suas ações como espião em uma coleção de contos sobre um espião cabeludo, distante e sofisticado, chamado Ashenden, (1928), livro que posteriormente Ian Fleming citaria como uma de suas influências para criar seu famoso James Bond.

Em 1928, Maugham adquiriu a Villa Mauresqe, uma propriedade de doze acres em Cap Ferrat, na Riviera Francesa, que seria a sua casa para o resto da vida e um dos melhores salões sociais e literários dos anos 20 e 30. Sua produção continuou sendo prodigiosa, escrevendo para o teatro, novelas, ensaios e livros de viagens. Por volta de 1940, com a tomada da França pelos alemães, foi forçado a abandonar a Riviera, e converteu-se em um "refugiado". Nessa época era um dos escritores em língua inglesa mais famosos do mundo e também um dos mais ricos.

O grande veterano das letras

Maugham, com seus 60 anos, passou quase toda a segunda guerra mundial nos Estados Unidos, primeiramente em Hollywood, onde trabalhou em diversos setores, e onde foi um dos primeiros escritores a conseguir lucros significativos com as adaptações cinematográficas de suas obras e, posteriormente, no sul. Durante sua estada, foi requerido pelo governo norte-americano para apresentar conferências de cunho patriótico em apoio à ajuda norte-americana à Grã-Bretanha. Gerald Haxton morreu em 1944 e Maugham voltou para a Inglaterra e, depois, em 1946, para a sua vila francesa, onde voltou a estabelecer residência, com interrupções devido às freqüentes e longas viagens, até a sua morte.

O vácuo deixado pela morte de Haxton foi preenchido por Alan Searle. Maugham o havia conhecido em 1928. Ele era um jovem do subúrbio londrino de Bermondsey e já havia mantido relações homossexuais com homens mais velhos. Foi uma companhia fiel, senão estimulante. Contudo, a vida sentimental de Maugham jamais foi tranqüila. Certa vez confessou: "Principalmente amei pessoas que não se preocupavam ou faziam pouco de mim. Quando alguém me amava eu me sentia preocupado... para não ferir seus sentimentos, várias vezes simulei uma paixão que não sentia".

Os últimos anos de Maugham foram tristemente marcados por alguns escândalos que, possivelmente, foram desencadeados devido à decadência intelectual do escritor, fruto da demência. O jovem Maugham teria sido demasiado astuto e discreto para cometer tais erros. O pior desses escândalos, e o que lhe custou a perda de muitos amigos, foi um amargo ataque à falecida Syrie, em um volume de memórias denominado Looking Back (Olhando para Trás), lançado em 1962. Ao final da vida, Maugham adotou Searle como filho, com o propósito de assegurar-lhe como herança a vila francesa, decisão que não foi bem aceita por sua filha Liza e seu esposo, Lord Glendevon, que deixou de mencionar Maugham em seus comentários públicos.

Êxito

O êxito comercial, com elevados volumes de vendas, as produções teatrais de sucesso e uma grande série de adaptações cinematográficas, além de pródigos investimentos em bolsa, permitiram a Maugham viver uma vida muito confortável. Pequeno e débil, Maugham sempre se orgulhou de sua resistência, que lhe permitiu como adulto manter uma abundante produção literário. No entanto, apesar de seus trunfos, jamais conseguiu um elevado respeito por parte dos críticos e companheiros escritores. Esses atribuíam uma carência de lirismo a sua obra, além de criticaram o reduzido vocabulário e um uso pobre da metáfora.

Contudo, parece que Maugham não seguia esse caminho só, pois escrevia em um estilo direto. Não há nada em um livro de Maugham que necessite de explicação ao público por parte dos críticos. Seu pensamento era claro e seu estilo lúcido. Expressava assertivas e, em algumas ocasiões, opiniões em uma prosa bonita e civilizada. Escreveu em um período em que a literatura modernista experimental, como a de William Faulkner, Thomas Mann, James Joyce e Virginia Woolf, ia ganhando popularidade e respeito da crítica. Nesse contexto, sua prosa foi qualificada como um "tecido de clichês de que só maravilha a capacidade do autor de envolver tantos e tantos e sua infalível incapacidade de contar qualquer coisa de maneira original", por Gore Vidal, em artigo de 1990, no The New York Review of Books.

Ao decidir conhecer o mundo e também por ter tido uma significativa aproximação com as classes mais baixas, Maugham assumiu um comportamento literário difuso do pedantismo aristocrático vigente na Europa. Trouxe à tona temas longínquos para o grande público e também trouxe para páginas de livros que repousaram em estantes milionárias um pouco da vivacidade e da dificuldade daqueles que viviam na parte mais baixa da escala social. Em Creatures of circumstance escreveu: "Eu nunca pretendi ser algo mais do que um contador de historias. Eu me divirto contando historias e escrevi muitas delas. Para mim é um infortúnio o fato de contar uma história somente pelo motivo dela em si é uma atividade que não conta com o favor da intelligentsia. É um infortúnio que tento escutar com fortaleza".

Sua inclinação homossexual também impregna sua obra. Dado que na vida real tendia a considerar as mulheres atrativas como rivais sexuais, por várias vezes apresenta as necessidades e tendências sexuais de seus personagens femininos de uma maneira bem diferente dos autores da época. Liza of Lambeth, Cakes and Ale e The Razor's Edge apresentam mulheres dispostas a não renunciar a seus intensos desejos sexuais, sem se preocuparem com as conseqüências.

Também o fato de que a tendência sexual de Maugham era desaprovada e até criminalizada em vários países que visitou, fez com que o escritor fosse particularmente tolerante com os vícios de seus pares. Os leitores e os críticos lamentavam que Maugham não condenasse clara e suficientemente os maldosos de suas obras. O artista replicou em 1938: "Pode ser um defeito meu, mas não me preocupam muito os pecados dos outros, excetuando aqueles que me afetam pessoalmente".

A percepção do mesmo Maugham sobre as suas próprias capacidades era modesta. No final de sua carreira, disse que poderia ser considerado como "um escritor dos melhores entre os escritores da segunda fila".

Maugham iniciou uma coleção de pinturas teatrais antes da primeira guerra mundial e tal coleção ganhou tanta magnitude até se converter na segunda mais importante do mundo, depois apenas da de Garret Club Mander & Mitchenson. Em 1948, ele doou o acervo ao Trustees of the National Theatre, que apresentou a exposição por mais de 14 anos após a morte do escritor. Em 1994, o acervo foi transferido para o Museu do Teatro de Covent Garden.

Principais obras
Considera-se que Servidão Humana, obra magna de Maugham, venha a ser uma novela autobiográfica, pois seu protagonista, Philip Carey, é órfão e criado por um tio impiedoso, como no caso do autor. A deformação dos pés de Philip provoca-lhe tormentos e vergonha, que evocam os problemas de Maugham com sua disfemia. As últimas novelas de êxito também foram baseadas em personagens reais: The Moon and Sixpence narra a vida do pintor Paul Gauguin e Cakes and Ale contém sutis caracterizações dos escritores Thomas Hardy e Hugh Walpole. Outra obra francamente inspirada em um personagem real é The Magician (O Mago), na qual o personagem Oliver Haddo é uma caracterização segundo algumas interpretações do místico e satanista Aleister Crowley que usava um acrônimo Maskmelin[1],codename 777(inspirado no antigo Abramelin,o Mago,de sua obra cabalista que foi editada e introduzida pelo Dr. Israel Regardie) um controvertido mágico e agente duplo, infiltrado pela oculta organização "The Seven Circle" nos serviços secretos de alguns paises da Europa .

Uma das obras mais importantes de Maugham, The Razor's Edge (No Fio da Navalha), publicada em 1944, foi um caso atípico de sua produção. A maior parte da história se desenvolve na Europa, seus principais personagens são norte-americanos e não britânicos. O protagonista é um decepcionado veterano da primeira guerra mundial que abandona seus amigos ricos e seu estilo de vida e viaja para a Índia em busca da iluminação. Os temas do misticismo oriental e o asco provocado pela guerra chocaram os leitores num momento em que a segunda guerra mundial terminava. Logo após o aparecimento do livro, uma adaptação cinematográfica dele foi realizada.

Dentre as suas narrações curtas, destacam-se aquelas sobre a vida dos colonos, muitos deles britânicos, e o preço que se paga pelo isolamento. Alguns dos mais destacados contos de Maugham são Rain, Footprints in the Jungle e Outstaions. Rain (Chuva), em especial, narra a desintegração moral de um missionário que tinha a intenção de converter Sadie Thompson, uma prostituta de uma ilha do Pacífico. O conto adquiriu uma grande fama e foi adaptado para o cinema. Maugham disse que muitos de seus contos eram baseados em histórias reais que viu durante suas viagens aos confins do Império Britânico. Deixou para trás uma grande coleção de anfitriões enojados e um escritor "anti-Maugham" contemporâneo escreveu uma memória de suas viagens intitulada Gin and Bitters.

Maugham foi um dos "escritores de viagem" que mais se destacaram nos anos de entreguerras e pode equipar-se com contemporâneos como Evelyn Waugh e Freya Stark. Entre suas melhores obras desse estilo vale destacar The Gentleman in the Parlour, sobre uma viagem através da Birmânia, Tailândia, Camboja e Vietnã, e On a Chinese Screen, uma séria de breves notas que podem ser considerados, inclusive, esboços de contos jamais desenvolvidos.

Influenciado pelos diários que publicou o escritor francês Jules Renard, Maugham publicou em 1949 uma seleção de seus próprios diários, com o título A Writer's Notebook. Os textos selecionados são, por natureza, episódicos e de qualidade variável, cobrindo mais de 50 anos de vida do escritor, e contendo muito material interessante para pesquisadores e admiradores da obra maughaniana.

Influência

Em 1947, Maugham instituiu o Prêmio Somerset Maugham para reconhecer o melhor escritor britânico com menos de 35 anos e que tivera uma obra de ficção publicada no ano anterior. Entre os escritores ganhadores do prêmio encontram-se Vidiadhar S. Naipaul, Kingsley Amis, Martin Amis e Thom Gunn. Após sua morte, os manuscritos do prêmio foram repassados para o Royal Literary Fundundation.

Um dos poucos escritores posteriores que reconheceram a influência de Maugham foi Anthony Burgess, autor de livros como Laranja Mecânica e Sementes Malditas, que incluiu um complexo e fictício retrato de Maugham na novela Earthly Powers. George Orwell também manifestou que seu estilo recebeu influências de Maugham. O norte-americano Paul Theroux, em sua compilação de contos The Consul's File, atualiza o mundo colonial do escritor britânico em um ambiente de expatriados na moderna Malásia.

O filme Seven, de 1995, presta homenagens a Maugham, contendo um personagem interpretado por Morgan Freeman chamado tenente Somerset, além de trazer referências explícitas à Servidão Humana.

Obras

Narrativas, livros de viagem e críticas

Liza of Lambeth (1897)
The Making of a Saint (1898)
Orientations (1899)
The Hero (1901)
Mrs Craddock (1902)
The Merry-go-round (1904)
The Land of the Blessed Virgin: Sketches and Impressions in Andalusia (1905)
The Bishop's Apron (1906)
The Explorer (1908)
The Magician (1908)
Of Human Bondage (Servidão Humana) (1915)
The Moon and Sixpence (1919)
The Trembling of a Leaf (1921)
On A Chinese Screen (1922)
The Painted Veil (1925)
The Casuarina Tree (1926)
The Letter (Stories of Crime) (1930)
Ashenden: Or the British Agent (1928)
The Gentleman In The Parlour: A Record of a Journey From Rangoon to Haiphong (1930)
Cakes and Ale: or, the Skeleton in the Cupboard (1930)
The Book Bag (1932)
The Narrow Corner (1932)
Ah King (1933)
The Judgement Seat (1934)
Don Fernando (1935)
Cosmopolitans - Very Short Stories (1936)
My South Sea Island (1936)
Theatre (1937)
The Summing Up (1938)
Christmas Holiday (1939)
Princess September and The Nightingale (1939)
France At War (1940)
Books and You (1940)
The Mixture As Before (1940)
Up at the Villa (1941)
Strictly Personal (1941)
The Hour Before Dawn (1942)
The Unconquered (1944)
The Razor's Edge (1944)
Then and Now (1946)
Of Human Bondage - An Address (1946)
Creatures of Circumstance (1947)
Catalina (1948)
Quartet (1948)
Great Novelists and Their Novels (1948)
A Writer’s Notebook (1949)
Trio (1950)
The Writer’s Point of View' (1951)
Encore (1952)
The Vagrant Mood (1952)
The Noble Spaniard (1953)
Ten Novels and Their Authors (1954)
Points of View (1958)
Purely For My Pleasure (1962)

Teatro

A Man of Honour (1903)
Lady Frederick (1912)
Jack Straw (1912)
Mrs Dot (1912)
Penelope (1912)
The Explorer (1912)
The Tenth Man (1913)
Landed Gentry (1913)
Smith (1913)
The Land of Promise (1913)
The Unknown (1920)
The Circle (1921)
Caesar's Wife (1922)
East of Suez (1922)
Our Betters (1923)
Home and Beauty (1923)
The Unattainable (1923)
Loaves and Fishes (1924)
The Constant Wife (1927)
The Letter (1927)
The Sacred Flame (1928)
The Bread-Winner (1930)
For Services Rendered (1932)
Sheppey (1933)

Adaptações para o cinema

Sadie Thompson (1928), filme mudo com Gloria Swanson e Lionel Barrymore. Baseado no conto Miss Thompson que posteriormente foi chamado de Rain.

The Letter (1929) com Jeanne Eagels, O.P. Heggie, Reginald Owen e Herbert Marshall. Baseado na obra de teatro homônima.

Rain (1932), a primeira versão sonora, com Joan Crawford e Walter Huston.

Of Human Bondage (1934) com Leslie Howard e Bette Davis. Baseada na novela homônima.

The Painted Veil (1934) com Greta Garbo e Herbert Marshall. Baseada na novela homônima.

The Vessel of Wrath (1938) com Charles Laughton; apresentada nos Estados Unidos como The Beachcomber. Baseada na novela homônima.

The Letter (1940) com Bette Davis, Herbert Marshall, James Stephenson, Frieda Inescort e Gale Sondergaard. Baseada na obra de teatro homônima.

The Moon and Sixpence (1942) com George Sanders. Baseada no conto homônimo.

The Razor's Edge (1946) com Tyrone Power e Gene Tierney. Baseado na novela homônima.

Of Human Bondage (1946) versão com Eleanor Parker.

Quartet (1948) Maugham aparece como ele mesmo na introdução. Baseado en alguns de seus contos.

Trio (1950) Maugham aparece como ele mesmo na introdução. Baseado en alguns de seus contos.

Encore (1952) Maugham aparece como ele mesmo na introdução. Baseado en alguns de seus contos.

Miss Sadie Thompson (1953), uma versão semi-musical com Rita Hayworth e José Ferrer.
The Beachcomber (1958). Baseada na novela The Vessel of Wrath; não confundir com a versão de 1938.

Julia, du bist zauberhaft (1962) com Lilli Palmer e Charles Boyer. Baseada na novela Theatre.

Of Human Bondage (1964) versão com Laurence Harvey e Kim Novak.

The Letter (1969) com Eileen Atkins. Baseada na novela homônima. (Telefilme)

The Letter (1982) com Lee Remick, Jack Thompson e Ronald Pickup. Baseada na obra de teatro homônima. (Telefilme)

The Razor's Edge (1984) com Bill Murray. Baseado na obra homônima.

Up at the Villa (2000) com Kristin Scott Thomas e Sean Penn, dirigida por Philip Haas. Baseada na obra homônima.

Being Julia (2004) com Annette Bening. Baseada na obra Theatre.

O véu pintado (2006) com Naomi Watts e Edward Norton. Baseada na obra homônima.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
Imagem = http://www.freepedia.co.uk

terça-feira, 3 de março de 2009

Balaios de Trovas de Famosos



Entre os suspiros dos vento,
da noite ao mole frescor,
quero viver um momento,
morrer contigo de amor!
Álvares de Azevedo

Piloto que dás teu giro
montado em peixe de prata,
carrega este meu suspiro
e leva a quem me maltrata!
Carlos Drummond de Andrade

Dessa tão ferrenha mágoa
de querer vos esperar,
meus olhos me encheram d’água,
salgada como a do mar!
Emiliano Perneta

No mundo são as verdades
como as nossas esperanças;
as que vêm nas tempestades
vão-se após nas águas mansas...
Gonçalves de Magalhães

Deus move a nuvem e ordena
que baixe à terra; entretanto,
ela vem com tanta pena
que desce em forma de pranto.
Humberto de Campos

Ao nosso espírito ardente,
na avidez do bem sonhado,
nunca o passado é presente,
nunca o presente é passado.
Machado de Assis

Saudade, perfume triste,
de uma flor que não se vê;
culto que ainda persiste
num crente que já não crê!
Menotti del Picchia

Deixando a bola e a peteca,
com que inda há pouco brincavam,
por causa de uma boneca
duas meninas brigavam.
Olavo Bilac

O amor perturbou-me tanto,
que este combate deploro:
querendo chorar, eu canto;
querendo cantar, eu choro!
Osório Duque Estrada

Duas almas deves ter...
é um conselho dos mais sábios:
uma no fundo do ser,
outra boiando nos lábios.
Raul de Leoni

Amar é fazer o ninho
que duas almas contém;
ter medo de estar sozinho,
dizer com lágrimas: – Vem!
Tobias Barreto

Haverá queixa mais justa
que a do feliz que se queixa?
Ai, o bem que menos custa
custa a saudade que deixa!
Vicente de Carvalho
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Carlos Vageler (O Escalador de Nuvens)



Pedro não se conformava com a vida que estava levando. Preso a uma cadeira de rodas, sua mente sempre estava repleta de lembranças dos momentos que antecederam o fatídico acidente de carro que lhe tirou os movimentos das pernas.

A festa, os amigos, as gargalhadas e os mais ínfimos detalhes. O número de passos até sentar-se atrás do volante, os minutos, o que falara e os outros também. Procurava incansavelmente algum detalhe no passado que pudesse ter-lhe salvo daquele destino. Conseguia apenas com isso se desencantar, entristecer-se. Mas a todo o momento procurava uma saída naquilo que não tinha mais volta. Se não tivesse com tanta pressa de sair da festa? Se não tivesse parado para conversar com aquela pessoa? Se o carro tivesse falhado ao sair...

A vida de Pedro de resumira a pensar no "Se" houvesse acontecido algo que pudesse ter evitado o acidente. O tempo passava e tudo o angustiava. Parou de estudar, perdera o estágio que fazia e os "amigos" dificilmente o procuravam para uma conversa que fosse, pois Pedro se tornara uma pessoa extremamente "amarga". Havia desistido de praticamente tudo.

Uma certa noite Pedro, na varanda do apartamento que dividia com sua mãe viúva, olhava o movimento da rua e começou a prestar mais atenção aos detalhes de tudo que ocorria ali a sua volta. O prédio que estava ficava numa esquina de uma rua movimentada com outra transformada em um calçadão, na qual se projetava a sua varanda. Isso lhe dava uma visão estratégica de uma ponta a outra do mesmo.

A princípio apenas como algo para passar mais rápido o tempo, que dizia ser seu maior suplício, ficava a olhar as pessoas que vinham e iam apressadamente e outras tantas de maneira despreocupada. Ao reparar numa especificamente, Pedro a seguia com os olhos desde o início da rua. Reparava em seus passos, se eram lentos ou não, sua cadência e até a velocidade entre um ponto e outro que passava, de uma árvore até a lixeira laranja, de um desenho a outro do mosaico que decorava o passeio. Isso tudo, de certa forma, amenizava aquela que já era sua mania de pensar no que poderia ou não ter acontecido no passado.

Uma certa hora apontou na esquina e virou para sua rua uma mulher de vestido azul, negros cabelos compridos ao vento, batom vermelho percebidos ao longe, sapatos pretos e brilhantes, barulhentos ao tocar no chão; toc toc, toc toc, que Pedro escutou logo que ela deu o primeiro passo após a esquina que conseguia avistar.

Aquela mulher por algum motivo lhe chamara muito a atenção, não somente pela beleza, pois já havia visto muitas outras beldades, mas o conjunto de detalhes, a forma de andar, de movimentar os braços, a cintura. Aquela criatura conseguiu fazer com que o tempo fluísse de uma maneira singular, própria de momentos de um filme onde um instante demora a acontecer. Os intervalos entre os passos e o que ocorria neste ínterim invadiam seu pensamento. De onde era? por que estava ali? Onde havia de ir?

Após percorrer toda rua a mulher postou-se diante o meio fio da calçada, bem abaixo de onde estava, para atravessar a rua. Parada, olhou para o lado do fluxo da via, esperou dois carros e uma moto passar. Com ar despreocupado e mente totalmente levada por algum pensamento, coloca seu pé direito na rua.

Pedro, como estava fazendo pelos longos últimos 100 metros percorridos pela morena, observava a cena, quando percebeu um carro saindo apressadamente de uma garagem, que de forma totalmente inconseqüente dá sinal de que vai entrar na rua pela contramão a poucos metros da mulher que, atentando aos veículos que acabavam de passar a sua frente pelo sentido correto, coloca o segundo pé na rua para começar a atravessar. Velozmente o carro recém saído da calçada por detrás de uma banca de jornal, avançou para cima da mulher que não percebia o perigo.

Desesperado e num impulso sem consciência, Pedro, com suas mãos não muito fortes, coloca seu corpo para frente e para cima apoiando nos braços da cadeira de rodas e se põe em pé. Por um pequeno instante parece flutuar. No momento seguinte, com a força do impulso bate o peito na grade da varanda e fica com a metade do corpo para fora, praticamente dependurado no segundo andar do prédio. Com a pancada na barriga e o susto de seu próprio ímpeto, apenas conseguiu soltar de dentro de suas entranhas um vigoroso e rouco som:

— Eiiiiiiiiiiiiii

A mulher, não sabendo de onde vinha o grito, desviou o olhar da linha que pretendia seguir até o outro lado da rua e voltou-se para seu lado esquerdo, de onde vinha o carro pronto para acertá-la. Deu um passo para trás, o carro freou, mas a pegou de raspão, o que a fez cair de costas e bater a cabeça no chão. A linda morena, com os cabelos agora sobre sua face está caída e fica desmaiada por alguns segundos. Recobrando a consciência, abre os olhos e com as imagens em sua retina ainda turvas, olha para cima, no que vê um homem bem no alto, como que a aparecer no meio das nuvens, com um grande sorriso de alegria e conforto ao perceber que estava bem. Parecia um anjo, outrora muito triste que havia realizado um sonho.

Pedro, ainda equilibrando-se com a metade do corpo para fora da varanda, permanece ali até a linda mulher de azul levantar-se amparada pelos que ali passavam. Tudo havia ocorrido em menos de um minuto. Ainda com a força dos braços conseguiu pendular-se para dentro da varanda.

No momento que percebeu estar em segurança, em pé, apoiando-se somente com uma das mãos, teve um turbilhão de pensamentos e questões começaram a lhe brotar:

E se ele não tivesse gritado para a mulher? E se ele não tivesse perdido tanto tempo pensando no passado? e se começar a tentar a andar novamente? e se começar uma nova vida? E, se ele quiser, poderia até escalar as nuvens.
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Sobre o Autor
Carlos Vageler (1967) reside em Vinhedo (SP). Formado em Educação Física, Fisiologia e Turismo, começou, em 1990, a escrever para o jornal "Diário do Povo" de Campinas (SP), relatos de viagens que fazia. Em 1997, passou a colaborar com na revista eletrônica "360graus Esportes e Aventura", escrevendo textos de sua área de formação e, também, contos. Participou em dois livros de autoria de Vera e Yuri Sanada — "De Carona com o Vento", Ed. LPM, e "Aventura nos Negócios", Ed. Termo. Faz planos para um livro "solo" em 2008. Atualmente trabalha com produção editorial, AVENTURAcomBR Edições.

Fontes:
http://www.releituras.com.br
Imagem = http://www.imotion.com.br