quinta-feira, 8 de abril de 2010

Carlos Drummond de Andrade (No Ônibus)


A senhora subiu, Deus sabe como, em companhia de dois garotos. Cada garoto com sua merendeira e sua pasta de livros e cadernos indispensáveis para a aquisição das preliminares da sabedoria. (Quando chegarem ao ensino médio, terão de carregar uma papelaria e uma biblioteca?) O ônibus não cabia mais ninguém. A bem dizer, não cabia nem o pessoal que se espremia lá dentro em estado de sardinha. Na massa compacta de gente, ou de seções de gente que a vista alcançava, percebi aquelas mãozinhas tentando segurar as pastas atochadas.

- Deixa que eu carrego - falei na direção de um dos braços a meu alcance. Na qualidade de passageiro sentado, é irresistível minha inclinação para carregar embrulhos alheios. Estou sempre a oferecer préstimos, movido talvez pelo remorso de viajar sentado, e de só ceder lugar a pessoas mais idosas do que eu - pessoas que raramente aparecem no ônibus, de sorte que...

- Eu carrego pra vocês - insisti, executando um movimento complicado, para enxergar os rostos dos garotos. O menor olhou-me com surpresa e hesitação, porém o mais velho estendeu o braço, e o primeiro, depois de uma cotovelada ministrada pelo segundo, imitou-o. Fiquei de posse de duas bojudas pastas escolares, que acomodei da melhor maneira possível sobre os joelhos. Conheço perfeitamente a técnica de carregar embrulhos dos outros. Deve-se colocá-los de tal modo que fiquem seguros sem que seja necessário pôr a mão em cima deles. São coisas sagradas. Não devemos absolutamente lançar-lhes um olhar, mesmo distraído. O perfeito carregador de embrulhos do próximo deve olhar para fora do ônibus, aparentemente observando um eclipse ou uma regata, porém na realidade com o pensamento fixo naquele pacote, ou bolsa, de que é depositário.

Não vá a coisa cair no chão e quebrar. Não vá alguém subtraí-la. Quando até a Santa Casa é assaltada, tudo é possível. Mas que conterá mesmo esse embrulho? Seria feio manifestar curiosidade, e perigoso abrir um volume que não nos pertence. Mas que gostaríamos de saber o que tem lá dentro, isto, humildemente o confesso, em meu nome e no do leitor, é pura, descarnada verdade.

Bom, tratando-se de pastas escolares, não havia segredo a descobrir. A voz da senhora saiu daquele bolo humano:

- Agradece ao moço, Serginho. Agradece, Raul.

Raul (o mais crescido) obedeceu, mas Serginho manteve-se reservado.

Mal se passaram alguns minutos, senti que a pasta de cima escorregava mansamente do meu colo. Muito de leve, a mão esquerda de Serginho, escondida sob um lenço, puxava-a para fora. Compreendi que ele prezava acima de tudo a sua pasta, e deixei que a tirasse. A mãe ralhou:

- Que é isto, Serginho?! Deixe a pasta com o moço.

Serginho duro.

- Serginho, estou lhe dizendo que deixe a pasta com o moço.

Teve de levantar a voz, para torná-la enérgica. Passageiros em redor começaram a sorrir.

Tive de sorrir também.

Muito a contragosto, Serginho voltou a confiar-me sua querida pasta. Um estranho mereceria carregá-la? E se fugisse com ela? Visivelmente, Serginho suspeitava de minha honorabilidade, e os circunstantes se deliciavam com a suspeita.

Mais alguns quarteirões, Serginho repete a manobra. Desta vez é radical. Toma sua pasta e a de Raul. Raul protesta:

- Deixa com ele, seu burro. Não vê que eu não posso segurar nada?

A mãe, em apoio de Raul, exproba o procedimento de Serginho. Este capitula, mas em termos. Só me restitui a pasta do irmão. A sua não correrá o risco. Coloca-a sobre o peito, sob as mãos cruzadas, como levaria o Santo Gral.

- Este menino é impossível. Desculpe, cavalheiro. Não vejo o rosto da senhora, mas sua voz é doce, e compensa-me da desconfiança do Serginho. Sorrio para este, enquanto retribuo: "Oh, minha senhora, por favor. Até que seu filhinho é engraçado."

Engraçado? Serginho faz-me uma careta e ferra-me um beliscão. A assistência ri. A mãe ferra outro em Serginho, que dispara a chorar. Bonito. É no que dá carregar embrulho dos outros.

Entre as diferentes maneiras de chorar em público, Serginho escolheu a que rende maior dividendo.

Botou a boca no mundo, como se cantasse na Ópera, e, nos intervalos, denunciou-me. Eu é que o tinha beliscado, quando tentara impedir-me de violar a pasta de seu irmão Raul. E mostrava a pasta entreaberta, em desordem. A senhora mudou de fisionomia, censurando-me com voz alterada:

- Francamente, cavalheiro! Nunca pensei que o senhor tivesse tamanha coragem!

- Perdão, minha senhora, eu...

- Perdão coisa nenhuma. É inútil explicar. Meu filho tinha razão de não querer deixar as pastas com o senhor. Vir com partes de gentileza para segurar as pastas das crianças, e depois vasculhar o que tem lá dentro! Um senhor de barbas brancas fazer uma coisa dessas!...

Os passageiros em redor acompanhavam com o máximo interesse o desenvolvimento da cena. No olhar de todos, a maligna curiosidade, o prazer de ver o próximo em situação grotesca acendia um lume especial. Não precisei encará-los para observar a reação. Senti que estavam de olhos acesos, saboreando a desmoralização do senhor respeitável.

- Minha senhora - retruquei -, o seu garoto é um imaginativo, simplesmente.

- Mentiroso? O senhor tem o atrevimento de chamar meu filhinho de mentiroso?!

- Imaginativo, minha senhora. Eu disse i-ma-gi-na-ti-vo.

- É a mesma coisa. Imaginativo é mentiroso com água-de-colônia. Fique sabendo que eu educo meus filhos no jogo da verdade.

- Não duvido. Pergunte ao Raul, que viu tudo. Confio no Raul.

- Que Raul? Que intimidade é essa com meu filho mais velho? Desde quando o senhor está autorizado a tratá-lo de Raul?

- Ouvi a senhora chamá-lo por esse nome.

- Eu posso chamá-lo assim, mas um estranho tem lá esse direito? Raul, meu bem, você viu esse senhor abrir sua pasta e dar um beliscão nó Serginho?

Raul, moita.

- Diz, meu coração, o homem abriu sua pasta, não foi? Depois deu um beliscão no Serginho, não deu?

- Perdão - arrisquei -, a senhora está forçando a resposta de seu filho.

- O filho é meu, não tenho que lhe dar satisfação. O senhor é que está perturbando o interrogatório. Anda, Raul, diz logo o que você viu, menino!

Nada de Raul abrir a boca. Apelei para ele:

- Escute aqui. Você disse a seu irmão que devia deixar a pasta comigo. Depois disso, você viu, você percebeu qualquer gesto de minha parte, tentando abrir a pasta? Não tenha medo de falar.

Raul respondeu, firme:

- Vi, sim senhor. Vi também a hora que o senhor beliscou meu irmão.

- Não é possível!

Raul não disse mais nada. Nem precisava. Eu estava condenado no tribunal das consciências. Envolveu-me a reprovação geral, expressa em murmúrio que soava a meus ouvidos como um brado coletivo: "Crucificai-o!" Todo o ônibus contra mim, como demonstrar minha inocência?

Foi quando apareceu o defensor público. Por mais que se descreia da generosidade das multidões, de dez em dez anos surge um defensor público em socorro dos oprimidos. Era um homem robusto, sangüíneo, de voz forte:

- Calma, senhores e senhoras. Não podemos condenar este passageiro pela simples declaração de duas crianças. Temos de proceder a uma averiguação, temos de ouvir os adultos presentes.

- O senhor também duvida da palavra de meus filhos?! - protestou a mãe ofendida. - Não faltava mais nada. E que é que o senhor tem com isso?

- A senhora tenha a bondade de calar-se, senão vai tudo para o Distrito.

- O senhor é autoridade para nos prender?

- Sou a voz do povo, madame. Não posso ficar calado quando os direitos do cidadão sofrem uma ameaça.

- Comunista é que o senhor é. Subversivo! Motorista, pára esse ônibus que tem um subversivo dentro!

- Pára! - gritaram uns.

- Não pára! - gritaram outros.

- A senhora está muito enganada. Pensa que intimida, me chamando de subversivo? Sou democrata-cristão e estou ao lado da justiça. Senhores e senhoras, alguém viu esse cavalheiro bulir na pasta do garoto e dar o beliscão?

Ninguém respondeu. Todos falavam ao mesmo tempo e o ônibus voava. A senhora explodiu:

- Covardes! Ninguém para defender uma mulher com seus dois filhos inocentes!

Aí, manifestou-se o defensor de mulheres e filhos inocentes, outra raridade cíclica, interpelando o defensor público. Este respondeu à altura. A coisa engrossou. O sinal fechou.

O ônibus estacou. Não sei como, abriu-se a porta dos fundos e, também não sei como, aproveitando a confusão, fugi. Da rua, ainda ouvi a senhora indignada:

- Pega! Pega! Ladrão de pasta!

Carregar embrulho dos outros, eu, hem? Nunca mais.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Criança d’agora é fogo. Editora Record. 5a. edição. Rio de Janeiro - São Paulo, 1999.

Carlos Drummond de Andrade (Livro de Poesias)



A CASA DO TEMPO PERDIDO

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.
O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

A CORRENTE

Sente raiva do passado
que o mantém acorrentado.
Sente raiva da corrente
a puxá-lo para a frente
e a fazer do seu futuro
o retorno ao chão escuro
onde jaz envilecida
certa promessa de vida
de onde brotam cogumelos
venenosos, amarelos,
e encaracoladas lesmas
deglutindo-se a si mesmas.

LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

IMPORTÂNCIA DA ESCOVA

Gente grande não sai à rua,
menino não sai à rua
sem escovar bem a roupa.
Ninguém fora se escandalize
descobrindo farrapo vil
em nossa calça ou paletó.

Questão de honra, de brasão.
Ninguém sussurre:
A família está decadente?
A escova perdeu os pêlos?
A fortuna do Coronel
não dá pra comprar escova?

Toda invisível poeirinha
ameaça-nos a reputação.
Por isso a mãe, sábia, serena,
sabendo que sempre esqueço
ou mesmo escondo, impaciente,
esse objeto sem fascínio,
me inspeciona, me declara
mal preparado para o encontro
com o olho crítico da cidade.

E firme, religiosamente,
vai-me passando. repassando
nos ombros, nas costas, no peito, nas pernas
na alma talvez (bem que precisava)
a escova purificadora.

FIM

Por que dar fim a histórias?
Quando Robinson Crusoé deixou a ilha,
que tristeza para o leitor do Tico-Tico.
Era sublime viver para sempre com ele e com Sexta-Feira,
na exemplar, na florida solidão,
sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui.
Largaram-me entre marinheiros-colonos,
sozinho na ilha povoada,
mais sozinho que Robinson, com lágrimas
desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico.

PAVÃO

A caminho do refeitório, admiramos pela vidraça
o leque vertical do pavão
com toda a sua pompa
solitária no jardim.
De que vale esse luxo, se está preso
entre dois blocos do edifício?
O pavão é, como nós, interno do colégio.

QUERO ME CASAR

Quero me casar
na noite na rua
no mar ou no céu
quero me casar.

Procuro uma noiva
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.

Depressa, que o amor
não pode esperar!

SENTIMENTAL

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas,
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."

A LEBRE

Apareceu não sei como.
Queria por toda lei
desaparecer num relâmpago.
Foi encurralada
e é recolhida,
orelhas em pânico,
ao pátio dos pavões estupefatos.
Lá está, infeliz, roendo o tempo.
Eu faço o mesmo.

José Lins do Rego (Eurídice)



Eurídice (1947) – Romance em que o autor deixa de lado as intenções regionalistas.

O romance é dividido em 2 partes. A primeira descreve a infância dramática da personagem principal. A segunda a sua adolescência afetada pelo drama da infância.

Este romance deveria ser lido inteiramente. A leitura é muito agradável e facilitada pelos capítulos curtos. Parece ter havido a intenção de permitir que o livro fosse lido num transporte coletivo ou em viagens curtas.

Primeira parte.

O cenário é a cela de um presídio no Rio de Janeiro.A personagem principal é o prisioneiro Julio, 20 anos de idade, estudante de direito. Na falta do que fazer resolve escrever sobre sua vida e dizer só a verdade.

O companheiro de cela, um homem taciturno a quem ele falou uma única vez sobre seus escritos e teve resposta enigmática sobre as boas intenções de um tio de Júlio que esconderiam algo e isso será uma preocupação constante. Não mais se falaram. Este companheiro irá se suicidar quando estiver próximo do término da pena, para fugir de responsabilidades.

Júlio, filho temporão, tem duas irmãs e a mãe D.Leocádia uma mulher amarga que demonstra desamor doentio pelo filho temporão. O filho temporão causava a ela um constrangimento. Talvez a coincidência do nascimento com a falência dos negócios do pai tenham agravado o problema afetivo. Desejava que ele não houvesse vingado. O pai morre pouco depois.

Isidora, a irmã mais moça, dá a ele todo o amor que a mãe nega. Ela fica noiva de um médico, Dr. Luiz, com total apoio da mãe, ganha posição privilegiada e provoca a inveja da irmã mais velha, casada contra a vontade da mãe. Muitas brigas ligadas a herança ocorrerão, inclusive na justiça.

Júlio direciona para a irmã o amor que seria para a mãe, com muito mais intensidade do que seria o normal. Ama Isidora de forma doentia. Na mesma medida que ama a irmã ele odeia o noivo que considera estar roubando o amor que é dele.

O repúdio e a aspereza da mãe deformará a personalidade de Júlio de forma terrível. O amor que a irmã lhe dedica não atenuará essas deformações e o amor que Júlio lhe tem também é doentio.

Metade dos escritos na cela é para descrever o drama do menino de dez anos implorando, sem sucesso, uma demonstração de carinho. É inimaginável o que se passa na mente dessa criança.

A mãe de Júlio não aplica a ele um único castigo físico e, no entanto a distancia que obriga o filho a manter dela, com a sua frieza, é talvez infinitamente mais dolorosa.

É impossível reproduzir. Uma criança de dez anos com um enorme sentimento de culpa. Tenta resolver seus problemas fugindo de casa, mas é logo levado de volta. Depois, com dez anos, descobre que a morte pode ser solução para os problemas. Isto parece lhe dar certa paz, funcionando como uma espécie de recurso disponível. Esta descoberta lhe permite cogitar seriamente de soluções radicais. Tendo a morte como um refugio pode se permitir qualquer coisa.

O amor por Isidora também é um sentimento bem complicado envolvendo um ciúme doentio da irmã e o ódio pelo noivo, o Dr. Luiz.

O relacionamento da irmã com o noivo, durante o período de noivado até o casamento desencadeia uma confusão na cabeça do menino e o amor pela irmã parece ter algo de incestuoso, transformando-se algumas vezes em ódio e, após o casamento, quando a irmã morre de parto, ele demonstra uma estranha indiferença, talvez por se sentir traído, enganado.

Laura, a outra irmã de Júlio, casada, é mulher invejosa e rancorosa, inconformada com o que considerava perseguições contra ela e contra o marido Jorge.

Julio tem, ainda, a tia Catarina, irmã de Leocádia, casada com um juiz, Dr. Fontes. É totalmente diferente da irmã. Mora em Alfenas, está bem financeiramente e veio para ajudar nos preparativos do casamento. Pessoa muito boa e habilidosa no trato com as pessoas resolve todos os desentendimentos que surgem na família e ainda cuida do dia a dia.

Dr. Fontes, juiz, é pessoa muito considerada na família. Nas questões sérias depende da opinião mulher, tia Catarina.

Acabam levando Júlio para alfenas, e no tempo certo mandam-no para o Rio de Janeiro fazer a faculdade de Direito e irá morar numa pensão do Catete.

Segunda parte.

A segunda parte dos escritos falam de sua vida de jovem universitário com os problemas normais de todo rapaz. A dona da pensão é D. Glória que tem três filhos, Jaime, Noêmia e Eurídice, moça sem juízo e que mantém um caso com Faria, companheiro de quarto de Júlio.

Jaime, muito trabalhador, pouco fica em casa, apaixonado por futebol, zela pelo comportamento das imãs. Inspira respeito e certo temor.

Os pensionistas de D. Glória são:

1) D. Olegária, meia idade, gosta de poesia, sonha com casamento, conhece um um vigarista que lhe propõe casamento e leva todas as suas economias. As censuras ao seu comportamento e o constrangimento leva a muitas brigas na pensão. Ela acaba se mudando e pouco depois se tem notícia do seu suicídio.

2) O Sr. Campos, conhecido como Campos das Águas, funcionário do Dept de Águas.

Meia idade, mora lá há dez anos, quando chegou fez proposta de casamento para D. Glória que recusou. Considera as moças como filhas. Vangloria-se do seu sucesso com as mulheres e, ainda hoje, namora uma ou outra jovem. Gosta dos poetas clássicos e se considera um poeta inspirado. Já teve coluna em jornais importantes dirigidos por um Sr. Brício. É conhecido e considerado na Cidade e popular na zona boêmia.

O senhor Campos irá ser um conselheiro de Julio. Carregou-o algumas vezes para a zona boêmia. Estas primeiras experiências que são normalmente complicadas, para Júlio foram terríveis por haver alguma estranha associação com a figura da irmã Isidora que não o deixa. Esses fracassos lhe causavam algum constrangimento.

3) Faria, último ano de direito, escolhido pelo tio Fontes para cuidar de Júlio, seria seu colega de quarto. Veste-se com apuro, preocupa-se somente com os estudos, orienta e aconselha Júlio que o tem como modelo. É admirado e respeitado na pensão e na faculdade pelo seu comportamento irrepreensível.

Júlio observa um relacionamento do companheiro com Eurídice e finge dormir. No início, fingia dormir para não perturbar. Depois passa a sentir uma forte excitação que irá dominá-lo completamente. Passa a odiar o companheiro hipócrita e a desejar Eurídice de forma incontrolável. Eurídice gostava de Faria e para tê-la cogita seriamente da morte do rival. Nessa ocasião Faria começa a participar de um movimento político, o integralismo, que visava combater o comunismo e tomar o poder pela força. Morre numa dessas tentativas.

Eurídice mostra-se indiferente e ela que, já antes da morte de Faria, dera esperanças a Júlio, vai ao seu quarto algumas vezes apenas para conversar e depois recua definitivamente deixando-o transtornado.

Eurídice torna-se uma obsessão e Júlio não consegue pensar em mais nada. Marcam um encontro num bosque. Júlio tenta beijá-la e ela se afasta.

Júlio é possuído por um ódio intenso que domina todo o seu ser. Vem-lhe à mente todo o drama familiar. Ele a agarra e termina por esganá-la.

Quando vemos na televisão a brutalidade de um crime passional, ficamos desejando saber o que passa pela cabeça dum assassino naquele momento. O último capítulo é esclarecedor.

Texto extraído do último capítulo

A ÚLTIMA FUGA DE EURÍDICE

Fiquei em desespero. Uma ânsia irresistível de sair, de andar, me arrastou da cama ainda com a madrugada.

A cidade dormia, e quando cheguei ao Largo do Machado, os pássaros tiravam as suas alvoradas. Quis absorver-me ao olhar as coisas quietas, mas era impossível. Eurídice, sempre Eurídice a cercar-me, a atormentar-me. Ficara-me o cheiro do seu corpo, como uma nódoa no meu olfato. E este cheiro persistia, avançava sobre mim em ondas que me envolviam.

Andei muito, cansei-me de atravessar a praça. Agora muita gente aparecia de todos os cantos. Os bondes passavam cheios. Detive-me a olhar as criaturas que transitavam, com o intuito de comparações.

Estava todos pacificados. Nenhum carregaria aquela obsessão que me escravizava. Voltei para casa, e encontrei os hóspedes ao café. O velho Campos se espantara de minha saída tão cedo.

Expliquei-me com a necessidade que tivera de levar um conhecido de Minas ao trem. Mas Eurídice me olhava com tal malícia que me arrasou a serenidade com que procurava fingir. Tremia nas minhas mãos a xícara . E não ouvia nada da conversa da mesa. Sei que D. Glória falava de D. Olegária, e que Noêmia sorria. Eurídice me olhava.

E quando a casa ficou silenciosa e vazia, veio ela ao meu quarto. E tranqüilamente falou-me de fatos corriqueiros. Alheia inteiramente àquela outra Eurídice que escapara de minhas mãos na noite anterior.

Esforcei-me para fingir a maior indiferença um domínio absoluto de nervos. Um cheiro infernal me cobria o raciocínio. Quase nada lhe disse, mas marcamos um passeio para a tarde.

D. Glória chamou-a em tom de advertência. E como não podia permanecer no quarto, saí. Não encontrei ninguém para conversar. O mal que andava dentro de mim crescia, a cada instante. Lembro-me de que Faria ficou comigo, a censurar-me.

Lembro-me de que Isidora, triste e abandonada, me apareceu, e de minha mãe furiosa, de todas as mágoas que se avivaram naquelas horas de ansiedade.

E o estranho é que aquele cheiro de Eurídice, que não se consumia, em vez de exaltar-me para o amor, conduzia-me para um ódio cruento. Acredito que foram estas horas de espera, para o encontro marcado pela mulher que amava, os mais terríveis instantes de minha vida.

Curioso em tudo isto é que, ao passo que se aproximava a hora, se apoderava de mim uma calma esquisita. E assim, ao ver Eurídice, no ponto dos bondes de Santa Teresa, aproximei-me, sem espécie alguma de medo.

Estava senhor de mim, ao atravessar o viaduto, mas quando o seu corpo quente chegou-se ao meu, no aperto do bonde, foi como se uma faísca elétrica se despencasse sobre a minha cabeça. Um fogo misterioso ferveu o meu sangue nas veias. Não sei se ouvia a fala de Eurídice. Tinha como que perdido toda a consciência.

Senti que andávamos no meio de árvores e vi o sol por cima de nossas cabeças. Voltara a mim para ver Eurídice ao meu lado. E recordo-me de seus olhos verdes, e mais do que nunca o cheiro de seu corpo se expandia, sufocava-me.

Andamos um pedaço pela mata sombria. Havia cigarras cantando, ouvia bem o trinado de pássaros e o rumor de nossos pés pelas folhas secas. Agora o que existia em mim era uma mistura de ira e amor, de asco e de desejo indomável.

Eurídice falava, falava manso, e a sua voz foi me arrastando para uma espécie de precipício. Queria fugir e não podia. E nos sentamos num recanto escondido. Ouvi bem o que ela falava de Faria, e o seus olhos estavam molhados. Procurei beijá-los, e ela fugiu de minha boca. Então, em mim se desencadeou uma fúria que não era uma vontade minha.

A fala de Eurídice mais ainda me exasperava. Ouvi-a como se fosse a voz áspera de minha mãe. Ao mesmo tempo as palavras pareciam sair da boca de Isidora. Por fim calou-se, e o calor da tarde de março se diluía no correr manso do riacho aos nossos pés. Uma força estranha se apoderou de mim.

O cheiro do corpo de Eurídice subia, me afogava. Ela estava ali, quieta, mole, vencida. E senhor de mim, capaz de vencer todos os obstáculos, debrucei-me sobre ela para esmagá-la.

Eurídice resistiu, quis erguer-se do chão úmido, mas a minha força era de uma energia descomunal. Sabia que a tinha em minhas mãos e que as minhas mãos eram de ferro.

E procurei a boca que fugia, que gritava, e aos poucos tudo foi ficando em silêncio pesado. As minhas mãos largaram o pescoço quente de Eurídice. E ela estava estendida, como na minha cama. O corpo quase nu na terra fria.

E não senti mais nenhum cheiro de seu corpo.

Fonte:
http://www.vestibular1.com.br

Juliana Santini e Rejane Cristina Rocha (Os Risos do Brasil: Trilhas do Cômico na Literatura Brasileira do Século XX) Parte I de II


RESUMO: A literatura brasileira do século XX teve muitas de suas páginas esboçadas pelos traços do cômico que, em suas várias feições e recursos, mostra-se como um dos instrumentos mais eficazes à revisão de valores e desmistificação de cânones historicamente construídos. Traçar um panorama do conjunto criado por essa produção – partindo dos anos que antecedem o modernismo até a pungência do riso contemporâneo – significa não apenas expandir o olhar que se lança sobre essa literatura, tomando como fio condutor a comicidade entrelaçada a tais obras, mas também associar a uma visão diacrônica da história literária brasileira uma perspectiva que permite reinterpretar seus significados.

1. Introdução

Malgrado a posição marginal a que muitas vezes é relegada a produção literária de feições cômicas, é inegável a posição do riso como um dos elementos particularizadores de uma cultura, tecendo um estreito diálogo com o contexto em que se realiza, o que lhe confere um caráter essencialmente histórico. Na cultura brasileira, vislumbram-se claramente os traços de uma tradição constituída a partir do viés cômico, como testemunham as sátiras de Gregório de Matos e Tomás Antônio Gonzaga. Além de autores e obras que fundamentam esta tradição do risível no interior do cânone literário brasileiro, outros escritores não ignoraram os recursos da comicidade na composição de personagens e situações mesmo quando o risível não se manifesta no primeiro plano do texto literário, como se pode notar, por exemplo, na ironia machadiana, na feição caricaturesca de personagens de Aluísio Azevedo ou, na paródia bíblica de Guimarães Rosa.

Essa fecundidade do riso no interior dos mais diversas realizações literárias brasileiras liga-se menos a uma perspectiva ingênua de mero divertimento ou distensão de ânimos do que a um progressivo trabalho de revisão dos valores e estereótipos que se sustentaram em diferentes contextos sócio-políticos. Sob esse aspecto, o cômico mostra-se como excelente instrumento de crítica justamente por promover o deslizamento de significados instituídos por um modelo de discurso sério tomado como canônico – e validado socialmente por representar a voz destituída da loucura e da inconseqüência comumente associadas àqueles que se valem das cores fortes do riso para colocar em evidência tonalidades que forjam uma falsa harmonia.

Partindo dessas considerações, esse trabalho faz um panorama das diferentes formas de realização do cômico ao longo da literatura brasileira no século XX, considerando nuances de composição e transformações formais em sua estreita relação com diferenças estéticas e contextuais inerentes ao curso da história literária brasileira. É necessário que se esclareça que, embora alguns aspectos da comicidade sejam identificados a determinadas décadas ou períodos de tempo específicos, isso não significa que a produção literária deste momento restrinja-se apenas a este aspecto, ou seja, as observações aqui tecidas consideram preponderâncias mas não ignoram diversidades.

2. Caminhos do cômico: de Jeca Tatu ao riso da desesperança

Os últimos anos do século XIX e aqueles que iniciaram o século XX assistiram à composição de uma prosa literária apregoada ao estilo romântico, comprometida com um paradigma de representação corolário do exotismo e do artificialismo que fizeram da literatura do período um modo de reprodução da realidade afetado pelo idealismo acadêmico, impregnado pela influência art nouveau. Nesse contexto, a literatura regionalista encontra no conto sertanejo matéria e instrumento para que se concretize uma espécie de imagem pictórica adornada do habitante das zonas rurais do país, retrato distorcido que, (...) “a pretexto de amor da terra, ilustra bem a posição dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas” (CANDIDO, 1967, p.134).

Essa imagem adornada e mistificada do roceiro domina a cena literária, esboçando-se com outras faces apenas nas páginas de poucos autores, como é o caso de João Simões Lopes Neto, que faz do relato nostálgico do gaúcho um instrumento de revelação da condição marginal a que foi relegado o homem do campo, principalmente a partir das transformações que se iniciaram desde a Proclamação da República e abolição dos escravos e se intensificaram com a industrialização, o êxodo rural e o conseqüente inchaço daqueles que começam a se configurar como centros urbanos de atração econômica.

Mas será Monteiro Lobato o principal responsável pela reconfiguração definitiva desses traços: em 1914, a publicação dos artigos “Velha praga” e “Urupês” no jornal O Estado de São Paulo traz à tona um caipira preguiçoso, decrépito e indolente, despido de toda aura idealizada que o tracejava como forte e íntegro, ícone do equilíbrio entre o homem e a natureza. Embora seja o produto da visão do fazendeiro de café que tomava o caipira como um entrave ao desenvolvimento, o Jeca Tatu não deixa de lançar um feixe de luz sobre a situação de miséria e abandono do sertanejo brasileiro que, desde então, perde suas tonalidades românticas e passa a ser desenhado pela literatura em feições menos distorcidas, traços que, guardadas as devidas proporções, antecipam o regionalismo engajado da década de 30 do modernismo brasileiro.

A síntese imagética da caricatura - que se aproveita de poucos atributos e, por meio de comparações exagera a imagem caricaturada com a finalidade de pôr à mostra os defeitos daquilo que lhe serve de alvo – faz de Jeca Tatu uma imagem símbolo estruturada a partir das idéias de parasitismo e preguiça. Já no início do primeiro artigo, “Velha praga”, Lobato define a mulher do caipira como “sarcopta fêmea”, espécie de parasita causador da sarna, de modo que a natureza predatória do aracnídeo passa a ser associada ao caboclo na medida em que ilustra sua relação com o espaço em que habita, de onde retira sua subsistência até que seja descartado depois de esgotados todos os recursos:

Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar fica a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará a sua estada ali; o mais se apaga como por encanto. A terra absorve os frágeis materiais de choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jeca Tatu ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha. (LOBATO, 1959, p.273).

O atributo do comportamento de um predador é reiterado e reafirmado por Lobato em “Urupês”, palavra que intitula não apenas o segundo artigo escrito pelo autor a respeito do caipira, mas também o livro de contos a ser publicado em 1918, onde foram incluídos os dois textos em questão. Definido o sertanejo como um “urupê”, espécie de fungo que retira todos os nutrientes da árvore em que se aloja, o autor passa a esboçar toda a preguiça do caipira, que se acocora diante das dificuldades e, para não reforçar as paredes de sua habitação paupérrima, prefere escorá-las com uma imagem de Nossa Senhora, para que o poder da santa proteja a habitação.

Se a visão determinista e higienista de Monteiro Lobato não fez justiça ao caipira por ignorar as causas de sua situação marginal – o que o levou a se desculpar posteriormente – é necessário que se atente para a aguda percepção do hiato criado entre a imagem literária idealizada do caboclo e a realidade em que este estava inserido: “Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!” (LOBATO, 1959, p.281). E é justamente a revelação dessa disparidade que fez com que a imagem de Jeca Tatu promovesse uma espécie de renovação do paradigma de representação do caipira na literatura brasileira, já que (...) “a caricatura é máscara que desmascara, enfatizando a dissolução de unidade ou a disjunção no caricaturado (entre aparência e essência, entre forma e conteúdo, entre simulação e realidade)” (LEITE, 1996, p.20).

Enquanto essa reformulação do olhar a ser lançado sobre a imagem do sertanejo serviu-se da caricatura como forma de desmistificação de um modelo desgastado – trabalho caro aos autores pré-modernistas –, a proposta modernista de atualização da linguagem artística e as inclinações política e ideológica decorrentes desse exercício de renovação das artes apontavam para a necessidade de promover uma revisão de cânones e discursos reiterados por uma literatura presa aos moldes europeus. A partir dessa perspectiva, a proficuidade encontrada pelo cômico nos primeiros anos do Modernismo desdobra-se não apenas na intenção de remodelação estética promovida pelos autores que levaram a cabo o projeto de reestruturação artística das formas supostamente estagnadas pela rigidez que se mantinha na permanência do idealismo romântico, mas também no anseio de revisar o paradigma de representação da nacionalidade, ainda corolário das interpretações naturalistas e cientificistas do segundo quartel do século XIX.

A publicação, em 1925, do livro Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, representa a continuidade ou, mais do isso, a realização palpável do conteúdo programático que fundou o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Se, no texto de 1924, o substantivo composto “pau-brasil” fora adjetivado e emprestava toda a sua amplitude de significados à poesia – e, de maneira mais ampla, à estética – que se desenhava no manifesto, aqui, recebe de volta a classificação morfológica original e coloca-se como um rótulo sobre o livro, como se dissesse ao leitor: “isto é pau-brasil”. E sendo metáfora da imagem primeva do Brasil, o primeiro produto de exportação das terras encontradas além mar, a poesia contida no livro transfigura-se, como se propunha no manifesto, no produto interno mais primitivo e representativo do conteúdo nacional, seja em termos estéticos, seja na releitura do passado nacional.

Reinterpretação que já se mostra com toda a sua força na dedicatória do livro: “A Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”. No momento da publicação do texto, esta expressão carregava-se de diversos significados e poderia se referir tanto à viagem realizada pelos modernistas ao interior de Minas Gerais, ocasião em que se permitiu aos brasileiros e ao viajante Blaise Cendrars um novo conhecimento sobre o país, quanto à permanência de Oswald na França, junto ao mesmo Cendrars, que teria despertado no autor de Memórias sentimentais de João Miramar o interesse em “ver com olhos livres” uma realidade já vestida com uma interpretação determinada por diferentes orientações ideológicas, de modo a incutir-lhe um novo sentido.

E é justamente sob esse novo olhar que se coloca mais um significado para a referida dedicatória, este sim mais amplo e intimamente ligado ao projeto “pau-brasil”: a “descoberta do Brasil” a que se refere Oswald projeta-se, assim, para o conteúdo histórico que ordena as nove seções do livro. Trata-se, de fato, de um percurso histórico-geográfico que contempla, sob o prisma da paródia, desde os cronistas que escreveram sobre o Brasil nos séculos XVI e XVII, até a então efervescente cidade de São Paulo, em seus movimentos agitados do princípio do século XX. Sob esse aspecto, a incursão pelo passado nacional acaba por se mostrar multifacetada na medida em que se articula não apenas com a visão do presente em relação ao que se fora, mas também com a construção desse passado a partir de uma estética fundamentada em novos traços.

Nesse ponto, tradição e ruptura aproximam-se pela primeira vez na síntese dos elementos aparentemente díspares que compõem o livro de 1925: entre a realização de recursos poéticos estritamente ligados ao movimento vanguardista de renovação das artes e uma temática que contempla o antigo sem deixar de explicitar o anseio pelo novo, a poesia de Oswald coloca-se como o vértice de um emaranhado temporal em que sincronia e diacronia se entretecem na composição de um novo momento. Sob esse aspecto, a paródia promove uma espécie de entrelaçamento de significados, desmistificando um discurso ideologicamente cristalizado ao mesmo tempo em que lhe confere novas tonalidades: “Ora, o que o texto parodístico faz é exatamente uma re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso. É uma tomada de consciência crítica” (SANT´ANNA, 1999, p.31).

A primeira seção das nove que estruturam o Pau-Brasil de Oswald intitula-se, não por acaso, “História do Brasil”. Em diálogo com a dedicatória da obra – a que já se fez referência – a proposta de narrar o percurso histórico do país mostra-se como uma forma de re-descoberta, irônica e paródica na medida em que instaura um novo ponto de vista, capaz de promover uma importante inversão de perspectivas: por meio da subversão inerente à paródia, a poesia pau-brasil colocaria o colonizado na posição de colonizador, de modo que aquele que fora descoberto, agora, desvende e traga à tona o que o processo de colonização, ao contrário, fez questão de esconder.

Nesse jogo de revelação e ocultamento, os oito cronistas parodiados por Oswald aparecem retratados em seus textos mais característicos, entretecendo-se uma teia em que o fio principal conduz a uma sucessão cronológica que se inicia na descoberta do Brasil, em 1500, e se estende até os liames do processo de independência, três séculos mais tarde. O primeiro texto parodiado é, portanto, a carta de Pero Vaz de Caminha que, como se sabe, comunica ao rei português o descobrimento das terras brasileiras. Com uma estrutura que contém certa inclinação narrativa, os quatro poemas organizados sob o título “Pero Vaz Caminha” – já sugestivo ao ocultar a preposição “de” que fazia parte do nome do autor da primeira carta informativa sobre o Brasil e, em conseqüência, trazer à tona, por meio do verbo “caminhar”, a idéia de um panorama traçado por alguém que faz uma visita de reconhecimento das terras – vão do momento da descoberta, narrado no primeiro poema, à descrição das riquezas femininas das novas terras:

“as meninas da gare”
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E sua vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha (ANDRADE, 1966, p.72)

A transposição de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha para um novo contexto, o do princípio do século XX, evidenciado pelo contraste que se estabelece entre o português arcaico do poema e a colocação de um título ligado ao momento da escritura do poema, traz à tona, em primeiro lugar, a idéia da exploração sexual que se teria instaurado desde o momento em que se iniciou a colonização e se mantinha atuante e revigorada ao longo dos séculos – como bem explicita a professora Vera Lúcia de Oliveira (2002). E já que “o poder do não dito de desafiar o dito é a condição semântica que define a ironia” (HUTCHEON, 2000, p.91), a transposição paródica da carta de Pero Vaz reveste-se de um refinado tom de ironia ao evidenciar um certo discurso de exploração sexual e malícia escondido sob a aparente ingenuidade do olhar estrangeiro.

Do caminhar de Pero Vaz ao regresso a São Paulo do poema “Canto de regresso à pátria”, (ANDRADE, 1966), uma trajetória de re-semantização da nacionalidade instaura-se jocosamente nos liames que se entretecem entre a seriedade estilhaçada de cada texto parodiado e a comicidade que brota da inversão paródica. Se os palmares que substituem as palmeiras românticas trazem à tona toda a crueldade da escravização dos negros que fundamentou o desenvolvimento da nação brasileira e foi obscurecida pela idealização de um passado representado como exótico e harmônico, “o progresso de São Paulo” institui o pólo do presente como um ícone da modernidade dos novos tempos a que tenta se afinar a poesia pau-brasil. A paródia que ata dois tempos em uma única matéria serve de instrumento aos modernistas da primeira fase justamente por estar em consonância com um percurso coeso em que se busca a reformulação do paradigma histórico de representação do Brasil, cujas novas diretrizes seriam orientadas pela desmistificação do discurso dominante que, supostamente, teria ficcionalizado a história em favor da idealização épica do passado. Nesse ponto, a descoberta do passado se colocaria como a manifestação original de uma poesia capaz de congregar novas diretrizes estéticas ao pitoresco local.

No impulso de revisão crítica do passado, a poesia pau-brasil encontra a paródia como forma de desconstrução irônica da história tradicional. Malgrado esse caráter destrutivo, identificado, portanto, à idéia de ruptura, a paródia não anula a tradição, pelo contrário, atua como instrumento de reativação desse mesmo passado, de modo a atribuir-lhe uma nova roupagem, agora proposta pela visão primitivista do princípio do século, que promove uma nova contextualização de seu substrato.

Instituída a reformulação da forma poética, trabalho a que se propuseram os modernistas de 22, a poesia, a partir da década de 30 e, principalmente, com a obra de Carlos Drummond de Andrade, passa a assistir à reafirmação do elemento cotidiano como matéria central do poema, embora tenha na subjetivação das formas de percepção um de seus movimentos mais essenciais. De fato, o eu que se percebe no mundo oscila entre deparar-se consigo mesmo e lidar com o desconcerto da realidade que o envolve, fazer poético que passa pela

(...) aguda percepção de um intervalo entre as convenções e a realidade: aquele hiato entre o parecer e o ser dos homens e dos fatos que acaba virando matéria privilegiada do humor, traço constante na poesia de Drummond. A prática do distanciamento abriu ao poeta mineiro as portas de uma expressão que remete ora a um arsenal concretíssimo de coisas, ora à atividade lúdica da razão, solta, entregue a si mesma, armando e desarmando dúvidas, mais amiga de negar e abolir que de construir. (BOSI, 1997, p.441)

O hiato apontado pelo crítico manifesta uma particularidade da forma humorística, pautada na articulação entre o cômico e o trágico na composição de uma síntese que impregna o riso de um sentimento de compaixão. Essa síntese, definida por Pirandello (1996) como “sentimento do contrário”, instaura um movimento de reflexão capaz de diluir o distanciamento crítico próprio do cômico. Nesse sentido, o humor possibilita certa aproximação entre o objeto do riso e aquele que ri, substituindo a gargalhada pelo sorriso complacente daquele que subitamente se vê envolvido afetivamente com o objeto do riso, justamente por se reconhecer tão vulnerável quanto ele.

Na poesia drummoniana, o humor ata-se justamente à relação entre a percepção cômica de um mundo às avessas e a impotência do eu diante do desconcerto. Poética que ri sem escarnecer, essa expressão lírica mostra um mundo de valores invertidos e, ao mesmo tempo, aponta para a inexistência de soluções que remodelem seus esquadros. Como no poema “Papai Noel às avessas”, em que o revés sugerido pelo título antecipa o itinerário enviesado de um Noel que, na noite de Natal, entra pela porta dos fundos e, ignorando a chaminé, deixa de lado todas as convenções da data para se transformar uma representação metonímica de uma sociedade alheia a qualquer possibilidade de harmonia. Construindo a figura de um Papai Noel que se agacha e surrupia todos os brinquedos de crianças que, ingenuamente, dormem e sonham com “outros natais muitos mais lindos” (DRUMMOND, 1998, p.55), o eu-lírico desconstrói a imagem idílica do ícone natalino e põe em cena o avesso do Natal.

Descontrução que passa, ainda, pela lente da ironia que amplia o absurdo da situação ao apontar o contraste entre a construção harmônica e idealizada do Natal cristão e a realidade dos fatos. O último verso – “Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes” (DRUMMOND, 1998, p.56) - promove uma síntese irônica da incongruência fundamental do poema, ao conceder ao reino vegetal o que seria suposto privilégio da humanidade: as dádivas natalinas. A dimensão trágica da vida se mostra na posição indiferente do homem em relação ao sentimento de afeto trazido pelo Natal, avultando a crueza do comportamento humano justamente por construir uma figura que macula a ternura da criança e retira dela a possibilidade de se encantar com o espírito natalino já que, em lugar dos presentes esperados, restará a mesma desilusão do leitor que vê um Papai Noel que quebra a harmonia da noite.

Essa mesma melancolia misturada ao absurdo cômico da vida rege uma parte da poética de Manuel Bandeira, também afinado à percepção subjetivada dos contrastes que compõem a aparente banalidade cotidiana. No poema “Rondó dos cavalinhos” (BANDEIRA, 1974, p.149), uma situação corriqueira, um almoço no jóquei clube, serve de mote para a reflexão de um eu-lírico que se vê diante do embrutecimento do homem. Na verdade, mais uma vez a ironia serve como instrumento para que dois elementos contrastantes sejam sintetizados: enquanto os cavalos são tratados afetuosamente, o homem é tomado com brutalidade, oposição de sentido reiterada pela estrutura do poema, composto por um estribilho – “Os cavalinhos correndo / E nós, cavalões, comendo...” (BANDEIRA, 1974, p.149) – e quatro dísticos (CANDIDO, 1995).

A polaridade fundadora do poema articula-se à constituição do humor, uma vez que a cena observada passa por um processo que parte da percepção, passa pela descrição e culmina com a reflexão do eu-lírico a respeito da perda do traço humano do próprio homem, o que conduz à falência final de qualquer esperança, já que a alma anoitece enquanto a poesia morre, sem que aqueles que participam da cena descrita se apercebam da humanidade que se escoa. Sob esse aspecto, ainda, colocam-se como componentes do humor a dimensão lúdica alcançada pela repetição do diminutivo que qualifica o animal em contraste ao aviltamento do homem, tomado em sua fragilidade corpórea e instintiva, já que o ato de alimentar-se não é o elemento que definiria a singularidade humana, pelo contrário, é justamente o que faz com que o homem perca sua individualidade e se submeta a um processo zoomórfico.

Transposta para a prosa regionalista das décadas de 30 e 40, essa dimensão melancólica da vida assume nova roupagem na medida em que se impregna das tonalidades da miséria do homem do sertão diante da industrialização e das crescentes transfigurações que daí decorreram. Menos do que a afirmação de um tipo que resumisse os traços do habitante de cada região – como ocorrera na produção do princípio do século -, o regionalismo busca a dimensão humana do espaço em transformação, de modo que a consciência aguda da decadência passa por uma significativa mediação sócio-política no interior da obra literária, o que lhe atribui sua inclinação de crítica e engajamento. Entrelaçado a esse contexto, o humor promove a síntese entre o absurdo cômico do desconcerto e a reflexão sobre as causas que conduziram à perda de identidade do sertanejo, que vê o esfacelamento do mundo em que vive e não é capaz de se encaixar nos esquadros inaugurados pelo progresso.

Tendo como eixo central de estruturação a falência dos engenhos de açúcar diante da modernização da produção e do advento das usinas de açúcar, o romance Fogo morto, de José Lins do Rego, serve-se do humor como instrumento de reflexão acerca das mazelas a que foi legado o sertanejo no nordeste do Brasil. A dimensão trágica da decadência institui-se, aqui, a partir da segmentação de três eixos narrativos: de um lado, coloca-se o mestre José Amaro, seleiro que vive nas terras do Santa Fé por julgar-se dono de um direito adquirido pelo pai, que foi acolhido no engenho por seu antigo dono após apresentar-se fugido por ter cometido um homicídio em outra região; de outro lado, Luís César de Holanda Chacon, o coronel Lula de Holanda, transforma-se em dono do engenho Santa Fé depois da morte do capitão Tomás, seu fundador; por último, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, personagem quixotesco, constitui-se como um ativista político, sustentado pelo trabalho da esposa, Adriana, escarnecido por todos da região por seu comportamento exagerado.

Embora cada um dos personagens empreste seu nome a um capítulo do romance, o desenvolvimento da narrativa institui um eixo temporal comum que os une: a história de criação, apogeu e decadência do engenho Santa Fé define suas trajetórias e marca, de maneiras diferentes, o ponto central da falência do indivíduo e do segmento social que representa. Fundado em 1848 pelo capitão Tomás, o Santa Fé tem o ápice de seu desenvolvimento já em 1850, ano em que se realiza a última pintura na casa grande quando o piano - símbolo de prosperidade e fidalguia - da filha do capitão é transportado para a propriedade. Corridos os anos, institui-se o apoio governamental para o desenvolvimento das usinas de açúcar na região nordeste, em 1875, e o comando do capitão Lula recusa-se a acompanhar os novos moldes do mercado de açúcar o que conduz, já na época da abolição da escravatura, à falência do engenho. Sob esse ponto de vista, é importante que se note que o velho engenho de Lula não é capaz de se adequar o crescente desenvolvimento industrial e sua queda ata-se à falência de cada um dos três personagens.

O fantasma do passado próspero passa a reger os escombros do presente e institui a loucura como meio e fim do percurso da tríade que estrutura o romance. Assim, o capitão Lula enlouquece e tem sucessivas crises convulsivas, sendo que sua doença passa a ser narrada em paralelo com o atavismo de sua propriedade: “Entraram, e o cheiro de mofo da sala de visitas era como um bafo de morte. O piano, os tapetes, os quadros na parede, o retrato de olhar triste de seu pai. O capitão Lula de Holanda pegou no braço da cadeira, e a sua vista escureceu, um frio de morte varou-lhe o coração. Caiu no chão, estrebuchando” (REGO, 1997, p.151). Do mesmo modo, a loucura sonda o personagem José Amaro, tanto na figura da filha Marta quanto no esfacelamento de qualquer possibilidade existência de uma identidade individual que o defina. Seleiro que já não tem no ofício o mesmo apogeu de outrora – pois os meios de produção industrial deslocaram para a cidade os atrativos do comércio e, em conseqüência, a atividade profissional que o definia deixou de existir -, Mestre Amaro é expulso das terras do Santa Fé por Lula e vê cortadas as raízes que o prendiam ao espaço, depois de já ter a dimensão do tempo destruído seu ofício e seu presente: “Agora era aquilo que se via, um engenho de duzentos pés, moendo cana, puxado a besta. Toda a alegria do seleiro se pondo como um sol em dia de chuva. Todo ele enroscava-se outra vez, fechava-se em sombras. E a cara dura, os olhos inchados, a tristeza íntima, eram outra vez o mestre José Amaro” (REGO, 1997, p.63).

À tragicidade atada aos personagens mestre Amaro e Lula de Holanda entrelaça-se a dimensão cômica de Vitorino Carneiro da Cunha, de modo que a amargura e a crescente decadência dos primeiros contrastam com a figura faceira do segundo. Não menos entretecido à dimensão trágica do tempo, Vitorino desenvolve uma trajetória em que essa mesma tragicidade contrasta com os contornos de um mundo criado por sua imaginação, instituindo acentuada comicidade à narrativa pelos traços caricaturescos com que é desenhado:

(continua)

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Fontes:
Enivalda Nunes Freitas e Souza; Eduardo José Tollendal e Luiz Carlos Travaglia (organizadores). Literatura: caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlandia: EDUFU, 2006.
- Imagem = Jornal de Letras, Artes e Idéias. Lisboa, Portugal. janeiro de 2010.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Trova 137 - Carlos Guimarães (Rio de Janeiro/RJ)

Carlos Guimarães (Trovas Humoristicas: Cantigas para Sorrir)


Para mim mesmo enganar
e das tristezas fugir,
eu passo a vida a cantar
CANTIGAS PARA SORRIR.

Ao vê-la na igreja entrar,
bamboleante, os braços nus,
Santo Antônio, em seu altar,
cobre os olhos de Jesus!

Ao vê-lo descer inerme,
em meio a tanto aparato,
disse um verme a um outro verme
- Vou comprar bicarbonato...

"Aqui Jaz Zé das Boêmias".
E os vermes, por precaução,
não permitiram que as fêmeas
visitassem-lhe, o caixão...

A minha sogra é uma bola
e meu sogro já dizia:
- Dorme até sem camisola,
pra fazer economia.

Ante o desquite, maroto,
segreda o primo da Berta:
- Velho casado com "broto",
tem que "dar galho", na certa.

Ao ver a loura passar,
diz um luso muito vivo:
- Espero ainda encontrar
esse "troço" em negativo.

Até parece pilhéria,
ouvir, de certa pessoa,
a informação de que és séria,
só porque não ris à toa...

Ao meu sogro, ninguém logra
vencer em azar, ninguém,
pois atura a minha sogra
e a sogra dele, também.

Ao vê-la cheia de graça,
vizinhas contam piadas,
mas, se é o marido quem passa,
há explosões de gargalhadas.

A confusão foi tamanha...
Móveis quebrados... Berreiro,,,
É que a sogra do Saldanha
baixou naquele terreiro.

A minha comadre Clara
está bonita e feliz:
gastou os olhos da cara,
mas consertou o nariz.

"A coisa está toda errada"
- diz o pescador Romão -
"No mar, peixinhos de nada,
na praia, cada peixão!"

Ao vê-Ia, na cova, inerme,
roliça qual um presunto,
segreda um verme a outro verme:
- que abundância de defunto!

Aqui Jaz o Godofredo,
porque o vizinho, avisado,
chegou um pouco mais cedo
do que havia combinado.

Boa de bola e aguerrida,
chutando bem, a Lalá
é sempre muito aplaudida,
nas cabeçadas que dá.

Boa mulata, a Anacleta
diz por piada, talvez,
que, apesar de analfabeta,
conhece bem português.

Cheque sem fundos, o Meira
recebeu naquele dia:
- Vendendo uma geladeira,
o coitado "entrou em fria"

Caro doutor, saiba disso:
se esse transplante malogra,
eu pago em dobro o serviço,
que a coroa é minha sogra.

Com todo o senso de artista
e, apesar de todo o zelo,
não sou bom filatelista,
no entanto, procuro "sê-lo"

Com pode, Madalena,
nem sei como acreditar,
pílula assim tão pequena
nosso segredo guardar...

Casou-se o pobre Peçanha,
com mulher feia e sem graça:
Para quem não tem champanha,
vale um trago de cachaça...

Com dimensão reduzida
- duas pecinhas à toa -
o teu biquíni, querida,
guarda tanta mim boa!

Cão de marujo, também,
por mais perigos que arroste,
imita o seu dono e tem
um amor em cada poste.

Comprou, na Agência Postal,
o menor selo que havia,
deu-lhe um jeito de avental
e eis a tanga de Maria !

Começou mal a semana
o beberrão azarado:
abusou tanto da cana,
que acabou sendo "encanado".

De fazenda é tão escasso
o biquíni da Julieta,
que até não sobrou espaço
pra colocar a etiqueta...

Diz a mulata Maria,
sem explicar a razão
que o luso da padaria
é pão vendendo outro pão....

Do amor fervorosa crente,
a mulher do seu Tomás,
sendo uma cara pra frente,
vive a passá-lo pra trás...

Dentro do meu coração,
na minha radiografia,
o doutor - que indiscrição! -
viu tua fotografia!

Do espelho da tua sala,
procura o exemplo seguir:
ele reflete e não fala,
tu falas sem refletir...

Da ingente lida cansada,
velha cegonha matreira,
hoje, vive, aposentada,
a assustar moça solteira.

Deu-me tanta bola a Berta,
com sorrisos e olhar doce,
que eu fui em frente na certa:
aí, a Berta trancou-se !

Diz que detesta covarde
e odeia os homens pecatos;
da coragem, faz alarde
e, em casa, é quem lava os pratos...

Deixei minha namorada,
numa agonia tremenda:
escondi, na mão fechada,
o seu biquíni de renda.

Bebeu tanto o Zé Bolacha,
ao regressar da viagem,
que pagou em dobro a taxa
por excesso de bagagem.

Declara, em meio à homenagem,
o astronauta, herói da Nasa
- Prova mesmo de coragem
vou dar voltando pra casa!

Datilógrafa, a Maria
é "boa" como ninguém:
mesmo em datilografia,
tem seus méritos, também.

Da gravata à borboleta,
que eu usei esta semana,
a minha prima, Julieta,
fez um biquíni bacana.

Ela vive no oculista
e ele é motivo de troça,
pois se ela trata, da vista,
ele faz a vista grossa...

Eis um conceito maroto,
que aos quatro cantos espalho:
se todo o galho foi broto,
nem todo o "broto" "dá galho".

Ela é séria e não dá bola,
chega a ser ultrapassada...
Com tantas curvas, Carola,
afinal, é tão quadrada...

Estendido sobre a cama,
na brancura do lençol,
que saudades meu pijama
sente do teu "baby-doll"!

Explica a mulher a alguém,
que seu marido é pintor:
é por isso, que ela tem
um filho de cada cor...

Eu tenho quatro vizinhas
- que santas meninas são! -
à sua porta, às tardinhas,
há homens em procissão...

Entra um branca gelada
e uma preta bem quentinha,
topo as duas, camarada:
- não perco uma cervejinha.

Em perfeita comunhão,
na vila de Santarém,
a mulher do sacristão
ajuda ao padre, também.

Explica cheia de sestro,
que não engana a ninguém:
sendo mulher de maestro,
faz seus "arranjos", também.

Entra a esposa bem idosa
e uma "gatinha" assanhada,
o macumbeiro Barbosa
vive numa encruzilhada.

Imploraste a Santo Antônio
um casamento, Maria:
deu-te o santo o matrimônio
mas fui eu que "entrou em fria"...

Já pronto para o transplante,
pergunta, aflito, o ancião:
- Fico em forma, doutor Dante,
só trocando o coração?

Jogador inveterado,
morre o amigo Zé do Taco...
Vai entrar, pobre coitado,
no seu último buraco...

Se meus apelos comovem
ao senhor, eu peço, então,
que transplante um corpo jovem,
no meu velho coração...

Maria, ao jogar "pelada",
me dá bola a tarde inteira
e porque joga avançada,
terminamos na "banheira"...

Minha sogra sempre anota
meus atrasos num caderno:
se essa "coroa" empacota,
vai ser porteira do inferno...

Maria, a minha Maria,
põe nos beijos tal calor,
que a noite pode ser fria
e eu não uso cobertor...

Morre a sogra e, comovido
o meu compadre Tomás,
na coroa, distraído,
escreveu: "Descanso em paz"!

Meu amigo, Zé da Mota,
fala mal da sogra à toa,
pois eu conheço a velhota
e ela até que é muito boa!

Morreu lutando, e aqui jaz
Chico Bomba, o corajoso...
E esse epitáfio, quem faz
é o seu primo: o Zé Medroso...

Meu gato sumiu e o fato
deixa a gata tiririca,
lamentando, sempre, o gato,
ao ouvir certa cuíca.

Muito embora não se esgote
todo assunto que é você,
pelo V do seu decote
quanta coisa a gente vê!

Mulata boa, essa Helena,
que afirma ser tua prima...
Sempre que passa, me acena
de polegar para cima.

Namorei a Margarida,
mas como me deu trabalho!
Nunca vi, na minha vida,
um broto dar tanto galho...

Não fez o menor sarilho
meu amigo Vivaldino
e deu, ao décimo filho,
o nome de PILULINO...

Não vende móveis, Maria,
mas, segundo as faladeiras,
atrai boa freguesia
com seu "jogo de cadeiras"

Na bebida, a minha mágoa
procuro ver afogada...
Já me chamam de pau-d'água,
mas, a minha mágoa... nada...

No banheiro, de surpresa,
ao entrar, reparo bem,
que até no banho, Teresa
é enxuta como ninguém.

Num biquíni diferente,
pôs fogo na praia inteira,
ao desfilar imponente,
só de peruca e piteira...

O que eu desejo, sem pressa,
consigo sempre, Maria...
Hoje, me dás, sem que eu peça,
o que me negaste um dia...

O rapaz tanto bebia,
que, um mês depois de enterrado,
nenhum verme conseguia
fazer "quatro", nem deitado...

O Machado é grande amigo,
que eu tenho, sempre, ao meu lado:
qualquer problema comigo,
quem "quebra o galho" é o Machado.

Pão duro a mais não poder,
o meu compadre Zulmiro,
em vez de dar, quis vender
o seu último suspiro.

Por mera superstição
Zé Cachaça explica bem:
Bebe antes da refeição,
durante e depois, também.

Pelo olhar de antipatia,
que o vigário me lançou,
estou certo que Maria,
de manhã se confessou.

Perdão, Senhor, mas não posso
resistir à tentação
de, ao rezar o Padre-Nosso,
pedir manteiga no pão.

Pensam que caí num logro,
mas, aviso a quem quiser
- pelo dinheiro do sogro,
aturo sogra e mulher.

Porque a mulher é de morte,
estranha o compadre Osmar,
que o chamemos de "consorte",
se ele viva é "com azar".

Porque a mulher do goleiro,
jogando um tanto avançada,
me deu bola o dia inteiro,
entrei, também, na pelada....

Para casar, o Joaquim
tornou bruta carraspana:
Esse cara só diz "sim",
com a cara cheia de "cana".

Para evitar confusão,
afirma, sempre o Ramalho,
que não tem superstição:
tem alergia ao trabalho...

Por bigamia, garanto,
castigo do céu não logras:
deve ter honras de santo,
quem aturou duas sogras...

Pões tal feitiço na ginga,
que, ao sambar, eu me atrapalho:
és tu, mulata, o o coringa,
que faltava em meu baralho

Quando eu morrer, a mulher
em apuros, que não fique:
se na cova eu não couber,
que me enterre no alambique...

Quando ela passa, divina,
penso ao ver-lhe a majestade:
- Ah! Se eu pudesse, menina,
dividir por dois a idade! ...

Quando bebo mais um pouco,
uma coisa me maltrata
e me deixa quase louco:
- é ver sogra em duplicata...

Quando ouviu o Pai-de-Santo
falar, em "trabalho", o Augusto
que é folgado, tremeu tanto
e quase morreu de susto...

Quando minha sogra entrou
no inferno, em grande escarcéu,
o Demônio se assustou
e se mandou para o Céu.

Soldador de profissão,
vive a soldar Zé Trancado
e a mulher, por distração,
vai namorando um "soldado".

Superstição esquisita
essa que tem Dona Aurora,
pois só recebe visita,
quando o marido está fora.

Se a vida tem algo errado,
a própria vida conserta;
vejam só: o Zé Trancado,
ontem, casou-se com a Berta.

Tem tanto medo da bronca
da mulher, o meu vizinho,
que até mesmo quando ronca,
o seu ronco sai fininho.

"Tenho coragem" dizia
e provou do que é capaz,
ao correr naquele dia
com o marido "dela" atrás.

Tem, o Zé, vida apertada
e a má sorte a castigá-lo:
se a mulher dá cabeçada,
é nele que nasce o galo...

Tanto mente o Zé Patranha,
faz tanto rolo e trapaça,
que se estoura uma champanha,
há quem jure que é cachaça.

Trazendo a Prudência ao lado,
eu demonstro inteligência,
pois viajo sossegado,
se dirijo com "prudência" .....

Vem Maria, ao meu amor,
que, com jeito, a gente arranja
botar no congelador
tuas flores de laranja.

Vive o Domingos feliz
sem o trabalho enfrentar,
que os "domingos" - ele diz -
são feitos pra descansar.

Voltou de cesta vazia,
pois não pescou nada, nada...
Mas, foi nessa pescaria,
que Benvinda foi pescada...

Vem gente de todo o lado,
ver minha prima Janete,
num "triquini" muito ousado:
chapéu, sandália e chiclete...
========

Fonte:
União Brasileira dos Trovadores/Juiz de Fora

Eliane Potiguara (A Mulher que Despertou nas Asas do Criador )


Todos na comunidade, esperavam a volta de Jurupiranga. Muitos séculos haviam passado, mas na simbologia da volta deste homem viriam à sua trilha, vários outros homens de outros séculos que a mesma dor passaram.

Cunhataí convocou uma Assembléia Geral para definir como recepcionariam os guerreiros e ela, no seu interior de mulher, pensava como receberia Jurupiranga depois de tanto tempo’Quantos séculos! Filhos, netos, tataranetos, todos os ancestrais antes dos tataranetos estariam na grande festa’ Havia as plumagens e tintas mais lindas de toda a eternidade. As estradas pululavam de alegria, enlouquecidas para receberem e serem pisadas pelos guerreiros. As árvores, os frutos, os rios, os mares, os animais silvestres, as chuvas, os raios solares, as flores, as cachoeiras, as lagoas, as noites enluaradas e estreladas cantavam e despejavam húmus, néctar do amor e da prosperidade para endossar e adoçar a chegada de Jurupiranga. As notas musicais saltitavam no ar e as músicas se faziam por si só no espaço. Enfim, os cajueiros explodiam de risadas e soltavam belíssimos cajus amarelos e avermelhados pelo chão afora.

Cunhataí preparou uma grande festa nordestina, convocou todas as crianças da comunidade de todas as idades, convocou as velhas, as tias, as vizinhas e os homens para infra-estruturarem a festança.

Convidou todas as tribos brasileiras e estrangeiras. Os imensos cajus foram transformados, felizes, em uma grande caldeirada de doce. A comida foi preparada com amor para milhares de pessoas.

Mas quando a caldeirada do doce de caju ficou pronta, a calda escura começou a ferver de forma tão estranha, que aquela calda foi se multiplicando, triplicando tão rapidamente que numa fração de segundos inundou, como um rio, a escota onde faziam a comida. A escola estava empregnada dos vícios do neocolonizador. Cunhataí ao ver a escola totalmente coberta com a calda do caju desesperou-se. E agora? O que vamos fazer para que os guerreiros não vejam essa imundície?

Faltava apenas uma hora para a chegada de todos... Cunhataí convocou todas as crianças e jovens da comunidade para secar toda aquela calda. Era impossível secar todo o chão. As crianças alegres com a tarefa e lambendo os dedos, besuntaram-se naquela calda quente, que crescia cada vez mais, escorrendo como um rio e formando um grande lago. Cunhataí observava todo aquele fato e se perguntava porque acontecera aquilo, depois de tanto trabalho que tivera para recrutar as pessoas e estruturar seu povo? Cunhataí, naquele momento estava seca, sua pele enrugara, suas mãos amoleceram, suas carnes desapareceram, seus olhos comoriram-se com uma película azul enevoada. Estava enfraquecida, porque estava em pele e osso. Seus ossos jaziam no fundo do mar. Não havia mais nada a fazer. Estava em estado de choque brutal Totalmente esfacelada, aniquilada. Nunca mais veria seu amado!

No entanto, alguma coisa acontece fora de sua razão e consciência. Pensando que havia voltado à escola minutos depois, depara-se com uma surpresa. Sua mãe Alzael e sua filha Monaí coordenaram juntos com as lideranças e limparam toda aquela lambança da calda de caju. Limparam tudo, a festa foi um sucesso, os amigos, ficaram mais amigos, os inimigos esqueceram suas diferenças.

Cunhataí, pensando que ainda faltavam poucos minutos para o começo da festa se deparou com sua mãe e filha já efetuando outro trabalho de re-organizar as sobras da festa. A mãe lhe disse: Foi bom você não ter vindo, Cunhataí. Você dormiu, mas vieram todos os chefes e guerreiros. Todos foram recebidos pelas esposas e famílias, nós recebemos Jurupiranga. Foi feita uma grande homenagem a ele e ele se emocionou muito e chorou e chorou e chorou. Jurupiranga agora está na casa dos homens confabulando o nosso futuro e cada coisa está no seu devido lugar, não há nenhum problema. A alma foi lavada e as crianças e jovens cantam os cânticos sagrados. As crianças já podem comer a caldeirada de caju, tranqüilas.

Estagnada, perplexa, espantada, iluminada começou a soluçar por não ter assistido à festa que tanto queria e organizara anteriormente.

Era a chegada de seu marido depois de séculos, mas o povo assistiu e o povo trabalhou para isso. Todos os povos indígenas compareceram à festa e muitas horas, minutos, segundos, enfim... dias se passaram e Cunhatai dormira profundamente, o sono do descanso merecido, o sono da mulher. Ela descansara durante toda aquela situação de sujeira da calda do caju e da própria festança para receber os guerreiros.

A mulher, ainda tonta com o sono e com os olhos marejados de lágrimas, pensando que se havia passado alguns minutos, compreendeu que nào era importante estar presente, quando o povo está organizado, consciente.

Por um lado, as lágrimas de Jurupiranga foram derramadas pelo sofrimento e pela emoçào da chegada à sua terra natal e por outro lado as lágrimas de Cunhataí foram derramadas pela consciência de que seu povo realmente estava forte consciente, tranqüilo em suas convicções, povo ético e construtor da paz. Ambas as lágrimas _UNIDAS_ devolveram as carnes, as peles frescas e suaves de Cunhataí. Seus ossos se constituíram de novo e ela pôde realmente sentir suas costas livres, soltas. Havia se libertado de seu casco grosso e pesado, seu fardo.., e pela primeira vez uma grande alegria inundou seu coração e espírito _a felicidade da mulher indígena_ pois todos haviam trabalhado por esse objetivo.

Fonte:
Literatura Indígena: Sol do Pensamento. Organizado pelo Grumin/Rede de Comunicação Indígena e o Nei (Núcleo de Escrtitores Indígenas do INBRAPI)/Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual)

Alexandra Dias Ribeiro (Vem dançar)


Comecei uma nova etapa na vida. Resolvi ir além das aparências. Além do que vejo.

Há uma senhora, cabelos curtos, escuros, magra, têm o andar meio manco, meio arrastando as pernas. Trás no rosto marcas do tempo, pele queimada pelo sol. Os dentes que ainda restam, manchados pela nicotina. Olhar triste melancólico, e com aquele brilho típico na pele de quem consome muito álcool. Tem como hábito sentar-se na calçada da avenida e algumas vezes pede a alguém que passa um real. Essa é Maria.

“Este é o meu pré-julgamento. Como estou disposta a ir além”...

Imagino Maria ainda criança, com seus sonhos, desejos; mas ainda muito jovem para entender o significado da palavra “futuro”. Ela cresce e por alguma razão seus sonhos são guardados no baú do esquecimento. Desde então sua vida tornou-se mecânica. Ao se levantar; lava o rosto toma um café, acende o cigarro... Louca por um “gole”. Tudo automaticamente, as rotinas diárias adquiridas através dos anos. O dia termina e ela pensa: “O que foi que fiz durante este dia? Já é noite?”. Antes de dormir faz uma oração. Chora pedindo a Deus uma benção. Triste inconformada adormece.

Um novo dia amanhece e ela acorda esperando um milagre, que aparentemente não veio. Inconscientemente se pergunta: “Cadê a benção que pedi?” Ela não percebe que o novo dia que nasceu, foi uma benção de Deus. Uma oportunidade de mexer no baú há tempos esquecido. Mas está cega para enxergar isso.

Talvez tenha motivos para se sentir deprimida...

Quando criança queria ser professora. Mas para sua decepção o pai não a deixou estudar além da quarta série do primário. Na opinião do pai estudo para mulher eram desculpas para safadeza. Casou-se cedo. Achando que assim se realizaria de alguma forma. Engravidou logo após o casamento, e para seu desespero o marido ficou desempregado, começou a beber e só parou com o vício quando morreu, deixando-a com uma criança de dois anos. Com a filha para criar Maria diplomou-se em lavadeira, “pós-graduação” em faxineira, “mestrado” em cozinheira e por fim “doutorado” em doméstica. Definitivamente aquilo não era o que havia sonhado para si. Contas para pagar, os alimentos do dia-a-dia que quase nunca tinham e remédios... Sempre faltava dinheiro para tudo!

Dinheiro... Como odiava o tal! Sempre que queria fazer alguma coisa, não podia pela falta de dinheiro.

Tudo o que Maria passou foi difícil! Mas não o fim. Existem vários tipos de pobreza. Mas a pior de todas foi a que transformou Maria em miserável: a falta de dignidade.

Imagino que em algum momento da vida, Maria teve a chance de não vivenciar tudo o que passou. Mas estava muito ocupada, olhando embasbacada um copo de cachaça e não percebeu que se trancava também no baú do esquecimento, junto com seus sonhos e esperanças. Deixando de fora apenas o medo.

Dezesseis anos se passaram.

Havia se passado muito tempo? Será que era tudo isso? Parecia impossível! Entretanto, sabia que era verdade. Os dias, os meses, os anos foram passando. E ela foi ficando. Queria gritar...

À noite enquanto se preparava para dormir, o sono não vinha. Mas não era de se surpreender que o sono não viesse, quando fechava os olhos aparecia em sua frente o vazio, o nada. Apenas o passado fazendo cobranças.

Estava tão atormentada pelo inevitável que tudo para parecia sem graça e sem sentido. Não prestava atenção no que acontecia a sua volta, alheia a tudo.

Da mesma maneira que aqueles pensamentos tomaram conta de sua mente, a resposta também veio. Tão clara que ela deveria ter percebido anos atrás. A resposta sempre estivera ali, mas por estar sempre atrás de um copo, fora cega demais, e orgulhosa. Sua filha era a esperança!

Não havia se dado conta que o tempo havia passado e aquela criança que ela dera a luz, estava prestes a trazer outra ao mundo. E ela não queria o mesmo futuro para aquele ser. A simples idéia de uma outra criança vir ao mundo a provocava calafrios. Já tivera uma experiência e não gostaria de ver a mesma história se repetir. Mas as coisas não podiam ser do jeito que ela gostaria que fosse.

Aquilo não podia ser verdade, a agonia era enorme e penetrante tanto quanto uma dor física, talvez até pior. Cobriu os olhos com as mãos em um esforço inútil de afastar a dor que escurecia sua mente. Precisava pensar e assimilar os sentidos das palavras e no que deveria acreditar e aceitar. Fechou os olhos e respirou fundo varias vezes. Para sua surpresa seus olhos estavam repletos de lágrimas -“Bom Deus, por favor, não permita que isso seja verdade.!

Havia tentado convencer a filha de que o futuro seria diferente, que podiam construir uma vida melhor. Porém, havia esperado tempo demais e agora era tarde, muito tarde.

Durante dois dias, não conseguiu dormir mais que duas horas por noite e não conseguia comer quase nada. Apenas bebia para acalmar a dor. Sempre que fechava os olhos via a imagem da filha a culpando por tudo. Havia tentado falar, mas ela virou a costa e foi embora levando junto às últimas esperanças. Agora Maria deveria conviver com isso pelo resto da vida e não sabia se conseguiria.

Estava tão exausta que seria capaz de vender a alma por uma única noite de sono, mas de preferência sem o peso da consciência esmagando-a. Consumiu em pouco tempo duas garrafas de cachaça, sem pensar duas vezes. E logo o álcool fez o efeito desejado.

Acredito que Maria não teme a morte. Sabe que para a vida ela já morreu. Está enterrada no baú do esquecimento. Dela, meu e seu. Dela o porquê já sabemos. Meu, pois me digno a ver, pensar e julgar. Seu, porque em algum momento da vida você esbarrou em alguma “Maria” na porta de um bar ou numa sarjeta qualquer e também fez o seu julgamento.

“Além do que vejo”...

Era tarde da noite quando Ângela, a filha voltou para pedir desculpas para a mãe, sabia que havia exagerado. O quarto se encontrava frio e escuro tão escuro que era impossível enxergar alguma coisa. Mesmo sem ver ela soube como sempre soubera sua vida toda que um dia isso iria acabar acontecendo. Sua mãe havia consumido muita bebida, se encontrava no momento em coma alcoólico.

Uma dor profunda lhe comprimiu o peito ela soube naquele exato momento que se algo acontecesse com a mãe, jamais se perdoaria, jamais seria a mesma. Um pedaço de si morreria. Mas não tinha tempo a perder, precisava chamar socorro.

Na vida existem idas e vindas!

Maria ouvia um som muito alto, que lhe causava uma terrível dor de cabeça. Queria falar para pararem com aquele som ensurdecedor; mas nem um som saia de seus lábios. Aos poucos percebeu que o som era a sirene de uma ambulância.

Devagar e dolorosamente juntou forças, lentamente abriu os olhos, percebeu que estava amarrada em uma maca. Erguendo os olhos, viu a filha acariciando sua cabeça.

Evitou encará-la, sentindo-se muito estúpida em sua atitude. Após ser medicada no hospital ainda sentia uma dor aguda e latejante parecendo ser capaz de derreter se cérebro.

Passou-se talvez horas e ambas permaneciam em silêncio.

Ângela não queria ser indelicada com a mãe. Por isso decidiu falar com tato.

Esta se sentia completamente sóbria e pronta para a tempestade... Que não veio.

- Desculpa... - começou Maria, mas foi interrompida pelo gesto da filha, para que se calasse.

- Mãe eu preciso falar... Fui muito egoísta ao falar aquelas coisas horríveis para você. Mas graças a Deus, consegui perceber a tempo de consertar o erro. Em nenhum momento você fracassou comigo. Foi muito corajosa se esforçando para me criar. E você está certa quando disse que não devemos fechar os olhos para a vida. Entendi o que você quis dizer. O Marcos, pai do meu filho, é responsável, tem um bom emprego, acabou com muita dificuldade a faculdade e quer que eu também volte a estudar. Estou pensando seriamente nessa hipótese. E preciso de você comigo. Para isso, exijo que você comece cuidando da sua saúde. Existe tratamento para pessoas que tem dependência alcoólica. Você está viva mamãe, e é isso o que importa! Vamos juntas lutar pelos nossos sonhos. E dar um futuro melhor ao seu neto. Tenho certeza que ele vai sentir orgulho da avó decente que tem. Gostaria que ensinasse a ele os belos mandamentos da vida, não mentir, não roubar, não matar, enfim, ensine que ele veio ao mundo por apenas um motivo: é da vontade do criador que ele busque a felicidade. E eu mamãe, te pergunto: - está preparada para lutar pela sua vida?

A mãe balançava a cabeça em um gesto afirmativo sem conseguir falar. Naquele momento se desmanchava em lágrimas, mas era de felicidade. Havia morrido a Maria infeliz e cheia de mágoa, e, dava lugar para outra Maria, cheia de expectativa diante do futuro e mais feliz.

Ângela, não sabia, mas acabara de ensinar para a mãe um mandamento muito importante da vida. Não desistir, sempre existe a chance de recomeçar.

E a “Vida” para Maria pareceu pela primeira vez mais leve e feliz. Como se sorrindo lhe estendesse a mão e em um doce convite lhe dizia:

- Sua música começou a tocar. Vem dançar!

Fonte:
Colaboração da Autora
Imagem = Red_off_elimination_by_hiliuyun

domingo, 4 de abril de 2010

Aparecido Raimundo de Souza (Recado a uma Menina Triste)

Havia tanto querer, tanto amor
em seu coração que podia bailar
com leveza no ar, voar e ser vagalume
brincando de acender e apagar em
noites brancas…provocando estrelas…
Destas paragens, a dona era
a poesia, versos feitos de luz… de ventos…
Uma flor que pouco durou, culpa da
mentira, nasceu o desamor…
Suas pétalas, as águas salgadas
levaram, o pássaro se calou… acabou…
Silenciou a menina triste…
(Marcia Tosto Torres)

Essas coisas, minha rosa em botão, são assim mesmo: você está imersa na era dos sonhos e é natural que pretenda vivê-los, sedutores que são. E o seu afeto faz com que as suas fantasias sejam generosas. Não se iluda. Não se engane com o que dizem os meus cabelos já querendo ficar brancos. A segurança que insinuam é uma farsa. Às vezes sou um repositório de dúvidas.

Não espere que eu possa indicar trilhas. Por mais que tenha andado, não disponho de trilhas sem surpresas.

Não se assombre minha menina triste, com antigos rostos gastos de anúncios de cigarro. O tempo não ensina tudo, muito menos impermeabiliza as almas, livrando-as de dissabores e incertezas. Não aposte, jamais, neste meu chapéu ensebado, comprado em lojinha de um real e noventa e nove centavos.

Se lhe pareço algum fazendeiro abastado, saiba que monto pessimamente e tremo nessas estradas de lama que se espicham por entre despenhadeiros. Receio lobisomens, sacis e mulas sem cabeça. Os fantasmas são como doenças daninhas. Nascem, vivem e morrem com a gente.

Sinto que a seduz o meu toque de alguma nostalgia antiga. Lamento muitíssimo ter que confessar os meus surtos de felicidade cada vez mais freqüentes, principalmente no verão. O sol tem o poder de dissipar angustias. Minhas pálpebras cansadas não são frutos de serenatas, como lhe parecem, mesmo porque, com essa onda de assaltos e barulho que as ruas fazem, os cancioneiros sumiam literalmente do pedaço.

Posso admitir que minha cara batida pelo tempo até guarde algum leve resquício de poesia contida, porém, as olheiras - estas são resultados de livros e jornais que me chegam - e sou obrigado a ler para me manter informado e lincado no mundo lá fora. Não jogue tudo na solidez de minha mão. Não saberia sustentar, qual de nós dois reclama mais o amparo e guia.

E este crônica simples? Por certo você acha que ela brota do nada... Quem dera! Você nem imagina quantas voltas na pracinha dos devaneios do coração e quantos copos de café com leite e horas em claro ela me custou. Como cansam meus pés, estas quimeras literárias.

Em verdade, vou e volto, volto e vou, mil quilômetros ou mais, para garimpar meia dúzia de pensamentos articulados.

Minhas cicatrizes são totalmente vulgares. Sepulte de uma vez para sempre as suas visões românticas.

Jamais duelei por qualquer moça bonita ou princesa, nem as de minha escola, quando usava calças curtas, suspensórios e estudava. O corte no meu nariz foi uma traquinagem infantil. O talho no joelho não é do cravo do calvário, embora talvez eu merecesse. E nem foi por me ajoelhar em demasia que herdei um problema de artrite nos dois dedões dos pés. A perna eu não quebrei esquiando nos Alpes, mas brincando num vôlei inocente.

Não se impressione com minhas tagarelices. Ela é sazonal. Sou papagaio ou sou coruja. Despedaço em miúdo minha timidez mal disfarçada e a dissolvo no meio dessa conversa tola.

Na roça, os cavalos que viajam a noite, vão farejando as trevas com seus olhos duros, firmes, incandescentes. Quando uma fagulha qualquer de luz pica a face de uma palmeira, e, então, coriscam no ar imagens estranhas e figuras disformes, os quadrúpedes empacam e não andam.

Minhas palmeiras reluzem aparições indescritíveis e eu, burro, emperro meus ímpetos e estanco meu verbo. Apesar de todo esse rosário de insatisfações, sinto que você me julga capaz de empolgar a ONU ou diante de um tribunal de bobocas vestidos a rigor deixar a todos boquiabertos e pasmos. Falar em público me é pesado. Tremendamente desconfortante e amassador. Antigamente, quando enfrentava as salas de audiências, parecia que aqueles juízes com suas togas pretas que sustentavam olhos abertos mirando minhas bochechas trêmulas, davam-me a impressão de que voariam todos a um só tempo rumo ao meu pescoço na captura da minha jugular.

A bem do que digo, dois ou três pares de olhos a menos, porque, por caridade, alguns dormitavam ante minha veemência judicial. Você só tem noticia de meus antigos amores conhecidos. Dalva, Carla, Marlúcia, Penha, Talita, Susete, Estefânia... Ninguém lhe informou dos que me repeliram. Na minha juventude, quando as gírias eram perenes e os ditos bucólicos, o repúdio não tinha a secura do atual “não tô a fim”, todavia, humilhava duplamente. “Sai de mim, abacaxi, que tomei leite”. A gente coalhava de constrangimento. Somente no fluir de ternuras, minha solidão se dissipava e alcançava o tamanho e a grandiosidade da luz dos meus sonhos mais perenes.

Mas, minha menina triste, por tudo o que acabei de dizer, não se afaste de mim somente para me fazer raiva. Não se distancie porque seus pais pediram, não deixe minha criança, de ficar comigo porque sua filhinha chora sua ausência.

Que importam os Mários, os Caleches, os Wellingtons, ou mesmo as Alices e as Isaltinas? Vamos viver esse amor bonito e formoso, esse amor puro e sem barreiras, até que um dia, bem, até que um dia bata a nossa porta, a realidade mortal e se intrometa no meio de nós e articule, ela própria (sem que eu e você estejamos esperando), os desencantos e desencontros outros que não encomendamos.

Fonte:
Colaboração do Autor

Sônia Sobreira (Crônica de um Carnaval Destronado)


Em silêncio, contemplo a multidão agitada. Tento ficar bem perto dos foliões. O brilho das fantasias é deslumbrante! Tudo parece belo e perfeito. Os rodopios dos passistas, a jinga das mulatas lindas, a cadência contagiante do samba, os confetes e serpentinas cortando o espaço e o fascínio dos carros alegóricos.

Observo ainda mais de perto os foliões: Descubro que o olhar deles não combina com o sorriso, mas só quem está bem perto, pode perceber esta realidade: "Um sorriso disfarça uma lágrima."

Carnaval! tradição, folclore, volúpia, império da carne, ou trégua de três dias para suportar a dor, a mágoa, as dívidas e o medo que fatalmente voltarão na quarta-feira de cinzas.

Carnaval, louca ilusão! Quantos sonhos desfeitos, quantos corações partidos e feridos! É belo, muito belo, não se pode negar, mas sua beleza é cruel e enganosa, não poupa aqueles que procuram esquecer os infortúnios, buscando nele, um prazer efêmero e escorregadio. Carnaval! Rei Momo destronado que não cuida dos seus súditos, que rouba a inocência e estufa o seu ventre com as desilusões dos seus escravos. Carnaval! hiena que em gargalhadas, fareja a carne dos que morrem.

Fontes:
Recanto das Letras.
Desenho = http://www.rodrigoloureiro.com.br

Sonia Sobreira (Livro de Trovas)


O encanto do teu olhar,
tão azul, provocador,
faz daquele que o fitar,
escravo do teu amor!


De estrelas toda bordada,
sem telhado a lhe abrigar,
a tapera abandonada,
no chão, abriga o luar.

AH! Saudade do passado,
tão presente e tão intensa,
que chego a ouvir teu chamado
buscando a minha presença!

A pérola é jóia rara,
de inestimável valor,
mas nem assim se compara,
ao preço do nosso amor!

Mesmo que a felicidade
destile prazer na vida,
resta sempre uma saudade,
dentro do peito escondida!

Foi difícil minha escolha,
mas tomei a decisão:
Deixo que o tempo recolha,
as mágoas do coração!

As gotas caem ao léu,
sem ninguém poder detê-las.
Será chuva lá do céu?
ou são lágrimas de estrelas?

Uma idéia, a mais ousada,
que em meu peito se escondeu,
deixou minha alma marcada
e mais um sonho morreu!

Um lenço acena do cais
em gestos leves, tristonhos,
trazendo a dor dos meus ais,
nas lembranças dos meus sonhos!

Um lenço acena do cais
em gestos leves, tristonhos,
trazendo a dor dos meus ais,
nas lembranças dos meus sonhos!

Se eu sorrir do meu fracasso,
nos tropeços da existência,
talvez me faça um palhaço,
mas ganhei mais resistência!

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Sonia Sobreira da Silva

Paraibana. Casada com o poeta Josa Jásper, mãe de duas meninas. Estuda Letras na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Participa de concursos literários obtendo algumas vitórias. Ocupa a cadeira nº 3, patronímica de Aluisio Azevedo, no Cenáculo Brasileiro de Letras e Artes, sediado no Rio de Janeiro. Também faz parte do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio Janeiro, da União Brasileira de Trovadores /RJ e outras entidades literárias.

Fonte:
Recanto das Letras

Pedro Du Bois (Da Injustiça)


Amaldiçoado em lágrimas
rasgo olhos ao horizonte

poente
inutilizo a noite
na chegada
em refúgio

(os cães ladram)

rememoro a hora
da notícia transmitida
palavra por palavra

revejo minha imagem
cristalizada
no congelamento
da lágrima depositada

(os cães farejam)

as dores se afastam
no distanciamento
necessário ao medo

o corpo estremece
ao se pertencer em dores

no horizonte hostil
da janela aberta
o futuro se depara
com a impertinência
do presente

(os cães comem)

afasto suas mãos das minhas:
o contato é lucidez
inoportuna na desesperança

a oração despercebida
rompe o silêncio
e se perpetua

afago o deslizar da hora
em horas subsequentes

(os cães se defendem)

murmuro o nada acontecido
e desacordo em sonhos

o retorno convive
com o fato
desproporcionado

revivo o outono em folhas
pelo chão

recupero a sanidade
e me faço cristal
de rocha esfacelado

(os cães se diferenciam)

sofro o instante
e gesto
o silêncio

o emudecer transmite
a incerteza da pergunta

na vastidão ampliada
da insensibilidade

(os cães desfazem)

posso perguntar
o que bem entendo:
mas não entendo

posso exprimir
a minha raiva:
mas não pretendo

posso aproximar
os olhos à fotografia:
mas não enxergo

(os cães confundem)

calendários dizem que os anos passam

o exercício diuturno de recuperar
o inconsciente e o aguardar
refulgente: recomposto

o exército lancinante dos ataques
distribui ossos que estalam

(os cães apavoram)

um dia destaco na pedra
o sinal: acordo

um dia acordo e na pedra
destaco o sinal

um sinal na pedra
é destaque quando acordo

(os cães se acovardam)

olho e enxergo
ouço e escuto
pego e sinto
levo à boca
e o sal amarga
o recesso de onde retirado

avaros dias de permanências
permanentes signos
aparentes esboços

o processo desarruma o fato
em procedimentos

(os cães arfam)

ouvidas as testemunhas
os peritos dizem
das especialidades

nada
nada

a improvável condenação
confundida em versos
na reversão da realidade

(os cães obedecem)

choro atravessar o espaço
desconsolado em fatuidades

remoço a fotografia
e me instalo diante
da orfandade

perder significa atos
ao despropósito
de continuar vivo
-------
Fonte:
Colaboração do Autor
Foto das Cadelas = José Feldman