quarta-feira, 8 de julho de 2009

Trova XXXIX

Leon Tolstói (Os Tres Eremitas)



Um arcebispo e seus vários assessores estão fazendo uma viagem de navio. Quando é avistada uma pequena ilha no horizonte, um pescador conta a outros passageiros sobre três velhos eremitas que ali vivem. Segundo o pescador, os eremitas são santos, servos abençoados por Deus com miraculosos poderes.

Interessado, o arcebispo pede mais informações ao pescador, que descreve como é peculiar a aparência dos três anciãos, com suas longas barbas e cabelos brancos. O arcebispo pergunta ao capitão do navio sobre a existência dos tais “santos” e o capitão afirma que não passam de três “imbecis que não intendem nada e são mudos como os peixes do mar”. Ainda assim, curioso para conhecê-los, o arcebispo pede que desembarquem na pequena ilha.

O capitão tenta fazer o arcebispo mudar de idéia, mas, em troca de dinheiro, modifica o curso do navio. Em pouco tempo, o navio é ancorado nas proximidades da ilha. Um barco a remo é baixado ao mar e o arcebispo e levado à praia por alguns remadores. Lá, com o auxílio de um pequeno telescópio, o arcebispo avista os três velhos sobre uma grande rocha.

O arcebispo vai até os eremitas e pede que eles lhe contem como é que demonstram sua devoção, de que forma oram a Deus. O mais velho deles informa que eles apenas repetem uma simples prece: “Vós sois três. Nós somos três. Tenha piedade de nós.”

O arcebispo acha engraçada a prece tão simples dos eremitas. Citando a Sagrada Escritura, ele se esforça para ensinar aos três o “Pai Nosso”. Diversas vezes, os velhos repetem a oração e, com dificuldade, acabam por aprendê-la.

Ao anoitecer, o arcebispo despede-se dos velhos e volta para o navio. Ele está muito orgulhoso de si mesmo, agradecendo a Deus por ter tido a chance de ensinar àqueles homens tão simples a maneira certa de rezar.

Quando a ilha já está bem distante no horizonte, o arcebispo repara numa luz que vem se aproximando do navio. O arcebispo fica confuso, sem saber do que se trata. Finalmente, o capitão consegue enxergar. São os três eremitas que estão correndo sobre as águas do mar em direção ao barco.

Toda a tripulação pára para ver o evento milagroso. Quando os três velhos chegam perto do barco, um deles explica que esqueceram parte da prece que o arcebispo tinha ensinado e queriam recordá-la.

O arcebispo fica maravilhado com o que está vendo e diz ao mais velho dos eremitas que a prece que costumavam dizer já estava perfeita para Deus. Felizes, os três santos retornam para sua ilha, caminhando despreocupados sobre as águas.

Paulo Mendes Campos (Poesias)


NESTE SONETO

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.
Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma, pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no peito vive o verso certo.
Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto
Dentro de forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.

CAMAFEU

A minha avó morreu sem ver o mar. Suas mãos, arquipélago de nuvens,
Matavam as galinhas com asseio; o mar também dá sangue quando o peixe
Vem arrastado ao mundo (o nosso mundo); no entanto no mar é muito diferente.
As gaivotas, mergulhando, indicam o caminho mais curto entre dois sonhos
Mas minha avó era feliz e doce como um nome pintado em uma barca.
Sua ternura eterna não temia a trombeta do arcanjo e o Dies lrae:
Sentada na cadeira de balanço, olhava com humor os vespertinos.
Sua figura pertenceu à terra, porém o mar, rainha impaciente,
0 mar é uma figura de retórica. No porto de Cherburgo, há muitos anos,
Ouvi na cerração o mar aos gritos, mas minha avó jamais ergueu a voz:
Penélope cristã, enviuvada, fazia colchas de retalhos fulvos.
0 mar é uma louça que se parte contra as penhas, enquanto minha avó
Fechava a geladeira com um jeito suave, anterior às geladeiras.
Igual ao mar, os dedos da manhã a despertavam num rubor macio;
Pelo seu corpo quase centenário a invisível vaga do sol se espraiava,
A carne se aquecia na torrente dos constelados glóbulos do sangue,
As pombas aclamavam outro dia da crônica do mundo (o nosso mundo)
E de uma criatura que se orvalha em suas bodas com a terra dos pássaros
Matutinos, das frutas amarelas, da rosa ensangüentando de vermelho
0 verde, o miosótis, o junquilho, e em tudo um rumor fresco de águas novas,
Um verdejar de abóboras, pepinos, um leite grosso e tenro, e minha avó
Com tímida alegria indo, vindo, a prever e ordenhar um dia a mais,
Assim como as abelhas determinam mais 24 horas de doçura.
E enfim no litoral destes brasis, o mar afogueado amando a terra
Com seu amor insaciável, dando um mundo ao mundo (o nosso mundo)
E a gravidade intransigente do mistério. Mas minha avó morreu sem ver o mar.

BALADA DO AMOR PERFEITO

Pelos pés das goiabeiras,
pelos braços das mangueiras,
pelas ervas fratricidas,
pelas pimentas ardidas,
fui me aflorando.

Pelos girassóis que comem
giestas de sol e somem,
por marias-sem-vergonha,
dos entretons de quem sonha
fui te aspirando.

Por surpresas balsaminas,
entre as ferrugens de Minas,
por tantas voltas lunárias,
tantas manhãs cinerárias,
fui te esperando.

Por miosótis lacustres,
por teus cântaros ilustres,
pelos súbitos espantos
de teus olhos agapantos,
fui te encontrando.

Pelas estampas arcanas
do amor das flores humanas,
pelas legendas candentes
que trazemos nas sementes,
fui te avivando.

Me evadindo das molduras
de minhas albas escuras,
pelas tuas sensitivas,
açucenas, sempre-vivas,
fui me virando.

Pela rosa e o rosedá,
pelo trevo que não há,
pela torta linha reta
da cravina do poeta,
fui te levando.

Pelas frestas das lianas
de tuas crespas pestanas,
pela trança rebelada
sobre o paredão do nada,
fui te enredando.

Pelas braçadas de malvas,
pelas assembléias alvas
de teus dentes comovidos,
pelo caule dos gemidos
fui te enflorando.

Pelas fímbrias de teu húmus,
pelos reclames dos sumos,
sobre as umbelas pequenas
de tuas tensas verbenas,
fui me plantando.

Por tuas arestas góticas,
pelas orquídeas eróticas,
por tuas hastes ossudas,
pelas ânforas carnudas,
fui te escalando.

Por teus pistilos eretos,
por teus acúleos secretos,
pelas úsneas clandestinas
das virilhas de boninas,
fui me criando.

Pelos favores mordentes
das ogivas redolentes,
pelo sereno das zínias,
pelos lábios de glicínias,
fui te sugando.

Pelas tardes de perfil,
pelos pasmados de abril,
pelos parques do que somos,
com seus bruscos cinamomos,
fui me espaçando.

Pelas violas do fim,
nas esquinas do jasmim,
pela chama dos encantos
de fugazes amarantos,
fui me apagando.

Afetando ares e mares
pelas mimosas vulgares,
pelos fungos do meu mal,
do teu reino vegetal
fui me afastando.

Pelas gloxínias vivazes,
com seus labelos vorazes,
pela flor que se desata,
pela lélia purpurata,
fui me arrastando.

Pelas papoulas da cama,
que vão fumando quem ama,
pelas dúvidas rasteiras
de volúveis trepadeiras
fui te deixando.

Pelas brenhas, pelas damas
de uma noite, pelos dramas
das raízes retorcidas,
pelas sultanas cuspidas,
fui te olvidando.

Pelas atonalidades
das perpétuas, das saudades,
pelos goivos do meu peito,
pela luz do amor perfeito,
Vou te buscando.

EPITÁFIO

Se a treva fui, por pouco fui feliz.
Se acorrentou-me o corpo, eu o quis.
Se Deus foi a doença, fui saúde.
Se Deus foi o meu bem, fiz o que pude.
Se a luz era visível, me enganei.
Se eu era o só, o só então amei.
Se Deus era a mudez, ouvi alguém.
Se o tempo era o meu fim, fui muito além.
Se Deus era de pedra, em vão sofri.
Se o bem foi nada, o mal foi um momento.
Se fui sem ir nem ser, fiquei aqui.

Para que me reflitas e me fites
estas turvas pupilas de cimento:
se devo a vida à morte, estamos quites.

TESTAMENTO DO BRASIL

Que já se faça a partilha.
Só de quem nada possui
nada de nada terei.
Que seja aberto na praia,
não na sala do notário,
o testamento de todos.
Quero de Belo Horizonte
esse píncaro mais áspero,
onde fiquei sem consolo,
mas onde floriu por milagre
no recôncavo da brenha
a campânula azulada.
De São João del-Rei só quero
as palmeiras esculpidas
na matriz de São Francisco.
Da Zona da Mata quero
o Ford envolto em poeira
por esse Brasil precário
dos anos vinte (ou twenties),
quando o trompete de jazz
ruborizava a aurora
cor de cinza de Chicago.
Do Alto do Rio Negro
quero só a solidão
compacta como o cristal,
quero o índio rodeando
o motor do Catalina,
quero a pedra onde não pude
dormir à beira do rio,
pensando em nós-brasileiros
- entrelaçados destinos -
como contas carcomidas
de um rosário de martírios.
De Lagoa Santa quero
o roxo da Sexta-feira,
quero a treva da ladeira,
os brandões da noite acesa,
quero o grotão dos cajus,
onde surgiu uma vez
no breu da noite mineira
uma alma doutro mundo.
Da porta pobre da venda
de todos os povoados
quero o silêncio pesado
do lavrador sem trabalho,
quero a quietude das mãos
como se fossem de argila
no balcão engordurado-.
Ainda quero da vila
ira que se condensa,
dor imóvel e dura
como um coágulo no sangue.
Da Fazenda do Rosário
quero o mais árido olhar
das crianças retardadas,
quero o grito compulsivo
dos loucos, fogo-pagô
de entardecer calcinado,
a névoa seca e o não,
o não da névoa e o nada.
Da cidade da Bahia
quero os pretos pobres todos,
quero os brancos pobres todos,
quero os pasmos tardos todos.
Do meu Rio São Francisco
quero a dor do barranqueiro,
quero as feridas do corpo,
quero a verdade do rio,
quero o remorso do vale,
quero os leprosos famosos,
escrofulosos famintos,
quero roer como o rio
o barro do desespero.
Dos mocambos do Recife
quero as figuras mais tristes,
curvadas mal nasce o dia
em um inferno de lama.
Quero de Olinda as brisas,
brisas leves, brisas livres,
ou como se quer um sol
ou a moeda de ouro
quero a fome do Nordeste,
toda a fome do Nordeste.
Das tardes do Brasil quero,
quero o terror da quietude,
quero a vaca, o boi, o burro
no presépio do menino
que não chegou a nascer.
Dos domingos cor de cal
quero aquele som de flauta
tão brasileiro, tão triste.
De Ouro Preto o que eu quero
são as velhinhas beatas
e a água do chafariz
onde um homem se dobrou
para beber e sentiu
a pobreza do Brasil.
Do Sul, o homem do campo,
matéria-prima da terra,
o homem que se transforma
em cereal, vinho e carne.
Do Rio quero as favelas,
a morte que mora nelas.
De São Paulo quero apenas
a banda podre da fruta,
as chagas do Tietê,
o livro de Carolina.
Do noturno nacional
quero a valsa merencórea
com o céu estrelejado,
quero a lua cor de prata
com saudades da mulata
das grandes fomes de amor.
Do litoral feito luz
quero a rude paciência
do pescador alugado.

Da aurora do Brasil
- bezerra parida em dor -
apesar de tudo, quero
a violência do parto
(meu vagido de esperança).
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Paulo Mendes Campos (28 Fevereiro 1922 – 1 Julho 1991)



Paulo Mendes Campos nasceu a 28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte - MG, filho do médico e escritor Mário Mendes Campos e de D. Maria José de Lima Campos. Começou seus estudos na capital mineira, prosseguiu em Cachoeira do Campo (onde o padre professor de Português lhe vaticinou: "Você ainda será escritor") e terminou em São João del Rei.

Começou os estudos de Odontologia, Veterinária e Direito, não chegando a completá-los. Seu sonho de ser aviador também não se concretizou. Diploma mesmo, gostava de brincar, só teve o de datilógrafo. Muito moço ainda, ingressou na vida literária, como integrante da geração mineira a que pertence Fernando Sabino e pertenceram os já falecidos Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, João Ettiene Filho e Murilo Rubião. Em Belo Horizonte, dirigiu o suplemento literário da Folha de Minas e trabalhou na empresa de construção civil de um tio.

Veio ao Rio de Janeiro, em 1945, para conhecer o poeta Pablo Neruda, e por aqui ficou. No Rio já se encontravam seus melhores amigos de Minas — Sabino, Otto, e Hélio Pellegrino. Passou a colaborar em O Jornal, Correio da Manhã (de que foi redator durante dois anos e meio) e Diário Carioca. Neste último, assinava a "Semana Literária" e, depois, a crônica diária "Primeiro Plano". Foi, durante muitos anos, um dos três cronistas efetivos da revista Manchete.

Admitido no IPASE, em 1947, como fiscal de obras, passou a redator daquele órgão e chegou a ser diretor da Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

Em 1951 lança seu primeiro livro, "A palavra escrita" (poemas).

Casou-se, nesse mesmo ano, com Joan, de descendência inglesa, tendo tido dois filhos: Gabriela e Daniel.

Buscando meios de sustentar a família, Paulo Mendes Campos foi repórter e, algumas vezes, redator de publicidade

Foi, também, hábil tradutor de poesia e prosa inglesa e francesa — entre outros Júlio Verne, Oscar Wilde, John Ruskin, Shakespeare, além de Neruda, tendo enriquecido sua experiência humana em viagens à Europa e à Ásia.

Em 1962, experimentou ácido lisérgico, acompanhado por um médico. Relatou sua experiência em artigos publicados na revista "Manchete", depois reproduzidas em "O colunista do morro" e em "Trinca de copas", seu último livro. Disse que a droga abriu "comportas" e ele se deixou invadir pelo "jorro caótico"do inconsciente até sentir o peso e a nitidez das palavras que produziam um "milagre da voz". E completava: "A comparação não presta, mas por um momento eu era uma espécie de São Francisco de Assis falando com o lobo. O lobo também sabe que amor com amor se paga".

Em 1967, em seu livro "Hora do Recreio", escreveu:


Autobiografia

1922 - Semana de Arte Moderna, revolta do Forte de Copacabana, morte do Papa, o rei entrega o poder a Mussolini. Nada tenho com tudo isso: simplesmente nasço.

1923 - Morre o Rui, Stalin assume a chefia do poder soviético, putch de Hitler em Munique. Eu nada disse, nada me foi perguntado.

1924 - Revolução em São Paulo, estado de sítio. Dou para quebrar minhas mamadeiras, após o ato de esvaziá-las. O califado turco entra pelo cano.

1925 - Começo a ver o diabo dançando em torno de meu berço;e gosto.

1928 - Carmona, presidente de Portugal; Hiro-Hito, imperador do Japão. Ganho um par de botinas e durmo abraçado a elas.

1927 - Com o nome de Charles Lindbergh, atravesso o Atlântico pilotando o Spirit of Saint Louis.

1928 - Antônio de Oliveira Salazar torna-se precocemente ministro das finanças portuguesas; perco na Rua Tupis uma prata de dois mil-réis.
1929 - Craque na bolsa de Nova Iorque. Pulo do bonde em movimento na rua da Bahia, esborracho-me no chão, um Ford último modelo consegue parar em cima de mim, e quase não fico para contar a história.

1930 - Revolução: mesmo com fratura dupla no braço, dou o melhor de mim ao lado das tropas rebeldes e, logo após, ao lado das tropas legalistas. Na caixa d'água da Serra leio 0 Barão de Münchausen.

1931 - A Inglaterra deixa o padrão ouro, Afonso XIII deixa o trono espanhol. Eu, Robinson Crusoé, naufrago no Pacífico, chego a uma ilha cheia de ilustrações coloridas e me torno amigo de Sexta-Feira.

1932 - Revolução de São Paulo. Luto na Mantiqueira, tremendo de frio e de coragem; não tenho muita certeza se morro ou não.

1933 - Morre dentro da banheira o Presidente Olegário Maciel. O Padre Coqueiro vem dizer que as aulas estão suspensas por motivo de luto nacional. Viva Olegário Maciel! Fujo da casa paterna, materna, fraterna, mochila nas costas, em busca dos índios de Mato Grosso; regresso ao atingir as terras da Mutuca, hoje subúrbio de Belo Horizonte.

1934 - Hitler é Führer do Reich; eu não sei se sou Winetou ou Mão de Ferro.

1935 - Mussolini ataca a Abissínia; ataco e defendo no time da divisão dos médios como centro-médio.

1936 - Morre George V, viva Eduardo VIII, que renuncia, sobe ao trono George VI. Ganho com alegria o bilhete azul do colégio.

1937 - O golpe do Estado Novo me pega de surpresa, quando subo as escadas da capela do outro colégio para a benção do Santíssimo e uma prática chatíssima de Frei Mário.

1938 - Os japoneses tomam Cantão; no Hotel Espanhol, São João del-Rei, os bacharelandos do Ginásio de Santo Antônio tomam vinho Gatão e recitam um ditirambo de Medeiros de Albuquerque (estava no florilégio do compêndio): "Bebe! e se ao cabo da noite escura, / Hora de crimes torpes, medonhos, / Varrer-te acaso da mente os sonhos, / Cerra os ouvidos à voz do povo! / Ergue teu cálice, bebe de novo!" Foi o que fizemos.

1939 - Começo a guerra.

1940 - Caio com a França.

1941 - Não sou mais eu: 1) sou como o rei de um país chuvoso; 2) sou uma nuvem de calças; 3) sou 350; 4) sou triste e impenetrável como um cisne de feltro. E assim por diante.

1942 - Atingido pelo mal do século (XVIII), mato-me no Parque Municipal. Meu nome é Werther.

1943 - Venço a batalha de Stalingrado.

1944 - Maquis.

1945 - Tomo o noturno mineiro e me mudo para o Rio, acabo com a ditadura.

1946 - 1955 – Yo era un tonto.

1956 - 1960 - Lo que hé visto me ha hecho dos tontos.

1961 - Subo no espaço sideral, dou uma volta em torno da Terra na primeira nave cósmica tripulada por um ser humano. Depois desço no Bico de Lacre, bar dos mentirosos e sonhadores, e digo: "O Mundo é azul.”

(Publicado no livro “Hora do Recreio”, Editora Sabiá/1967, pág. 07, relançado em 1976 com o título de “Rir é o Único Jeito (Supermercado)”, Editora Tecnoprint S.A. – Rio de Janeiro, pág. 11).

Cético, sem perder a ternura, jamais fez concessões e tinha horror à vulgaridade, fosse ela temática ou vernacular. A perplexidade humana é devassada em sua poesia; sua prosa é penetrante, algumas vezes cheia de bom humor.

Paulo Mendes Campos faleceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 1° de julho de 1991, aos 69 anos de idade.

Em 1999 foi homenageado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: tem seu nome uma pequena praça que fica no cruzamento das ruas Dias Ferreira, Humberto de Campos e General Venâncio Flores, no Leblon.

Um de seus livros, publicado pela Editora do Autor, teve esta apresentação, que bem define o escritor:

"Homem em quem o gosto das leituras requintadas e as orgias silenciosas do pensamento não estragaram ao prazer e a emoção dos encontros com o povo e com a vida de todo dia, Paulo Mendes Campos faz, na leveza de suas crônicas, páginas que vencem o efêmero pela sua qualidade literária e pela sua autêntica vibração humana".


Bibliografia:

A Palavra Escrita, poesia, 1951
Forma e Expressão do Soneto, antologia, 1952
Testamento do Brasil, poesia, 1956
O Domingo Azul do Mar, poemas, Rio de Janeiro, 1958
Páginas de Humor e Humorismo, antologia, ampliada e reeditada em 1965 sob o título Antologia Brasileira de Humorismo.
O Cego de Ipanema, crônicas, 1960
Homenzinho na Ventania, crônicas, 1962
O Colunista do Morro, crônicas, 1965
Testamento do Brasil e Domingo Azul do Mar (poemas - edição conjunta), 1966
Hora do Recreio, crônicas, 1967
O Anjo Bêbado, crônicas, 1969
Trinca de Copas, 1984
Rir é o Único Jeito (Supermercado), (Reedição de Hora do Recreio, com novo título - livro de bolso).
O Amor Acaba - Crônicas Líricas e Existenciais , Rio de Janeiro, 1999.
Cisne de Feltro - Crônicas Autobiográficas , 2000.
Alhos e Bugalhos , 2000.
Brasil brasileiro — Crônicas do país, das cidades e do povo, 2000.
Murais de Vinícius e outros perfis , 2000.
O gol é necessário — Crônicas esportivas , 2000.
Artigo indefinido , 2000.
De um caderno cinzento — Apanhadas no chão , 2000.
Balé do pato e outras crônicas , 2003.
A volta ao mundo em 80 dias - Tradução e adaptação do livro de Julio Verne, 2004.
Quatro histórias de ladrão, 2005.

Fonte:
Releituras

Antonio Lobo Antunes (Os Trocos do Amor)



Se não te faz diferença fica mais um bocadinho que não me estou a sentir bem, qualquer coisa no coração, acho eu, que de vez em quando pára (não estou a brincar, pára mesmo) deixo de respirar, vem-me um aperto aqui, na garganta, de maneira que é um favor que te peço, só um favor, não imagines que há alguma coisa por trás, juro que não há nada por trás, dá-me mais segurança se te sentares aí uns minutos para o caso de ser preciso chamar os bombeiros, os médicos, sei lá, como não consigo pegas tu no auscultador e pronto e depois vais à vida que não tenho nada com isso, descansa que não te incomodo com telefonemas ou esperas, aquilo de me encontrar com a tua mulher foi uma vez sem exemplo, a discussão, a cena, tu envergonhadíssimo

- Por amor de Deus acabem com as partes gagas, por amor de Deus acabem com as partes gagas

juro pela minha mãe que não se repete e a minha mãe também não anda muito católica da tensão e dos rins portanto já vês, não há motivo para alarmes, só te peço que fiques até isto acalmar, se não acreditas em mim vê-me o pulso, nem se encontra pois não, estava mais certa que não se encontrava, carrega com o dedo para dentro, experimenta no outro braço que pode suceder que o sangue deste entupido, experimenta nos dois braços ao mesmo tempo, experimenta no peito a ver se a máquina trabalha, não ao meio, parvo, ninguém tem a máquina ao meio, do lado esquerdo, por cima do cima do soutien e do vestido é difícil, espera que eu te baixe a alça, estes soutiens almofadados também não ajudam, enfia a mão lá dentro mas livra-te de te aproveitares e conta-me se bate, já te disseram que estás cheio de cabelos brancos meu Deus, onde arranjaste tantos cabelos brancos em seis meses, quando eu tomava conta de ti nem um para amostra, cabelos brancos, rugas, papos nos olhos, até eras bonito e agora velho, olha a mãozinha dele a aproveitar-se, tornaste-te um velho abusador, se calhar trazes fotografias de criaturas nuas na carteira, malandro, aguenta os cavalos que o fecho do soutien está a magoar-me nas costas, vê se consegues desapertá-lo, não é para a esquerda é para a direita seu tonto, falta um colchete, que desajeitado, dantes desapertavas que era uma limpeza e hoje nem acertas com ele, mais abaixo, não, mais acima, aí mesmo, obrigada, oxalá não me tenhas arranjado uma marca na pele, uma ferida, sempre fui tão sensível e diz-me com franqueza, não me mintas tu que passaste a vida a mentir, se o coração bate ou não bate, bate num fiozito aposto, qual forte, não tenho força para mandar cantar um cego, aí vens tu com as aldrabices, não há cura possível, qual forte, qual forte e qual gemido seu cretino, nem um som deitei, a que propósito me punha a gemer, diz lá, tira a manápula depressa antes que me zangue contigo, não ouviste pois não, deste em surdo também para além de velho e feio, tira a manápula depressa foi o que eu mandei, antes que me zangue contigo e o que é isso no joelho, festinhas, andamos a brincar ou quê, estás a ver se as meias são caras, é isso, claro que não são collants, não uso collants olha o saloio, collants usam as lêndeas com quem tu deves sair, por acaso estas meias têm liga aderente de renda com flores encarnadas, sempre gostei da mistura do preto com o encarnado e cuidadinho que me custaram um balúrdio, percebe-se logo pelo toque aliás, não percebes pelo toque meu vadio e depois quase opacas já viste, aprende o que é uma senhora elegante tu que de certeza te habituaste a sopeiras, aprende o que é uma senhora elegante, anda, aprende o que é lingerie de bom-gosto, aí está o coração a parar de novo, não te levantes ainda, tem paciência, aguenta, se te apetece beijar-me os joelhos beija desde que não me deixes sozinha sem energia para os bombeiros, os médicos, este suspiro foram os pulmões a morrerem, não te passe pela cabeça que um joelho me comove, não comove, na barriga sim ou no ombro, no joelho nem visto, o que é isso seu atrevido, quietinho, mencionei a barriga e o ombro como exemplos, não para cócegas, houve um tempo em que percebias de carícias, e agora, pelos vistos, só percebes de cócegas, o que tens andado a fazer, parvalhão, que nem de uma carícia em condições és capaz, mais devagar, mais de leve, assim não vamos lá, recomeça, não te espevites a meter os dentes, sem dentes por enquanto, a boca, a pontinha da língua até que eu um arrepio, foi melhor, insiste, é preciso ensinar tudo, que gaita, o que as pessoas esquecem, faz uma pausa que o coração me parou, respeita a minha saúde por favor tu que não respeitas nada, tenho mãe, tenho uma sobrinha a estudar, tudo isso custa dinheiro entendes e adivinha quem paga, se não adivinhas informo-te que é aqui a idiota, quem tu querias que fosse, sou uma fraca, uma ingênua, o outro ombro vá, onde é que eu ia, ia que sou uma fraca, uma ingênua, o mundo inteiro faz de mim gato-sapato a começar por ti, toma cuidado que me trilhaste a coxa, pronto, recomeça e não me venhas com o paleio do divórcio, o paleio que dormes noutro quarto lá em casa, cala-te, quando muito meu amor e pronto, quando muito fofinha, sou fofinha não sou, sabe-te bem não sabe, passa do ombro ao pescoço, aproxima-te da nuca, aproxima-te da orelha, o lóbulo primeiro e o resto depois, que raio de calças as tuas com o fecho-éclair empenado, para os chichis que problema, encravaste isto tudo, deixa-te estar quietinho que eu resolvo, tenho mais jeito que tu, não respires com tanta gana que me assustas, não digas palavrões que me enervas, guarda-os para as tuas amigas que se fingem excitar com ordinarices, comigo é como deve ser, com ternura, sou um bebé, uma menina, uma coisinha frágil e doce, repete-me ao ouvido que sou uma coisinha frágil e doce, deita-me no sofá mas lento, mas calmo e chega aqui coisinha frágil e doce, diz à tua menina que a adoras, ao teu bebé, ao teu rebuçado, diz ao teu rebuçado que o adoras e se fores à casa de banho ante de te ires embora não me molhes o chão, parti a esfregona e não estou para andar de gatas com um pano que a minha coluna já não é o que era e não fica cá ninguém para me massagear as costas com creme.”

Fontes:
http://pisares.blogspot.com/2007/10/os-trocos-do-amor.html
Imagem = http://cantinhodumaalma.blogs.sapo.pt

António Lobo Antunes (1942)



António Lobo Antunes (Lisboa, 1 de Setembro de 1942) é um escritor e psiquiatra português.

Proveniente de uma família da alta burguesia, licenciou-se em Medicina e especializou-se em Psiquiatria. Exerceu a profissão no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, dedicando-se desde 1985 exclusivamente à escrita. A experiência em Angola na Guerra do Ultramar como Tenente e Médico do Exército Português durante vinte e sete meses (de 1971 a 1973) marcou fortemente os seus três primeiros romances.

Em termos temáticos, a sua obra prossegue com a tetralogia constituída por A Explicação dos Pássaros, Fado Alexandrino, Auto dos Danados e As Naus, onde o passado de Portugal, dos Descobrimentos ao processo revolucionário de Abril de 1974, é revisitado numa perspectiva de exposição disfórica dos tiques, taras e impotências de um povo que foram, ao longo dos séculos, ocultados em nome de uma versão heróica e epopeica da história. Segue-se a esta série a trilogia Tratado das Paixões da Alma, A Ordem Natural das Coisas e A Morte de Carlos Gardel – o chamado «ciclo de Benfica» –, revisitação de geografias da infância e adolescência do escritor (o bairro de Benfica, em Lisboa). Lugares nunca pacíficos, marcados pela perda e morte dos mitos e afetos do passado e pelos desencontros, incompatibilidades e divórcios nas relações do presente, numa espécie de deserto cercado de gente que se estende à volta das personagens.

Antunes começou por utilizar o material psíquico que tinha marcado toda uma geração: os enredos das crises conjugais, as contradições revolucionárias de uma burguesia empolgada ou agredida pelo 25 de Abril, os traumas profundos da guerra colonial e o regresso dos colonizadores à pátria primitiva. Isto permitiu-lhe, de imediato, obter um reconhecimento junto dos leitores, que, no entanto, não foi suficientemente acompanhado pelo lado da crítica. As desconfianças em relação a um estranho que se intrometia no meio literário, a pouca adesão a um estilo excessivo que rapidamente foi classificado de «gongórico» e o próprio sucesso de público, contribuíram para alguns desentendimentos persistentes que se começaram a desvanecer com a repercussão internacional (em particular em França) que a obra de António Lobo Antunes obteve.

Ultrapassado este jogo de equívocos, tornou-se um dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo. Pouco a pouco, a sua escrita concentrou-se, adensou-se, ganhou espessura e eficácia narrativa. De um modo impiedoso e obstinado, esta obra traça um dos quadros mais exaustivos e sociologicamente pertinentes do Portugal do século XX.

A sua obra prosseguiu numa contínua renovação linguística, tendo os seus romances seguintes (Exortação aos Crocodilos, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, Que Farei Quando Tudo Arde?, Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo), bem recebidos pela crítica, marcando definitivamente a ficção portuguesa dos últimos anos.

Em 2007 foi distinguido com o Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário de língua portuguesa. Em 2008 foram-lhe atribuídas, pelo Ministério da Cultura francês, as insígnias de Comendador da Ordem das Artes e das Letras francesas.

Lobo Antunes foi militante da Aliança Povo Unido, por alguns meses, em 1980.

Muitos dos livros de Antunes referem ou reportam-se a todo o processo de passagem do fim do Estado Novo até à implantação da Democracia. O fim da Guerra Colonial, o fim de um mundo burguês marcado por valores conservadores e retrógrados. Os problemas de mudança social rápida no 25 de Abril de '74 e, consequentemente, a instabilidade política vivida em Portugal. Esse processo de passagem é espelhado nas relações familiares. Regra geral aparecem nos romances deste autor famílias disfuncionais em que o indivíduo está a perder os seus referentes, em que a comunicação é ou nula ou superficial entre os seus membros. Regra geral os anti-heróis dos seus romances são pessoas que exercem profissões liberais oriundos de «boas famílias».

Estilo

Densidade

Antunes tem uma escrita densa. O leitor tem algum esforço de leitura porque, por exemplo, não é raro haver mudanças de narrador e assim o leitor tem tendência a «perder o fio à meada». No entanto apesar de não ser um autor que opte por uma escrita fácil (ou facilitista) constitui um fenómeno de vendas e é muito lido internacionalmente, especialmente na Europa Continental.

Mudança de narrador

Na esteira de James Joyce ou de The Sound and the Fury de Faulkner, o narrador é por vezes trocado, como se o ponto de vista saltasse de personagem em personagem. Isto dá uma qualidade de caleidoscópio ao desenrolar da narrativa.

Obsessividade

Os livros de Antunes são muito obsessivos e labirínticos dando um tom geral de claustrofobia e paranóia às suas obras. Apesar disso as suas obras apresentam uma diversidade linguística notável.

Sintagmas nominais complexos

Ocorre muitas vezes numa descrição ou pensamento do que está a acontecer a um personagem aparecerem sobrepostos tanto o que está "realmente" a acontecer como uma realidade imaginária. Outros processos típicos são sintagmas nominais complexos como por exemplo "cachoeira dos pulmões". Aqui os substantivos (S1 de S2) não funcionam da maneira habitual em que S2 atribui propriedades sobre S1 ("copo de água"; água está a especificar o conteúdo do copo) mas funcionando este sintagma como uma metáfora ou como uma comparação. (assim esta imagem seria descrita num português mais habitual como "os pulmões fazendo barulho como uma cachoeira"). Em As Naus, um velho cego tem "olhos lisos de estátua"; em Manual dos Inquisidores, uma luneta é descrita como sendo "um tubo de inventar planetas".

Simultaneidade

Tipicamente ocorrem várias descrições simultâneas, tanto físicas como de pensamentos. É habitual uma realidade do passado estar misturada com uma realidade do presente. No meio de um diálogo serem inseridos diálogos imaginários ou do tempo passado. Estes processos são usados com maestria por este autor resultando efeitos de grande valor literário.

Prêmios literários

Prêmio Franco-Português, 1987 ("Cus de Judas") (Prêmio instituído pela embaixada de França em Lisboa, no valor de duzentos mil escudos e atribuído a obras traduzidas para a língua francesa nos últimos cinco anos.)
Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, 1985 ("Auto dos Danados")
Prêmio Melhor Livro Estrangeiro publicado em França, 1997 ("Manual dos Inquisidores ")
Prêmio Tradução Portugal/Frankfurt, 1997 ("Manual dos Inquisidores")
France-Culture ("A Morte de Carlos Gardel")
Prêmio de Literatura Europeia do Estado Austríaco, 2000
Prêmio União Latina , 2003
Prêmio Ovídio da União dos Escritores Romenos, 2003
Prêmio Fernando Namora, 2004
Prêmio Jerusalém, 2005
Prêmio Camões, 2007[1]
Prêmio José Donoso, 2008, atribuído pela Universidade de Talca, Chile

O autor não tinha pressa em ser publicado no Brasil e conclui: "Não sei, certa impressão de que meus livros seriam muito criticados... e eu venho do Brasil." O avô de Lobo Antunes, também António, era de Belém, onde o escritor começou a ler os clássicos brasileiros José de Alencar, Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Monteiro Lobato.

Obras

De sua autoria
Memória de Elefante (1979)
Os Cus de Judas (1979)
A Explicação dos Pássaros (1981)
Conhecimento do Inferno (1981)
Fado Alexandrino (1983)
Auto dos Danados (1985)
As Naus (1988)
Tratado das Paixões da Alma (1990)
A Ordem Natural das Coisas (1992)
A Morte de Carlos Gardel (1994)
Crônicas (1995)
Manual dos Inquisidores (1996)
O Esplendor de Portugal (1997)
Livro de Crônicas (1998)
Olhares 1951-1998 (1999) (co autoria de Eduardo Gageiro)
Exortação aos Crocodilos (1999)
Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000)
Que farei quando tudo arde? (2001)
Segundo Livro de Crônicas (2002)
Letrinhas das Cantigas (edição limitada, 2002)
Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo (2003)
Eu Hei-de Amar Uma Pedra (2004)
História do Hidroavião (conto, reedição 2005)
D'este viver aqui neste papel descripto: cartas de guerra ("Cartas da Guerra", 2005)
Terceiro Livro de Crônicas (2006)
Ontem Não Te Vi Em Babilônia (2006)
O Meu Nome é Legião (2007)
O Arquipélago da Insônia (2008)
Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar? (a ser publicado em 2009)

Fonte:

Arthur Conan Doyle (Através do véu)



Ele era um fronteiriço enorme, cabeludo e de rosto sardento, descendente direto de uma tribo dada ao roubo de gado em Liddesdale. Apesar de sua descendência, era um cidadão tão sensato e sóbrio quanto podia se desejar, vereador em Melrose, presbítero da Igreja e presidente da seção local da Associação Cristã de Moços. Seu nome era Brown – e se via impresso como “Brown and Handiside”, sobre as grandes mercadorias da rua principal. Sua esposa, Maggie Brown, era Armstrong antes de se casar, e vinha de uma velha família de camponeses nos ermos de Teviothead. Era de baixa estatura, moreninha e possuía olhos negros, além de um temperamento estranhamente nervoso para uma mulher escocesa. Não se podia encontrar maior contraste entre o homem grande e trigueiro e a pequena mulher morena, porém ambos eram da terra, até onde podia alcançar a memória.

Um dia – era o primeiro aniversário de seu casamento – eles saíram juntos para ver as escavações do Forte Romano em Newstead. Não era um lugar particularmente pitoresco. Da ribanceira norte do Tweed, exatamente onde o rio forma uma curva, estende-se uma rampa suave de terra arável. Através desta corriam os valos dos escavadores, expondo, aqui e ali, velhos trabalhos de pedra, indicando os alicerces das antigas muralhas. Havia sido um lugar enorme, pois o acampamento possuía cinqüenta acres de extensão e o forte, quinze. De qualquer modo, tudo era fácil para eles, uma vez que o Sr. Brown conhecia o fazendeiro proprietário da terra. Sob sua direção, passaram uma longa tarde de verão inspecionando as valas, as covas, as muralhas e toda a estranha variedade de objetos que esperavam ser transportados para o Museu de Antigüidade de Edimburgo. A fivela de um cinturão de mulher havia sido desenterrada naquele mesmo dia e o fazendeiro estava discorrendo sobre isto, quando seus olhos se fixaram no rosto da Sra. Brown.

Sua boa senhora acha-se cansada, disse ele. Talvez seja melhor descansar um pouco antes de continuar.

Brown olhou para a esposa. Ela estava pálida, certamente, e seus olhos escuros, luminosos e estranhos.

O que é Maggie? Cansada? Acho que é hora de regressarmos.

Não, não, John, continuemos. É maravilhoso. Igual a um país de sonho. Tudo parece estar tão chegado e perto de mim. Quanto tempo os romanos permaneceram aqui, Sr. Cunningham?

Longo tempo, senhora. Se a senhora visse as covas de lixo das cozinhas, compreenderia que levaria muito tempo para enchê-las.

E por que eles partiram?

Bem, senhora, por todos os sinais, partiram porque tiveram de o fazer. O povo das vizinhanças não podia suportá-los mais, por isso levantaram-se e queimaram o forte. Pode ser a marca de fogo nas pedras.

A mulher estremeceu ligeiramente.

Uma noite feroz... horrível, disse ela. O céu devia estar vermelho aquela noite... e estas pedras cinzentas também.

Sim, acho que se encontravam rubras, disse seu marido. É uma coisa estranha, Maggie, e talvez fossem suas palavras que a ocasionasse; mas pareço ver este incidente mais claro do que jamais vi qualquer coisa em minha vida. A luz brilhava na água.

Sim, a luz brilhava na água. E a fumaça agarrava-se à garganta. E todos os selvagens estavam gritando.

O velho fazendeiro começou a rir.

A senhora escreverá uma história acerca do velho forte, disse ele. Eu o tenho mostrado a mais de um indivíduo, mas nunca ouvi explicação tão clara. Algumas pessoas têm o dom.

Haviam bordejado a margem do fosso, e um poço abria sua boca à direita deles.

Aquele poço possui 14 pés de profundidade, disse o camponês. Imaginem o que retiramos do fundo? Bem, era somente o esqueleto de um homem com uma lança ao lado. Penso que a empunhava quando morreu. Ora, como pode um homem com uma lança achar-se num buraco destes? Não estava enterrado, porque eles queimavam seus mortos. Que conclui disso, senhora?

Ele saltou ao fundo para livrar-se dos selvagens, disse a mulher.

Bem, é plausível e um dos professores de Edimburgo não poderia apresentar melhor explicação. Gostaria que estivesse aqui, senhora, para responder às nossas dificuldades. Aqui está o altar que encontramos semana passada. Há uma inscrição. Disseram-me que é latim que significa que os homens deste forte agradecem a Deus por sua segurança.

Examinaram a velha pedra gasta. Havia dois VV largos e profundamente entalhados, no topo.

Que significam estes dois VV, perguntou Brown.

Ninguém sabe, respondeu o guia.

Valeria Victrix, disse a senhora, suavemente. Seu rosto se encontrava mais pálido que nunca, os olhos muito distantes, como quem observa pelas passagens obscuras das abóbadas dos séculos.

Que é isto? perguntou o marido, asperamente.

Ela estremeceu como alguém que acorda de um sono.

Acerca de que falávamos? perguntou.

Destes VV na pedra.

Não há dúvida de que é somente o nome da legião que erigiu o altar.

Sim, mas você lhe deu um nome especial.

Realmente? Que absurdo! Como poderia eu saber qual era o nome?

Você disse algo... Victrix, suponho.

Acho que estava conjecturando. Este lugar me dá o sentimento singular de não ser eu própria, mas outra pessoa.

Sim, é um lugar misterioso, disse seu marido, olhando ao redor com uma expressão quase de medo em seus olhos cinzentos e agressivos. Também sinto isto. penso que somente lhe desejaremos boa noite, Sr. Cunningham, e regressaremos a Melrose.

Nenhum deles pôde sacudir a estranha impressão que lhes havia sido deixada, pela visita às escavações. Era como se algum miasma houvesse subido daquelas valas úmidas e passado ao sangue deles. Toda a tarde permaneceram silenciosos e pensativos, mas os poucos comentários que faziam mostravam que o mesmo objeto ocupava a mente de cada um. Brown passou a noite sem repouso na qual teve um sonho estranho e bem concatenado, tão vívido que ele acordou transpirando e tremendo como um cavalo amedrontado. Tentou descrevê-lo à sua mulher quando se sentaram para o lanche, de manhã.

Foi a coisa mais clara, Maggie, disse ele. Nada que me aconteceu quando acordado tem sido mais claro do que isto. sinto-me como se estas mãos estivessem pegajosas de sangue.

Conte-me devagar, disse ela.

Quando começou eu estava numa encosta. Encontrava-me deitado no chão. Este era áspero e havia moitas de urzes. Tudo ao meu redor era somente escuridão, mas eu podia ouvir o sussurro das respirações dos homens. Afigurava-se uma grande multidão em ambos os lados ao meu redor, mas não podia ver ninguém. Às vezes, havia um baixo tinido de aço, e então um número de vozes sussurrava “Silêncio!”. Eu tinha uma clava nodosa na mão e esta era guarnecida de pontas de ferro na extremidade. Meu coração batia rapidamente, e eu sentia que pairava um momento de grande perigo. Uma vez deixei cair minha maça, e as vozes todas ao meu redor ordenaram na escuridão “Silêncio!”. Apoiei minha mão no chão e toquei o pé de outro homem deitado à minha frente. Havia outros ao meu alcance de ambos os lados. Mas não disseram nada.

Então todos começamos a nos mover. A encosta inteira parecia estar rastejando para baixo. Existia um rio no sopé e uma ponte de madeira com arcos altos. Além da ponte viam-se muitas luzes – tochas numa muralha. Os homens rastejantes dirigiam-se todos em direção à ponte. Não houve som de espécie alguma, porém uma quietude aveludada. Então ouviu-se um grito na escuridão, o brado de um homem que era apunhalado no coração, subitamente. Aquele único grito elevou-se durante um momento e depois ouviu-se o rugir de mil vozes furiosas. Eu estava correndo. Todos corriam. Uma luz vermelha brilhou e o rio tornou-se uma faixa rubra. Podia ver meus companheiros agora. Eram mais demônios do que homens, figuras ferozes vestidas de peles, com o cabelo e a barba caindo em torrentes. Estavam todos furiosos de raiva, saltando enquanto corriam, as bocas abertas, os braços em agitação, a luz vermelha batendo em seus rostos. Corri também, e gritei maldições como os demais. Então ouvi um grande estralejar de madeira que soube que as paliçadas tinham caído. Percebi um silvo alto em meus ouvidos e eu me achava consciente de que as flechas voavam ao meu redor. Caí no fundo de um valo e vi uma mão estendida de cima. Segurei-a e fui puxado. Olhamos para baixo e vimos homens prateados segurando suas lanças para o alto. Alguns dos nossos saltaram sobre as pontas. Nós os seguimos e matamos os soldados antes que pudessem desenterrar as lanças dos corpos novamente. Eles gritavam alto em uma língua estrangeira, mas não tivemos misericórdia. Caminhamos sobre eles como uma onda, e os espezinhamos para baixo da lama, pois eram poucos e o número dos nossos infindável.

Encontrei-me entre edifícios e um destes estava incendiado. Vi as chamas ressaindo através do telhado. Corri e achei-me só entre os edifícios. Alguém cruzou correndo à minha frente. Era uma mulher. Segurei-a pelo braço e segurando-lhe o queixo, voltei seu rosto a fim de que a luz do fogo o iluminasse. Quem você pensa que era, Maggie?

A esposa umedeceu os lábios secos.

Era eu, disse ela.

Ele olhou para ela, surpreso.

É certo seu palpite, disse. Sim, era exatamente você. Não simplesmente parecida, você compreende. Era você, você própria. Eu vi a mesma alma nos seus olhos amedrontados. Você parecia branca e formosa, maravilhosa à luz do fogo. Eu tinha somente um pensamento na cabeça – levá-la para longe comigo; conservá-la toda para mim no meu lar em algum lugar nas colinas. Você arranhou meu rosto. Levantei-a sobre o ombro e procurei achar um caminho para fora da luz do edifício em chamas e de retorno à escuridão.

Então aconteceu a coisa que relembro mais que tudo. Você está doente, Maggie. Devo parar? Meu Deus! você tem no rosto o mesmo olhar que possuía a noite passada no meu sonho. Você gritou. Ele veio correndo à luz do fogo. Sua cabeça estava desprotegida; seu cabelo era negro e encaracolado; e ele tinha uma espada nua na mão, curta e larga, pouco maior que uma adaga. Ele lançou-se contra mim, mas tropeçou e caiu. Segurei-a com uma das mãos, e com a outra...

Maggie havia saltado, ficando de pé, com feições contraídas.

Marcus! Gritou ela. Meu belo Marcus! Oh, seu animal! Fera! bruto! Houve um estardalhaço de xícaras de chá, quando ela caiu para a frente, sobre a mesa, inconsciente.

Nunca falam daquele incidente isolado e estranho em sua vida de casados. Por um instante, a cortina do passado tinha sido afastada, e algum estranho lampejo de uma vida esquecida tinha sido mostrado a eles. Mas o véu caiu, para nunca mais levantar-se. Vivem em seu círculo estreito – ele na sua loja, ela no lar – e não obstante horizontes mais novos e amplos formaram-se vagamente em torno deles, desde aquela tarde de verão no fragmentado Forte Romano.

Fontes:
Scribd
Imagem = Oficina de Idéias e Ideais

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Trova XXXVIII

Nestor Vítor (Poesias Avulsas)


MORTE PÓSTUMA

Et vraiment quand la mort viendra que reste-t-il?
P. Verlaine


D'esses nós vemos: lá se vão na vida,
Olhos vagos, sonâmbulos, calados;
O passo é a inconstância repetida,
E os sons que têm são como que emprestados.

— Dia de luz. – Respiração contida
Para encontrá-los despreocupados,
Aí vem a morte, estúpida e bandida,
Rangendo em seco os dentes descarnados.

Mas embalde ela chega, embalde os chama:
Ali não acha nem de longe aqueles
Grandes assombros que aonde vai derrama!

E abre espantada os cavos olhos tortos:
Vê que se eles têm os olhos vítreos, que eles...


Do livro: "Transfigurações" (1902)
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DUETO DE SOMBRAS

Ah! descuidosa Ofélia, é o irresistível que me está chamando,
Mas não te deixarei abandonada ...
A coroa de rosas desfolhando,
Não pela doida correnteza,
— Mãos esguias de cera enregelada —,
Irás, mas docemente, aos meus dois braços presa,
Teu olhar, a sorrir, no meu olhar fitando.

— Mas como é frio este caminho!
— Abriga-te em meu manto de loucura!
— Estás tão alto! Não alcanço o teu carinho...
Eu era mais feliz com a paz que há na planura ...

— Sobe! - Subirei, que te amo!
— Sobe, sofrendo embora! Leva para o alto a fé!
Lá em cima de uma árvore nova pende um ramo
(Palma? Loureiro? - áureo_e viril) que não se sabe para quem é.


Turris eburnea (1900)
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OS VERSOS

Versos ... são candelabros que se tocam
Tirando estrelas do cristal ferido ...
Óleo de que perfumes se deslocam .
Estranhos, num vapor vago e fluido...

Bergantins marchetados de ouro e prata
A balouçar num mar sonoro e ardente,
Que todo em nenúfares se desata
E em ilhas verdes, infinitamente ...

Versos ... largas cadeias de diamante,
Lançadas de um extremo a outro da Terra
Para pô-la risonha e soluçante,
— Áureas grilhetas de amorosa guerra ...

Flores do Desespero, doloridas,
Lírios feitos de sangue, transmudados,
Sob o ardor das insônias homicidas
Qual um punch a luz verde germinados ...

Versos! que alma sonora e tumultuosa
— Céu em que os astros chocam-se cantando —
Que alma grande, alma nobre, alma ansiosa
Não vos anda risonha procurando.

Dos Eleitos vós sois os mensageiros!
Canta, por eles, florescente rima,
Por eles mergulhais, filtros traiçoeiros,
As almas numa embriaguez opima.

Adernando-vos leves e graciosos
É que o Poeta arrebata e nos transporta
Para aqueles países fabulosos
Do Sonho, abrindo ao Infinito a porta.

Não pode alguém se libertar dos laços
Sob os quais o tenhais escravizado
Enquanto lhe ritmar, sonora, os passos
A grilheta de um verso terso e ousado.

Ah! toda esta ânsia que nos arde ao seio,
Todo este fogo que nos queima a boca,
Se revela das formas neste anseio,
Nesta sofreguidão absurda e louca.

Porém, se nós pudéssemos apenas
Abrir os olhos, dominar o Mundo,
E em atitudes nobres e serenas
Mostrar-lhe todo o nosso estranho fundo ...

Se em palavras se dissesse tudo,
Num ardor, num cantar vivo e direto,
Fora melhor que se ficasse mundo:
Era mais simples e era mais completo ...

Transfigurações (1902)
________________________

Nestor Vítor (12 Abril 1868 -13 Outubro 1932)



(Paranaguá, 12 de abril de 1868 — Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1932) . Poeta, contista, ensaísta, romancista, crítico e conferencista. Foi amigo e estudioso da obra de Cruz e Sousa. Autor de uma vasta obra, assim também um divulgador da literatura estrangeira, em particular da francesa. Nestor Vítor dos Santos.

Fez parte do grupo simbolista carioca e deu apoio ao grupo Festa. Foi o pioneiro, no Brasil, a dissertar sobre Ibsen, Emerson e Novalis, em quem, num artigo de 1899, percebeu a "genealogia" de Mallarmé. Apontou assim o neo-romantismo dos simbolistas, seu privilégio da imaginação, como apontou também seus limites em terras brasileiras. Tem um livro de poemas e outros de ficção e ensaios.

Obras
Paris, 1911
A Crítica de Ontem, 1919
Prosa e Poesia, 1963

Fontes:
Wikipedia
Antonio Miranda

Anita Philipovsky (Poesias)


NOITE FRIA EM ALTO MAR

Que vento tão forte!
Que vento tão frio!
Vem das geleiras
Esse sopro do Norte,
Esse vento gelado
Esse vento bravio.
Soturnos, plangentes
Os mastros rouquejam...
Parece um queixume
Esse rangido assim.
E queixa-se em vão
A madeira cativa
Ao ar impassível
Ao ar fugidio.
As velas flambelam
Ansiadas crepitam
Com a força incessante
De um tatalar a fio...
E lá bem em cima,
Que é que se passa?
O vento que se escoa
No cesto da gávea
Inventa e emite
Vozes de assobio.
Estalam as velas...
E marouços tontos
Vêm e se despedaçam
De encontro ao navio.

Vem das geleiras.
Vem de muito longe
Esse vento teimoso,
Esse vento bravio.

Que voz é essa agora,
Que anda chorando?
Que vai e que vem
Com o vento erradio?
Náufragos?... E os mortos?
São eles que choram:
São eles que gemem:
_ Que frio!...ai que frio...
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OS POENTES DA MINHA TERRA

A Stefan Kujavski


( Stefan, não sei onde te achas atualmente. Mas tenho a esperança de que possas ler estes versos que fiz pensando no teu fino espírito, que tanto aprecia tudo o que de belo nos oferece a Natureza! )

Os poentes da minha terra
São belos,
Tão belos,
Mas tão belos
Como ninguém viu fora daqui.
Uns são roxos . . . outros amarelos . . .
Outros de bronze com pedrinhas de rubi . . .
E os cor de opala, então ?
Lembram a palheta de algum pintor flamengo
As nuanças leves de um pôr-de-sol assim.
E os de seda cor-de-rosa ?
E os poentes de verão ?
Às vezes o poente de verão
É todinho borrado de carmim.

Há os de nuvens frágeis, esgarçadas.
Tocadas de luz desfalecente.
E a essas nuvens leves,
E luz desfalecente,
A gente olha e pensa . . .
Fica pensando que o ocidente sonha
Sonhos de renda, de gaze e nostalgia,
Sonha saudades para magoar a gente.

Patéticos . . . Uma rima de saudade,
Um verso do poema – nostalgia . . .
Tonalidades de exótica poesia,
De poesia apenas pressentida
Através do tempo e através do espaço. . .
Patéticos. Legendários. Quase irreais . . .
Estes poentes às vezes são assim.
Neles canta, e numa voz que ninguém ouve,
Um noturno . . .
Canta inaudível a alma de Chopin.

Sentimentais . . . muito sentimentais,
Estes poentes às vezes são assim.
E às vezes . . ah! são exaltados !
De cariz violento. Rubros ! De tragédia !
Esbraseados . . .
São chamas ! . . .
Vede então – o ocaso pegou fogo !
Há um grande incêndio onde termina o céu.
E logo mais:
Feitos de chumbo, azinhavre e de zarcão,
Com faíscas medrosas de safira.
E nesses dias,
Que colorido onde entra o Sol!

Que cores fortes !
E do contraste agressivo dessas tintas,
Furiosas e terríveis,
O Sol se esquiva: o Sol vai fugindo,
O Sol se escapa como quem delira.
Poentes extravagantes !
Poentes indescritíveis !
Até parece que o céu enloqueceu.

Agora vede:
Negro e de sangue . . . de tragédia, um dia,
E outro dia,
Um pôr-de-sol suave e dolente,
Que a alma da gente veste de cisma,
E que veste de cisma a alma da gente.

Poentes extravagantes !
Poentes indescritíveis !

Sobre a magia desses coloridos
Expressou-se arrebatado certa vez
Um espírito vibrante de estesia.
Era sem saber que o era – um poeta.
Mas falou:
“Nesta terra é assim:
Quando termina o dia,
U’a mão invisível, misteriosa,
Pinta onde acaba o céu,
E com as tintas que quer,
Pinta tudo o que há de emocionante,
Na essência emocionante da poesia.”

Assim expressou-se embevecida, um dia,
Uma alma vibrante de estesia.

E o poente de hoje, não vistes ?
Foi imponente. Foi egrégio.
O rei dos astros quando foi-se embora.
Deixou no céu o lindo manto seu .
Era de púrpura, que eu sei,
Com franjas de ouro, e bordados de ouro,
Mesmo um manto de rei.
Portanto esse presente foi um presente régio.
Afinal Ponta Grossa pode usar,
Como usa, e muitas vezes usa,
Na hora crepuscular,
O ouro e as púrpuras das galas reais.
Porque – quem não sabe da sua nobreza ? –
Ela é princesa.
É soberana.
E os seus domínios ?
É toda a terra dos Campos Gerais.
E por isso ela tem a regalia
De usar a púrpura das galas reais.

Estes ocasos . . .
Cada um tem sua beleza peculiar, eu acho.
Os outros . . . não sei que pensam, nem o que dirão.
Mas para mim o pôr-do-sol mais sugestivo
E emotivo,
É o pôr-do-sol lilás.
Quando faz fundo para uma paisagem campesina,
É de tão grande beleza,
E de tristeza tal,
Que a impressão que causa, não há quem a defina,

Na lomba da coxilha há um pinheiro isolado,
Forte e dorido na sua solidão.
Altivo. Sobranceiro. Algo de audaz . . .
Esse pinheiro sobranceiro,
O vento embate-o. Ele resiste.
Luta com o elemento hostil, ele sozinho,
Deslembrado na verde imensidão
Do campo sem fim.
Na lomba da coxilha há um pinheiro isolado . . .
E por detrás,
Muito atrás
Da curva da coxilha,
O céu a agonizar em cor lilás.
Só lilás ?
Não. Bem pertinho do horizonte,
Há uns fiapinhos de nuvens enxofradas,
Cloróticas. Agoniadas.
Parecem doentes essas nuvens fininhas.
Isto bem pertinho do horizonte.
O mais é só amaranto. É só lilás.
É tarde. É o fim de um dia que não teve sol.
A gente olha isso tudo, e fica olhando.
Fica cismando em tanta coisa . . .
A dor da ausência fica doendo mais.
Um fim de tarde assim,
Como faz sentir !
Como faz pensar !
Faz pensar nas almas incompreendidas,
Esmagadas de incerteza e de pesar,
Essa árvore sozinha, tão sozinha !
E o céu a agonizar clorótico e lilás.
Mais uma nota triste, nesse quadro:
Lá longe há um aterro.
E nesse aterro,
Um cavalo sacoleja um cincerro.
A gente olha ainda:
O dia se desfaz
Doente e lilás
O campo é triste !
O pinheiro é triste !
[ O cincerro é triste ! ]
Meu Deus onde vai parar essa tristeza ?
E essa beleza ?
Ouvi ! Andam soluços soluçando no ar . . .
A gente olha, e tem vontade de chorar.

Minha terra tem cada poente !
É um dom que igual, nenhuma terra tem.
Muitas vezes ao findar do dia,
Na horinha em que vai baixando o Sol
Entre nuvens leves como véu,
É só ver:
Aperta o coração da gente, uma saudade !
Uma saudade diferente . . . não sei como,
Não é saudade de nada desta vida.
É coisa incompreendida
Talvez seja a nostalgia indefinida

Que a gente tem do céu.
Poentes da minha terra !
Quando longe de vós, para vós é a minha saudade. . .
Poentes da minha terra, que fazeis pensar !
Poentes da minha terra, que fazeis sonhar !
Poentes da minha terra, que fazeis chorar !

(Ponta Grossa – Janeiro de 1936.)
----------------------

Fontes:
– SANTOS, Luisa Cristina dos. SANTOS, Nelson Rodrigues dos. Escritoras Brasileiras do Século XIX (Antologia de Textos Representativos). In BONNICI, Thomas (org.). Anais do XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.
A Mulher na literatura.

Anita Philipovsky (2 Agosto 1886 – 30 Março 1967)

Anita Philipovsky, filha do austríaco Carlos Leopoldo Philipovsky e de Maria do Nascimento Branco Philipovsky, nasceu em Ponta Grossa (PR), a 2 de agosto de 1886.

A sede da fazenda da família era distante da cidade, por isso sua educação e a de seus irmãos se processou basicamente através de professores contratados, quase sempre estrangeiros, que passavam a residir na fazenda. Coube a eles, não só o ensino básico, como o de línguas estrangeiras (alemão e francês), e também foram os responsáveis por seus estudos de artes, particularmente, de música e pintura. A jovem Anita era muito apegada a seu pai, homem inteligente e de grande cultura, possuidor de nobre caráter e de elevados sentimentos. Foi seu incentivador maior nas letras, quer na prosa ou verso; assim como na pintura.

Anita Philipowski foi a primeira poetisa de Ponta Grossa, membro do Centro Cultural Euclides da Cunha. Publicou o livro Poentes da minha terra (1936)

Obra

Quer como contista, poetisa ou novelista, desenvolveu extraordinária atividade intelectual, notadamente no período de 1910 a 1930, colaborando assiduamente em numerosos jornais e revistas da época. Fez parte do grupo das primeiras animadoras das letras femininas do Paraná, ladeada por Mariana Coelho, Mercedes Seiler, Maria da Luz Seiler, Zaida Zardo, Annette Macedo e Myrian Catta Preta.

“Os poentes da minha terra” é seu poema mais divulgado, publicado pela primeira vez em Curitiba, em edição individual e integral, pela “Prata de Casa”, em 1936. Mais de duas décadas depois, em 1959, o mesmo texto saiu impresso, com pequenas modificações, em antologia realizada pelo Centro Paranaense Feminino de Cultura. O texto, tal como o apresentamos agora, obedece a essa edição, que deve, muito provavelmente, ter recebido aprovação definitiva da escritora.

Anita Philipovsky faleceu em 30 de março de 1967, em Ponta Grossa (PR).

Pode-se, com relativa facilidade, vislumbrar em sua produção suas mais prováveis leituras, o legado cultural herdado de Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Baudelaire, Raimundo Correia, Rimbaud, Cruz e Sousa, Castro Alves, entre outros. Tal proliferação acaba revelando como a autora se posiciona em face da tradição literária.

Fontes:
- SANTOS, Luisa Cristina dos. SANTOS, Nelson Rodrigues dos. Escritoras Brasileiras do Século XIX (Antologia de Textos Representativos). In BONNICI, Thomas (org.). Anais do XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.
- A Mulher na Literatura.

Lucie Lavall (Por quê?)


Por que vens perturbar a minha solidão
Com o prolongado olhar dos teus olhos ideais,
Tu que já me ensinaste (ah! terrível lição!)
Que o amor se já murchou não floresce jamais.

Habituada a iludir, passa por mim e então
Tua boca que amei abre em risos joviais.
Por quê? Se esta incerteza atroz ao coração
Me diz sempre: - Ele mente, ah! não o creias mais.

Por que é que tua voz, se acaso estou a escuta-la,
Torna-se, ela também, triste quando me fala?
Por quê? Se agora o amor com seus longos tormentos,

Já me dá a esperança alegre de outros dias
E não revive mais passadas alegrias,
Por que vir despertar antigos sofrimentos?

[tradução de Rodrigo Junior, publicado em O Progresso de 23 de fevereiro de 1915]
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Fonte:
- SANTOS, Luisa Cristina dos. SANTOS, Nelson Rodrigues dos. Escritoras Brasileiras do Século XIX (Antologia de Textos Representativos). In BONNICI, Thomas (org.). Anais do XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.

Lucie Laval (19 Abril 1895 – 21 Janeiro 1914)

Lucie Laval nasceu em Dakar, Senegal, em 19 de abril de 1895, filha de Maurício Laval e Alix Laval. Nascida na África do Norte, quando seu pai ali estava no desempenho de suas funções de diplomata francês, Lucie voltou à França para receber instrução primária. Deixou o seu país em 1908, aos 13 anos de idade, vindo para o Brasil. Com seus pais, residiu algum tempo em Minas Gerais, para, em 1911, fixar residência em Curitiba, onde viveu três anos incompletos, no entanto repletos de fulgurantes lampejos de sua criação poética.

A menina inteligente, só aqui, aos 17 anos, encontrou sua alma de poetisa, e o livro “Dans l’ombre”, com os seus quarenta e nove poemas, foi escrito de um jato, de abril a outubro de 1913, em Curitiba, e publicado postumamente no Rio de Janeiro em 1924.

A sua descobridora foi a intelectual Georgina Mongruel que, acompanhada pela moça, compareceu a uma reunião do Centro de Letras do Paraná.

Morreu, no dia 21 de janeiro de 1914, em Curitiba, vítima de moléstia cardíaca, aos 19 anos, “pedindo ao médico, já às portas da morte, que a salvasse, porque ela queria viver, queria cantar todas as estações da vida e a sua página única era apenas uma primavera cheia de tempestades”.
Obra:

Em Curitiba, colaborou nos jornais e revistas da época (Gazeta do Povo, Diário da Tarde, Revista do Centro de Letras do Paraná, Álbum do Colégio Renascença, Senhorita). Em Ponta Grossa, seus inspirados poemas enriqueceram algumas páginas do Diário dos Campos, periódico que, tempos depois, critica o Centro de Letras do Paraná pelo injusto esquecimento da obra de Lucie Laval.

Lucie Laval, nos três anos em que viveu no Paraná, particularmente nos sete meses (abril a outubro de 1913) em que descobriu a sua alma de poetisa, conquistou para sempre um lugar entre os bons poetas paranaenses. Apesar da pálida luminosidade física, legou-nos o brilhantismo da poesia triste, porém consoladora. A palavra, artifício do existir ilimitado, foi (re)construída na busca de traçar na convulsão interior de sentimentos um caminho de reflexão e entendimento de usa própria essência.

Ressonâncias melancólicas, estrofes diáfanas de versos sem alegria, mas indisfarçadamente belos. Num abismo de contrastes de percepções e encantos a mergulhos solitários nos momentos – silêncio. A poesia de Lucie Laval despetala-se em instantes de sedutor lirismo físico a contatos profundos com o “eu”, desnudando-o na ausência do humano, em confissões apenas temerosas da majestade dos céus.

A solidão, a tristeza, a amargura na percepção do outro tornam-se, nas linhas poéticas de Lucie Laval, sentimentos ternos e fogem de sua acepção negativa ao revelarem o perfil de uma alma sofredora e de uma aparência frágil.

Em sua poética, a solidão justifica, não é justificada. Preferindo a ausência aos momentos de presença, o que perturba e “agita” o eu-lírico é aquilo que o faz perceber-se, sentir-se e envolver-se no outro. A solidão é exposição de sentimentos dolorosos, mas saudáveis. A presença vem causar a esse equilíbrio um sofrimento tumultuado, uma ilusão, uma percepção falsa.

A sensibilidade da emoção jovem aliada à capacidade de elaboração de poemas em atmosferas de melancólica ternura e esperançada tristeza tornam Lucie Laval poeta de sutil criatividade e incontestável harmonia sentimental.

Fontes:
– CENTRO Feminino de Cultura. Um século de poesia: poetisas do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial do Estado do Paraná, 1959.
– SANTOS, Luísa Cristina dos. “Lucie Laval”. Ponta Grossa: Diário da Manhã, 17 de junho de 2001.
Luisa Cristina dos Santos.

domingo, 5 de julho de 2009

Trova XXXVII

Trova sobre charge de Márcio Diemer

Lupe Cotrim Garaude (Cristais Poéticos)


SAUDADE

(a Guilherme de Almeida)

A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.

Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.

Saudade, irreversível tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço

num sonho vão de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que é perdida.
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Ó QUE IMENSO DISSIPAR

Ó que imenso dissipar
por assim gostar de tudo.

Com o meu ser estendido,
tenso ao apelo do mundo,
pulsando seu movimento
vou erguendo esta prisão.

Os pés retidos, imóveis,
pelos choques de atração
com a alma paralisada
contendo tanta largueza
e aspectos de vastidão.

Por que ter tantos sentidos,
o sentimento tão apto
e o coração vulnerável?

Por que o sentir sem repouso
num sentir que é um rapto,
exausto de comunhão?

Um pobreza qualquer,
pobreza em voz, em beleza,
em querer, em perceber,
uma pobreza qualquer
onde eu possa enriquecer.
===============

DE PEDRA

— Eu sou de pedra, me dizias,
a defender tua distância.

E esquecias o musgo,
essa tua epiderme de ternura,
e o teu corpo de carinhos,
num horizonte de água e terra,
a te envolver na vida.

— Eu sou de pedra — insistias.
— Pesado. Denso. Inalterável.
De estofo eterno.
Apenas estou, não sofro;
se algum gesto me ferir,
eu sou duro;
quebrarei o gesto sem sentir.

E esquecias
que és pouso de borboletas,
alicerce de flores,
abraço de raízes,
vulnerável em tudo
do que em ti pertence
e minha mão possui, acaricia.

— Eu sou de pedra.
E esquecias, esquecias.
=======================

DESTINO MINERAL

Sou feita de uma carne perecível
futuro de outra carne, sem nenhuma
eternidade. A rocha é uma invencível
parte da terra; que ela me resuma

no seu mesmo destino mineral.
A solidez ausente que tortura
nossa matéria frágil, no final
se renderá: serei de pedra dura.

Nunca mais chorarei nessa passagem
de poesia. Com nítida certeza,
recorto nas montanhas minha imagem

mais que raiz, expressa na beleza.
Pela terra em que não me desfiguro,
hei de surgir um dia em cristal puro.
=====================

AO AMOR

O que desejas de mim
nunca o dará o lampejo de um momento,
a conquista de um dia da montanha.

Meu corpo — para ti somente —
deve emergir a cada gesto 1ímpido
e profundo deve ser meu futuro
para reter-te e recriar-te permanente.

Sei que em mim te estenderás, não mais disperso,
em desejo e em procura de teu filho
e que todo movimento de meu ser
será o rumo de teu universo.

E por isso temo. No meu sentimento
sofro por ti. Receio
ser larga a hesitação de meu caminho,
ser um mito a conquista da montanha,
ser pobre e fugaz o meu espaço
na extensão que reduz teu infinito.
==================

DE MAR
III

A chuva cai, sem figura,
mantendo espaços vazios
na sua própria textura:
é uma água desfiada.

Diante dela o mar contido
É superfície compacta.
Nele tudo é preenchido,
indo pela mesma água.


Não tem vão ou intervalo
a carne crespa do mar,
mas paredes maleáveis,
bem lisas de penetrar.

A chuva que estende ao mar
os seus dedos insistentes
é uma presença molhada
de tanto se derramar:

o mar guarda uma secura
de quem sabe repetir
em si mesmo seus desígnios;

é seco porque perdura.

Embora suas franjas leves
se esparramem pela areia
toda maré lhe garante
a forma guardada e cheia.

No seu tempo passageiro
mesmo de raio ou trovão
a chuva é o que escorre,
não tem corpo ou duração.

Diante de sua água estreita,
só de perfil, vertical,
o mar estende a planície
tramada em fôrça de sal

e germina suas águas
em permanência e conquista:
sustenta sua espessura
e mantém entranhas vivas.
======================

DE AMOR
(entreato)

POSSE II

Ele — Seduzir o cotidiano pelo corpo.
Penetrá-lo deste brilho longo,
compacto,
onde o cansaço não é tédio
mas úmido intervalo.

A paisagem não sustenta
mais os olhos; estrelas
despojaram-se dos monólogos,
a flor voltou a si, não mais
dizer exausto, a primavera guardou
sua intimidade no discurso
das árvores, e o amor,
esgarçado de imagens,
procurou outro equilíbrio
além da frase, de um silêncio
a outro.

Nem sempre a paz levou-nos
a suas tácitas paragens:
a liberdade aspirou um ser estranho,
em que de novo nos olhássemos.

No corpo prosseguimos
onde o amor parava.
E inventamos. Sem palavras
tornamos nossa a carne da manhã,
a exaurir o tempo, sem fidelidade
alguma, no dia imprevisível,
além do nosso invento.
=======================

MONÓLOGO IV

Ele — É o tempo meu receio, não o amor,
que este perdura. Por novos desígnios
refaz em outro aquilo que não for
mais seu momento: trama outro domínio.
Esta brisa entre nós, este sossego
agudo de desejo, esta presença
alerta, esta carne toda apego
certo se apagam: tempo algum sustenta
ou seduz uma solta intensidade.
É a hora que me assusta: o amanhã
do íntimo ser neutro, e a unidade
uma palavra a mais na posse vã.
O futuro só nasce de um invento:
nós dois, amor, nós somos este tempo.
========================
Fonte:
Antonio Miranda

Lupe Cotrim Garaude (16 Março 1933 — 18 Fevereiro 1970)


Maria José Lupe Cotrim Garaude Gianotti (Lupe é uma palavra formada pela junção das primeiras sílabas dos nomes de seus pais — Lourdes e Pedro) nasceu em São Paulo (SP), em 16 de março de 1933.

Filha de Maria de Lourdes Lins Cotrim e de Pedro Garaude, médico.

Vive por alguns anos em Araçatuba (SP), onde seu pai clinica, e ainda menina transfere-se com a mãe para o Rio de Janeiro, onde estuda no colégio Bennett.

Volta mais tarde a residir em São Paulo para estar mais próxima do pai e integra-se no meio literário paulista. Conclui os estudos secundários no Colégio Des Oiseaux. Forma-se nos cursos de Cultura Geral e de Biblioteconomia no Sedes Sapientiae e estuda línguas e canto lírico em São Paulo

Lança o primeiro livro de poemas, Monólogos do afeto, em 1956, e a seguir Raiz Comum (1959) e Entre a flor e o tempo (1961). Em 1961, faz um programa de TV, que a projeta publicamente.

Inicia em 1963 o curso de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde conhece José Arthur Gianotti, com que viria a se casar. Neste ano publica o quarto livro de poesias, o bestiário Cânticos da terra. Sua quinta coletânea de poemas, O poeta e o mundo, aparece em 1964.

Em 1965 viaja com seu marido, o filósofo José Arthur Giannotti, a Santiago do Chile, onde conhece Pablo Neruda. No ano seguinte forma-se em Filosofia. Em 1967 publica o sexto livro de poesia, Inventos, e passa a integrar o corpo de professores colaboradores da recém-fundada Escola de Comunicações Culturais da USP (hoje ECA), onde leciona Pensamento Filosófico e Estética.

Seu sétimo livro, Poemas ao outro, ainda inédito, recebe por unanimidade o prêmio Governador do Estado em outubro de 1969, ao qual concorriam vários dos mais relevantes poetas brasileiros da época.

Em fevereiro de 1970 escreve um de seus mais graves poemas, “Aceitação à velhice” (ou “A morte é hoje”).

Faleceu prematuramente, em Campos do Jordão (SP), em 18 de fevereiro de 1970.

Domingos Carvalho da Silva citava-a sempre por sua beleza e pela formalidade e clareza de seus poemas.

Teve dois filhos: Lupe Maria Ribeiro Lima e Marco Garaude Giannotti.

Bibliografia: Raiz Comum (1955); Monólogos do Afeto (1956); Entre a Flor e o Tempo (1961); Cântico da terra (1963); O poeta e o Mundo (1964); Inventos (1968); Poemas ao outro (1970); Encontro (1984), antologia pela Ed. Braziliense.

Fontes:
Instituto de Estudos Brasileiros da USP
Antonio Miranda

Jean Cocteau (5 Julho 1889 – 11 Outubro 1963)



Jean Maurice Eugène Clément Cocteau (Maisons-Lafitte, 5 de julho de 1889 — Milly-la-Forêt, 11 de outubro de 1963) foi um poeta, romancista, cineasta, designer, dramaturgo, ator e encenador de teatro francês. Em conjunto com outros Surrealistas da sua geração (Jean Anouilh e René Char, por exemplo), Cocteau conseguiu conjugar com maestria os novos e velhos códigos verbais, linguagem de encenação e tecnologias do modernismo para criar um paradoxo: um avant-garde clássico. O seu círculo de associados, amigos e amantes incluiu Jean Marais, Henri Bernstein, Édith Piaf e Raymond Radiguet.

As suas peças foram levadas aos palcos dos Grandes Teatros, nos Boulevards da época parisiense em que ele viveu e que ajudou a definir e criar. A sua abordagem versátil e nada convencional e a sua enorme produtividade trouxeram-lhe fama internacional.

Nascido numa pequena vila próximo a Paris, Jean Cocteau foi um dos mais talentosos artistas do século XX. Além de ser diretor de cinema, foi poeta, escritor, pintor, dramaturgo, cenógrafo e ator e escultor.

Atuou ativamente em diversos movimentos artísticos, nomeadamente o conhecido Groupe des Six (grupo dos seis) cujo núcleo era Georges Auric (1899–1983), Louis Durey (1888–1979), Arthur Honegger (1892–1955), Darius Milhaud (1892–1974), Francis Poulenc (1899–1963), Germaine Tailleferre (1892–1983). Além destes, outros também tomaram parte, como Erik Satie e Jean Wiéner.

Foi eleito membro da Academia Francesa em 1955.

Homossexual, não escamoteou sua orientação sexual. Manteve estreita amizade com Jean Marais, seu ator preferido. Dentre seus amigos destaca-se Edith Piaf, Jean Genet, etc.

Cocteau realizou sete filmes e colaborou enquanto argumentista, narrador em mais alguns. Todos ricos em simbolismos e imagens surreais. É considerado um dos mais importantes cineastas de todos os tempos.

É famoso pela frase: "Não sabendo que era impossível, foi lá e fez"
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Biografia

Cocteau nasceu em Maisons-Laffitte, uma pequena vila perto de Paris, filho de Georges Cocteau e de Eugénie Lecomte, uma família parisiense proeminente. O seu pai era advogado e pintor amador, que se suicidou quando Cocteau tinha nove anos. Cocteau começou a escrever aos dez anos e aos dezasseis já publicava suas primeiras poesias, um ano depois de abandonar a casa familiar. Apesar de se distinguir em virtualmente todos os campos literários e artísticos, Cocteau insistia que era fundamentalmente um poeta e que toda a sua obra era poesia. Em 1908, com dezanove anos, publicou o seu primeiro livro de poesia, La lampe d'Aladin. O seu segundo livro, Le prince frivole ("O princípe frívolo")), editado no ano seguinte, daria origem à alcunha que tinha nos meios Boémios e nos círculos artísticos que começou a frequentar e em que rapidamente ficou conhecido. Por esta altura conheceu os escritores Marcel Proust, André Gide, and Maurice Barrès. Edith Wharton descreveu-o como um homem "para quem todos os grandes versos eram um nascer-do-sol, todos os por-do-sol a fundação para a Cidade Celestial..."

Durante a Primeira Guerra Mundial, Cocteau prestou serviço na Cruz Vermelha como condutor de ambulâncias. Neste período conheceu o poeta Guillaume Apollinaire, os pintores Pablo Picasso e Amedeo Modigliani e numerosos outros escritores e artistas com quem mais tarde viria a colaborar. O empresário russo de ballet, Sergei Diaghilev, desafiou Cocteau a escrever um cenário para um novo bailado - "Surpreende-me", teria dito Diaghilev. O resultado foi Parade, que seria produzido por Diaghilev em 1917, com cenografia de Picasso e música de Erik Satie.

Expoente importante do Surrealismo, teve enorme influência na obra de outros artistas, incluindo o grupo de amigos de Montparnasse, que ficou conhecido Les Six. O termo "Surrealismo" foi criado por Guillaume Apollinaire no prólogo de Les mamelles de Tirésias , uma obra começada em 1903 e completada em 1917, menos de um anos antes da sua morte. "Se não fora Appolinaire fardado", escreveu Cocteau, "com a cabeça rapada, uma cicatriz na testa e uma ligadura `volta da cabeça, as mulheres ter-nos-iam arrancado os olhos com alfinetes".

Amizade de Raymond Radiguet

Em 1918 conheceu o poeta francês Raymond Radiguet. Colaboraram extensivamente, socializaram e viajaram de férias imensas vezes. Cocteau ficou isento de prestação de serviço militar graças a Radiguet. Como prova de admiração pela poesia do amigo, Cocteau divulgou a sua poesia no seu círculo artístico e promoveu a publicação pela editora Grasset de Le Diable au corps]] (um romance fortemente autobiográfico sobre uma relação adúltera entre uma mulher casada e um homem mais novo) que seria premiado com o prêmio literário "Noveau Monde". Alguns contemporâneos de Cocteau e, posteriormente vários biógrafos e comentadores, especularam sobre a componente romântica desta amizade. Cocteau estava ele próprio consciente desta percepção e esforçou-se sinceramente por desmentir qualquer caráter sexual na sua relação com Radiguet: "Monsieur, acabei de receber a sua carta e tenho que responder apesar do meu desgosto de não conseguir explicar o inexplicável. É possível que a minha amizade com o seu filho e a minha profunda admiração dos seus talentos (que começam a ser cada vez mais óbvios) são de uma intensidade fora do comum, e que visto de fora é difícil compreender até que ponto chegam os meus sentimentos. O seu futuro literário é de importância fundamental para mim: ele é um prodígio. Qualquer escândalo estragaria toda esta fresca inovação. Não pode acreditar por um segundo que eu não a tento evitar por todos os meios ao meu alcance".

Não existe acordo em relação à reação de Cocteau à morte súbita de Radiguet, em 1923. Alguns pensam que teria ficado devastado e se teria abandonado ao vício do ópio. Outros pensam que não o teria afetado indicando que não foi ao funeral do amigo (geralmente Cocteau não ia a funerais) e que imediatamente deixou Paris com Diaghilev para uma apresentação de Les Noces com os Ballets Russes em Monte Carlo. O próprio Cocteau caracterizaria mais tarde a sua reação como de "estupor e nojo". Ter-se viciado em ópio, comentou, foi pura coincidência e deveu-se a um encontro com Louis Laloy, o administrador da Ópera de Monte Carlo. O consumo de ópio e os seus esforços para deixar esta droga afetaram profundamente o seu estilo literário. O seu livro mais famoso, Os meninos diabólicos, foi escrito numa semana durante uma dolorosa tentativa de abandonar o ópio. Em Ópio, diário de uma desintoxicação, narra a experiência da sua recuperação do vício em 1929. O seu relato, que inclui vívidas ilustrações a tinta, alterna entre as suas experiências diárias de ressaca da droga e os seus comentários sobre a sociedade e os acontecimentos do mundo.

A voz humana

As experiências de Cocteau com a voz humana tiveram o seu apogeu na peça de teatro A voz humana. Nela, uma mulher só em palco, fala ao telefone com o seu (invisível e inaudível) amante perdido, que a deixou para casar com outra mulher. O telefone mostrou ser o perfeito adereço que permitiu a Cocteau explorar as suas ideias, sentimentos e "álgebra" da comunicação humana de realidades e sentimentos. A voz humana é enganadoramente simples - apenas uma atriz em palco durante uma hora, falando ao telefone. Na realidade, está repleto de referências dramáticas às experiências Vox Humana dos dadaístas do pós Primeira Guerra Mundial, a La Voix Humaine de Alphonse Lamartine (parte da sua obra Harmonies Poétiques et Religieuses) e aos efeitos produzidos pelo mestres organistas de finais do século XVI que tentaram sintetizar a voz humana, mas que nunca conseguiram mais que imitar um coro masculino à distância.

Cocteau reconheceu, na introdução ao manuscrito, que a peça era motivada, em parte, pela queixas de actrizes de que as suas obras privilegiavam o escritor/encenador, não permitindo que os atores explorassem os seus talentos. A voz humana foi escrita, na realidade, como uma extravagante homenagem a Madame Berthe Bovy. Antes disso havia escrito Orphée, que seria mais tarde um dos seus mais bem sucedidos filmes; depois escreveu La Machine Infernale, provavelmente a sua obra de arte melhor conseguida.

A crítica do seu tempo foi mista, mas a peça representa em resumo o estado de espírito de Cocteau e os seus sentimentos em relação aos seus atores por essa altura: por um lado queria mimá-los e agradar-lhes; por outro, saturado dos seus tiques de "diva", estava pronto para se vingar. É também verdade que nenhuma outra obra de Cocteau inspirou tantas outras criações: a ópera homônima de Francis Poulenc, a ópera buffa de Gian Carlo Menotti, Le Telephone, e a versão em filme de Roberto Rosselini, com Anna Magnani, L'Amore (segmento: Il Miracolo) de 1948. Esta obra tem vindo a atrair um conjunto de grandes actrizes, incluindo Simone Signoret, Ingrid Bergman e Liv Ullmann (em teatro) e Julia Migenes (em ópera).

Segundo Frederick Brown, Cocteau inspirou-se no dramaturgo Henri Bernstein: "Quando, em 1930, a Comédie-Française produziu a sua A voz humana [...] Cocteau desagrou tanto a direita como à esquerda literária, como que dizendo Estou tão à direita como Bernstein, no seu próprio lugar, mas é apenas uma ilusão de óptica: a vanguarda é esferóide e eu terminei mais à esquerda que qualquer outro".

Maturidade

Na década de 1930, Cocteau teve um surpreendente caso com a Princesa Natalie Paley, a linda filha de um Grão Duque da família Romanov, uma modelo, por vezes atriz, anteriormente casada com o costureiro Lucien Lelong. Natalie ficou grávida mas, com grande perturbação para Cocteau e desgosto para ela própria, abortou. As relações mais prolongadas de Cocteau foram com os atores franceses Jean Marais e Edouard Dermit, que Cocteau adoptou formalmente. Cocteau utilizou Marais como ator nos seus filmes L'Éternel Retour ("O Eterno Regresso") (1943), La Belle et la Bête ("A Bela e o Monstro") (1946), Ruy Blas (1947) e Orphée ("Orfeu") (1949).

Em 1940, Le Bel Indifférent, a peça de teatro que Cocteau escreveu para Édith Piaf, teve um tremendo sucesso. Trabalhou também com Pablo Picasso em diversos projetos e fez amizade com inúmeros artistas europeus. Lutou contra o seu vício de ópio por toda a sua vida adulta e foi abertamente gay, embora tenha tido breves e complexos romances com várias mulheres, para além de Paley. Publicou um considerável número de ensaios criticando a homofobia.

Os filmes de Cocteau, que na sua maioria foram escritos e realizados por ele mesmo, fora particularmente importantes para a introdução do Surrealismo no Cinema francês, e influenciaram até um certo grau, o futuro género Nouvelle Vague. Os seus filmes mais conhecidos são Les parents terribles (1948), La Belle et la Bête, (1946) e Orpheus (1949).

Cocteau morreu de enfarte do miocárdio na sua mansão de Milly-la-Foret, em 11 de Outubro de 1963, com a idade de 74 anos, apenas algumas horas depois de saber da morte da sua grande amiga Édith Piaf. Está sepultado na Capela de Saint Blaise des Simples em Milly-la-Foret, em Essone, na França. O epitáfio da sua pedra tumular indica: "Fico entre vós".

Prêmios e distinções

Em 1955, Cocteau foi eleito membro da Académie française e da Académie royale de Belgique. Foi agraciado com o grau de comandante da Legião de Honra (França), membro da Academia Mallarmé, da Academia alemã (Berlim) da Academia americana Mark Twain, presidente honorário do Festival de Cinema de Cannes e da Associação de Amizade França-Hungria, e presidente da Academia de Jazz e da Academia do Disco.

Obra literária
Poesia
La Lampe d'Aladin (1909)
Le Prince frivole (1910)
La Danse de Sophocle (1912)
Ode à Picasso - Le Cap de Bonne-Espérance (1919)
Escale. Poésies (1917-1920)
Vocabulaire (1922)
La Rose de François - Plain-Chant (1923)
Cri écrit (1925)
L'Ange Heurtebise (1926)
Opéra (1927)
Mythologie (1934)
Énigmes (1939)
Allégories (1941)
Léone (1945)
La Crucifixion (1946)
Poèmes (1948)
Le Chiffre sept - La Nappe du Catalan (em colaboração com Georges Hugnet) (1952)
Dentelles d'éternité - Appoggiatures (1953)
Clair-obscur (1954)
Paraprosodies (1958)
Cérémonial espagnol du Phénix - La Partie d'échecs (1961)
Le Requiem (1962)
Faire-Part (póstumo) (1968)

Romance
Le Potomak (1919, edição definitiva: 1924)
Le Grand écart - Thomas l'imposteur (1923)
Le Livre blanc (1928)
Les Enfants terribles (1929)
La Fin du Potomak (1940)

Teatro
Parade, ballet (música de Erik Satie, coreografia de Léonide Massine) (1917)
Les Mariés de la tour Eiffel (música de Georges Auric, Arthur Honegger, Darius Milhaud, Francis Poulenc e Germaine Tailleferre) (1921)
Antigone (1922)
Roméo et Juliette (1924)
La Voix humaine (1930)
La Machine infernale (1934)
L'École des veuves (1936)
Edipe-roi. Les Chevaliers de la Table ronde (1937)
Les Parents terribles (1938)
Les Monstres sacrés (1940)
La Machine à écrire (1941)
Renaud et Armide. L'Épouse injustement soupçonnée (1943)
L'Aigle à deux têtes (1944)
Le Jeune Homme et la Mort, ballet de Roland Petit (1946)
Théâtre I et II (1948)
Bacchus (1951)
Nouveau théâtre de poche (1960)
L'Impromptu du Palais-Royal (1962)
Le Gendarme incompris (póstumo, em colaboração com Raymond Radiguet) (1971)

Filmografia
Le Sang d'un Poète (Sangue de um Poeta) (1930)
L'Eternel Retour (1943)
La Belle et la Bête (A Bela e a Fera) (1946)
L'Aigle à Deux Têtes (A Águia de Duas Cabeças) (1947)
Les Parents Terribles (1948)
Les Enfants Terribles (1950) (não creditado)
Coriolan (1950)
Orphée (pt.: Orfeu)(1950)
La Villa Santo Sospir (A Vila Santo-Sospir) (1952) (documentário)
8x8: A Chess Sonata in 8 Movements (1957) Co-director, Experimental)
Le Testament d'Orphee (O Testamento de Orfeu) (1959)

Fonte:
Wikipedia