quinta-feira, 18 de junho de 2009

Machado de Assis (Hoje avental, amanhã luva)



Publicada originalmente A Marmota, Rio de Janeiro, março de 1860.
Transcrita em Páginas Esquecidas , de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Ed Casa Mandarino, 1939.

Comédia em um ato imitada do francês por Machado de Assis

PERSONAGENS
DURVAL
ROSINHA
BENTO


Rio de Janeiro — Carnaval de 1859.
(Sala elegante. Piano, canapé, cadeiras, uma jarra de flores em uma mesa à direita alta. Portas laterais no fundo.)

Cena I

ROSINHA (Adormecida no canapé);
DURVAL (entrando pela porta do fundo)

DURVAL
Onde está a Sra. Sofia de Melo?... Não vejo ninguém. Depois de dois anos como venho encontrar estes sítios! Quem sabe se em vez da palavra dos cumprimentos deverei trazer a palavra dos epitáfios! Como tem crescido isto em opulência!... mas... (vendo Rosinha) Oh! Cá está a criadinha. Dorme!... excelente passatempo... Será adepta de Epicuro? Vejamos se a acordo... (dá-lhe um beijo)

ROSINHA
(acordando)
Ah! Que é isto? (levanta-se) O Sr. Durval? Há dois anos que tinha desaparecido... Não o esperava.

DURVAL
Sim, sou eu, minha menina. Tua ama?

ROSINHA
Está ainda no quarto. Vou dizer-lhe que V. S. está (vai para entrar) Mas, espere; diga-me uma coisa.

DURVAL
Duas, minha pequena. Estou à tua disposição. (à parte) Não é má coisinha!

ROSINHA
Diga-me. V. S. levou dois anos sem aqui pôr os pés: por que diabo volta agora sem mais nem menos?

DURVAL
(tirando o sobretudo que deita sobre o canapé)
És curiosa. Pois sabe que venho para... para mostrar a Sofia que estou ainda o mesmo.

ROSINHA
Está mesmo? moralmente, não?

DURVAL
É boa! Tenho então alguma ruga que indique decadência física?

ROSINHA
Do físico... não há nada que dizer.

DURVAL
Pois do moral estou também no mesmo. Cresce com os anos o meu amor; e o amor é como o vinho do Porto: quanto mais velho, melhor. Mas tu! Tens mudado muito, mas como mudam as flores em bo­tão: ficando mais bela.

ROSINHA
Sempre amável, Sr. Durval.

DURVAL
Costume da mocidade. (quer dar-lhe um beijo)

ROSINHA
(fugindo e com severidade)
Sr. Durval!...

DURVAL
E então! Foges agora! Em outro tempo não eras difícil nas tuas beijocas. Ora vamos! Não tens uma ama bilidade para este camarada que de tão longe volta!

ROSINHA
Não quero graças. Agora é outro cantar! Há dois anos eu era uma tola inexperiente... mas hoje!

DURVAL
Está bem. Mas...

ROSINHA
Tenciona ficar aqui no Rio?

DURVAL
(sentando-se)
Como o Corcovado, enraizado como ele. Já me doíam saudades desta boa cidade. A roça, não há coisa pior! Passei lá dois anos bem insípidos — em uma vida uniforme e matemática como um ponteiro de relógio: jogava gamão, colhia café e plantava ba tatas. Nem teatro lírico, nem rua do Ouvidor, nem Petalógica! Solidão e mais nada. Mas, viva o amor! Um dia concebi o projeto de me safar e aqui estou. Sou agora a borboleta, deixei a crisálida, e aqui me vou em busca de vergéis. (tenta um novo beijo)

ROSINHA
(fugindo)
Não teme queimar as asas?

DURVAL
Em que fogo? Ah! Nos olhos de Sofia! Está muda da também?

ROSINHA
Sou suspeita. Com seus próprios olhos o verá.

DURVAL
Era elegante e bela há bons dois anos. Sê-lo-á ainda? Não será? Dilema de Hamlet. E como gosta va de flores! Lembras-te? Aceitava-mas sempre não sei se por mim, se pelas flores; mas é de crer que fosse por mim.

ROSINHA
Ela gostava tanto de flores!

DURVAL
Obrigado. Dize-me cá. Por que diabo sendo uma criada, tiveste sempre tanto espírito e mesmo...

ROSINHA
Não sabe? Eu lhe digo. Em Lisboa, donde viemos para aqui, fomos condiscípulas: estudamos no mes­mo colégio, e comemos à mesma mesa. Mas, coisas do mundo!... Ela tornou-se ama e eu criada! É verda de que me trata com distinção, e conversamos às vezes em altas coisas.

DURVAL
Ah! é isso? Foram condiscípulas. (levanta-se) E conversam agora em altas coisas!... Pois eis-me aqui para conversar também; faremos um trio admirável.

ROSINHA
Vou participar-lhe a sua chegada.

DURVAL
Sim, vai, vai. Mas olha cá, uma palavra.

ROSINHA
Uma só, entende?

DURVAL
Dás-me um beijo?

ROSINHA
Bem vê que são três palavras. (entra à direita)

Cena II

DURVAL e BENTO

DURVAL
Bravo! A pequena não é tola... tem mesmo muito espírito! Eu gosto dela, gosto! Mas é preciso dar-me ao respeito. (vai ao fundo e chama) Bento! (descendo) Ora depois de dois anos como virei en­contrar isto? Sofia terá por mim a mesma queda? É isso o que vou sondar. É provável que nada perdes se dos antigos sentimentos. Oh! decerto! Vou começar por levá-la ao baile mascarado; há de aceitar, não pode deixar de aceitar! Então, Bento! mariola?

BENTO
(entrando com um jornal) Pronto.

DURVAL
Ainda agora! Tens um péssimo defeito para bo leeiro, é não ouvir.

BENTO
Eu estava embebido com a interessante leitura do Jornal do Comércio: ei-lo. Muito mudadas estão estas coisas por aqui! Não faz uma idéia! E a política? Esperam-se coisas terríveis do parlamento.

DURVAL
Não me maçes, mariola! Vai abaixo ao carro e traz uma caixa de papelão que lá está... Anda!

BENTO
Sim, senhor; mas admira-me que V. S. não preste atenção ao estado das coisas.

DURVAL
Mas que tens tu com isso, tratante?

BENTO
Eu nada; mas creio que...

DURVAL
Salta lá para o carro, e traz a caixa depressa!

Cena III

DURVAL e ROSINHA

DURVAL
Pedaço d'asno! Sempre a ler jornais; sempre a ta garelar sobre aquilo que menos lhe deve importar! (vendo Rosinha) Ah!... és tu? Então ela... (levanta-se)

ROSINHA
Está na outra sala à sua espera.

DURVAL
Bem, aí vou. (vai entrar e volta) Ah! recebe a caixa de papelão que trouxer meu boleeiro.

ROSINHA
Sim, senhor.

DURVAL
Com cuidado, meu colibri!

ROSINHA
Galante nome! Não será em seu coração que farei o meu ninho.

DURVAL
(à parte)
Ah! É bem engraçada a rapariga! (vai-se)

Cena IV

ROSINHA, DEPOIS BENTO

ROSINHA
Muito bem, Sr. Durval. Então voltou ainda? É a hora de minha vingança. Há dois anos, tola como eu era, quiseste seduzir-me, perder-me, como a muitas outras! E como? mandando-me dinheiro... dinheiro! — Media as infâmias pela posição. Assentava de... Oh! mas deixa estar! vais pagar tudo... Gosto de ver essa gente que não enxerga sentimento nas pessoas de condição baixa... como se quem traz um avental, não pode também calçar uma luva!

BENTO
(traz uma caixa de papelão)

Aqui está a caixa em questão... (põe a caixa so bre uma cadeira) Ora, viva! Esta
caixa é de meu amo.

ROSINHA
Deixe-a ficar.

BENTO
(tirando o jornal do bolso)
Fica entregue, não? Ora bem! Vou continuar a minha interessante leitura... Estou na gazetilha — Estou pasmado de ver como vão as coisas por aqui! — Vão a pior. Esta folha põe-me ao fato de grandes novidades.

ROSINHA
(sentando-se de costas para ele)
Muito velhas para mim.

BENTO
(com desdém)
Muito velhas? Concedo. Cá para mim têm toda a frescura da véspera.

ROSINHA
(consigo)
Quererá ficar?

BENTO
(sentando-se do outro lado)
Ainda uma vista d'olhos! (abre o jornal)

ROSINHA
E então não se assentou?

BENTO
(lendo)
Ainda um caso: "Ontem à noite desapareceu uma nédia e numerosa criação de aves domésticas. Não se pôde descobrir os ladrões, porque, desgraçadamente havia uma patrulha a dois passos dali."

ROSINHA
(levantando-se)
Ora, que aborrecimento!

BENTO
(continuando)
“Não é o primeiro caso que dá nesta casa da rua dos Inválidos." (consigo) Como vai isto, meu Deus!

ROSINHA
(Abrindo a caixa)
Que belo dominó!

BENTO
(indo a ela)
Não mexa! Creio que é para ir ao baile mascarado hoje...

ROSINHA
Ah!... (silêncio) Um baile... hei de ir também!

BENTO
Aonde? Ao baile? Ora esta!

ROSINHA
E por que não?

BENTO
Pode ser; contudo, quer vás, quer não vás, deixa-me ir acabar a minha leitura naquela sala de espera.

ROSINHA
Não... tenho uma coisa a tratar contigo.

BENTO
(lisonjeado)
Comigo, minha bela!

ROSINHA
Queres servir-me em uma coisa?

BENTO
(severo)
Eu cá só sirvo ao Sr. Durval, e é na boléia!

ROSINHA
Pois hás de me servir. Não és então um rapaz como os outros boleeiros, amável e serviçal...

BENTO
Vá feito... não deixo de ser amável; é mesmo o meu capítulo de predileção.

ROSINHA
Pois escuta. Vais fazer um papel, um bonito papel.

BENTO
Não entendo desse fabrico. Se quiser algumas lições sobre a maneira de dar uma volta, sobre o governo das rédeas em um trote largo, ou coisa cá do meu ofício, pronto me encontra.

ROSINHA
(que tem ido buscar o ramalhete no jarro)
Olha cá: sabes o que é isso?

BENTO
São flores.

ROSINHA
É o ramalhete diário de um fidalgo espanhol que viaja incógnito.

BENTO
Ah! (toma o ramalhete)

ROSINHA
(indo a uma gaveta buscar um papel)
O Sr. Durval conhece a tua letra?

BENTO
Conhece apenas uma. Eu tenho diversos modos de escrever.

ROSINHA
Pois bem; copia isto. (dá-lhe o papel) Com letra que ele não conheça.

BENTO
Mas o que é isto?

ROSINHA
Ora, que te importa? És uma simples máquina. Sabes tu o que vai fazer quando o teu amo te indica uma direção ao carro? Estamos aqui no mesmo caso.

BENTO
Fala como um livro! Aqui vai. (escreve)

ROSINHA
Que amontoado de garatujas!...

BENTO
Cheira a diplomata. Devo assinar?

ROSINHA
Que se não entenda.

BENTO
Como um perfeito fidalgo. (escreve)

ROSINHA
Subscritada para mim. À Sra. Rosinha. (Bento escreve) Põe agora este bilhete nesse e leva. Voltarás a propósito. Tens também muitas vozes?

BENTO
Vario de fala, como de letra.

ROSINHA
Imitarás o sotaque espanhol?

BENTO
Como quem bebe um copo d’água!

ROSINHA
Silêncio! Ali está o Sr. Durval.

Cena V

ROSINHA, BENTO, DURVAL

DURVAL
(a Bento)
Trouxeste a caixa, palerma?

BENTO
(escondendo atrás das costas o ramalhete)
Sim, senhor.

DURVAL
Traz a carruagem para o portão

BENTO
Sim senhor. (Durval vai vestir o sobretudo, mirando-se ao espelho) O jornal? Onde pus eu o jornal? (sentindo-o no bolso) Ah!...

ROSINHA
(baixo a Bento)
Não passes na sala de espera. (Bento sai)

Cena VI

DURVAL, ROSINHA

DURVAL
Adeus, Rosinha, é preciso que eu me retire.

ROSINHA
(à parte)
Pois não!

DURVAL
Dá essa caixa a tua ama.

ROSINHA
Vai sempre ao baile com ela?

DURVAL
Ao baile? Então abriste caixa?

ROSINHA
Não vale a pena falar nisso. Já sei, já sei que foi recebido de braços abertos.

DURVAL
Exatamente. Era a ovelha que voltava ao aprisco depois de dois anos de apartamento.

ROSINHA
Já vê que andar longe não é mau. A volta é sempre um triunfo. Use, abuse mesmo da receita. Mas então sempre vai ao baile?

DURVAL
Nada sei de positivo. As mulheres são como os logogrifos. O espírito se perde no meio daquelas combinações...

ROSINHA
Fastidiosas, seja franco.

DURVAL
É um aleive: não é esse o meu pensamento. Contudo devo, parece-me dever crer, que ela irá. Como me alegra, e me entusiasma esta preferência que me dá a bela Sofia!

ROSINHA
Preferência? Há engano: preferir supõe escolha, supõe concorrência...

DURVAL
E então?

ROSINHA
E então, se ela vai ao baile é unicamente pelos seus bonitos olhos, se não fora V. S., ela não ia.

DURVAL
Como é isso?

ROSINHA
(indo ao espelho)
Mire-se neste espelho.

DURVAL
Aqui me tens

ROSINHA
O que vê nele?

DURVAL
Boa pergunta! Vejo-me a mim próprio.

ROSINHA
Pois bem. Está vendo toda a corte da Sra. Sofia, todos os seus adoradores.

DURVAL
Todos! Não é possível. Há dois anos a bela senhora era a flor bafejada por uma legião de zéfiros... Não é possível.

ROSINHA
Parece-me criança! Algum dia os zéfiros foram estacionários? Os zéfiros passam e mais nada. É. o símbolo do amor moderno.

DURVAL
E a flor fica no hastil. Mas as flores duram uma manhã apenas. (severo) Quererás tu dizer que Sofia passou a manhã das flores?

ROSINHA
Ora, isso é loucura. Eu disse isto?

DURVAL
(pondo a bengala junto ao piano)
Parece-me entretanto...

ROSINHA
V. S. tem uma natureza de sensitiva; por outra, toma os recados na escada. Acredite ou não, o que lhe digo é a pura verdade. Não vá pensar que o afirmo assim para conservá-lo junto de mim: estimara mais o contrário.

DURVAL
(sentando-se)
Talvez queiras fazer crer que Sofia é alguma fruta passada, ou jóia esquecida no fundo da gaveta por não estar em moda. Estais enganada. Acabo de vê-la; acho-lhe ainda o mesmo rosto: vinte e oito anos, apenas.

ROSINHA
Acredito.

DURVAL
É ainda a mesma: deliciosa.

ROSINHA
Não sei se ela lhe esconde algum segredo.

DURVAL
Nenhum.

ROSINHA
Pois esconde. Ainda lhe não mostrou a certidão de batismo. (vai sentar-se ao lado oposto)

DURVAL
Rosinha! E depois, que me importa? Ela é ainda aquele querubim do passado. Tem uma cintura... que cintura!

ROSINHA
É verdade. Os meus dedos que o digam!

DURVAL
Hein? E o corado daquelas faces, o alvo daquele colo, o preto daquelas sobrancelhas?

ROSINHA
(levantando-se)
Ilusão! Tudo isso é tabuleta do Desmarais; aquela cabeça passa pelas minhas mãos. É uma beleza de pó de arroz: mais nada.

DURVAL
(levantando-se bruscamente)
Oh! Essa agora!

ROSINHA
(à parte)
A pobre senhora está morta!

DURVAL
Mas, que diabo! Não é um caso de me lastimar; não tenho razão disso. O tempo corre para todos, e portanto a mesma onda nos levou a ambos folhagens da mocidade. E depois eu amo aquela engraçada mulher!

ROSINHA
Reciprocidade; ela também o ama.

DURVAL
(com um grande prazer)
Ah!

ROSINHA
Duas vezes chegou à estação do campo para tomar o wagon, mas duas vezes voltou para casa. Temia algum desastre da maldita estrada de ferro!

DURVAL
Que amor! Só recuou diante da estrada de ferro!

ROSINHA
Eu tenho um livro de notas, donde talvez lhe possa tirar provas do amor da Sra. Sofia. É uma lista cronológica e alfabética dos colibris que por aqui têm esvoaçado.

DURVAL
Abre lá isso então!

ROSINHA
(folheando um livro)
Vou procurar.

DURVAL
Tem aí todas as letras?

ROSINHA
Todas. É pouco agradável para V. S.; mas tem todas desde A até o Z.

DURVAL
Desejara saber quem foi a letra K.

ROSINHA
É fácil; algum alemão.

DURVAL
Ah! Ela também cultiva os alemães?

ROSINHA
Durval é a letra D. — Ah! Ei-lo: (lendo) “Durval, quarenta e oito anos de idade...”

DURVAL
Engano! Não tenho mais de quarenta e seis.

ROSINHA
Mas esta nota foi escrita há dois anos.

DURVAL
Razão demais. Se tenho hoje quarenta e seis, há dois tinha quarenta e quatro... e claro!

ROSINHA
Nada. Há dois anos devia ter cinqüenta.

DURVAL
Esta mulher é um logogrifo!

ROSINHA
V. S. chegou a um período em sua vida em que a mocidade começa a voltar; em cada ano, são doze meses de verdura que voltam como andorinhas na primavera.

DURVAL
Já me cheirava a epigrama. Mas vamos adiante com isso.

ROSINHA
(fechando o livro)
Bom! Já sei onde estão as provas. (vai a uma gaveta e tira dela uma carta) Ouça: — "Querida Amélia...

DURVAL
Que é isso?

ROSINHA
Uma carta da ama a uma sua amiga. "Querida Amélia: o Sr. Durval é um homem interessante, rico, amável, manso como um cordeiro, e submisso como o meu Cupido..." (a Durval) Cupido é um cão d'água que ela tem.

DURVAL
A comparação é grotesca na forma, mas exata no fundo. Continua, rapariga.

ROSINHA
(lendo)
“Acho-lhe contudo alguns defeitos...

DURVAL
Defeitos?

ROSINHA
“Certas maneiras, certos ridículos, pouco espírito, muito falatório, mas afinal um marido com todas as virtudes necessárias...

DURVAL
É demais

ROSINHA
“Quando eu conseguir isso, peço-te que venhas vê-lo como um urso na chácara do Souto.

DURVAL
Um urso!

ROSINHA
(lendo)
"Esquecia-me de dizer-te que o Sr. Durval usa de cabeleira." (fecha a carta)

DURVAL
Cabeleira! É uma calúnia! Uma calúnia atroz! (levando a mão ao meio da cabeça, que está calva) Se eu usasse de cabeleira...

ROSINHA
Tinha cabelos, é claro.

DURVAL
(passeando com agitação)
Cabeleira! E depois fazer-me seu urso como um marido na chácara do Souto.

ROSINHA
(às gargalhadas)
Ah! ah! ah! (vai-se pelo fundo)

Cena VII

DURVAL
(passeando)
É demais! E então quem fala! uma mulher que tem umas faces... Oh! é o cúmulo da impudência! É aquela mulher furta-cor, aquele arco-íris que tem a liberdade de zombar de mim!... (procurando) Rosinha! Ah! foi-se embora... (sentando-se) Oh! Se eu me tivesse conservado na roça, ao menos lá não teria dessas apoquentações!...Aqui na cidade, o prazer é misturado com zangas de acabrunhar o espírito mais superior! Nada! (levanta-se) Decididamente volto para lá... Entretanto, cheguei há pouco... Não sei se deva ir; seria dar cavaco com aquela mulher; e eu... Que fazer? Não sei, deveras!

Cena VIII

DURVAL e BENTO (de paletó, chapéu de palha, sem botas)

BENTO
(mudando a voz)
Para a Sra. Rosinha. (põe o ramalhete sobre a mesa)

DURVAL
Está entregue.

BENTO
(à parte)
Não me conhece! Ainda bem.

DURVAL
Está entregue.

BENTO
Sim, senhor! (sai pelo fundo)

Cena IX

DURVAL
(só, indo buscar o ramalhete)
Ah!ah!flores! A Sra. Rosinha tem quem lhe mande flores! Algum boleeiro estúpido. Estas mulhe res são de um gosto esquisito às vezes! — Mas como isto cheira! Dir-se-ia um presente de fidalgo! (vendo a cartinha) Oh! que é isto? Um bilhete de amores! E como cheira! Não conheço esta letra; o talho é rasga do e firme, como de quem desdenha. (levando a cartinha ao nariz) Essência de violeta, creio eu. É uma planta obscura, que também tem os seus satélites. Todos os têm. Esta cartinha é um belo assunto para uma dissertação filosófica e social. Com efeito: quem diria que esta moça, colocada tão baixo, teria bilhetes perfumados!... (leva ao nariz) Decidida mente é essência de magnólias!

Cena X

ROSINHA (no fundo) DURVAL (no proscênio)

ROSINHA
(consigo)
Muito bem! Lá foi ela visitar a sua amiga no Botafogo. Estou completamente livre. (desce)

DURVAL
(escondendo a carta)
Ah! és tu? Quem te manda destes presentes?

ROSINHA
Mais um. Dê-me a carta.

DURVAL
A carta? É boa! é coisa que não vi.

ROSINHA
Ora não brinque! Devia trazer uma carta. Não vê que um ramalhete de flores é um estafeta mais segu ro do que o correio da corte!

DURVAL
(dando-lhe a carta)
Aqui a tens; não é possível mentir.

ROSINHA
Então! (lê o bilhete)

DURVAL
Quem é o feliz mortal?

ROSINHA
Curioso!

DURVAL
É moço ainda?

ROSINHA
Diga-me: é muito longe daqui a sua roça?

DURVAL
É rico, é bonito?

ROSINHA
Dista muito da última estação?

DURVAL
Não me ouves, Rosinha?

ROSINHA
Se o ouço! É curioso, e vou satisfazer-lhe a curio sidade. É rico, é moço e é bonito. Está satisfeito?

DURVAL
Deveras! E chama-se?...

ROSINHA
Chama-se... Ora eu não me estou confessando!

DURVAL
És encantadora!

ROSINHA
Isso é velho. E o que me dizem os homens e os espelhos. Nem uns nem outros mentem.

DURVAL
Sempre graciosa!

ROSINHA
Se eu o acreditar, arrisca-se a perder a liberda de... tomando uma capa...

DURVAL
De marido, queres dizer (à parte) ou de um urso! (alto) Não tenho medo disso. Bem vês a alta posição... e depois eu prefiro apreciar-te as qualidades de fora. Talvez leve a minha amabilidade a fazer-te um madrigal.

ROSINHA
Ora essa!

DURVAL
Mas, fora com tanto tagarelar! Olha cá! Eu estou disposto a perdoar aquela carta; Sofia vem sempre ao baile?

ROSINHA
Tanto como o imperador dos turcos... Recusa.

DURVAL
Recusa! É o cúmulo da... E por que recusa?

ROSINHA
Eu sei lá! Talvez um nervoso; não sei!

DURVAL
Recusa! Não faz mal... Não quer vir, tanto melhor! Tudo está acabado, Sra. Sofia de Melo! Nem uma atenção ao menos comigo, que vim da roça por sua causa unicamente! Recebe-me com agrado, e depois faz-me destas!

ROSINHA
Boa noite, Sr. Durval.

DURVAL
Não te vás assim; conversemos ainda um pedaço.

ROSINHA
Às onze horas e meia... interessante conversa!

DURVAL
(sentando-se)
Ora que tem isso? Não são horas que fazem a conversa interessante, mas os interlocutores.

ROSINHA
Ora tenha a bondade de não dirigir cumprimentos.

DURVAL
Mal sabes que tens as mãos, como as de uma patrícia romana; parecem calçadas de luva, se é que uma luva pode ter estas veias azuis como rajadas de mármore.

ROSINHA
(à parte)
Ah! Hein!

DURVAL
E esses olhos de Helena!

ROSINHA
Ora!

DURVAL
E estes bravos de Cleópatra!

ROSINHA
(à parte)
Bonito!

DURVAL
Apre! Queres que esgote a história?

ROSINHA
Oh! não!

DURVAL
Então por que se recolhe tão cedo a estrela d'alva?

ROSINHA
Não tenho outra coisa a fazer diante do sol.

DURVAL
Ainda um cumprimento! (vai à caixa de papelão) Olha cá. Sabes o que há aqui? um dominó.

ROSINHA
(aproximando-se)
Cor-de-rosa! Ora vista, há de ficar-lhe bem.

DURVAL
Dizia um célebre grego: dê-me pancadas, mas ouça-me! — Parodio aquele dito: — Ri, graceja, como quiseres, mas hás de escutar-me: (desdobrando o do minó) não achas bonito?

ROSINHA
(aproximando-se)
Oh! decerto!

DURVAL
Parece que foi feito para ti!... É da mesma altura. E como te há de ficar! Ora, experimenta!

ROSINHA
Obrigado.

DURVAL
Ora vamos! experimenta; não custa.

ROSINHA
Vá feito se é só para experimentar.

DURVAL
(vestindo-lhe o dominó)
Primeira manga.

ROSINHA
E segunda! (veste-o de todo)

DURVAL
Delicioso. Mira-te naquele espelho. (Rosinha obedece) Então!

ROSINHA
(passeando)
Fica-me bem?

DURVAL
(seguindo-a)
A matar! a matar! (à parte) A minha vingança começa, Sra. Sofia de melo! (a Rosinha) Estás esplêndida! Deixa dar-te um beijo?

ROSINHA
Tenha mão.

DURVAL
Isso agora é que não tem grata!

ROSINHA
Em que oceano de fitas e de sedas estou mergulhada! (dá meia-noite) Meia-noite!

DURVAL
Meia-noite!

ROSINHA
Vou tirar o dominó... é pena!

DURVAL
Qual tirá-lo! Fica com ele. (pega no chapéu e nas luvas)

ROSINHA
Não é possível.

DURVAL
Vamos ao baile mascarado.

ROSINHA
(à parte)
Enfim. (alto) Infelizmente não posso.

DURVAL
Não pode? e então por quê?

ROSINHA
É segredo.

DURVAL
Recusas? Não sabes o que é um baile. Vais ficar extasiada. E um mundo fantástico, ébrio, movediço, que corre, que salta, que ri, em um turbilhão de harmonias extravagantes!

ROSINHA
Não posso ir. (batem à porta) [à parte] É Bento.

DURVAL
Quem será?

ROSINHA
Não sei. (indo ao fundo) Quem bate?

BENTO
(fora com a voz contrafeita)
O hidalgo Don Alonso da Sylveira y Zorrilla y Guclines y Guatinara y Marouflas de la Vega !

DURVAL
(Assustado)
É um batalhão que temos à porta! A Espanha muda-se para cá?

ROSINHA
Caluda! Não sabe quem está ali? É um fidalgo da primeira nobreza de Espanha. Fala à rainha de chapéu na cabeça.

DURVAL
E que quer ele?

ROSINHA
A resposta daquele ramalhete.

DURVAL
(dando um pulo)
Ah! Foi ele...

ROSINHA
Silêncio!

BENTO
(fora)
É meia-noite. O baile vai começar.

ROSINHA
Espere um momento.

DURVAL
Que espere! Mando-o embora. (à parte) É um fidalgo!

ROSINHA
Mandá-lo embora? Pelo contrário; vou mudar de dominó e partir com ele.

DURVAL
Não, não; não faças isso!

BENTO
(fora)
É meio-noite e cinco minutos. Abre a porta a quem deve ser teu marido.

DURVAL
Teu marido!

ROSINHA
E então!

BENTO
Abre! abre!

DURVAL
É demais! Estás com o meu dominó... hás de ir comigo ao baile!

ROSINHA
Não é possível; não se trata a um fidalgo espanhol como a um cão. Devo ir com ele.

DURVAL
Não quero que vás.

ROSINHA
Hei de ir.(dispõe-se a tirar o dominó) Tome lá...

DURVAL
(impedindo-a)
Rosinha, ele é um espanhol, e além de espanhol, fidalgo. Repara que é uma dupla cruz com que tens de carregar.

ROSINHA
Qual cruz! E não se casa ele comigo?

DURVAL
Não caias nessa!

BENTO
(fora)
Meia-noite e dez minutos! então vem ou não vem?

ROSINHA
Lá vou. (a Durval) Vê como se impacienta! Tudo aquilo é amor!

DURVAL
(com explosão)
Amor! E se eu te desse em troca daquele amor castelhano, um amor brasileiro ardente e apaixona do? Sim, eu te amo, Rosinha; deixa esse espanhol tresloucado!

ROSINHA
Sr. Durval!

DURVAL
Então, decide!

ROSINHA
Não grite! Aquilo é mais forte do que um tigre de Bengala.

DURVAL
Deixa-o; eu matei as onças do Maranhão e já estou acostumado com esses animais. Então? Vamos! Eis-me a teus pés, ofereço-te a minha mão e a minha fortuna!

ROSINHA
(à parte)
Ah... (alto) Mas o fidalgo?

BENTO
(fora)
É meia-noite e doze minutos!

DURVAL
Manda-o embora, ou senão, espera. (levanta-se) Vou matá-lo; é o meio mais pronto.

ROSINHA
Não, não; evitemos a morte. Para não ver correr sangue, aceito a sua proposta.

DURVAL
(com regozijo)
Venci o castelhano! É um magnífico triunfo! Vem, minha bela; o baile nos espera!

ROSINHA
Vamos. Mas repare na enormidade do sacrifício.

DURVAL
Serás compensada, Rosinha. Que linda peça de entrada! (à parte) São dois os enganados — o fidalgo e Sofia (alto) Ah! ah! ah!

ROSINHA
(rindo também)
Ah! Ah! Ah! (à parte) Eis-me vingada!

DURVAL
Silêncio! (vão pé ante pela porta da esquerda. Sai Rosinha primeiro, e Durval, da soleira da porta para a porta do fundo, a rir às gargalhadas)

Cena última

BENTO
(abrindo a porta do fundo)
Ninguém mais! Desempenhei o meu papel: estou contente! Aquela subiu um degrau na sociedade. Deverei ficar assim? Alguma baronesa não me desdenharia decerto. Virei mais tarde. Por enquanto, vou abrir a portinhola. (vai a sair e cai o pano)

FIM

Fonte:
Teatro de Machado de Assis, org. de João Roberto Faria, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Trova XXII

Emilia Pardo Bazán (Oito Nozes)



Ela escreveu todos os gêneros, num total de quase cinqüenta títulos, mas ficou conhecida como contista: durante anos, escrevia uma média de um conto por semana, textos que eram disputados por periódicos do Espanha e da América Hispânica. De origem aristocrata, chegou a catedrática de Literatura Comparada da Universidade de Madri, mas, por ser mulher, não conseguiu ingressar na Academia Espanhola. Junto com Sexta-feira Santa e Neto de Cid, este Oito Nozes é considerado um dos seus melhores contos, com situações cotidianas e personagens comuns de uma aldeia ao Norte da Espanha.
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Todas as noites depois do jantar o senhor das Baceleiras recebia em sua desconjuntada mesa da sala seus fiéis parceiros de jogo; o médico, Dr. Juan da Mata; o padre, Padre Serafim; e o mestre-escola, Sr. Dionísio. Chegavam os três ao mesmo tempo e saudavam-no com idênticas palavras, viravam o mesmo cálice de vinho que D. Ramón das Baceleiras lhes oferecia. E limpavam a boca com as costas da mão, à falta de guardanapos. Em seguida, Padre Serafim, que era serviçal e hábil, acendia as velas, não sem antes arrumar o pavio com a espevitadeira prateada, e até às dez e meia disputavam, eles quatro, o ganho de alguns centavos. A essa hora os jogadores apanhavam sala de entrada os tamancos, se a noite era chuvosa ou havia lodo nos caminhos esburacados, e dirigia-se cada qual pacificamente para seu canto.

Duravam cinco anos estes encontros para o mais inofensivo dos passatempos, e já eram o único prazer do velho e bolorento senhor da aldeia, que passava a metade da vida pregado em sua poltrona pela gota e pelo reumatismo. Aquelas horinhas de jogo e de bate-papo davam algum interesse ao dia, que deslizava lento, interminável, prolongado pela solidão, pela quietude dominante e pelo tédio da velhice sem família, sem obrigações e sem ter o que fazer. Os três homens que vinham jogar com D. Ramón não eram nem sábios nem eloqüentes no dedo de prosa, e nem sequer estavam a par do que ia pelo mundo; mas mesmo assim traziam notícias, boatos, opiniões, brincadeiras, manias e humorismo deste ou daquele; o Dr. Juan da Mata, por sua profissão, recolhia aqui e ali a crônica do lugar, o mexerico das pessoas de roupa simples e das de jaquetas de rico - que o têm, e muito picante; o Padre Serafim se encarregava da política maior, porque lia o "Correio espanhol" e estava a par dos pensamentos do Czar da Rússia e do imperador da Áustria; e quanto ao Sr. Dionísio, ele discordava enfaticamente do divino e do humano, e pelas malditas eleições conhecia de cor e salteado a política local. O senhor das Baceleiras tomava parte na conversa, tão à vontade que seus pareceres eram ouvidos com respeito pelos três companheiros, habituados a nele ver o senhor - um ser superior, pois que nada fazia e vivia de rendas.

O senhor de Baceleiras era dono de muitas terras na aldeia e arredores. Se é verdade que se nasce proprietário, e que o instinto de conservação e defesa do adquirido é tão forte quanto a morte, desde os primitivos alvores do mundo, este instinto em ninguém se revelou mais vigoroso, nem arraigou-se com mais profundas raízes do que em D. Ramón. Amava com exagero e defendia com raiva a sua propriedade, como se tivesse uma prole considerável a quem transmiti-la e não estivesse, pelo inexorável decreto dos anos, prestes a deixar tudo o que tinha para a alegria de uns sobrinhos que viviam em Mondoñedo e não tinham visto o tio nem uma só vez na vida. Apesar de que o momento em que se abandona a fazenda com a vida se aproximava, D. Ramón, sempre que a gota e a maldita perna permitiam, saía para examinar suas fazendas mais próximas, ver como o milho espigava, como a grama havia agradecido à rega, se os pinheiros medravam e se a nogueira estava mais carregada do que no ano anterior.

O dono tinha posto seus olhos e coração nesta nogueira. Árvore como aquela não se encontrava num raio de quilômetros. Crescia o formoso exemplar à beira do caminho, em frente à taipa da casa dos Baceleiras e nas imediações de uma quinta semeada de batatas pertencente ao Dr. Juan da Mata, o médico. Por que, sendo a quinta do médico, o limite e a árvore eram de D. Ramón? Que o verifique quem conseguir desenrolar o inextricável emaranhado da subdividida propriedade rural galega.

Ora, o caso foi que uma certa manhã, uma manhãzinha radiante de outubro em que tudo no campo era paz e sossego, o senhor das Baceleiras, arrastando a perna mas cheio de ânimo, parou diante da nogueira e deslumbrou-se ao vê-la tão carregada de frutos. Em certos galhos ao sol do meio-dia, viam-se mais nozes do que folhas, e sobre a erva que amaciava o limite de D. Ramón, algumas nozes já caídas, gordas e luzentes. Tentado esteve a apanhá-las, mas não o fez, por causa da perna. "Alberto me trará essas nozes mais tarde", pensou; e chegando em casa ordenou ao criado, satisfeito:

- Hoje no jantar, sobremesa de nozes frescas.

E como no jantar as nozes não apareceram, ele interpelou Alberto. Alberto respondeu que foi apanhar as nozes caídas, mas não encontrou nenhuma no chão.

- Mas como se eu mesmo vi as nozes, e elas eram pelo menos uma dúzia! desabafou, desanimado, o senhor de Baceleiras.

- Pois então as crianças devem ter apanhado... - respondeu Alberto, com a satisfação velhaca dos camponeses quando acontecem coisas que contrariam seus amos.

À hora do voltarete, o primeiro a chegar foi D. Juan da Mata. Ao entrar tirou um embrulho do bolso de sua velha jaqueta.

- Nozes frescas - murmurou ele com um sorriso triunfal, oferecendo a dádiva ao senhor, que ficou gelado.

- Nozes frescas! - murmurou. - E colheu-as de qual nogueira?

- Da nossa - reagiu o médico com a maior fleuma, colocando-as num prato, pois elas já vinham limpas e descascadas.

- Da nossa? Nossa qual, pode me dizer?

- Essa é boa! O Sr. D. Ramón não a conhece! Da grande, aquela do caminho... a que me faz sombra à plantação de batatas... e até que chega a prejudicá-las.

- Mas Dr. Juan, essa nogueira.... é tão sua quanto do Papa. Essa nogueira não é de outra pessoa que não esta aqui que está falando consigo.

Caiu das nuvens o Dr. Juan da Mata ao escutar aquelas frases e o tom em que elas eram ditas. Era um velhinho seco como bacalhau, ágil e conservado por milagre, a despeito dos seus muitos anos, grande andarilho, carinhoso e sensível, embora gasto e contido à sua maneira; e o tom inesperado de D. Ramón sugeriu-lhe esta resposta ferina:

- Quer dizer que eu roubei as nozes que nem eram minhas? Então não é meu o que cai na minha propriedade, em cima das minhas batatas? Quer dizer que eu sou um ladrão?

Existe um ditado árabe muito sábio, evangelho do laconismo, que reza assim: "Antes de falar, a língua dá quatro voltas na boca." D. Ramón, para azar seu, esqueceu-se do provérbio naquela hora, se é que o conhecia, coisa que não posso afirmar; e dando rédeas à impaciência e à irritação, respondeu com o ar mais agressivo do mundo:

- O senhor pode me dizer como se chama alguém que se apodera do alheio sem o consentimento do dono? As nozes não eram suas; portanto, tire sua própria conclusão.

- Dr. Juan da Mata recalcitrou e, levantando-se num ímpeto e jogando as nozes, não na cara, mas na barriga e nas pernas de D. Ramón, gritou fora de si:

- Pois fique com essa porcaria das suas oito nozes... Que raios me partam se eu voltar alguma vez a pôr os pés onde me tratam de ladrão, seu... alma danada! Fique com Judas e que só venham aqui seus escravos, que eu sou uma pessoa tão decente quanto o senhor!

Ao sair como um foguete, o médico se encontrou na escada de pedra com o Sr. Dionísio, o mestre-escola, a quem contou o que acabara de acontecer, gaguejando de raiva.

O mestre-escola entrou no refeitório com cara muito comprida, guardando um silêncio diplomático, a princípio. Mas D. Ramón deu logo vazão ao seu mau humor, contando-lhe o caso, e qual não foi a sua surpresa ao constatar que o Sr. Dionísio, com argumentações pedantes e desatinadas, e com argúcias e circunlóquios, vinha a dar toda a razão ao médico.

- Em meu humilde e meio eclipsado ponto de vista, desde logo - dizia o Sr. Dionísio, apertando os lábios - tenho de me inclinar a reconhecer que, se a terra ou a propriedade onde as nozes foram apresadas ou colhidas pertenciam por justa causa ao Dr. Juan da Mata, pois ele era respectiva e colegamente dono dos frutos.

Ao notar D. Ramón que também o mestre-escola o contradizia, fico mais bravo e novas palavras imprudentes emitiu ele:

- Como? Então o Dr. Juan estava lá no seu direito? Pois vamos ver como sustenta ele este argumento perante os tribunais, caramba, vamos ver! Para mim, aqueles que defendem um ladrão de sua casta são.

Sr. Dionísio enrubesceu. Toda a dignidade profissional subiu-lhe com o ao rosto e, com a língua emperrada de pura indignação, conseguiu balbuciar-.

- Mais... devagar... mais... devagar... Modere-se, meu senhor... Eu me retiro desta casa!

O padre, que cruzava a porta quando o mestre-escola ia saindo, encontrou o fidalgo chispando e rugindo como cratera de vulcão em plena ebulição. Que logo no dia seguinte iria interpor uma acusação judicial, e o médico que se virasse, pois que iria dar com os costados na cadeia! Frente ao arrebatamento do fidalgo, o Padre Serafim, excelente homem, um santo varão em toda a extensão da palavra, mas desses que, como se diz, vivem no mundo da lua, caiu na tolice de pespegar ao furibundo D. Ramón uns textos ascéticos e morais que tinham tanto a ver com as nozes como com as estrelas no céu; e os nervos já esticados do senhor - que era do tipo colérico, defeito de quase todos que sofrem de gota por terem o sangue muito ácido - simplesmente não suportaram o sermão do pároco. Desatinado e cego, D. Ramón tomou de seu cajado semimuleta e levantou-o contra o pregador, que, espavorido, saiu escada abaixo como um foguete, oferecendo aquele transe a Deus em resgate de suas culpas...

E assim acabou e se dissolveu, como sal na água, a tradicional partida de voltarete de D. Ramón das Baceleiras. Mas não acaba aqui a história das oito nozes, que mais não eram as que, despojadas da casaca verde e partidas para maior facilidade de comê-las, em má hora presenteou o médico.

Irritado mais ainda pelo aborrecimento de ter passado a noite inteira sozinho, e desejoso de vingança, D. Ramón entrou no dia seguinte com a acusação judicial contra o Dr. Juan da Mata, por motivo de roubo dos frutos. O médico suportou com brio a iniciativa; advogados e procuradores foram consultados; não houve acordo no julgamento e a cúria de Brigâncio apoderou-se do assunto e fez o fidalgo gastar um despropósito de dinheiro durante os anos que durou a pendenga: milhares de pesetas suficientes para carregar de nozes um par de navios. E como o despeito e o pesar do fastio e da solidão produzissem em D. Ramón um ataque de gota mais forte dos que lhe eram comuns, e tivesse ele de chamar o Dr. Juan da Mata para lhe atender, este se negou, alegando que poderiam imputar-lhe a morte do seu adversário e inimigo. Com a falta do socorro oportuno, o fidalgo piorou e terminou entregando a alma muitíssimo a contragosto. O ano de sua morte foi de grande alegria para os meninos herdeiros da aldeia que comeram toda a colheita da venerável nogueira.

Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

Emilia Pardo Barzón (1851 – 1921)

Tradução José Feldman
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Emilia Pardo Bazán, condessa de Pardo Bazán, (Corunha, 16 de setembro de 1851 — Madrid, 12 de maio de 1921) foi uma escritora e nobre espanhola.

Conjugou realismo e naturalismo na sua literatura. Mulher de grande peso intelectual, tocou muitos gêneros literários desde a novela até ao ensaio, passando pelos livros de viagens. Foi das primeiras espanholas a mostrar-se ativa no campo dos direitos da mulher. O seu cosmopolitismo assentou sobre uma intensa vinculação à sua cidade natal.
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Emilia Pardo Bazán nasceu em 16 de setembro de 1851 na Coruña , uma das cidades principais de Galicia, España. Seu pai, Don José Pardo Bazán, era uma figura política. Estimulava a leitura e os estudos em sua filha Emilia. Sua mãe, Amalia de la Rúa lhe ensinou a ler e mais tarde lhe ajudaria a livrar-se de muitas tarefas domésticas para que Emília pudesse dedicar mais tempo a leitura e à escrita. Pouco depois do nascimento de Emília, a família havia se mudado para uma casa em um bairro aristocrático e tranquilo na Calle de las Tabernas. Possuiam outras duas residencias, uma perto de Sangenjo, um povoado de pescadores e a outra na zona rural de La Coruña, o Pazo de Meirás, que foi residencia boa parte do verão do ditador Franco.

A biblioteca de seu pai lhe proporcionava o acesso a uma grande variedade de leituras. Na casa de Sangenjo encontrou Don Quixote e a Bíblia. Na casa de La Coruña leu a conquista de México de Solís e Homens ilustres de Plutarco. Os livros sobre a revolução francesa lhe fascinavam e seus preferidos eram Don Quixote, a Bíblia e A Ilíada.

Aos nove anos, Emilia começa a demonstrar interesse pela escrita. Ela mesmo recorda, “Minha primeira lembrança literária remonta a uma data histórica assinalada e já distante: o término da Guerra da África, acontecimento que rendeu o início de minha inspiração… e vendo que não me faziam caso algum, nem tinha com quem desafogar o meu entusiasmo, me refugiei em minha casa e garatujei meus primeiros versos."

Na adolescência escreveu mais versos e os publicou no Almanaque de Soto Freire.

Quando a família ia a Madrid durante os invernos, Emília frequentava um colégio francês protegido pela Casa Real, onde foi introduzida a obra literária de La Fontaine e Racine. Aos doze anos, a família decide ir a La Coruña durante os invernos y alí Emilia estuda com professores particulares. Sai do ritual da educação feminina ao negar-se a tocar piano e aprender música. Dedica todo o tempo possível a sua verdadeira paixão, a leitura.

Em 1868, ano da revolução que acabaría com o reinado de Isabel II, se casa aos 17 anos com José Quiroga. Viveram em Santiago entre o inverno de 68 e 69; Emilia ajudava seu marido con seus estudos de direito. Quando o pai foi nomeado Deputado de Cortes, toda a familia se muda para Madrid, inclusive seu marido.

Em Madrid assistem a concertos e a festas populares e Emilia chega a conhecer a cidade e o ambiente madrileno. Após a investida de Amadeo de Saboya e a guerra carlista, José Pardo Bazán se desiludiu com a política e toda família foi para a França. Viajaram por Europa-Inglaterra, Italia, Alemanha... donde Emilia aprende inglês e alemão. Ademais, descobre a literatura francesa que deixar um grande impacto nela.

Seu inicio no mundo literário começa em 1876 ao ganhar o primeiro prêmio pelo Estudo crítico de Feijoo. Neste mesmo ano dá a luz o seu primeiro filho, a quem lhe dedica um livro de poemas., com seu próprio nome, Jaime, que resultaria ser seu único livro de poesia.

Escreveu sua primeira novela, Pascual López, no ano que nasceu seu segundo filho, Blanca. Uma doença hepática em 1880 obrigou a escritora a ´passar algum tempo em Vicky. Durante este período descobre o naturalismo de Zola, conhece pessoalmente Victor Hugo e começa a interessar-se nesta nova tendência literária.

O periódico madrilenho, "La época" publica “Uma viagem de Noivos”, que era um relato novelesco de suas próprias memórias da viagem à Vicky. Sua última filha, Carmen, nasce em 1881.

Naturalismo

No periódico madrilenho mencionado acima publica alguns artigos que haveriam de integrar-se no livro A Questão Palpitante, no qual explica o movimento literário do naturalismo. Seu propósito era o seguinte: "Meu objetivo era dizer algo, em forma clara e amena, sobre o realismo e ol naturalismo, coisas que se falava muito, mas com rapidez e sem que nada houvesse tratado o propósito do assunto....Sempre me surpreenderá o extraordinario dinamismo daquele libreto tratando ao correr da pena, no que o único previsto é a impremeditacão e espontaneidade, que procurei dedicar-lhe em todo sabor didático."

A publicação de A Questão Palpitante criou um grande escândalo e seu marido, horrorizado pela situação exigiu que Emília parasse de escrever e que se retrata-se publicamente sobre seus escritos. Em consequência destes problemas matrimoniais, decide separar-se de seu marido dois anos mais tarde, em 1884. Neste ano publicou A Jovem Ama, que trata sobre crises matrimoniais.

Sua terceira novela, La Tribuna, publicada em 1882 é considerada como sua primeira obra naturalista. Nesta obra, Emília estuda o ambiente e os tipos de cigarreiras na fábrica de tabacos em La Coruña. Benito Pérez Galdós também obteve informação documentada sobre a mendicância madrilenha para sua obra Misericordia. Estes dois escritores tiveram uma relação amorosa que durou mais de vinte anos.

Em 1886 conheceu Zola e nessa viagem à França descobre a moderna novela russa. Essas leituras lhe impulsionam a apresentar no Ateneu de Madrid um trabalho sobre a revolução e a novela na Rússia, em 1887.

Continua escrevendo continuamente e nos anos '86 e '87 produz os Os Paços de Ulloa e A Mãe Natureza..

Em 1890 morre seu pai e aproveita a herança para criar uma revista escrita somente por ela, El Nuevo Teatro Crítico, nome que recorda a obra de Feijoo, Teatro crítico universal.

Assiste a congressos como o Congresso Pedagógico onde denuncia a desigualdade educativa entre o homem e a mulher. Ainda que consciente da discriminação sexual dentro dos círculos intelectuais, propõe a Concepción Arenal (escritora feminista), à Academia Real de Letras, mas é rechaçada. A Academia tampouco aceitaria a Gertrudis Gómez de la Avellaneda nem ela.

Contudo, em 1906 chegou a ser a primeira mulher a presidir a Seção de Literatura do Ateneu de Madrid e a primeira em ocupar uma cadeira de literatura na Universidad Central de Madrid, ainda que só teve um estudante na aula.

Morreu em 12 de maio de 1921, em Madrid.
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Fonte:
Michigan State University

Paulo Corrêa Lopes (Um crime)



Não sei como vim parar nesta pensão. Creio que na tarde em que me mudei estava fora de mim. Não é possível que me acontecesse uma coisa dessas no meu estado normal. Teria bebido? Não acredito. Faz seis anos que não ponho uma gota de álcool na boca. A última vez que bebi dei um escândalo tão grande em casa de um industrial que até hoje sinto calafrios quando me lembro do sucedido.

Quando me embriagava gostava de visitar os conhecidos. Invadia-me uma onda de ternura tão poderosa que não podia me dominar. Tinha que procurar alguém para desabafar. Nesses momentos via tudo envolto em cores róseos. Mas voltemos à casa do industrial. Quando entrei no salão, havia tanta gente e tantas luzes que o meu primeiro ímpeto foi retroceder. Mas já era tarde. O industrial me acenava, com a face risonha, do meio do salão. Estava demasiado feliz para reparar no meu estado.

Quando caminhei em direção do meu amigo, um vulto estranho, com a roupa em desalinho, o cabelo em desordem, estacou diante de mim, com um rictus amargo no canto da boca. Ergui os braços e o vulto também ergueu os braços. Recuei e o vulto imitou o meu gesto. Desconcertado, avancei e dei um soco violento no rosto do meu antagonista e ouviu-se o ruído de cristal que se parte. Ainda com a mão gotejante, retrocedi e ganhei a rua, perdendo-me na escuridão que era profunda.

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Que faço nesta pensão sórdida? Ainda há pouco minha vizinha gritou tanto que parecia estar sendo estrangulada. As vitrolas não me deixam repousar. Preciso dormir, preciso afogar no sono esta lembrança terrível. Por toda a parte o barulho, sempre o barulho. Por que será que os homens procuram se atordoar? Ninguém suporta um minuto de solidão. Parece que todos têm medo de alguma coisa que vai acontecer.

Só neste quarto, escuto o rumor confuso que o vento faz nas árvores. E o rumor do vento me leva novamente para um passado monstruoso. Eu queria esquecer a tragédia e o vento desperta tudo aquilo que eu supunha sepultado no fundo do coração. Por que matei Lídia? Minhas mãos foram apertando, apertando num crescendo doido e quando afrouxei os dedos, um pescoço muito roxo ficou inerte sobre a alvura do lençol. Não porque ainda me lembro da cor do lençol. Talvez o contraste. E foram estas mãos, que um dia se uniram no fervor de uma prece, que estrangularam aquela inocente criança. A sensação de ter matado uma criança aumenta ainda mais a minha desventura. Lídia era uma criança. Tinha o jeito ingênuo de uma criança, E eu que me revoltei contra Otelo, que chorei a morte de Desdêmona como um louco! Ah! como a gente nunca se conhece! Um futuro santo pode estar sorrindo diante do martírio de um Estevão e um futuro criminoso pode estar ajoelhado diante do cadáver de uma criança!

Há quantos dias penso em Lídia! Sua voz era um canto de andorinha. Era uma andorinha que havia perdido a memória de outras regiões e que estava resolvida a esperar o inverno no aconchego de nosso lar. Pobre Lídia! Teria sido Iago o culpado? Creio que nem no inferno há lugar para Iago. A sombra de Iago tapou a luz do sol. Não há mais sol, não há mais luz no mundo. Tudo vai morrer. Minhas mãos estão apertando, apertando, apertando...

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Vesti hoje a última camisa limpa. Há duas semanas que estou dentro deste quarto e ainda não tive coragem de faze a barba. O espelho já não reflete o rosto escanhoado do jovem que gostava de se contemplar por alguns momentos todas as manhãs. Quantas vezes, ainda deitada, Lídia não me disse, com doce ironia, que seus olhos eram um espelho mais fiel que todos os espelhos. Ah! os olhos de Lídia! Mil anos que eu viva não conseguirei esquecer o seu terror quando minhas mãos se crisparam no seu pescoço fino. Parece que suas palavras saíam crivadas de punhais. Cada palavra era um pássaro em revoada alucinante pelo quarto. Só hoje compreendo o sentido do seu grito. Ela gritava por mim. Não era o medo da morte, era o seu amor chorando por mim. Um amor imenso que talvez ainda peça por mim aos pés de Cristo. Se eu pudesse acreditar de novo! Por que não pude perseverar? Como agora compreendo esta passagem: Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos.

Por que não rezei dia e noite para perseverar? Quando falta a oração tudo está perdido.

Fio num domingo de ramos que conheci Lídia. Saía da igreja do Rosário com um sorriso de luz nos olhos. Era toda uma promessa de amor. Como estava linda com aquela rosa muito vermelha na lapela! Quem comparou pela primeira vez a mulher a uma rosa por certo teve a intuição de Lídia naquela manhã.

Domingo de Ramos. Palmas bentas. O Senhor vai entrando em Jerusalém. Por que não clamei as glórias do Senhor? Porque deixei que as pedras falassem por mim?

Lídia, as minhas mãos é que foram mortas. Tu continuas viva, "os meus olhos são mais fiéis que todos os espelhos" parece que estou ouvindo de tua boca, de teus olhos.

Não sei o que pensam de mim nesta pensão. Um maníaco, um misantropo, sei lá. Ontem surpreendi uma nota de ironia na voz da camareira

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De onde vens envolta neste raio de lua? Vens do inferno ou do céu? Não podes ser uma ilusão dos meus sentidos. Vejo no teu pescoço a marca dos meus dedos. Espera. Não te vás. Espera ao menos um minuto. Num minuto a gente pode construir ou destruir um mundo. Eu já tive a tua mocidade nos meus braços. Os teus olhos já foram meus. Como tudo era belo visto através dos teus olhos! Como a vida cantava em teu olhar! Agora que te perdi para sempre, tenho necessidade de tua presença. Ouve. Nem sei como nasceu o meu amor por ti. Quando percebi tinhas tomado de assalto minha vida. Os teus passo não fizeram rumor. Subiste a escada silenciosa como um fantasma. Abriste a porta de minha alma e entraste. Quando despertei estava nos teus braços. Foi assim que tomaste conta de mim. Espera um minuto ao menos. Não te dissipes, visão de amor. Ainda não te disse tudo. Quero confessar tudo. Meus pensamentos se atropelam como recrutas. Estou como alguém que subisse e descesse eternamente a mesma escada. Será que a loucura começa assim? Espera. Não te vás. Há de chegar o momento em que compreenderás. A porta há de se abrir. Espera, por piedade! Que é isso? Uma coisa me dói aqui dentro, aqui bem no coração. Não te vás, Lídia, espera... espera...

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"Tu podes, senhor, só não podes impedir que eu Te ame". Por que este verso de Claudel despertou dentro de mim? Então é tão imperiosa assim a necessidade de amor em Deus? Recordo-me: no dia em que tive que ficar face a face com Cristo, recuei. Não tive coragem de suavizar as suas chagas com a minha renúncia total das coisas do mundo. Cristo quer de nós um amor absoluto. Quem puser a mão no arado, não deve olhar para trás. Deve olhar para as cinco chagas de Cristo. Em cada chaga cabe toda a nossa miséria, toda a nossa ignomínia.

Outra teria sido a minha vida, se eu não me tivesse acovardado diante das primeiras dificuldades. Lídia muitas vezes teve que lutar comigo para eu não perder a missa, Um amolecimento, um desencanto havia tomado conta de mim, nos últimos tempos. Faltava-me entusiasmo. Às vezes, a simples presença de um sacerdote acordava em mim um mal-estar horrível. Cada padre era um testemunho vivo de que se pode viver em conformidade com os mandamentos de Deus. Cada sacerdote era uma humilhação para meu fracasso. Tentei lutar. Ensangüentei as minhas mãos nas rochas. Ondas enormes, porém, arrastaram-me para o abismo.

"Tudo podes, Senhor, só não podes impedir que eu Te ame". Que é o amor? Será que o amor também morre como morre uma coisa viva?! Se eu pudesse reconquistar o amor perdido!

Lídia, por que não despertas e não gritas ao mundo que estás viva, que tudo não foi um pesadelo? Minhas mãos queimam e eu não sei se terei forças para reparar o mal que fiz. Sinto que é preciso reparar. Arrastarei pelo mundo minha miséria, beijarei a chaga dos morféticos, comerei o resto dos mendigos.

"Tudo pode, Senhor, só não podes impedir que eu Te ame". Conceda-me, Senhor, amor para Te amar, amor para morrer!

Fonte:
Revista de Contos

Dicionário do Folclore (Letra N)



NA-ÁGUA-E-NO-COURO. Diz-se quando a pessoa só tem uma roupa. Tira quando vai lavar e veste depois de lavada.

NA-HORA-DA-PORCA-TORCER-O-RABO. No momento difícil, preciso, de alguém mostrar seu valor, suas qualidades.

NAGÔ. Nome dado a todos os negros da Costa dos Escravos que falavam o ioruba. Os franceses colonizadores do Daomé chamavam os iorubanos de nagôs, que chegaram, em maior quantidade, na cidade de Salvador e tiveram muita influência na formação social e religiosa dos mestiços baianos. O candomblé, os babalaôs, os babas, as filhas de santo, os instrumentos musicais (tambores, agogôs, arguês, adjás), os cantos da tartaruga, a culinária (vatapá, acarajé, abará, etc), o santuário peji, Exu, Ogum, Oxumaré, Oxóssi, chegaram ao Brasil por intermédio dos nagôs.

NAMORO-DE-CABOCLO. É como se diz, do namoro, da paixão em segredo que o homem sente sem ter coragem de se declarar. Namoro a distância, respeitoso, platônico.

NANAR. É o verbo que as crianças usam quando querem dormir. E, para adormecer os filhos de colo as mães costumam entoar este acalanto, esta cantiga de ninar muito conhecida em Portugal e no Brasil: - "Nanai, meu menino,/ Nanai meu amor;/ A faca que corta/ Dá talho sem dor".

NÃO-DÁ-UM-CALDO. Diz-se de quem não é de nada, incapaz de trabalhar, de resolver um problema, de sair de uma situação difícil.

NÃO-É-FLOR-QUE-SE-CHEIRE. Diz-se de quem não é boa pessoa, de quem tem más qualidades.

NÃO-ESTAR-PARA-BIU. O mesmo que não estar pra mim.

NÃO-SABER-DA-MISSA-UM-TERÇO. Ignorar toda a verdade sobre determinado fato ou assunto.

NÃO-ME-TOQUE. 1. É um doce feito com goma de tapioca, leite de coco e açúcar e que se desmancha na boca; 2. É como são designadas as pessoas cheias de melindres, de nó-pelas-costas, de nove-horas, de fricotes.

NÃO-VALER-O-QUE-O-GATO-ENTERRA. Diz-se de quem não tem nenhum valor, nenhuma qualidade.

NATAL. O Natal é uma festa universal. Cada país comemora o Natal à sua maneira. No Brasil, durante o Natal, temos autos tradicionais, bailes, alimentos típicos, reuniões, bumba-meu-boi, boi, boi-calemba, cheganças, marujadas ou fandangos, pastoris, lapinhas, congadas, reisados e missa-do-galo, peru assado, castanhas confeitadas, etc.

NAU-CATARINETA. É uma xácara (narrativa popular em versos), de procedência portuguesa, que conta a estória de um barco que atravessava o Atlântico em circunstâncias trágicas. No Brasil, a nau-catarineta, convergiu para o auto (é um gênero teatral que vem da Idade-Média, período histórico que começa no século V até a metade do século XV), do fandango onde aparece como a jornada XVI.

NAZARÉ. No mês de setembro tem lugar, na cidade de Belém-PA, a festa de Nossa Senhora de Nazaré que reúne milhares de devotos de todo o Brasil. É a festa mais popular do Pará. Tem procissão, desfile de promessas, conduzindo a imagem da santa que percorre as ruas da cidade, acompanhada do círio de Nazaré, uma vela grande de cera, debaixo de uma chuva de flores. A festa dura quatorze dias.

NEGO-BOM. É um doce popular nordestino que se faz assim: Machucam-se vinte bananas-prata com um quilo de açúcar numa caçarola, que é levada ao fogo brando, mexendo-se até soltar da vasilha, isto é, num ponto bem apurado. Bota-se o suco de dois limões, retira-se do fogo e bate-se bem. Depois de bem batido, pega-se a massa e fazem-se bolinhas que são enroladas em pedaços de papel e vendidas em tabuleiros nas feiras ou nas pequenas mercearias dos bairros da cidade.

NEGRINHO-DO-PASTOREIO. O negrinho era escravo de um estancieiro (fazendeiro) rico, mau e perverso. Quando o negrinho estava pastorando os cavalos do patrão alguns deles se perderam, motivo pelo qual foi surrado barbaramente, atirado dentro de um formigueiro, onde faleceu. Dizem que ele aparece montado num cavalo baio, à frente de uma tropilha que ninguém vê mas o tropel de cavalos é ouvido. O negrinho-do-pastoreio é afilhado de Nossa Senhora, a quem as pessoas fazem promessas para encontrar as coisas perdidas. A lenda é muito conhecida do Rio Grande do Sul até as fronteiras do Estado de São Paulo.

NEGRO. O mundo só tomou conhecimento da existência da África a partir do século X, afirma Dela Fosse. E o Império de Ghana foi a porta que se abriu aos olhos curiosos dos europeus aventureiros. Mas, somente a partir do século XV é que a mobilidade dos portugueses começou a explorar o litoral africano, "situação que perdurou até os meados do século XIX", na opinião de Kretschmer. • Nunca foram científicos nem somente políticos os motivos que entusiasmaram os navegantes portugueses na exploração da costa africana. Claro que as expedições, em sua maioria, eram custeadas pelos cofres da Coroa que tinha também interesse em tomar posse das terras descobertas para fazê-las colônias. Com exceção das missões religiosas a serviço da catequese, a motivação responsável, a motivação responsável pelas incursões no mundo africano foi um misto de colonialismo oficial e de comercialização particular, visando o aumento da área de dominação e o enriquecimento do tesouro real e de particulares, com a venda de especiarias e demais produtos do continente. • E o escravo, durante mais de três séculos, foi a mercadoria mais procurada e, conseqüentemente, de maior valor e que mais lucros proporcionou aos mercadores de negros. • Do século XVI até 1830, a escravidão humana foi, até agora, o período mais negro da história desta nação. • Capturado como se fosse um animal qualquer, atravessando o Atlântico no porão infecto dos navios, misturados com ratos e dejeções, sem luz e quase sem ar, mal alimentado, o negro africano chegou ao Brasil contando apenas a seu favor com a igualdade de condições climáticas contra toda uma enorme série de adversidades entre as quais se avultava a completa negação de sua condição de ser humano. O escravo não era considerado gente, pessoa; era apenas uma peça, como se dizia, na época. Do século XVI até 1830, 4.830.000 escravos africanos – entre congos, cambindas, angolas, angicos, e macuas – chegaram ao Brasil, período em que, mais do que o índio e do que o branco, ajudaram este país a crescer. • A participação do negro na vida brasileira é imensurável. A força de seus braços nos deu a cana-de-açúcar, o cacau, o café, o milho, o algodão, os minérios, o feijão. Todos os acontecimentos históricos contam com a participação do negro: da marcha para o Oeste à invasão holandesa, da guerra do Paraguay à II Guerra Mundial, Cruzando com o português, ele nos deu a mulata de dentes claros, faceira, sensual, de corpo bem feito, andar bamboleante e olhos de amor. Deu-nos, também, a morena jambo que, com o mesmo dengo e faceirice, constituem os mais representativos tipos de beleza tropical brasileira. Na música, o samba descido dos morros cariocas e o maracatu pernambucano nos falam de sua tristeza e das dores de amor, constituindo, assim, o que se pode chamar de música brasileira. A própria língua portuguesa falada no Brasil foi enriquecida com a contribuição do negro: acarajé e angu, bangüê e batuque, cachaça e cafuné, dengoso e dunga, engabelar e Exu, fubá e fulo, guandu e gambá, iaiá e inhame, jerebita e jiló, lundu, mandinga e maracatu, Oxum e Orixá, papagaio e patuá, quiabo e quitute, samba e senzala, tanga e tuta, vatapá, xangô, zabumba, zebra e mais 368 vocábulos que Renato Mendonça estudou, foram palavras, muitas delas gostosas, trazidas pelo negro escravo. • Que dizer da enorme contribuição do negro à culinária brasileira do Nordeste? Inúmeros são os pratos encontrados na área de sua maior freqüência: abará e acarajé, bambá e bobó, caruru e cuxá, dendê, efó, fufu, humulucu, ipetê, lelê, mungunzá e muqueca, olubo, quibêbe, quizibiu, sabongo, uado, vatapá, xinxin e uma porção de outras comidas gostosas, estudadas por Luís da Câmara Cascudo. Até na própria religião católica professada no Nordeste o negro tem dado uma colaboração especial. Nas artes, nas ciências e nas letras vamos encontrar negros enriquecendo e abrindo novos horizontes às suas atividades. • O folclore brasileiro tem seu lastro maior na herança do português colonizador. Os índios, por sua vez, mais filósofos do que os negros, sempre foram batuqueiros, e nos legaram muitas lendas explicando a origem das coisas terrenas e sobrenaturais, feitiçarias e pratos ligados à mandioca. Depois da contribuição portuguesa, a participação do negro no folclore brasileiro é a mais importante, quantitativa e, mesmo qualitativamente. Contribuição mais musical do que oral. E muito mais rítmica. O coco, o samba, o maracatu, a capoeira, o bate-coxa, a batucada, o batucajé, o bumba-meu-boi, o esquenta-mulher, o caiapós, o carimbó, as superstições, os tabus, os fetiches, são do negro. • Quando Deus acabou de fazer o mundo, ficou muito cansado. Ficou muito cansado mas ficou também muito contente. Os pássaros, as flores, as árvores, o mar, as borboletas, a brisa, o pôr-do-sol, tudo ficou muito bonito. Mas, quem é que ia admirar as belezas do mundo? Precisava de alguém para ouvir os pássaros, sentir o cheiro das flores, ver o vôo colorido das borboletas, sentir a brisa, viver o pôr-do-sol. Pensou, pensou, pensou e, com um pouco de barro, fez o homem. Achando que o homem estava muito só, fez, depois, a mulher. E assim foi se fazendo o povo. Só que tinha uma coisa: todos os homens e mulheres eram pretos, da cor do barro, que era de massapê. Como não gostassem de ser pretos, foram todos falar com Deus para que ele desse um jeito. Nosso Senhor ouviu a reclamação e mandou que todos fossem se lavar num poço. Os que encontraram a água limpa lavaram-se e ficaram brancos. Os que vieram depois já encontraram a água meio toldada, e, quando tomaram banho, ficaram mulatos. Os que chegaram por último, já encontraram pouca água e, assim mesmo, escura, e só fizeram lavar as palmas das mãos e as solas dos pés que ficaram quase brancos. Assim, os homens são brancos, mulatos e pretos desde o começo do mundo. É a estória que o povo conta, explicando por que os homens têm cores diferentes. • Apesar de sermos um povo sem preconceito racial, qualidade que herdamos do português colonizador que se misturou com o escravo africano e os índios, o que não aconteceu com o inglês na África, onde viveu até hoje isolado dos nativos – o negro, muito poucas vezes, sofre restrições sociais da parte de alguns brancos. De alguns brancos que nem são brancos de todo, é bom que se diga. Há, entretanto, uma rivalidade entre negros e brancos, principalmente entre brancas e mulatas quando se trata de conquistar os homens. E essa briga vem de muito longe, desde os tempos coloniais, quando os senhores de engenho com ainda bom sangue lusitano correndo nas veias, amavam doces escravas, misturando seus gemidos aos dos canaviais açoitados pelo vento. E esse problema sexual envolvendo senhores do engenho preferindo ebúrneas mucamas em detrimento de pálidas sinhás já foi magistralmente estudado por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala. • Mas, os brancos portugueses gostavam tanto do negro, de suas comidas, de seus batuques, de suas crendices religiosas, que incluíram no seu vocabulário muitas palavras ainda hoje correntes e vestiram sua linguagem com muito carinho e com muito dengo quando usaram a palavra negro na sua corrutela mais popular, nego. Minha nega, neguinha significam amor e carinho na boca dos brancos e até mesmo dos próprios pretos quando dialogam com a mulher amada. Informa Luís da Câmara Cascudo que Dom Pedro I, quando escrevia suas cartas e seus bilhetes à Marquesa de Santos, terminava sempre assim: "Seu negrinho Pedro".

NEGRO-E-ONÇA. É voz corrente, no interior, que a onça prefere a carne do negro à carne dos homens brancos, mulatos e morenos. Daí dizer-se que "Negro é comida de onça".

NEGRO-PRETO. Como se chama o negro retinto, da cor de ébano, luzidio, mais preto do que os negros comuns.

NELSON DE ARAÚJO nasceu no dia 4 de setembro de 1926, na cidade de Capela, SE. Fez o curso médio no Colégio Salesiano de Aracaju. Passando a residir em Salvador, militou durante longos anos como jornalista, revisor, tradutor, fotógrafo documentarista e laboratorista, repórter, articulista e factotum da Livraria Progresso. Em 1957 publicou seu primeiro livro Um acidente na estrada e outras histórias, com o qual ganhou o Prêmio Gerhard Meyer. Em 1959 veio a lume A companhia das Índias (teatro). Em 1960 foi convidado para ensinar História do Teatro na Universidade Federal da Bahia. Como teatrólogo, também escreveu várias peças, entre as quais Rosarosal, rosalrosa, Auto do tempo e da fé, Cinco autos do Recôncavo, e os trabalhos Alguns aspectos do teatro no Brasil nos séculos XVIII e XIX, História do Teatro, Duas formas de teatro popular do Recôncavo baiano, O baile pastoril da Bahia, La percepcion de la realidad africana en el Brasil (publicado na Argentina e em Portugal), Três novelas do povo baiano, Folclore e política. Em 1982, recebeu o Troféu Martim Gonçalves, como prêmio pelo conjunto de suas obras sobre teatro e em 1985, o título de Cidadão da Cidade de Salvador, Concedido pela Câmara Municipal de Salvador. Autor de outras peças de teatro, muitas das quais tendo o popular como tema, e de ensaios e artigos sobre o folclore do Recôncavo, Nelson de Araújo também se destacou como fotógrafo (menção honrosa com a foto Carroussel, no II Salão Baiano de Fotografia, 1969) e produtor de audio-visuais. Faleceu no dia 7 de abril de 1993, em Salvador.

NEM-COM-AÇÚCAR. De modo nenhum, por nenhum motivo.

NEM-QUE-CHOVA-CANIVETE. Veja NEM-COM-AÇÚCAR.

NINA RODRIGUES nasceu no dia 4 de dezembro de 1862, na cidade de Vargem Grande, MA. Fez o secundário no Seminário de N. S. das Mercês e no Colégio São Paulo. Começou a estudar medicina na Faculdade de Medicina da Bahia e concluiu o curso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Regressou ao Maranhão, onde pouco demorou, fixando residência em Salvador, ingressando no magistério superior e dedicando-se às pesquisas de sua área de ação. Foi membro da Academia Maranhense de Letras. Publicou Os mestiços brasileiros (1890), O problema negro na América do Sul (1932), Os africanos no Brasil (1932), além de inúmeros ensaios, estudos e artigos em revistas especializadas. Faleceu em Paris, no dia 17 de julho de 1906.

NINAR. É botar o menino para dormir, acalentando, entoando cantigas de ninar. Veja ACALANTO.

. Os feiticeiros e catimbozeiros dão nós nos fios de algodão que simbolizam a vida humana. E os nós que os catimbozeiros e feiticeiros dão atrasam os negócios, botam as pessoas para trás.

NOITE. A noite tem muitos mistérios. Durante a noite não se deve pronunciar nomes malditos nem praguejar porque o Diabo ouve. É durante a noite que os fantasmas e as almas do outro mundo aparecem. Gemidos são ouvidos, gritos, animais horríveis, assombrações que nascem das sombras. Às altas horas da noite e pela madrugada acontecem os assaltos, os roubos.

NOITEIRO. No mês de maio cada noite uma pessoa se encarrega de enfeitar a igreja com flores e velas, foguetes-do-ar, pagar a banda de música, etc. Essa pessoa é o noiteiro, que deseja que sua noite seja a mais bonita de todas as noites da novena do mês de maio.

NOMES. Os meninos quando nasciam, antigamente, recebiam o nome do santo do dia, o nome do avô, ou do pai. As mães faziam promessas na hora do parto, para que tudo corresse bem. Depois, os pais passaram a registrar os filhos com o nome de homens ilustres, de pedras preciosas, de países. Atualmente, muitos recém-nascidos são registrados com nomes de personagens de novela, de filmes. Há, também, os pais que registram os filhos com nomes enormes, extravagantes, como no caso do menino que foi batizado como Tchaikovsky Johannsen Adler Pryce Jachmanfaier Ludwin Zollman Hunter Lins, nome que não vai caber em sua carteira de identidade, no seu título de eleitor e que o menino, na escola, vai levar muito tempo para aprender a escrever. O nome das pessoas é muito importante; a pessoa tem que carregá-lo durante toda a vida.

NOVA-SEITA. É o nome que se dava aos protestantes, evangélicos, batistas, presbiterianos e outros adeptos de seitas diversas, quando começaram a aparecer no Nordeste.
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O Dicionário completo pode ser obtido em http://sites.google.com/site/pavilhaoliterario/dicionario-de-folclore
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Fontes:
LÓSSIO, Rúbia. Dicionário de Folclore para Estudantes. Ed. Fundação Joaquim Nabuco
Imagem = http://www.terracapixaba.com.br/

Palavras e Expressões mais Usuais do Latim e de de outras linguas) Letra I



idem per idem
Latim: O mesmo pelo mesmo. Argumento vicioso, também chamado petição de princípio.

ignoti nulla cupido
Latim: Ao ignorante nenhum desejo. Pensamento de Ovídio equivalente a: Não se deseja aquilo que não se conhece.

il est avec le ciel des accommodements
Francês: Com o céu pode-se arranjar. Tartufo, personagem de Molière, julga poder acomodar-se mesmo com aqueles que primam pelo rigor.

ils sont trop verts
Francês: Estão muito verdes. Palavras da fábula "A Raposa e as Uvas", de la Fontaine. A frustração nos leva a fingir desprezo pelo que mais ambicionamos.

impavidum ferient ruinae
Latim: As ruínas ferirão o destemido. Horácio celebra a bravura e intrepidez do homem justo (Odes, III, 3 e 8).

imperium in imperio
Latim: Um império no império. Diz-se da usurpação, por parte de uma autoridade, das funções de outra.

improbus administrator
Latim: Administrador desonesto.

improbus litigator
Latim Direito: Litigante desonesto. O que entra em demanda sem direito, por ambição, malícia ou emulação.

in absentia
Latim Direito: Na ausência. Diz-se do julgamento a que o réu não está presente.

in abstracto
Latim: Em abstrato. Sem fundamento; teoricamente.

in actu
Latim: No ato. No momento de ação.

in aeternum
Latim: Para sempre; eternamente.

in albis
Latim: Em branco. Sem nenhuma providência. Diz-se também da pessoa vestida apenas com as roupas íntimas.

in ambiguo
Latim: Na dúvida.

inania verba
Latim: Palavras frívolas, ocas, inúteis.

in anima nobili
Latim: Em alma nobre. Med Experiência feita no ser humano.

in anima vili
Latim: Em alma vil; irracional. Med Experiência científica feita em animais.

in aqua scribere
Latim: Escrever na água, isto é, não manter a fé jurada: O que diz a mulher é mesmo que in aqua scribere (Catulo).

in articulo mortis
Latim: Em caso de morte iminente.

in bocca chiusa non entrò mai mosca
Italiano: Em boca fechada nunca entrou mosca.

in cauda venenum
Latim: O veneno está na cauda. Alusão ao escorpião, cujo veneno está na cauda. Aplica-se a um final de carta ou discurso em que se excedeu nas exigências, na linguagem ou na malícia.

Incipit
Latim: Começa. Forma verbal que iniciava as antigas obras literárias: Incipit Vita Nova (Dante Alighieri).

in continenti
Latim: Imediatamente.

incredibile dictu
Latim: Incrível de se dizer. Empregado mais interjetivamente.

inde irae
Latim: Daí, as iras. Palavras de Juvenal para explicar a origem das discórdias.

in dubio contra fiscum
Latim Direito: Na dúvida, contra o fisco.

in dubio libertas
Latim: Na dúvida, Iiberdade. Princípio de moral que autoriza a consciência duvidosa a agir livremente, quando na incapacidade de remover a dúvida.

in dubio pro reo
Latim Direito: Na dúvida, pelo réu. A incerteza sobre a prática de um delito ou sobre alguma circunstância relativa a ele deve favorecer o réu.

in extenso
Latim: Na íntegra.

in extremis
Latim: No último momento. O mesmo que in articulo mortis.

infandum, regina, jubes renovare dolorem
Latim: Mandas, ó rainha, renovar uma dor atroz. Palavras de Enéias, ao referir à rainha Dido a destruição de Tróia (Eneida, II, 3).

in fine
Latim: No fim. Refere-se ao fim de um capítulo, parágrafo ou livro.

in forma pauperis
Latim: Na forma de pobre. Dizia-se, outrora, dos que careciam de recursos para pagar a ação da justiça e as custas do processo, atestado de pobreza.

in foro conscientiae
Latim: No tribunal da consciência.

in fraudem legis
Latim Direito: Em fraude da lei.

in globo
Latim: Em globo; em massa; sem distinção das diversas partes.

in hanc diem
Latim: Até este dia; até o presente momento.

in hoc signo vinces
Latim: Com este sinal vencerás. Palavras que circundavam a cruz que se diz ter aparecido a Constantino antes da batalha da Ponte Mílvio, quando derrotou a Maxêncio em 312.

in illo tempore
Latim: Naquele tempo. Em tempo ou época muito remotos.

in integrum restituere
Latim Direito: Restituir por inteiro. Devolver a coisa no seu estado primitivo.

in limine
Latim: No limiar. Diz-se em linguagem parlamentar do projeto rejeitado em todos os seus itens. Inteiramente rejeitado.

in limine litis
Latim Direito: No limiar do processo. Logo no início do processo.

in loco
Latim: No lugar.

in manus tuas
Latim: Nas tuas mãos. Palavras que, segundo os Evangelhos, Cristo pronunciou na cruz ao expirar (Luc. XXIII, 46).

in medio stat virtus
Latim: A virtude está no meio. Princípio de ascética, que condena o relaxamento, ao mesmo tempo que o rigorismo.

in memoriam
Latim: Em memória; em lembrança de (colocado nos monumentos e lápides mortuárias).

in mente
Latim: Na mente, no espírito.

in naturalibus
Latim: Em nudez.

in nomine
Latim: Em nome; representando a outrem.

in octavo
Latim: Em oitavo.

inops, potentem dum vult imitare, perit
Latim: O pobre, quando quer imitar o poderoso, perece.

in ovo
Latim: No ovo; no embrião; ainda por nascer.

in pace
Latim: Na paz.

in partibus infidelium
Latim: Nas regiões dos infiéis. Diz-se do prelado designado aos países de missão, sem residência fixa.

in pectore
Latim: No peito. Intimamente, secretamente.

in perpetuam rei memoriam
Latim: Para recordação perpéua da coisa. Inscrição colocada nos monumentos históricos.

in plano
Latim: Em plano. Diz-se da folha impressa que forma um só folheto ou duas páginas.

in poculis
Latim: No meio dos copos; a beber.

in posterum
Latim: No futuro.

in praesenti
Latim: No tempo presente; agora.

in puris naturalibus
Latim: Em estado de natureza, na pureza original: O homem, in puris naturalibus, não pode pecar (Rousseau).

in quarto
Latim: Em quarto.

in re
Latim: Na coisa, em realidade, efetivamente, positivamente: Não é fantasia, mas tem fundamento in re.

in rerum natura
Latim: Na natureza das coisas.

in sacris
Latim: Nas coisas sagradas.

in saecula saeculorum
Latim: Pelos séculos dos séculos. Para sempre (expressão litúrgica).

insalutato hospite
Latim: Sem saudar o hospedeiro. Sem saudar o dono da casa.

in silva non ligna feras insanius
Latim: Não (seria) mais insano levar lenha para a floresta.

in situ
Latim: No lugar. No lugar determinado.

in solido
Latim: Em sólido; na massa. Dir Solidariamente.

in speciem
Latim: Na aparência; em forma de.

in spiritualibus
Latim: Nas coisas espirituais.

instar omnium
Latim: Como todos; à maneira dos demais.

intelligenti pauca
Latim: Ao que compreende, poucas palavras. Corresponde a: Para bom entendedor meia palavra basta.

in temporalibus
Latim: Nas coisas temporais.

in tempore oportuno
Latim: Em tempo oportuno. No momento conveniente.

inter amicos non esto judex
Latim: Não sejas juiz entre amigos.

inter arma charitas
Latim: Caridade no meio das armas (entre os combatentes). Divisa da sociedade da Cruz Vermelha.

in terminis
Latim Direito: No fim. Decisão final que encerra o processo.

inter pocula
Latim: No ato de beber, entre os copos, na festa: Discursar inter pocula.

inter vivos
Latim Direito: Entre os vivos. Diz-se da doação propriamente dita, com efeito atual, realizada de modo irrevogável, em vida do doador.

in totum
Latim: No todo; na totalidade.

intra muros
Latim: Dentro dos muros. No interior da cidade.

in transitu
Latim: De passagem.

in utroque jure
Latim: Em ambos os direitos, o Civil e o Canônico.

intuitu personae
Latim: Direito: Em consideração à pessoa.

in vino veritas
Latim: No vinho (está) a verdade.

invita Minerva
Latim: Contra a vontade de Minerva. Horácio refere-se aos autores sem talento ou inspiração que insistem em escrever.

in vitium ducit culpae fuga
Latim: A fuga da culpa conduz ao vício. Pensamento de Horácio.

in vitro
Latim: No vidro. Expressão que indica as reações fisiológicas feitas fora do organismo, em tubos de ensaio.

in vivo
Latim: Expressão que designa as ações e as experiências nos seres vivos.

io non so littere
Italiano: Não sou letrado. Palavras do papa Júlio II a Miguel Ângelo que queria colocar um livro na mão da estátua desse papa. Este preferiu uma espada.

ipsis litteris
Latim: Pelas mesmas letras; textualmente.

ipsis verbis
Latim: Com as mesmas palavras, com as próprias palavras.

ipso facto
Latim: Só pelo mesmo fato; por isso mesmo, conseqüentemente.

ipso jure
Latim Direito: Pelo próprio direito; de acordo com o direito.

ira furor brevis est
Latim: A ira é uma loucura passageira. Pensamento de Horácio.

is fecit cui prodest
Latim: Fez aquele a quem aproveitou. Quase sempre pratica um delito aquele que dele tira proveito.

is pater est quem nuptiae demonstrant
Latim Direito: É pai aquele que as núpcias indicam. Não se supõe a paternidade atribuída a outro, enquanto perdura o matrimônio.

It
Inglês: Magnetismo, encanto pessoal.

ita diis placuit
Latim: Assim aprouve aos deuses. Foi inevitável.

Italia farà da sè
Italiano: A Itália agirá por si (sem precisar de ajuda). Frase usada pelos líderes italianos durante a campanha da unificação.

ite, missa est
Latim: Ide, está terminada. Palavras com que o padre despedia os fiéis ao terminar a missa. Hoje usa o vernáculo: Ide em paz, que Deus vos acompanhe.
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As outras letras:
Fonte:

Anderson Braga Horta (Antologia Pessoal)



SALMO PARA CÉLIA

Olho-te — lúcida no cristal do dia,
suave entre as sedas da noite.

Olho-te na azáfama quotidiana,
entre os mil afazeres do lar que estruturas.
E tu és o dínamo que move os motores do mundo,
a cornucópia que nem sempre se vê por trás das dádivas.

Olho-te sentada,
imersa no cosmo de tuas costuras.
O que cirzes é mais do que meias,
o que pregas e repregas é mais do que botões,
o que surge pronto ou refeito de tuas mãos mágicas, milagrosas,
é mais do que peças de roupa.
São vidas que saem de tuas mãos
e se libertam
e estão, e estarão sempre presas a ti.

Tantos anos de caminhada solidária!
Tantas cicatrizes! Luminosas cicatrizes
dos frutos gerados de teu amor,
amadurados ao calor do teu seio.

Olho-te sempre.
Os pés às vezes tropeçam,
as mãos às vezes tateiam,
as palavras falham.
Mas o amor a tudo provê
e tudo remedeia,
e assim nada está realmente perdido,
mesmo quando as torres da incompreensão lançam sua sombra no vale.
O dia que nasce de tuas mãos
é suave e acolhedor como a noite.
A noite que escorre de teus dedos
tem mais luzes que o meio-dia.

Vejo-te inclinada
sobre os infinitos mistérios do teu minúsculo reino.
Que não tem termo, afinal, porque bebe-lhe as praias o pélago do espírito.
Os óculos atentos
carregam as insônias fecundas.
No tremor das mãos
vibram os raios generosos das bênçãos.
A cor dos cabelos começa a cansar-se,
mas a alma não esmaece.

Cada ruga cristaliza
mil cuidados de amor, e em cada uma
cintila o amor inteiro, como o sol
que se reparte e não se apouca.

Inclino-me à tua fonte,
à estrela em que te disfarças,
à galáxia em que toda resplandeces.
E beijo com ternura os teus cabelos brancos.
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A TARTARUGA

Eu venho donde vem o infinito da Vida,
do crespo e ardente oceano em toda parte ondeando,
da explosão inefável
do que chamais abismo, e é tudo, e é nada,
no pulso intemporal de quanto existe
e de quanto é oculto.
Vivo porque o Mistério impõe que eu viva,
e na vaga da Vida
—sonho que vou sonhando e que me sonha—
eu beijo a mão do Arcano e o lábio do Sigilo,
e reflito no olhar, como um memento,
o olhar do que é, não sendo.

Os olhos tenho abertos
para a impressão do nimbo e do relâmpago,
da água turva e do ar claro,
do céu-mar que se abre e se desdobra
à avidez do meu nado, de meu nada.
Mas não vêem o tempo além do agora,
o segundo futuro,
próximo como o que se foi há um átimo,
e no entanto remoto
como a encoberta eternidade.

Vi o homem de gatinhas,
na semente animal ainda indiferenciado.
Ouvi seus balbucios.
Fiz minha mão a mão que fez o arado,
que faiscou na pedra um firmamento
fugaz de estrelas árdegas.
Tomei-lhe da mão trêmula
a ensaiar-se divina
no primeiro rabisco
do primeiro alfabeto,
na prisca partitura
da vindoura vertigem
de encontrar-se maior que a imensa origem.

Das figuras rupestres das cavernas
subi ao zigurate dos sumérios.
Cunhei sonhos avoengos nos ladrilhos.
Andei Índias e Chinas
do Oriente e do Ocidente.
Topei do Egito o sacro escaravelho.
De tudo em toda parte uma imagem ficou-me
gravada na retina que não vedes.

Sei do amor e do ódio,
sei do hino e do vômito,
sei da paz e da guerra,
sei do mar e da terra,
sei do céu e do éter,
sei da carne e do espírito.

Muito eu tenho vivido,
tanto amado e sofrido
e pecado e ascendido. Respeitai-me,
se não por vós, grumetes
que o Mar aleita ainda,
pela Vida que em mim se fez tempo e caminha
para fazer-se eternidade.

Que novas cores beberei? Que músicas
fluirão no meu dorso? Que suaves,
que pétreos tatos guardarei no olfato,
no paladar, na pele, na retina?

Eu continuo. Adiante!
Para onde, afinal?
Que universo, que abismo
espera por meus pés na curva do infinito?

Eu vou para onde ireis:
para Além, para o Enigma.
Eu vou para onde vai o infinito da Vida.
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SÍSIFO

Rompe a manhã, senil, semeada de escombros.
Perde-se o meio-dia entre nimbos. Escura
pende a tarde, sabendo a cinza e sepultura.
O poeta carrega a noite sobre os ombros.
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RIO

Alguma coisa se desata em mim,
de mim, quando, na música, disperso
o pensamento, o acústico universo
me transporta, num périplo sem fim.
De outro modo, tão outro, e entanto afim
deste fluir, um mesmo e tão diverso
banimento do ser move o meu verso,
e me comove, em êxtase malsim.

Um êxtase que aos astros me delata,
se na barca de uns lábios de escarlata,
no ondear de uns seios langues, no alfenim

do longo enleio, embalo-me de sonho.
E quando os olhos nos teus olhos ponho
sinto que um rio se desata em mim.
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(A)MAR(O)

Em março o mar soletra
sol e ar e luar.
E o pescador espera,
a cismar,
que das espumargênteas
vagalínguas a ondear
saia a palavra peixe.
E põe-se a piscicar,
de anzol, tarrafa, rede,
arpão, — o mar.
Tempera-se a salina
escuma na carícia
doce do ar.
Chispam gaivotas-hifens
a mergulhar,
relâmpagos de união
entre ar e mar.
E o pescador espera.
O mar tostou-lhe a cara,
pôs-lhe vagas no olhar
e na pele. Sua alma
tem um fundo de sal.
Mas deu-lhe o mar um vago
íntimo marulhar
que em março, abril, desmaios
de amor lhe dá.
E essa amável magia
é que o faz esperar,
de janeiro a dezembro,
no seu destino claro:
amar o mar amaro.
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CIRANDA

A minha Mãe

Perdeu-se um dia uma pena
da asa do tempo sem fim,
veio vogando e, serena,
pousou bem dentro de mim.

Trouxe um vôo perfumado
de amburanas de um jardim
seguramente encantado,
que o encantei dentro de mim.

Caiu no centro de nada
do sem-tempo donde vim
e cantou-me em voz calada
cantigas de então e assim.

Doces violões de brumas,
claros pianos de alfenim.
E à brisa, em coro de plumas,
palavras-vida de mim —

quermesse, roda, cantiga,
bisorro, corgo, capim —
palavras-coisas de antiga
aurora perdida em mim —

moça, romã, romaria,
chilreios de passarim —
palavras-lumes que um dia
luziram manhãs em mim —

sanfonas, neblina, aurora,
galopes de cavalim —
palavras cantando agora
no antigamente de mim.

E eu era um barco e era o brando
mar sem tempo do sem-fim,
era a ciranda girando
desse outro eu que havia em mim.

Mas veio o vento do mundo,
um vento adulto e ruim,
fez um remoinho profundo,
levou-me a pena por fim.

Ai, pena, por que voaste
do meu coração assim
e sem pena me deixaste
perdido num eu sem mim?
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ODE À ÁGUA

Quisera ser a Água.
não ter o prejuízo da forma,
pra poder compreender todas as formas.
cor nem cheiro,
para impregnar-me de todas as cores da Terra
e de todos os perfumes das matas e dos campos.

§

A Água fotografa na retina móvel
lava na alma compassiva
as grandezas e misérias da Terra.
A Água quando se turva
é num segredo de útero
para o gesto dos peixes e das algas.
quando se salga
é a grande lágrima do Mundo — o Mar.

§

Sangue nas veias do Planeta,
a Água nos rios flui. Vai sem pergunta,
sem plano e sem mealheiro.
Existe, e é útil: cumpre o seu destino.
Sabe que a espera o Mar.

Também sabemos
que nos espera um Mar.
Mas a Água sabe mais que nós:
o de que esquivamos nosso olhar:
que toda ela é o Mar.
E sobretudo sabe
que há de ir e de voltar
até a consumação dos ciclos.
Nem se lamenta. Sabe,
não há o que lamentar.

§

No Mar!...
Ah música de espumas!
No Mar!...
Ah vinhos de marulhos!
Ah conchas de silêncio!
Ah solidão do todo!
No Mar!...

E o Grande Coração bombeia as águas
para as artérias do ar.

§

A Água quando se eleva
não sabe de orgulho, nem de mesquinha altura.
Sabe a fortuna dos ventos,
a fecundidade das trevas.
E cumpre a Lei. Rosa
de nuvens
dá-se.

§

Água:
Vida que ao Sol nos move
e me comove.
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Anderson Braga Horta (1934)



O Autor por Ele Mesmo

Nasci na cidade mineira de Carangola, em 17 de novembro de 1934. Meu pai, o advogado Anderson de Araújo Horta, e minha mãe, Maria Braga Horta, eram professores e poetas. Assim, criado num ambiente de respeito à cultura e amor aos livros, posso dizer que recebi em casa mesmo os primeiros estímulos literários.

A família morou, sucessivamente, em Carangola, Manhumirim, Belo Horizonte, novamente em Manhumirim, depois em Resplendor, Mutum, outra vez em Carangola. Já então acrescida dos manos Arlyson, Augusto Flávio e Maria da Glória. Em 1942 fomos para Goiás, passando três anos na antiga e dois na nova capital do Estado. Em Goiás Velho nasceu o caçula, Goiano.

De volta a Minas, novo périplo em redor de Manhumirim, onde residiam meus avós maternos: Aimorés, Mantena, Lajinha, cidades que eu visitava nas férias, pois, tendo começado o ginásio em Goiânia, fiz, nesse período (de 1947 a 1953, para ser exato), as três últimas séries em Manhumirim e o clássico em Leopoldina. Já me encontrava no Rio de Janeiro, cursando Direito, quando para lá se mudou a família, em 1956.

Transferi-me para Brasília em julho de 1960, como redator da Câmara dos Deputados, a cujo serviço fora admitido em 1957 como datilógrafo. Os irmãos foram também atraídos pelo Planalto Central, a que finalmente aportaram os pais, em 15 de novembro de 1964.

Exerci ainda o jornalismo e o magistério, tanto no Rio quanto em Brasília. Meu primeiro trabalho, contudo, foi como securitário, na Velha Capital, a não ser pelos meses em que lecionei no Seminário de Leopoldina, cidade em que prestei, após o curso clássico, o serviço militar (tiro-de-guerra).

Já radicado em Brasília, casei-me no Rio, em 1962, com a capixaba (de Cachoeiro de Itapemirim) Célia Santos. No ano seguinte nasceram os gêmeos, brasilienses, Anderson e Marília.

Meus pais aqui faleceram, mamãe em 1980, papai cinco anos depois.

As primeiras impressões literárias que retenho datam da cidade de Goiás: uma página de Humberto de Campos em que o autor, na primeira pessoa, confessava um furto de menino —o que me deixou consternado—; e o “Pequenino Morto”, de Vicente de Carvalho, cujos melodiosos hendecassílabos encheram minha alma infantil de tristeza. Em Goiânia me tornei leitor voraz de histórias em quadrinhos e de todos os livros que havia em casa — Gato Preto em Campo de Neve e Clarissa, Ecce Homo e Assim Falava Zaratustra, Meu Destino É Pecar (isso mesmo, o livro proibido de Nélson Rodrigues) e o mais em que pude pôr a mão e os olhos. A impossibilidade de compreender tudo não era obstáculo ao entusiasmo do jovem devorador de letras.

Por essa época, apesar da força atrativa dos quadrinhos, que me guiou a mão numa série de rabiscos, até mesmo numa historieta de texto e desenhos típicos, o autor mais amado foi, sem dúvida, Monteiro Lobato, por sua obra infanto-juvenil, que reputo ainda hoje incomparável.

Mas quem me levou a escrever poesia, conforme tenho repetido em páginas de depoimento literário, foi mesmo Castro Alves. As primeiras tentativas, frustradas, resultantes em prosa ritmada, datam de Manhumirim, ao tempo em que freqüentava o Colégio Pio XI. As primeiras realizações, de Leopoldina, em 1950.

A outra grande influência de então foi Bilac. E, depois, tantos poetas que nem convém enumerar! Dos clássicos aos românticos, dos parnasianos aos simbolistas, desses aos modernos, que me ensinaram a quebrar o verso, sem descartar a tradição.

Penso que o poeta não pode deixar de se assenhorear das técnicas do verso, embora a técnica, obviamente, não seja tudo. Que ao escritor compete extrair do potencial de sua língua toda a cintilação que possa, dignificando-a sempre. Que escrever é atividade intelectual, sim, mas não se esgota no âmbito do intelecto; que o poeta há de comover-se e comover, sim, mas não se há de entregar, ingenuamente, à emoção desassistida da inteligência, porque a emoção, por si só, não é ainda arte, não é ainda poesia. Que a esse amálgama de pensamento, emoção, sentimento que é o poema não se deve tolher o voltar-se para a sorte do homem no espaço e no tempo, seja do ponto de vista filosófico, seja do social; pois à poesia, arte da palavra, interessa necessariamente tudo o que de humano se possa representar nela. E que, portanto, a arte do poeta há de ser mais complexa, mais completa, mais abrangente e mais profunda do que tendem a fazê-la os jogos —algumas vezes brilhantes— a que pretendem reduzi-la correntes revolucionárias.

Isso posto, confessadas, via de conseqüência, as minhas próprias limitações, passo, com a possível humildade, ao balanço de quatro décadas de produção poética —omitida, quase totalmente, a inicial—, balanço em que, de algum modo, se traduz a seleção de poemas que ofereço ao leitor.

Brasília, 31 de maio de 1999

Fonte:
Academia Brasileira de Poesia da Casa de Raul de Leoni

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Petrus Alphonsus (Humor do Século XII)



Petrus Alphonsus é um erudito judeu (nascido em 1062) que - após abraçar a fé cristã (em 1106) -, para ajudar a formação do clero (e, certamente, também como repertório de exemplos para a pregação), compôs a Disciplina Clericalis, uma obra voltada para a educação moral.

Em seu Prólogo, o autor declara que optou por recolher provérbios e fábulas (em boa parte provenientes da tradição oriental árabe), por pretender tornar os ensinamentos amenos, divertidos e mais acessíveis à memória. Por isso, "compus este livrinho, tomando-o... em parte, dos exemplos morais dos árabes, com fábulas, versos e comparações com animais e aves".

Assim, Alphonsus, apresenta também algumas anedotas como os casos do servo Maimundus nigrus, o sagaz preto Maimundo (o nome Maimundo, de nítida ressonância semítica, acentua, em latim, o preconceito, por sugerir immundus), guloso, falador e preguiçoso que nunca se dá mal, uma espécie de Macunaíma ou Pedro Malazartes da época.

As Piadas do Preto Maimundo

O senhor de Maimundo ordenou-lhe, certa noite, que fosse fechar a porta. Maimundo - que, oprimido pela preguiça, nem podia se levantar - respondeu que a porta já estava fechada.

Ao alvorecer, disse-lhe o senhor: "Maimundo, vai abrir a porta".

Maimundo: "Como eu sabia que o senhor havia de querê-la aberta hoje, nem cheguei a fechá-la ontem".

O senhor, percebendo que, por preguiça, não a tinha fechado, disse-lhe: "Levanta-te e faz o que tens de fazer, pois é dia e o sol já está a pino".

Maimundo: "Se o sol já está a pino, então dá-me de comer".

Senhor: "Servo mau, nem amanheceu e já queres comer?"

Maimundo: "Bom, se não amanheceu, então deixa-me continuar dormindo".

***

Em outra noite, disse o senhor a seu servo: "Maimundo, levanta e vai ver se está chovendo!". Maimundo, porém, chamou o cachorro que estava deitado fora da porta e, quando ele chegou, apalpou-lhe as patas. Vendo que estavam secas, disse: "Não, senhor, não está chovendo!".

***

Noutra ocasião, também de noite, o senhor perguntou a Maimundo se tinham lume na casa. O servo chamou o gato e apalpou-o para ver se estava quente ou não. Como o gato estivesse frio, respondeu: "Não, senhor, não temos fogo!"

***

Contam que o senhor voltava do mercado, todo contente pelo bom lucro que tinha auferido. E veio Maimundo a seu encontro. O senhor, ao vê-lo, temeu que viesse dar más notícias, como era de costume, e advertiu-o:

"Olha lá, Maimundo, não me venhas com más notícias!"

"Não contarei más notícias, senhor, mas nossa cadelinha Bispella morreu".

"Como foi que ela morreu?".

"Nossa mula, assustada, quebrou o cabresto e, ao fugir, esmagou-a sob suas patas".

"E o que aconteceu com a mula?"

"Caiu no poço e morreu".

"E como foi que ela se assustou?".

"É que teu filho caiu do terraço e morreu. Com a queda, a mula assustou-se".

"E sua mãe, como está?".

"Morreu de dor pela perda do filho".

"E quem está tomando conta da casa?".

"Ninguém, porque virou cinzas: a casa e tudo o que nela havia".

"Como começou o incêndio?"

"Na mesma noite em que a senhora morreu, a criada, no velório pela senhora defunta, esqueceu uma vela acesa na câmara e começou o incêndio, que se espalhou pela casa toda".

"E onde está a criada?".

"Ela quis apagar o fogo, mas caiu-lhe uma viga na cabeça e ela morreu".

"E tu, como conseguiste escapar, sendo tão preguiçoso?"

"Quando vi a moça morta, fugi"

***

A Piada do Pastor e do Mercador

Um pastor sonhou que tinha mil ovelhas. Um mercador quis comprá-las para revendê-las com lucro e queria pagar duas moedas de ouro por cabeça. Mas o pastor queria duas moedas de ouro e uma de prata por cabeça. Enquanto discutiam o preço, o sonho foi-se desvanecendo. E o vendedor, dando-se conta de que tudo não passava de um sonho, mantendo os olhos ainda fechados, gritou: "Uma moeda de ouro por cabeça e você as leva todas...".
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Nota:
Do Disciplina Clericalis, foi apresentado a tradução de algumas piadas dos capítulos 28 e 31: Exemplum de Maimundo Servo e Exemplum de Opilione et Mangone (do cap. XXXI). Para a tradução, valeu-se do original latino, apresentado por Angel González Palencia, Madrid-Granada, CSIC, 1948.
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Fontes:
– LAUAND, L. J. (org.) Oriente & Ocidente VII- Idade Média: Cultura Popular, São Paulo, DLO-FFLCHUSP / Edix, 1995.
– Imagem = Castelos Medievais