quarta-feira, 12 de maio de 2010

Raduan Nassar (O escritor em Xeque)



Entrevista concedida à Revista Veja, em 30 de julho de 1997.

É um caso curioso, o do escritor paulista Raduan Nassar. Há 21 anos ele tenta fugir da literatura, mas de tempo em tempo acaba enrolado em relançamentos, homenagens e leituras públicas de obras suas. Foi o que aconteceu nos últimos meses. Autor de apenas dois livros, o romance Lavoura Arcaica e a novela Um Copo de Cólera, além de alguns contos publicados aqui e acolá, Nassar, fazendeiro de profissão, é venerado pela crítica literária como um dos melhores escritores brasileiros. A unanimidade a favor é tanta que ninguém percebeu que a ligeira recaída do autor, o conto "Mãozinhas de seda", escrito no ano passado, não é nada mais do que uma "molecagem", como ele próprio o define. Antes de viajar para o Oriente Médio, em companhia do diretor Luiz Fernando Carvalho, que prepara um filme baseado em Lavoura Arcaica, Nassar concordou em falar a VEJA, superando a sua aversão a entrevistas. Ele reafirma que não pretende voltar à literatura e aproveita para verter seu copo de cólera sobre essa tal modernidade.

Veja -- O brasileiro é essencialmente caipira, como acredita o presidente Fernando Henrique Cardoso?

Nassar -- O brasileiro em geral não sei, que não sou sociólogo, mas posso falar de mim. Me sinto caipira se acontece de eu entrar num shopping. Me sinto caipira diante da parafernália eletrônica. Me sinto caipira diante da desenvoltura urbana de certos cidadãos, uma desenvoltura que literalmente me faz mal. Me sinto caipira diante da progressiva impessoalidade nas relações humanas. Me sinto caipira porque sou contra o desperdício e contra essa nova mania do usa-e-joga-fora. Tenho um amigo que vive me dizendo que, se é para ter rádio, eu deveria trocar o meu. Então, também sou caipira por ainda gostar de rádio e por ter o rádio que sempre tive. Agora, se eu disser que não dispenso logo cedo uma boa horinha de música caipira, aí já vão dizer que, se não sou o Jararaca, sou então o Ratinho. Pensando bem, acho que sou o Jararaca. Seja quem eu for, que fique bem claro que me lixo para essa entidade que se identifica com o que está aí e que porta o elegante nome de "homem moderno", que mais parece griffe de moda. Mesmo quando se tranca no banheiro, esse homem está sempre de celular no ouvido, o que é o fim da picada. Aproveito para repetir o que o Carlos Drummond de Andrade disse há uns quinze anos nestas mesmas páginas amarelas: isso não é civilização, isso é uma porcaria!

Veja -- Por que o senhor voltou a publicar e está aparecendo em público?

Nassar -- Meu nome vem circulando nos últimos meses, mas isso não quer dizer que eu tenha voltado a escrever. Literatura para mim é coisa do passado. Não acredito que se possa recuperar aquele impulso vital que leva alguém a mergulhar de cabeça numa atividade. Depois que se perde isso, a gente tem mais é que cair fora. Não se faz literatura para valer com paixão requentada. Mesmo a literatura mais pessimista, aquela que afirma que o nosso mundo é o pior dos mundos, acaba até se desmentindo pelo entusiasmo com que se expressa. Já disseram que a voz sem entusiasmo jamais será ouvida.

Veja -- Mas o seu conto "Mãozinhas de seda" foi escrito no ano passado.

Nassar -- Aquilo foi uma molecagem.

Veja -- Por quê?

Nassar -- Uma molecagem contra mim mesmo, pois dá seqüência à minha inequívoca vocação para o suicídio autoral, como já disseram. No momento em que o seu trabalho está sendo divulgado como nunca, publicar um texto como esse é o mesmo que fazer um esparramo com o ventilador. A hipocrisia de intelectuais, a troca de favores entre eles, o comércio de prestígio, tudo isso não acontece só no Brasil. Não revelei nada de novo em "Mãozinhas de seda", só registrei o que é consenso entre os próprios intelectuais. Os mais inseguros e suscetíveis ficaram ouriçados, começaram a achar que a coisa é com eles, mas o texto não tem endereço certo, não tem CEP, nem nada.

Veja -- Mas não há notícia de crítica ruim a um livro seu. É bom ser unanimidade?

Nassar -- Duvido dessa suposta unanimidade dos críticos. Devem existir inúmeros leitores que não gostam dos meus livros.

Veja -- O que o senhor acha da crítica literária brasileira atual?

Nassar -- Não sei se as gerações de críticos anteriores foram tão melhores, como dizem. Às vezes penso que a crítica literária seria dispensável. Já aconteceu de eu ler autores incensados por críticos de peso e me sentir um completo débil mental por não conseguir enxergar tudo aquilo que eles viram. Acho impressionante essa capacidade de construir edifícios teóricos sobre o nada. Devemos tirar o chapéu para tanta imaginação. A crítica talvez seja importante para divulgar obras que poderiam passar despercebidas, embora a duração de certos livros dependa muito mais do boca-a-boca de leitores anônimos qualificados.

Veja -- As panelinhas literárias fazem parte do jogo ou dá para evitá-las?

Nassar -- Nunca participei de panelinhas, e prefiro não falar nada sobre o seu comportamento. Me limito a lembrar que a Rua Aurora dos velhos tempos em São Paulo, clássica por seus bordéis, seria um templo em comparação a elas.

Veja -- O fato de ter abandonado a literatura não o teria transformado em um personagem fascinante?

Nassar -- Abandonei o curso científico e pulei para o clássico, abandonei um curso de letras na universidade, o curso de direito no último ano, a empresa familiar assim que meu pai faleceu. Abandonei ainda uma criação de coelhos, o jornalismo e outras coisas mais. Tudo somado, só levei a pecha de inconstante. Por que só quando abandonei a literatura eu teria me transformado em personagem fascinante? Não é esquisito?

Veja -- O senhor se sente mitificado pelos críticos?

Nassar -- Quem sabe? O que posso dizer com certeza é que exercício crítico e mitificação não deveriam andar juntos, embora boa parte dos críticos empregue toda sua vida e energia na construção de mitos. É um processo que vem de longe e termina nas escolas. Os autores que constam dos currículos escolares acabam desumanizados, são transformados em pequenos deuses. O resultado disso é que o próprio ato de escrever é sacralizado, quando escrever é uma atividade como qualquer outra. Pessoalmente, fui vítima desse ensino da literatura nas escolas. Tanto que fiz segredo para minha família até as vésperas de eu ser publicado -- tinha receio de que me tomassem por pretensioso. Isso sem falar do massacre que a gente sofria nas livrarias. Era eu entrar numa livraria para achar que não teria nada a acrescentar à montanha de coisas que já tinham sido ditas, o que chegava a me levar a pensar em desistir dos meus objetivos literários. Eu não me dava conta então de que escrever tem muito a ver com história pessoal, muito a ver com exorcizar condicionamentos, fantasmas, demônios e sabe-se lá mais o quê. Nesse sentido, escrever é uma atividade incomparavelmente mais acessível e eficiente do que um divã de psicanalista. Acho até que parei de escrever porque me dei alta na auto-análise que fazia.

Veja -- Como a literatura deveria ser ensinada nas escolas?

Nassar -- Não sei, só desconfio de que ela não deveria ser ensinada como vem sendo. De um modo geral, acho que os professores transferem para os alunos gostos e critérios pessoais, o que acaba formando um rebanho destinado a adorar certos nomes. Talvez se devesse treinar o aluno a pensar com a própria cabeça, a ser ele mesmo na sua relação com as leituras -- supondo-se, é claro, que o professor também conseguisse pensar com sua própria cabeça.

Veja -- Qual a função da literatura hoje, se é que ela tem alguma?

Nassar -- Para quem faz, seria se ocupar em fazer. Para quem lê, se ocupar em ler. As duas ocupações seriam bons recursos para ludibriar a existência, o que não é pouco, sobretudo se se tratar de uma literatura portadora de reflexão sobre a vida. Escritores e leitores de uma literatura assim corresponderiam à parte da espécie que não consegue se ajustar a esse mundo. Uns e outros sairiam da sua solidão na medida em que a leitura promoveria um encontro entre eles. Agora, do ponto de vista de uma função social mais ampla, não consigo enxergar nada com clareza. Pode até ser uma grande inutilidade.

Veja -- O senhor vai ao cinema e ao teatro?

Nassar -- Há muitos anos não vou ao cinema e nem me lembro da última vez que fui ao teatro. Em parte por preguiça, mas sobretudo porque perdi o interesse. Não me faz falta. Acontece de eu ver um filminho em vídeo, mas é raro, e gosto quando vejo. Acho que existe uma oferta exagerada do que chamam de bens culturais. Como as informações passam por produto de maior valor no mercado, isso explica por que existe tanta gente de língua de fora atrás de um grande número delas. Me pergunto se as pessoas são mais felizes assim. Torço para que sejam.

Veja -- E televisão?

Nassar -- Vejo um bocado de TV, talvez por comodismo. Assisto a telejornais e acompanho novelas. No momento, estou começando a engatar em A Indomada. Vi Renascer, por exemplo, com muito interesse. Seu autor, Benedito Ruy Barbosa, se não estivesse na televisão, suponho que estaria escrevendo romances. Boa parte dos bons ficcionistas está hoje na televisão. Curto muito o trabalho de atores, e o Brasil tem alguns excelentes. Falar do Raul Cortez, como Berdinazi em O Rei do Gado, é incorrer num lugar-comum. Gosto também do trabalho daquele jovem, o Selton Mello, que teve seu melhor desempenho em Tropicaliente, com momentos antológicos. Agora, como televisão, o que mais me pegou nesses últimos tempos foi o Brasil Legal, da Regina Casé. A zorra das suas reportagens acaba em um milagre incrivelmente saboroso.

Veja -- Qual foi o último livro que o senhor leu?

Nassar -- Ficou difícil ler alguma coisa nos últimos anos por causa da diarréia antidiscursiva que acabou atacando também a prosa. É uma palavra solta aqui, é outra sem qualquer nexo lá, uma poesia que uma hora é pintura, aí não já não é mais pintura, é música, é eletrônica, é o escambau. Confesso que não tenho recursos e nem paciência. Fico até me perguntando se esses poetas imaginam que o leitor deve se debruçar a vida toda sobre o que eles fazem, para poder sacar alguma coisa. Me pergunto também se não existiria algo de comum entre essa moda antidiscursiva e subnutrição mental. Continuo pensando que as palavras, como os indivíduos, só ganham força quando se organizam ao lado de outras. Mas o desmanche não vem acontecendo só na literatura e nas oficinas de carros roubados.

Veja -- Onde mais?

Nassar -- De uns anos para cá, o mundo perdeu a graça. Depois do desmanche do Leste Europeu, andaram inclusive espalhando por aí que a História também foi desmanchada. Parece que literatura e contexto político nunca andaram tão sintonizados, é desmanche para tudo quanto é lado. Desmanche de estatais, desmanche de amizades, de linguagem. Por sinal, tem poeta vestido com macacão e mecânico de oficina lendo Joyce. Ficou difícil apostar em utopias, acho mesmo que no mundo todo só se pode falar em geléia geral. Mas desconfio de que o motor da História vai se acelerar logo mais com convulsões pela sobrevivência. Afinal, este mundo não foi criado por um deus bondoso, o deus bondoso só reina de fachada -- um mundo como o nosso só pode ser obra exclusiva do capeta.

Veja -- O senhor é um produtor rural insatisfeito?

Nassar -- Não há como não me sentir insatisfeito. Fala-se muito na falta de uma política agrícola, mas tudo não passou de papo-furado até agora. Na minha opinião, a questão agrícola brasileira só será encaminhada quando for alterada a relação entre setor urbano e setor rural. O setor urbano está montado no setor rural, e de nada adiantaria uma reforma agrária sem corrigir essa distorção. Um exemplo: para beber em poucos minutos uma Coca-Cola, o produtor rural precisaria desembolsar o equivalente a 10 metros quadrados de terra. É isso mesmo: na região da minha fazenda, 1 metro quadrado de terra sai por 10 centavos. Passei a converter também em sacos de milho os valores de produtos e serviços urbanos. Você precisa de trinta sacos de milho de 60 quilos para pagar uma consulta médica de meia hora. A conversão que venho fazendo na minha vida pessoal se tornou tão obsessiva que, se vou ao dentista, logo vejo nele um pé de milho. Para não falar das margens de lucro da grande indústria e da atuação do setor financeiro. Mas vamos parar por aqui que acabo saindo do sério.

Veja -- O que o senhor gosta de fazer nas horas vagas?

Nassar -- Gostar, gostar para valer, eu gosto mesmo é de dormir. Dormir é a melhor coisa deste mundo. Nem leitura, nem diversão, nem uma boa mesa, nada se compara. Sexo então é fichinha perto. É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da pesada, deita o seu corpo e a sua cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa, poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente da vigília para o sono. É o nirvana!

Veja -- E entre um nirvana e outro, o que haveria para fazer?

Nassar -- Há duas velhas sugestões. "Cultivar o seu próprio jardim", que é a do Voltaire, cínica e pessimista. E a sugestão do poeta Jorge de Lima, fervorosa e otimista: "Há sempre um copo de mar para um homem navegar". No fundo, são dois trapaceiros, pois as alternativas são ilusórias, em qualquer dos casos a gente acaba entrando pelo cano. Bom mesmo é dormir.

Fonte:
Revista Veja. Editora Abril. 30 de julho de 1997.

Carlos Leite Ribeiro (O Avô Guido - Parte Final) Novela em 4 partes



- Fernando: - O melhor é esperares aqui, sossegadinho, enquanto eu vou pôr a "mamã"a casa. Depois, eu próprio, te levarei a tua casa. Mas toma atenção, não te mexas deste sítio, nem um metro sequer.
- Sandro: - Está bem, eu prometo tudo ao “papá”…
- Fernando: - Se não me obedeceres, esfolo-te vivo. Sabes ou imaginas o que é ser esfolado vivo?
- Sandro: - Se sei, é a lei dos "Lobos Maus"!
- Fernando: - Pois, se te moveres desse maple até eu chegar, será aplicada a lei daqui, ou seja a lei do Oeste!

Novamente, em casa da sua amiga Isabel, Margarida, preparava-se, pela terceira vez para se deitar.

Toda a casa se encontrava em desalinho, pois, com a precipitação de levar o Sandrito a São Pedro de Moel, Teresa não fizera nenhuma arrumação à casa.

Já se encontrava na cama, quando a campainha da porta tocou repetidamente. Levantou-se e…

- Margarida: - Quem é?... Quem está a bater a estas horas à porta?...
- Fernando: - Sou eu, o Fernando ou o Josué; já nem sei quem sou. Abra por favor…
- Margarida: - Mas então não acompanhou o avô a Trás-os-Montes?
- Fernando: - Pois não. No regresso a São Pedro de Moel, tive um furo num pneu, o que me atrasou um pouco. Quando cheguei ao hotel, já o avô tinha-se ido embora…
- Margarida: - Ai que pena, fico bastante preocupada…
- Fernando: - Mas o pior, foi o avô ter levado aquele "terrorista"do Sandrito (ou Paulo...) ou lá o que é…
- Margarida: - Aquele miúdo só nos tem dado problemas. E agora, ele é bem capaz de contar tudo ao avô Guido
- Fernando: - Por esse motivo vim cá pedir-lhe que me acompanhe a Trás-os-Montes, a casa do avô Guido
- Margarida: - Mas...eu não o posso acompanhar. Estou aqui em Leiria, em missão profissional, por isso não posso ausentar-me... o telefone está a tocar, pode ser o Augusto. O senhor Josué não se importar, atenda; o telefone que está aí no corredor...
- Fernando: - Com todo o prazer... ...Sim, estou...É sim, é esse número... a Margarida?...Está, está, mas está a descansar … Digo-lhe, sim... Estou a compreender...O casal de turistas americanos, anularam a viagem...muito bem, muito bem...dar-lhe-ei o recado. Boa noite...
- Fernando: - O telefonema era para mim?
- Fernando: - Era sim. Até que enfim que consegui saber o seu nome: Margarida! É um nome bonito, como aliás a dona...
- Margarida: - E de quem era o telefonema?
- Fernando: - Era da agência "Turismo ao Alcance de Todos", para a avisar que o casal de turistas americanos, anulou a viagem à última hora.
- Margarida: - Sendo assim, tenho de regressar imediatamente a Lisboa...
- Fernando: - Impossível!... Tem de me acompanhar a casa do avô Guido... Sabe, estou muito preocupado com o que lhe teria dito aquele endiabrado miúdo. Por favor, não me deixe sozinho nesta altura!
- Margarida: - Mas tem de compreender, se o acompanhar, fico em risco de perder o meu emprego…
- Fernando: - Há muito tempo que preciso de uma secretária e, a Margarida vem mesmo a propósito!
- Margarida: - Eu, sua secretária?
- Fernando: - A Margarida sabe escrever música?
- Margarida: - Infelizmente não sei…
- Fernando: - Que pena! mas...mas sabe escrever no computador?...
- Margarida: - Não percebo mesmo nada…
- Fernando: - Línguas?...
- Margarida: - Só sei dizer em francês, Bonjour ...E em inglês, Yes
- Fernando: - Nada mais?!
- Margarida: - Nada...mesmo nada!
- Fernando: - Pelo menos, terá boa letra?
- Margarida: - É detestável! Até a minha assinatura é ilegível!
- Fernando: - Estupendo! Você tem todas as condições desejáveis. É justamente aquilo que necessito, uma secretária que não saiba fazer nada. Enfastiam-me as secretárias eficientes! Não acha que são insuportáveis?
- Margarida: - Sim, concordo... Bem tentei que não me contrata-se como sua secretária, mas não tive êxito!
- Fernando: - Enquanto a Margarida acaba de se arranjar, vou meter gasolina no carro e, ver a pressão dos pneus e o óleo. Durante a viagem, continuaremos a falar.
- Margarida: - Então até já. Não se esqueça de fechar a porta…
- Fernando: - Margarida, somos amigos, não é verdade?...
- Margarida: - Claro que sim!

Já amanhecia, quando iniciaram a viagem rumo a Trás-os-Montes e, quando chegaram a casa do avô Guido, o Sol já tinha nascido.

Josué Teixeira, parou o carro diante do grande portão e, fez ressoar por duas vezes a volumosa aldraba de bronze, a qual produziu um atroador ruído, ali naquele vetusto casarão, a que não faltava certa beleza.

- Augusto: - Ah, é o menino Josué, estava à sua espera. O senhor Guido, ainda está deitado e, parece que está calmo.
- Fernando: - Augusto, quem vos meteu na cabeça, trazerem o Sandro?
- Augusto: - O senhor Guido não quis esperar. Apenas os senhores saíram dos seus aposentos, teimou em partir, dizendo que não queria incomodá-lo, obrigando a acompanhá-lo. Quando descemos para o hall, encontra-mos o rapaz que se aproximou de nós. O senhor Guido convidou-o a vir com ele, e ele aceitou logo o convite. Resultado, tivemos mesmo que trazer o garoto.
- Fernando: - Mas esta embrulhada nunca mais acaba?...
- Augusto: - Receio bem que não, senhor Josué. Quer subir?... estão os dois no quarto do avô, a tomar o pequeno almoço.

Subiu os degraus em dois pulos, acariciando, ao passar, as faces da velha Elisa, a mulher do Augusto, que lhe dava as boas-vindas.

Ao entrar no quarto do ancião, acalmou momentaneamente o seu nervosismo. Ele estava sentado na sua esplêndida e tão chorada cama de colunas, de mogno escuro. Com a cabeça recostada nas suas almofadas de penas, o Avôzinho tomava café com leite e torradas. Numa mesita instalada junto do leito, Sandrito fazia o mesmo.

O rapazito ostentava no lábio superior uns magníficos bigodes de café com leite, que lhe davam um aspecto cómico.

- Fernando: - Bom dia e bom apetite!
- Sandro: - Olá,"papazinho"!... Bom dia, não quer café com leite?
- Avô Guido: - Vocês são muito teimosos, mas confesso que estava à vossa espera, pois, com certeza que não iam abandonar o vosso querido filhinho, estou certo?
- Sandro: - "Mamãzinha", dá-me mais café com leite e mais torradas, está bem?
- Margarida: - Não comas muito, olha que ficas com dores de barriga...
- Sandro: - Já não tenho dores de barriga!
- Augusto: - Com a precipitação da partida, o senhor Guido deixou os medicamentos, no Hotel, em São Pedro de Moel.
- Avô Guido: - Vocês têm de me darem razão, confio eu num velho tonto como o Augusto, e depois acontece-me destas. Ele, quer ver se eu morro primeiro do que ele, mas não vai ter esse prazer!
- Fernando: - Não diga isso avô, pois, o Augusto é um verdadeiro amigo que tu tens. Não é um criado, é um amigo!
- Avô Guido: - Lérias, lérias...Ele quer é que eu morra primeiro do que ele.
- Fernando: - Não se preocupe com os medicamentos, pois, tenho que ir hoje a Bragança assinar um contrato e trago-lhe os medicamentos.
- Augusto: - Parece-me que esses medicamentos, só se encontram em Lisboa ou no Porto…
- Fernando: - Talvez não seja assim como dizes, Augusto. Avô não se preocupe, pois, hoje à noite, terá cá os medicamentos.
- Avô Guido: - Podes ir Fernando, mas vais sozinho, pois, a tua esposa e o teu filho, ficam aqui ao pé de mim.
- Fernando: - Mas...mas avô, a Márcia
- Margarida: - Podes ir, querido "maridinho", pois, eu ficarei com o nosso querido "filhinho". Depois, regressaremos ambos a Leiria. Como sabes, o Sandrito, anda na escola e não quer perder o ano...
- Sandro: - O que tem, se eu perder mais um ano?... O meu pai diz que eu sou estúpido por feitio e natureza!
- Avô Guido: - Oh Fernando, tu dizes isso ao teu filho?...
- Fernando: - Sim... Sim, eu digo-lhe isso... mas é só às vezes e por brincadeira. Todos nós sabemos que o Sandrito é muito inteligente, e muito aplicado na escola.
- Margarida: - É um dos melhores alunos da escola onde anda.
- Avô Guido: - Tu, Fernando, tens que ter muito cuidado com essas considerações que dizes ao garoto, pois, não podes nem deves desmoralizar o teu filho. O vosso filho, não é, querida Márcia.
- Margarida: - Sim, sim avô, eu, até já tenho chamado a atenção do Fernando, para certos termos que ele usa para com o menino.
- Avô Guido: - E, não se esqueçam que ele é o único filho que vos resta, pois, os outros morreram todos…
- Margarida: - Morreram todos?!
- Fernando: - Pois... os outros morreram todos. Até parece que não te lembras dessas tragédias, Márcia?
- Margarida: - Eu lembrar-me?... Ah, pois...Pois morreram todos…
- Fernando: - Coitadinhos, ficamos sempre muito constrangidos quando pensamos neles. Não chores Márcia, senão também eu começarei a chorar…
- Avô Guido: - E, por cada funeral, paguei cerca de mil euros, fora as flores e os arranjos das campas.
- Margarida: - Pois...pois foi assim mesmo. Mas não quero recordar esses momentos dramáticos.
- Fernando: - Nós temos sofrido muito, Avôzinho... foram desgostos em cima de desgostos…
- Sandro: - Mas eu já tive irmãos?! Não me lembro.
- Margarida: - É que nós, eu e o Fernando, procurámos sempre esconder estes tristes factos do Sandrito
- Fernando: - Bem, como se costuma dizer "barco parado, não segue viagem...", e eu ainda tenho que ir a Bragança e, depois possivelmente ao Porto.
- Sandro: - Posso ir contigo,"papá"?
- Margarida: - Não,"filhinho", tu ficas aqui ao pé da "mamã", pois, o "papá" tem muitas voltas a dar e muito trabalho a fazer.
- Sandro: - Os "papás"são todos a mesma coisa!
- Avô Guido: - Sandrito, vai brincar para o pátio, mas com muito juízo...
- Fernando: - E eu, vou indo. Adeus minha querida "mulherzinha"!
- Fernando: - Adeus,"amor" e boa viagem. Encontrar-nos-emos em Leiria. Um beijo!

Já era noite quando Josué Teixeira regressou a casa do avô, naquela pequena aldeia transmontana. Tocou a albarda de bronze da porta e, o velho criado Augusto, veio abrir-lhe. Ao entrar no grande salão do vetusto casarão, teve uma grande surpresa…

- Avô Guido: - Olha Márcia, o teu querido esposo já chegou!
- Fernando: - Mas, Márcia, ainda não regressou a Leiria?!
- Avô Gildo: - Desculpa, filho, mas eu é que tive a culpa, pois, consegui convencer a tua esposa a ficar. Não te zangues comigo. Também seria inútil regressar, pois, a Márcia está aqui muito a seu gosto, não é verdade, filhinha?
- Margarida: - Assim é, avô…
- Avô Guido: - E até mais, prometeu-me que ficará alguns dias aqui, junto de mim...
- Margarida: - Fizeste boa viagem,"querido"Fernando? Espero que não estejas muito zangado comigo, por me encontrar ainda aqui...
- Fernando: - Como sabes, ou deves de calcular, até estou muito contente por te encontrar aqui, junto ao avô.
- Margarida: - Sabes,"amor", necessitava de um pouco de repouso para os nervos e, esta tranquilidade aldeã, far-me-á bem. Amanhã, mando vir roupas, pois, não posso andar muito tempo com esta. Embora este trajo azul, me fique bem, não é verdade, querido “maridinho”?
- Fernando: - Qualquer coisa, te fica maravilhosamente bem, meu "amor"!
- Margarida: - No outro dia, disseste-me que te enlouqueço, quando visto este azul. Claro que dizes sempre coisas parecidas, qual for o vestido e a cor que envergue... olha, "querido", queres um cafezinho?...faz tanto frio lá fora na estrada, que o café, decerto, saber-te-á bem…
- Avô Guido: - Estou a gostar muito de os ouvir. Fico muito contente que sejas carinhoso com a tua mulher, não posso com os matrimônios que se tratam friamente sem calor e sem amor.
- Margarida - O Fernando sempre foi muito carinhoso. Está sempre a chamar-me diminutivos ternos, como: queridinha, amorzinho, fofinha, etc.…
- Fernando: - Bem!... Creio que o avô deve descansar. Os seus medicamentos estão aqui. Agora, é conveniente ir para a cama descansar.
- Avô Guido: - Eu vou já, vou já. O Sandro dormirá aqui ao lado, e a Elisa já preparou o quarto lá de baixo, para vocês e espero que fiquem lá muito bem. A cama é muito boa.
- Fernando: - Muito bem, avô, ficaremos lá, perfeitamente e quentinhos...
- Avô Guido: - Escuta lá, Fernando, prometes que ficarão cá uns dias?...
- Fernando: - Não sei... Não sei se os meus afazeres profissionais o permitirão…
- Avô Guido: - Se te for impossível pelo menos, deixa-me a Márcia e o Sandrito. Tu podes vir de vez em quando, ver-nos…
- Fernando: - Oh avô, amanhã decidiremos...Agora, dorme tranquilo, pois, bem precisas de descansar.
- Margarida: - Mas. Aonde está o Sandrito?... Já há um bom par de horas que não lhe ponho os olhos em cima…
- Avô Guido: - Não te preocupes, minha filha, pois vamos já saber... Augusto...oh Augusto, onde estás?
- Augusto: - Estou aqui, senhor Guido... Quer os seus medicamentos?
- Avô Guido: - Não, não quero ainda os medicamentos, mas sim saber, onde se encontra o pequeno Sandrito?
- Augusto: - Deve de estar... deve de estar...ou está...
- Avô Guido: - Que mistério é esse? Onde está o rapaz?
-Augusto: - O rapaz estava a brincar no pátio, e depois...o senhor Guido sabe daquela gaiola... a gaiola dos pássaros...
- Avô Guido: - Claro que sei, a gaiola que tem dezenas de pássaros…
- Augusto: -Pois...que tinha dezena de pássaros, mas, o Sandrito abriu-lhes a porta da gaiola e eles fugiram…
- Fernando: - Ai, aquele diabo de rapaz!...
- Avô Guido: - E Augusto, onde está agora o Sandrito?
- Augusto: - Bem, como os pássaros fugiram todos, como já lhe disse...fugiram todos... eu, meti o Sandrito dentro da gaiola!
- Avô Guido: - Como assim, tu fizeste isso?!
- Augusto: - Se abrir aquela janela, ouvirá decerto, o berreiro que ele está lá a fazer dentro da gaiola.
- Avô Guido: - Olha lá, mas porque é que tu meteste o rapaz dentro da gaiola?... Não me digas que estás à espera que ele cante. Traz-mo já cá imediatamente.
- Fernando: - Mas o Avôzinho, precisa de se deitar, para descansar…
- Avô Guido: - Não tentem disfarçar e aliviar a vossa culpa, pois, vocês os dois é que deviam de estar dentro daquela gaiola. Imaginem bem a qualidade de educação que têm dado ao vosso filho! Vão, vão-se deitar, que eu próprio falarei com o miúdo. Vão indo, vão indo…
- Margarida: - Então, até amanhã, avô. Com sua licença vou me vou retirar para o meu quarto…
- Fernando: - Margarida, agora que estamos sós, posso saber porque motivo ainda continua nesta casa, e não regressou a Leiria?
- Margarida: - Se me fala nesse tom, não lhe responderei. Procure ser um pouco mais simpático, o que nem lhe deve ser muito difícil…
- Fernando: - Perdoe-me, Margarida, mas confesso que estou um pouco desorientado. Ocorreram tantas coisas ao mesmo tempo, e este miúdo dá-me cabo dos nervos. Sinto-me responsável por tal escolha, melhor, por toda esta situação.
- Margarida: - Eu só fiquei cá, para não deixar o Sandrito sozinho, pois, o avô fez questão que ele ficasse e, assim, talvez acabasse por comprometer, irremediavelmente esta estranha situação, ao contar ao avô, certas coisas…
- Fernando: - Já estou a compreender tudo, mil agradecimentos e mil perdões, pela minha conduta de há pouco. Estou a ficar refém daquilo que projectei na tentativa em dar ao avô Guido, um fim tranquilo…
- Margarida: - Por favor, não se esforce para se mostrar agradecido. Eu também tenho uma certa quota do que aconteceu e ainda está a acontecer. Sejamos sensatos.
- Fernando: - Não pretendo mostrar-me grato, pois, estou-o na realidade. Mas, sobretudo, sinto-me confuso, porque tenho a impressão de que, no fundo, você está aborrecida comigo, por a ter arrastado para esta situação tão bizarra.
- Margarida: - Não estou, não contra sua. Não vê que me sinto contentíssima, por ter podido ser útil neste processo, sobretudo, ao avô Guido?
- Fernando: - Quer dizer que só entrou nesta estória em atenção à situação do avô? É de agradecer a sua nobre actuação.
- Margarida: - Parece-me que estou a ler certas dúvidas no seu olhar…
- Fernando: - A Margarida, não pode ler nada no meu olhar!
- Margarida: - Engana-se Josué...
- Fernando: - Então, como é tão boa em ler nos meus olhos, deve ler também outras coisas, não é assim?
- Margarida: - Talvez....deixe-me rir!
- Fernando: - Como, por exemplo, que a achei encantadora, desde o primeiro momento em que a vi...
- Margarida: - Talvez.... Não sou feia de todo (segundo dizem) e, já percebi que o seu coração estremece com facilidade, perante os encantos femininos. E o avô confirmou, digamos, essa sua faculdade.
- Fernando: - Você se diverte enraivecendo-me, mas não consegue, pois, não conto zangar-me consigo de maneira nenhuma. Sabe, não há um só "teimoso"… E eu não quero ser teimoso. Adivinha que...
- Margarida: - Desculpe pois, tenho a imaginação muito fatigada pelos últimos acontecimentos, por isso, não posso dedicar-me às suas adivinhas. Vou para o meu quarto, pois, estou a cair de sono…

Margarida despediu-se do Josué com um seco “boa noite”, e penetrou no amplo quarto, mobilado à antiga, mas tão acolhedor e confortável, que parecia dar-lhe as boas-vindas.

Ao centro, viam-se duas camas iguais, cobertas com grossas colchas de seda, já um pouco desbotadas. Riu-se e pensou alto: “Gosto desta casa, pois, é um verdadeiro lar. Ao entrar, recordei logo a minha. Não é que se assemelhem em nada, mas por causa do ambiente, qualquer coisa de "indefinível", que flutua e constitui o espírito das habitações. A cama é macia, mas, mesmo que fosse dura, não daria por isso.

Alguém bate à porta do quarto…

- Elisa: - Dão-me licença, posso entrar?
- Margarita : - Entre, entre Elisa ...
- Elisa: - Tomei a liberdade de lhe trazer uma das minhas camisas de dormir. As noites aqui em Trás-os-Montes, são muito frias, e , embora a flanela seja muito grossa, talvez a senhora não veja inconveniente em…
- Margarida: - Pois claro que a vestirei, e vou ficar até muito quentinha. Muito obrigado Elisa!
- Elisa: - Trouxe também, uma bata e umas chinelas e, também coloquei uma botija de água quente na cama. Terá cobertores suficientes?
- Margarida: - Creio que sim. Dormirei formidavelmente, como uma princesa!
- Elisa: - Não tenha pressa de se levantar cedo, pois, trazer-lhe-ei o pequeno-almoço aqui à cama.
- Margarida: - Que luxo! Muito obrigado, Elisa!

Depois de bater à porta, Fernando (Josué) entrou no quarto para lhe desejar uma boa noite…

- Fernando: Eu vou também fazer soninho. Procure sonhar comigo, Margarida, está bem?...
- Margarida: - Procurarei sonhar consigo e com esta situação. Espero que não se transforme em pesadelo…
- Fernando: - Então, boa noite...querida!
- Margarida: - Que disse... Querida?!
- Fernando: - Como ouviu muito bem. Eu disse "querida", e não retiro uma só letra sequer! Até amanhã e boa noite!

Passados breves minutos, novamente bateram à porta…

- Fernando: - Márcia, Márcia!...
- Fernando: - Quem está a bater à porta?...
- Fernando: - Sou eu... o Fernando... abra a porta por favor!
- Margarida: - O Fernando?! Mas o que é que você quer?!
- Fernando: - Ora...o que hei-de querer, querida “esposa”?... entrar no nosso quarto para me deitar…

Ela saltou da cama, compreendendo logo que ocorria, qualquer coisa fora do vulgar. Embrulhou-se na enorme bata que a Elisa lhe tinha emprestado e abriu a porta. No limiar, apareceram à sua frente, o Fernando, terrivelmente confuso, igualmente vestido com um roupão e um pijama e, atrás dele, o avô Guido, com a sua inseparável bengala e um olhar trocista…

- Avô Guido: - Queria convencer-me de que vocês estão bem instalados, e assim, desci em pessoa, para verificar com os meus olhos... Só não compreendo que faz este maroto, que ainda não se deitou, ao lado da sua bela esposa?...
- Fernando: - Ia, deitar-me...agora mesmo, avô...
- Avô Guido: - Anda, deita-te e fica caladinho. Mete-te já na cama, pois, quero aconchegar-te a roupa, como fazia quando eras pequeno...
- Fernando: - Mas, avô... Eu ainda tenho que fazer ginástica junto à lareira…
- Avô Guido: - Ginástica, a estas horas e junto à lareira?...
- Fernando: - Sim, sim...é um hábito já muito antigo, sabe?... Faço-o sempre antes de deitar-me…
- Avô Guido: - Palhaçadas!... Deixa-te de tolices e, vai já para a cama, vá que já é muito tarde e está muito frio…
- Fernando : - Mas...Avô, tente me compreender…
- Avô Guido: - Não estou a compreender mesmo nada. Tira o roupão…Assim... gora mete-te debaixo da roupa. Gosto muito que ainda sejas obediente. Agora, aconchegar-te-ei e ficarei mais tranquilo, e depois, mando o Augusto retirar a cama que não vai ficar ocupada. … Augusto e Elisa, retirem esta cama para a arrecadação!
- Fernando: - Pronto, pronto avozinho, já estou na caminha junto à minha querida esposa...já se pode ir embora descansado...
- Avô Guido: - Estou a ver, estou a ver… boas noites, meus filhos. Levo a chave, para os deixar fechados, caso contrário, estou certo de que amanhã, quando eu me levantasse, a "gaiola"estaria vazia. Bons sonhos, meu filhos queridos filhos!...
- Fernando: - Avô!...não feche a porta...Avô...Avô...Avô!...
- Margarida: - Augusto!...Elisa!... por favor, abram esta porta!
- Fernando: - Augusto!...demónio de homem parece que é surdo!... Augusto!...Vou dar um pontapé nesta porta...ai..ai..ai...que magoei o meu pé...
- Margarida: - Isto é completamente absurdo! É ridículo! Como eu fui capaz de me meter numa trapalhada destas!
- Avô Guido: - Não gritem, nem batam mais na porta. Que grandes idiotas que vocês são! Pensavam assim poder enganar o avô, sem vergonha nenhuma! Vou abrir a porta para podermos falar…
- Fernando - Avô, engana-lo como?... Sinto-me envergonhado…
- Avô Guido: - Naturalmente ser velho, não quer dizer que seja idiota. Vejo muito mal, estou muito surdo, mas nunca confundiria o meu neto verdadeiro com o seu meio-irmão. Que farsa vocês urdiram, pensado em enganar-me…
- Fernando: - Então quer dizer que?...
- Avô Guido: - Que, se te confundi por momentos…isso foi de curta duração, e apenas enquanto a minha cabeça não regulava bem, logo a seguir ao ataque do coração...depois comecei a compreender tudo o que me estavam a fazer, ou seja, a armarem-me em parvo. Comecei a averiguar a grandeza da minha desgraça. Logo que regressei a casa o meu advogado avisou-me o meu neto tinha morrido.
- Fernando: - Avô, tente compreender, eu queria evitar-te um grande desgosto…
- Avô Guido: - Bem sei, Josué, nunca deixaste de me querer muito. Desde muito pequeno, que foste sempre o meu verdadeiro neto. Fui a Leiria, impulsionado pela curiosidade e, também para te criar dificuldades e divertir-me um pouco, assim, como também ao idiota do Augusto. Perdoa esta travessura de velho, mas vocês são uns cretinos... querem enganar-me, a mim, a mim, o Guido Ribeiro, transmontano dos quatro costado!
- Augusto: - Senhor Guido, não se excite assim, deve ir deitar-se e procurar descansar....
- Avô Guido: - Cala-te, mentecapto. Tu és o pior de todos! Julgavas-te mais esperto do que eu?! Pois, saíram-te as coisas ao contrário, cabeça de pardal! Julgavas tu que eu não reconhecia o menino Josué?... Como vês, de nada serviu armarem esta comédia grotesca. Isto também é contigo, pequena linda…
- Margarida: - Perdoe-me, senhor Gildo. Encontrei-me metida neste caso sem ainda compreender como e porquê.
- Avô Guido – Cala-te, cala-te, pois não preciso de explicações. Não me enternecerás com a tua cara bonita e a tua voz de rolinha mansa. Ora, não te armes em "mosca morta", pois nem merece a pena.
- Fernando: - Escuta, avô a Margarida é…
- Avô Guido – Ah, se chama Margarida e não Márcia! E esse tão "bonitinho" rapaz (como é o nome dele?) onde é que o arranjaste?...
- Fernando: - É filho da…
- Avô Guido: - Compreendo. E aquela engraçada “cunhadita” que dançava tão desajeitadamente?...
- Fernando: - É, a...
- Avô Guido: - Muito me ri...ri de vocês! Sobretudo de ti e da tua linda noiva, Josué. Suponho que seja tua noiva... não o podem negar, pois, até parecem mesmo uns pombinhos... comem-se um ao outro, com os olhos…
- Margarida: - Nada disso, senhor Guido, nada disso!
- Fernando: - Ainda...não é minha noiva.
- Avô Guido: - Ainda não é?... Então do que estás tu à espera? Não me digas que ainda não te declaras a ela. Porquê, meu filho, estás com medo de seres recusado ou com vergonha?
- Fernando: - É que não me atrevo a…
- Avô Guido: - Pois, atreve-te grande tolo me saíste...Não vês que ela não deseja outra coisa. Que te ama?...
- Fernando: - Avô, compreende... A Margarida é a melhor pequena que eu conheci... prontificou-se a ajudar-me, simplesmente por bondade. Nunca conheci outra como ela. Mas o caso é que...Margarida é... seria... enfim, a definitiva!
- Margarida: - Josué, por favor, não faca mais confusão na minha cabeça.
- Avô Guido: - Ai...o meu remédio, Augusto... Sofri muito, estes dias. Mas, agradeço-te, filho, pois embora não sejas o Fernando, quero-te como se o fosses.
- Margarida : - Sente-se mal, avô?
- Avô Guido: - Não pequena, só estou um pouco cansado…
- Augusto: - Vou chamar o já médico!
- Avô Guido: - Não...não é preciso...já está a passar. Sofri muito com a morte do meu neto, mas, foi Deus que assim o quis. Não te assustes, pequena, pois, em breve estarei melhor... Margarida, é um nome bonito e, tu és muito bonita... olha lá porque estás a choras? Olha filha, limpa esses belos olhos. Mereces ser feliz, porque tens bom corarão, e o Josué também, aliás, sempre o teve desde criança. Hão-de ser muitos felizes e terão filhos bonitos. Mais bonitos do que esse "demónio", que está para aí; como é que se chama esse "ranhoso"?... Quero saber o nome verdadeiro.
- Margarida: - Chama-se Paulo…
- Avô Guido: Ele é muito esperto (embora não seja inteligente) pelo caminho, contou-me histórias muito divertidas. Gostaria que ele ficasse aqui mais uns dias... faz-me rir...Eu... Eu…
- Fernando: - Olhe, o avô adormeceu. É o melhor que nos podia ter acontecido. Está esgotado, coitado do avô Guido, vou pôr-lhe uma manta por cima...
- Margarida: - Vou aproveitar o fato do avô estar a dormir, para me ir embora. Embora me custe bastante, não me despedir dele. É tão bondoso!
- Fernando: - Se é esse o teu desejo, Margarida…
- Avô Guido: - Mas qual desejo... Mas qual desejo, qual carapuça. Estou mesmo a ver que já não se pode descansar um pouco... Seus finórios... Augusto, Augusto...Dá-me a minha bengala…
- Margarida: - A bengala, avô?...
- Avô Guido: - Sim, a bengala. Era o que vocês precisavam, apanhar ambos com ela. Não têm vergonha de gozarem e fazerem pouco de um pobre velho?
- Fernando: - Mas, avô compreenda por favor...
. Avô Guido: - Cala-te!...Augusto, ajuda-me a levantar...Agora, dá-me aquelas chaves do quarto…
- Margarida: - Mas o avô vai-nos fechar novamente, aqui dentro do quarto?... Nem quero acreditar.
- Fernando: - Mas, avô escute-me por favor!
- Avô Guido: - Calem-se, calem-se por favor. Olha que apanham mesmo com a bengala. Ficam aqui fechados até se declararem um ao outro, e não demorem muito. Deitem-se, deitem-se já, pois, a noite é, e têm muito tempo de falarem do que me tramaram. Boa noite e acordem muito bem dispostos e com as consciências limpas. Não preciso de mais desculpas de vossa parte.

Ao sair do quarto depois de fechar a porta à chave, encontrou o Sandro no corredor…

- Sandro: - Olá avozinho, andava mesmo à sua procura, pois a cozinha está fechada à chave…
- Avô Guido: - Olha "netinho"…Vai mas é chamar avô a outro!...

FIM

Fonte:
Colaboração do autor.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Pablo Neruda (Saudade)


Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
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Fonte:

domingo, 9 de maio de 2010

Trova 145 - Barreto Coutinho (Limoeiro/PE)

Nelson Saúte (O Marido Deixa-Andar e a Mulher Furiosa)



A mulher estava farta do marido deixa-andar. O homem não tinha como mudar. Todos lhe passavam à frente. Na rua olhavam-no desdenhosos. Até o panhonho da esquina comprara um carro. Ele, nada. Os filhos dos vizinhos andavam em escolas privadas, pavoneavam-se. O marido dela nada persistia na desgraça. Passara o tempo da balalaica, o que dera nele? Agora, quando todos estavam a evoluir, ele persistia. Quando lhe indagava, ele respondia, sussurrando:

- Eu sou coerente.

- Mas marido nós vamos comer coerência aqui em casa?

A verdade é que não faltava comida em casa. Esse era o argumento. Os filhos iam à escola pública. Por vezes não tinham carteiras, sentavam-se no chão. Os vidros eram partidos, as casas de banho fediam. Mas isso não era culpa do Estado. Quem vandalizava?

O homem não perdia a fleuma. Explicava com bons modos que ele não entrava na onda do novo-riquismo, não praticava nenhum tipo de falcatrua para enriquecer. Não iria satisfazê-la a todo o custo. Acreditava no mérido. Persistia no trabalho. Afinal, um homem de valores.

- Marido tu não queres evoluir mesmo!

- Até pode ser.

Ela foi previsível. Foi-se embora. Abandonou tudo: a casa, os haveres corroídos pelo tempo, os filhos assombrados com o infuturo, o marido. Aquilo que poderíamos chamar família.

Ele ficou com os filhos, continuou o mesmo. Ela vigiava-o. Ia sabendo do homem à distância ou através dos filhos. Quando queria dizer o que quer que fosse do pai, os filhos reprovavam com olhar. Ou diziam apenas:

- Mãe.

Nem ela, nem ele se engajaram noutra relação. Estavam separados. Mas algum os unia. Algo de invísivel.

Um dia soube que ele tivera direito a um carro de alienação no serviço. Era bom técnico e ganhou essa benesse.

A mulher ficou furiosa.

- O sacana enquanto esteve comigo nunca me quis dar um carro. Agora, que está sozinho anda de carro?

Num desses dias, ela abeirou-se da casa que habitara e munida de paus e pedra desfigurou o carro, descarregando sobre ele toda a sua bilis. O homem ouvia um barulho esquisito lá de dentro e vozes que se avolumavam. Saíu ainda de pijama e se defrontou com aquele insólito.

A mulher tresloucada à porta de casa, derrubando o carro novo. Como sempre, um grupo de vizinhos curiosos, que murmuravam.

O homem olhou para a mulher e não conseguiu pronunciar uma palavra que fosse. Estava incrédulo.

Ela fixou-o com aquele seu olhar felino, que o fazia estremecer, e disse, antes de irromper numa convulsão dos diabos:

- Toda a vida eu quis uma vida melhor. Agora que me fui embora é que compras um carro? Não, eu não vou permitir que vivas bem sem mim!

O homem caminhou em direção da mulher e amparou-a num abraço, abriu ala no meio dos que se aglomeravam e levou-a para dentro de casa.

Lá fora, ficou o espanto dos que assistiram à inusitada cena e um carro completamente espatifado.

Fonte:
http://www.pnetliteratura.pt/

Nelson Saúte (As Mãos dos Pretos)



Mais de três dezenas de autores estão reunidos numa antologia do conto moçambicano, que dá pelo nome "As Mãos dos Pretos". Organizado pelo também escritor Nelson Saúte, este livro foi dado a conhecer ao público em Fevereiro último, pelas Publicações Dom Quixote.

A ficção moçambicana tem atravessado diferentes períodos. Uns mais ricos e interessantes, outros que acusam um menor entusiasmo literário. Contudo, existiu na segunda metade do século XX um florescer da ficção narrativa em Moçambique, de onde Nelson Saúte recuperou alguns nomes de escritores que trouxeram à literatura do país uma pluralidade de posturas estilísticas e de novas linguagens, confirmando assim o renascer de uma ação criativa substancialmente melhorada.

Sem qualquer critério especial de seleção, a não ser a qualidade dos textos, Nelson Saúte reuniu em livro um conjunto de mais de três dezenas de autores que traduzem nas suas palavras "o devir moçambicano, de forma excepcionalmente esplendorosa".

Nesta viagem à ficção moçambicana, o organizador d' "As Mãos dos Pretos" ressalva da década de 40 dois dos poetas maiores de Moçambique: José Craveirinha e Rui Knopfli, responsáveis "pela excelente tradição poética que as gerações posteriores beneficiaram e beneficiam. Craveirinha pela força telúrica dos seus versos (...) e Knopfli pelo ecletismo da sua poesia, pela modernidade e pelo complexo entendimento do destino de um país e dos seus homens (...)", esclarece Nelson Saúte no prefácio.

Num contexto anterior à independência, Nelson resgata como manifestações únicas da prosa de ficção moçambicana nomes como João Dias (Godido e Outros Contos, em 1952), Luís Bernardo Honwana (Nós Matamos o Cão Tinhoso, em 1964), Orlando Mendes (Portagem, em 1966) e Carneiro Gonçalves (Contos e Lendas, em 1975). "As Mãos dos Pretos", que deu nome a esta antologia, é também título de um dos textos selecionados para ilustrar a obra de Luís Bernardo Honwana. Nelson Saúte justifica a escolha deste texto com a seguinte frase: "talvez seja o mais belo conto que jamais se escreveu desde sempre na literatura moçambicana". Nos anos 80 registou-se então uma verdadeira explosão de talentos, a maioria dos quais confirmaram-se mais tarde. À sombra do projecto "Charrua", a literatura moçambicana foi conquistando nomes e enriquecendo com escritas emblemáticas. Ungulani Ba Ka Khosa com as suas estórias e Mia Couto, um dos mais conhecidos escritores moçambicanos da actualidade, são dois dos nomes que se destacam nesta época. Orlando Muhlanga, com o Diário de Sangue, um dos prosadores mais importantes do final do século XX revela-se já nos anos 90. "Com uma impressiva capacidade efabulatória, Muhlanga conta a guerra no seu interior, na dimensão fortíssima da sua crueldade", relembra Nelson Saúte. A par de Ba Ka Khosa e Mia Couto, Aldino Muianga, Lília Momplé e Paulina Chiziane, entre outros, vêm colocar um ponto final na característica trágica que ensombrava a ficção moçambicana até então. Por último, a antologia intitulada "As Mãos dos Pretos" fica concluída com três textos do responsável pela apresentação deste manancial de ficção, Nelson Saúte.

Nelson Saúte (1967)


Nelson Saúte nasceu em Maputo, Moçambique, em 1967. Formado em Ciências de Comunicação, na Universidade Nova de Lisboa, foi jornalista na imprensa, na rádio e televisão e foi docente universitário.

Atualmente reside entre Maputo e S. Paulo, onde frequenta o mestrado em Sociologia na USP (Universidade de São Paulo).

Publicou volumes de poesia, de ficção e de entrevistas, compilou e organizou antologias de poesia e de contos.

Seus livros estão publicados em Moçambique, Portugal, Brasil, Itália e Cabo Verde. É autor, entre outros títulos, de “O Apóstolo da Desgraça” (1999, contos) e “Os Narradores da Sobrevivência” (2000, romance), dos livros de poesia “A Pátria Dividida” (1993), “A Cidade Lúbrica” (1998), “A Viagem Profana” (2003) e “Maputo Blues” (2007), e organizou “As Mãos dos Pretos” (2001, antologia do conto moçambicano) e “Nunca Mais É Sábado” (2004, antologia de poesia moçambicana). “Escrevedor de Destinos” (2008) é o seu mais recente livro.

No Brasil é autor da Língua Geral onde editou “O homem que não podia olhar para trás” (Infanto-juvenil da coleção Mama Africa, em 2006) e o livro de contos “Rio dos Bons Sinais” (2007 na Língua Geral no Brasil e na Dom Quixote em 2008).

Fonte:
http://www.pnetliteratura.pt/membro.asp?id=551

Carol Almeida (Um Best-Seller é um Best-Seller)

Especialistas falam das leis que regem o mercado dos livros mais vendidos.

“Como posso escrever um livro pensando em agradar ao mesmo tempo a um caminhoneiro, uma dona de casa do Kansas e um nobre inglês? O que faço é seguir uma trilha imaginária de ideias que satisfaçam a minha curiosidade e emoções. O resto é sorte.” Sidney Sheldon

O prato fundo aguardava pelo caldo quente de uma receita que, estava certo, só poderia ser mágica, talvez até magicamente malévola. Um conforto apetitoso para os inocentes juízes que imaginam ser próprio da alquimia criar algo que escapa de sua compreensão e, pior, de seu controle. Mas a sopa não veio e no prato fundo ficou apenas o reflexo de dúvidas projetadas na porcelana da lógica crítica. O que best-sellers e mega-sellers têm a ver com isso? Eles eram o prato do dia, o que não foi servido. Imaginava-se que esse prato poderia ser desmembrado pelo aguçado paladar de gourmets literários prontos para descrever todos os ingredientes que fizeram daquela obra um caldo comercialmente imbatível e, quem sabe, copiar a receita em causa própria.

Quando surgiu na mesa a ideia de um texto sobre a liga que une livros de ficção que vendem milhões de cópias, havia no ar uma condenável inocência de que não poderia ser tão difícil assim, ou ao menos não tão rebuscadamente difícil, extrair o sumo do sucesso editorial de títulos que, a despeito de todas as profecias sobre o fim do livro, quebram recordes de venda, chegam aos cinemas, à TV e transformam alguns escritores em milionárias ou bilionárias celebridades. Mas aí veio o primeiro sinal de que a sopa não chegaria assim mágica à mesa. Depois de um silencioso suspiro, Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record, foi desanimadoramente sincera: “Acho essa matéria que você está fazendo tão difícil. Acho que você vai penar.”

O que Luciana gentilmente quis dizer é que, não, ela não tinha receita, sequer ingredientes, que pudessem apontar o caminho das galinhas dos ovos de ouro do mercado editorial. No entanto, assim como ela, vários outros editores nos levaram a entender que, uma vez dentro da indústria de romances comerciais, existe, da parte das companhias editoras, um jogo de apostas altas em um atípico pôquer de cartas que se repetem na mesa, ainda que quase todas elas sejam de baralhos diferentes. E que, sim, assim como todo jogo, é preciso Sorte e Sensibilidade, nessa ordem, para saber jogar alto em títulos que podem dar certo.
Com a Sorte, a mesma mencionada acima pelo best-seller Sidney Sheldon, não nos foi cedida conversa. Mas com a Sensibilidade, houve um diálogo mais ou menos consensual que nos levou a entender, por exemplo, por que dificilmente um romance brasileiro emplaca entre os mais vendidos e quais os motivos que levam um editor a comprar os direitos de alguns títulos nos cada vez mais disputados leilões editoriais.

E antes de falar da Sensibilidade, uma breve introdução ao contexto das cartas repetidas.
No Brasil muito em particular, o mercado comporta pouca diversidade de títulos por ano. Em 2009, foram publicados cerca de 22 mil diferentes livros novos, enquanto nos Estados Unidos esse número foi de mais de 520 mil. Sendo assim, e segundo os editores brasileiros, não há espaço para a coexistência para mais de uma, ou no máximo duas febres temáticas. Portanto, a lista dos livros de ficção mais vendidos reflete aquilo que chamaremos da síndrome Andy Warhol do mercado editorial. Uma que transforma temas da ficção em uma serialização que pega carona e, para refletir recente caso de tema dominante, vampiriza um ou dois títulos de sucesso. As editoras passam a adotar uma reprodutibilidade mecânica refletida em estranhamente semelhantes capas de livro. No decalque editorial, alguns lançamentos chamam atenção pelo pouco disfarçado sintoma de Mulher Solteira Procura.

De outra maneira, não há como explicar casos como da capa e o próprio nome de Chá das cinco com o vampiro, da editora Objetiva. O livro, escrito pelo paranaense Miguel Sanches Neto, nasceu de conversas com o escritor curitibano Dalton Trevisan (conhecido por sua reclusão e nada contente com o lançamento de Sanches Neto), e agora é vendido, ao menos superficialmente, como mais um romance vampiresco adolescente, com direito a uma capa escura que ilustra a meia imagem de um aparentemente sedutor e nobre sanguessuga.
Apostando na compra impulsiva das imagens repetidas – mais uma vez, Andy Warhol, o profeta – a Objetiva e outras editoras como a Novo Século que recentemente lançou Opúsculo, paródia da saga Crepúsculo com capa e fontes praticamente idênticas à dos livros de Stephenie Meyer, tentam se segurar em alguma brecha do tronco temático para não sofrer as consequências dos ventos fortes que devastam os mais fracos .

Mas o caso da reprodução dos vampiros – e hoje o maior achado editorial não está na saga Crepúsculo (Intrínseca) e sim nos também seriados romances de Diários de um vampiro (Record) – é apenas mais um dos vários exemplos de temas dominantes que puxa linhas de genéricos e similares. Nos anos 1980, eram os thrillers policiais que se espalhavam pelos mais nobres displays das livrarias, em meados dos anos 90, com o surgimento do fenômeno Harry Potter (cujos direitos de publicação dos dois primeiros livros foram adquiridos por uma pechincha de 5 mil dólares pela editora Nova Fronteira), se espalhou pelo mercado brasileiro a febre da literatura fantástica, mais tarde ancorada por lançamentos cinematográficos que deram maior impulsão à venda dos livros.

As editoras começaram então a observar o público jovem com outros olhos e, com a garantia da preservação de best-sellers adultos por aquilo que não deixa de ser uma continuidade do fantástico em temas religiosos (O código da Vinci e seus discípulos), elas investiram nos anos 2000 em romances com jovens protagonistas que, entre eventos de aventuras sobrenaturais, estavam dispostos a evangelizar sobre o amor e o pecado original. Nada disso, no entanto, estava previsto. Para desconsolo de quem trabalha comprando o futuro, todas essas tendências simplesmente aconteceram.

“Esse é o mercado do imponderável”, sintetiza o professor e diretor da Biblioteca Nacional, Muniz Sodré, um dos poucos acadêmicos a publicar um livro sobre o mercado e os pontos de interseção entre os livros mais vendidos: Best-Sellers, a literatura de mercado, na coleção Princípios (Ática), publicado em 1988, quando o termo mega-sellers (títulos que vendem milhões) ainda não existia.

Para Sodré, sempre existiram e continuarão existindo pontos em comum entre todos os best-sellers de ficção, a independer do gênero em que eles se encaixam. Segundo ele, do ponto de vista do conteúdo, há quatro elementos presentes em todos os mais vendidos. O primeiro seria uma “retórica literária e clichês bem agenciados”, com uma linguagem de fácil acesso e amplo espaço para diálogos. O segundo seria a presença constante do mito do herói e, por tabela, a oposição entre o Bem e o Mal. O terceiro elemento seria o da “atualidade”, que tenta dar contextos contemporâneos à trama desenrolada e, por fim, o fator “pedagógico”, aquele que, no dobrar da última página, sempre tem algo a ensinar nas esperadas lições de moral. Com todos esses elementos se constrói uma literatura – e Sodré sustenta que se trata sim de uma literatura – “normalizadora”, em que facilmente o leitor consegue identificar o “normal” e o “estranho”. “A única diferença desses títulos para literatura canônica é que os grandes escritores inventam em cima da língua vernacular escrita. Eles criam uma nova língua. A literatura de massa não ficcionaliza a língua, mas sim o conteúdo.”

Os editores que buscam novos títulos, conhecedores e já experientes em identificar todos esses elementos, sustentam que eles podem até ajudar na hora de fazer escolhas, mas não determinam decisões. O que determina, segundo Tomás Pereira, um dos sócios da editora Sextante (nome constante na lista dos 10 mais vendidos), é a sensibilidade de leitor e a Amazon. “Acredito que a Amazon foi uma revolução no mercado editorial. Há uma grande quantidade de informação sobre cada título ali, explicações e referências muito mais vastas que qualquer livraria poderia oferecer. Se eu quero saber o ranking de vendas de um livro lá fora, posso ver como ele funcionou na França, na Alemanha. O que está começando a fazer sucesso nos Estados Unidos, as críticas, opinião dos leitores, tudo isso encontro lá”. Quanto ao “feeling”, Pereira explica que o processo é bem simples: “A primeira pergunta que você se faz é ‘qual é o tema desse livro?’. A segunda é ‘É um livro que leio com maior facilidade?’ e depois vem a sua própria experiência de leitor”.

Tomás Pereira, que hoje divide com seu irmão Marcos Pereira a tarefa de comandar a Sextante, lembra que a editora começou a publicar ficções depois que seu pai, Geraldo Jordão, leu sobre O código da Vinci na revista Publisher’s Weekly. “Ele resolveu então ler a história. E no dia depois que tinha pego o livro, disse que deveríamos publicar aquilo”, lembra Tomás. A essa altura, o romance começava a fazer sucesso nos Estados Unidos, mas o autor Dan Brown ainda era um ilustre desconhecido do leitor brasileiro. Com insistência do pai e relutância dos filhos, os direitos de publicação foram comprados por 12 mil dólares (contra 10 mil dólares que a Record havia oferecido, na pessoa de Luciana Villas-Boas). Os caixas das livrarias, a receita da Sextante e os mais de três milhões de exemplares vendidos só no Brasil sabem o resto da história.

Ao contrário de Muniz Sodré, Tomás acredita que, uma vez criadas as caixas que compartimentam gêneros, esses romances que vendem centenas de milhares e milhões de exemplares não deveriam ser chamados de literatura. “Trata-se de ficção comercial”, simplifica ele. “Acho que há leituras das quais você sai enriquecido com ideias e conceitos que você guarda pra vida inteira. Isso é literatura. Desses livros comerciais, posso não lembrar nada depois que fecho a última página, mas não vou esquecer aquela experiência extremamente prazerosa que tive durante sua leitura”. Para Tomás, é essa “experiência de leitura” a seiva que alimenta a procura pelo próximo grande best-seller.

Com um termo mais mercadológico, Juliana Cirne, que gerencia a comunicação da editora Intrínseca (coligada da editora Sextante e proprietária dos direitos da saga do jovem Percy Jackson, o novo Harry Potter), define isso como uma “pegada de turning pages” que, em outras palavras, seria explicada pelo grau de ansiedade que um leitor tem em saber o que acontece na próxima página.

Veterana de cassinos do mercado editorial, Luciana Villas-Boas diz que nem mesmo a sensibilidade de leitora ajuda na hora de escolher alguns títulos. “Acho que essa sensibilidade vai até se deteriorando com o tempo”, reflete. Ainda assim, experiente no ramo, ela afirma que, em última análise, tudo se reduz a um jogo e que, não, profissionais do marketing e a vasta publicação sobre tendências de consumo não têm relação alguma com o que acontece no mercado editorial.

“É impossível que análises de consumo identifiquem tendências para o mercado editorial.” Ainda segundo Luciana, essas mesmas pesquisas de marketing podem sim ajudar na venda dos livros, mas não na produção deles ou seleção de títulos por parte das editoras. “Se houvesse fórmula o negócio editorial não seria tão difícil. Você tem que apostar em vários títulos que não certo para conseguir achar um que sustenta a editora por muito tempo. Há um elemento de jogo muito grande”, garante.

Nesse jogo de mais exceções do que regras, há três pontos em comum entre todos as pessoas entrevistadas para este texto. A primeira é de que se torna mais fácil promover e vender um título hoje entrando em contato direto com o leitor, seja a partir de comunidades na internet ou mesmo com a bem-sucedida distribuição de livros pela Avon (as revendedoras da linha de cosméticos venderam cerca de 300 mil cópias da Menina que roubava livros por todo o País, incluindo aí localizações sem acesso a livrarias).

O segundo consenso está na resposta do porquê da comum ausência de títulos nacionais na lista dos mais vendidos. “Raramente no Brasil você tem histórias que retratem um momento histórico e que sejam contadas com uma linguagem fina, porém sem malabarismos vanguardistas e sem buscar a linguagem da rua que o escritor desconhece e, por isso, quando escreve, soa muitas vezes forçada”, aponta Luciana. Juliana Cirne, da Intrínseca, pontua que o caso é, em alguns momentos, prioridade administrativa. “Já chegaram coisas muito bacanas de escritores brasileiros, mas ainda não temos estrutura para atender o autor nacional, que é alguém que acompanha mais de perto o processo de edição do livro. Mas estamos crescendo muito, quem sabe logo em breve teremos esse espaço”.

Tomás Pereira, da Sextante, retoma a questão do conteúdo industrial: “Falta quantidade e qualidade” para que romances nacionais se encaixem no perfil comercial. Muniz Sodré segue a mesma opinião: “A quantidade acaba gerando qualidade e o Brasil não tem uma indústria editorial forte que comporte uma grande produção nacional.” Para todos eles, questões de identificações com realidades mais próximas podem muito bem ser substituídas por elementos universais da fantasia que se desloca de um eixo local.

O terceiro ponto em comum no caso específico do Brasil se explica com aquele efeito da síndrome Andy Warhol. Os editores entendem que existem filões temáticos e, para eles, nada mais natural que buscar o melhor caminho na mesma estrada. Até que, um dia, a repetição se esgote, o tema se sature e alguém comece a juntar os misteriosos ingredientes certos para a próxima sopa que irá aquecer o mercado editorial.

Fonte:
Pernambuco. Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado. Edição 51.

sábado, 8 de maio de 2010

Trova 144 - Pedro Ornellas (Marialva/PR)

Barreto Coutinho (Mãe)

Pintura de Sandra Honor (Mãe e Filho)
Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria.
Era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
*****************
Bendita, bendita seja
a mãe, santa sem altar.
Por isso, em qualquer igreja
a gente a pode adorar.
***
É como um vitral de igreja,
de minha mãe o olhar.
Por mais baixo que ele esteja,
parece no céu brilhar.
***
Farto de minhas quimeras,
quando a saudade em mim dói,
eu sinto, mãe, que tu eras
um sonho bom que se foi.
***
Neste dia em que te invoco,
mãe, invade-me a certeza
de que um dia só é pouco
para louvar-te a grandeza.
***
Quando em criança eu brincava
e minha mãe me sorria,
tanto o seu olhar brilhava
que mesmo à noite era dia.
***
Quando a saudade sufoca,
eu rezo, mãe, como sei:
Deus te dê rosas em troca
dos espinhos que te dei.
***
Quando eu murmuro a palavra
mãe, que é da Língua a mais bela,
sobre a minha língua lavra
toda a doçura que há nela.
***
Um par luminoso arde
no céu, perpétua fogueira:
Esposa, estrela da tarde,
Mãe, astro da vida inteira.
-----------
Fonte:
http://www.parana-online.com.br/editoria/

Nei Garcez (Curitiba Turístico em Trovas)


Conheça nossa cidade,
seus shoppings, parques e praças,
e em Santa Felicidade,
bons vinhos, frangos e massas.

Venha fazer um passeio
na Curitiba sorriso.
Seus parques, sempre em recreio,
são formas de paraíso.

Curitiba te convida,
entre o sol, e sem respingos,
conhecer a mais comprida
feira livre dos domingos.

Se você é enclausurado
por ouvir muitos rumores,
deixe a tristeza de lado...
Venha pra Rua das Flores.

Quando a vontade é viajar,
acompanhado, ou sozinho,
nunca fique a divagar...
Curitiba é um bom caminho.

Se você quer conhecer
o mais lindo paraíso,
Curitiba é um renascer
só por causa do sorriso.

Fonte:
Colaboração do Autor

Sylvia Beirute (Caravelas da Poesia)


AÇÚCAR-MATÉRIA

já ter acontecido:
à falta de um vício, ser-me proposto um exemplo
de não exemplo,
o projeto de ser uma mulher de açúcar,
e reverberar a personagem no meu rosto.
e nos anti-corpos da pré-exibição
ver um piazzolla, um piazzolla também de açúcar
e uma composição instantânea, o tango
de uma escalada em condição de cristal.
sim, já ter acontecido, já ter acontecido muitas vezes:
sermos feitos de açúcar, porque
assim que a dança começa, piazzolla,
sempre os corpos desabam.

CONOSCENZA

{o teu reconhecimento é a tua dependência},
não o deixes passar da fase da costura.
surge. insurge. inespera.
adquire expressões através do
eco difuso dos vegetais, coloca-te
nas ranhuras da madeira.
há uma vida imprópria algures.
pode não ser como aquela que espera
na plumagem de uma memória
por antecipação, mas protege o silêncio
e não deixa coagular o sangue.
{o teu reconhecimento é a tua dependência},
e quanto mais o memorizares
mais afastado estarás
dos lados obtusos de quem te deseja habitar
e da semântica temporal
das pessoas que te pedirão um
poema bonito,
e nada pior do que escrever
um poema bonito.

CIDADE-PONTO

{ao tiago gomes, com amizade}
não escrevi um livro em miniatura sob uma lupa falsa.
não pedi qualidade aos clássicos.
não pretendi reparar a eficácia de qualquer sistema humano.
não endossei poemas porque os poemas não são cartas.
não tenho um cativeiro de poetas.
não visitei cidades-poema.
não segui preceitos que se vejam.
não azuleci por pertencer ao céu.
não tive ilusão e coragem para crer na desistência.
não escrevi que o fingimento pode ser um ódio com casca.
não tenho maneiras puramente estéticas.
não tenho processos literários.
não tenho dois corações.
não li masaoka shiki ou matsuo bashō.
não li a crítica para não perder a liberdade e o meu
dom impreparado.
não peguei no tempo e o atirei para dentro do corpo
como células estaminais.
não escrevi sobre a revolução industrial.
não respeitei o meu passado enquanto índice temático.
não estimulei diagnósticos de subtileza grosseira.
não recuperei emoções com a cabeça.
não coloquei questões delicadas no campo da poesia suprema.
não transferi permissões de mim para mim.
não imaginei versos paralelos para prender significados.

DESENHO
{ao meu namorado}

vieste encorpar uma nuvem fria,
a mais convulsiva,
contar segredos às propensões
do corpo infinito, segredos
que eram como aqueles outros
em que resignei sua exaustividade
para fazer acontecer os braços irregulares
de camaleões semi-calmos de exaustão
até às reticências
das gotas.
vieste chover por baixo da minha
métrica maternal com lineares vindimas,
estrangular o ritmo da limpa concreção,
trepar um sujeito longe de algo
que o predicasse
como a paisagem predica
um dia mudo e maravilhoso, violento e
inesquecível.
nós somos nós, nada mais; quer haja
um prazer muito branco ou uma loucura
muito hábil,
quer haja uma primeira ou segunda
infâncias conscientes,
quer haja amor inconforme
ou um pedaço mútuo de razão
germinando numa nuvem muito alta.

IDIOMA

pedem-me que desperdice, que deixe estar,
que me desnomeie com um defeito do sono,
e que desse início desafie uma erudição
com um incêndio no idioma de dentro.
depois oferecem-me uma porta, uma porta
que quando bate sobrepõe
um silêncio de limão sobre a coxa, que
hetero-consome e auto-escurece. dizem-me:
desperdiça, sylvia, deixa {r}estar, põe
cada pé em cada prato da balança do
inacontecido saudável, prediletiza a partir
desse ponto até à humidez do teu ego de exposição.
por fim, deixam-me uma janela que ensina
o modo como os sujeitos procuram os predicados
que inutilizam, e
mostra explicando
a independência da incompletude
daqueles que crescem como flores.
-------------------
Sylvia Beirute (1984) é natural de Faro, Portugal.
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Fontes:
Colaboração da poetisa
http://sylviabeirute.blogspot.com/

Aparecido Raimundo da Souza (Conversa de cavalos)

quadro de David Moraes (Cavalos)
No enorme e luxuoso salão da estrebaria daquele SPA exclusivo para cavalos de fino trato, onde foram deixados, por seus donos, para banho, troca de ferraduras e embelezamento dos pêlos, enquanto esperavam a vez, para regressarem as suas fazendas, dois vistosos quadrúpedes entabulam conversa:

- Desculpe. Ia passando. Conheço o prezado de algum lugar?
- Talvez...
- Como é seu nome?
- Ali.
- Ali aonde?
- Você entendeu errado. Eu sou Ali. Ali de Aculá. E o amigo?

Antes de responder o outro fez uma pose deveras engraçada:

- Bucéfalo VIII. Em romano, esse oitavo. Às suas ordens.

Risos.

- Qual a graça?
- Acaso trabalhou para Alexandre Magno?
- Não tive o prazer. Meu bisavô, Bucéfalo VI deu mais sorte. Chegou a ser o animal predileto dele.

Os dois se voltaram para um terceiro cavalo que, afastado alguns metros, falava e gesticulava ao celular. De vez em quando batia no chão com a pata esquerda, cheio de satisfação.

- E aquele quem é?
- Fale baixo – sussurrou - Ali. - Estamos diante de Rocinante.
- Quem é Rocinante? Nunca ouvi falar, pelo menos até agora. Para mim é um quadrúpede igual ou pior que nós. Olhe para o jeitão dele. Não vejo nada demais nesse sujeitinho. Ao contrário, parece posudo... Meio cheguei, sou o tal...
- Trabalha para Dom Quixote.
- O presidente?
- Seu besta, Rocinante é funcionário de Dom Quixote.
- Confesso que a ferradura não caiu!
- Bucéfalo, você precisa assistir mais televisão. Ler jornais, revistas. Pra ficar inteirado. Cavalo burro, hoje em dia, com toda essa tecnologia de ponta que anda por ai, só serve para puxar carroças. Daqui a alguns anos, até para puxar carroça será preciso fazer um teste de QI.
- Tá. Chega de sermão. Quem é o figuraço?
- O braço direito de Dom Quixote de La mancha.
- Ah! Tô ligado.
- Sabe, ao menos, quem é Dom Quixote?
- Sinceramente? Não!

Ali se preparava para retrucar alguma coisa quando um elegantíssimo manga larga marchador, cheio de medalhas no peito pede licença, interrompendo o bate-papo:
- Perdão, ilustres companheiros: meu nome é Pégaso.

Ali de Aculá se virou para o que acabara de chegar e fez um aceno respeitoso com a cabeça.

- Bem vindo. Em que podemos ajudá-lo?
- Desculpe. Estava ouvindo a conversa de vocês e não pude deixar de perceber que o amigo é bastante esclarecido. Tem "catiguria".
- Faço o possível. Mas espere um minuto: já o vi por aqui, ou em algum outro lugar?
- É possível. Sou muito popular por estas redondezas.

Ali relinchou e sacudiu o rabo para espantar uma mosca chata.

- Lembrei. Claro, como poderia me esquecer?

Bucéfalo, alheio a tudo, o queixo caído, só observava. Não entendia nada de nada do diálogo que seu amigo Ali travava.

- Bucéfalo, meu prezado, este é Pégaso. O famoso Alado da Mitologia Grega.
Pégaso se abriu num sorriso, ao tempo que estendia a pata bem tratada para Bucéfalo.
- Em pessoa. Mil escusas. Em pêlo e presença. Pertenço, com muita honra, a terceira linhagem de excelentes animais de sangue nobre.

Ali também estendeu a pata:

- Bem, amigo Pégaso, eu sou Ali de Aculá. – Bem vindo à roda.
- Então você é o famoso Bucéfalo?
- Na verdade, Bucéfalo VIII. Em romano.
Pégaso relinchou um sorriso maroto:
- Claro, senão ficaria v3.
- Como? V o quê?
- Deixa pra lá. A propósito: Bucéfalo, Bucéfalo... Espere um instante. Meu bisavô, raios, meu bisavô conheceu o seu...
- É?
- Aliás, foram grandes amigos. Para ter uma idéia, pastaram juntos, chegaram a puxar carroças juntos e dividirem a mesma baia. Uma vez, fiquei sabendo, por tio Pangaré Doidão, chegaram a ser flagrados dentro de um paiol de milho...

Ali se interessou pela historia e propôs:

- Por que não nos conta esse fato em detalhes, amigo Pégaso?
- Será um enorme prazer, Ali. Ainda mais agora, que acabo de conhecer dois alazões tão agradáveis.
- E ele ainda está vivo, Pégaso?
- Infelizmente partiu há anos. Contudo, deixou boas recordações à nossa família.

Como integrante dessa terceira geração, me orgulho de fazer parte da linhagem de animais puro sangue.

- Ta legal. Mas e ai?
- Quem me contou, como mencionei a pouco, foi o tio Pangaré Doidão. Bucéfalo - no caso, o seu bisavô, Bucéfalo VI, e o meu, Pégaso I, de certa feita, foram acordados, de supetão, a poder de coices, por nossas bisas.
- E o que eles faziam de errado?
- Estavam, como disse, amoitados num velho paiol de milho.
- Aprontando o quê?
- Dando um trato, numa potranca virgem, que chegara de fora. Bucéfalo VI e, Pégaso I, cansados de transarem com as éguas da fazenda, resolveram partir para cima de uma bela novata que chegara de muito longe. Rapazes deu uma baita de uma confusão. Encrenca das feias, pra ninguém botar defeito. Resumindo, os dois levaram tantas bordoadas, que acabaram no hospital veterinário de um pacato vilarejo de nome Cavalaria. Na confusão, perderam cada um deles, um par de ferraduras novinho em folha.
- Credo-em-cruz! Quem diria!...
- Então, pelo que entendi – os antepassados de vocês dois não eram flores que pudessem ser cheiradas?
- Perfeito, amigo.
- Bem vamos deixar essas coisas de família de lado. Que tal cuidarmos das nossas vidas? Sugiro comemorarmos este encontro. Tem aqui dentro uma lanchonete que serve boa refeição de grama, com folhas verdinhas, sem agrotóxico e água potável geladinha, geladinha.
- Será que eles têm alfafa?
- Tudo o que imaginar meu amigo Bucéfalo. Tudo. Vale à pena conferir. Vamos nessa?

Ali de Aculá, Bucéfalo VIII e Pégaso se puseram a caminho da lanchonete, onde fariam a rápida refeição. Ao se colocarem em marcha, precisaram pedir licença a Rocinonte que, incansavelmente, continuava a tagarelar feito um debilóide, no seu telefone celular.

Fonte:
Colaboração do autor

Renald Bujold (Quem Passou Além do Bojador Passou Além da Dor)


Os Descobrimentos Portugueses

Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!
In A Mensagem de Fernando Pessoa

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M- Então, perguntou o menino: Porque é que Portugal partiu um dia para o mar, velas á solta, em busca do desconhecido ?

A- Quem te contou isso, menino?- respondeu o avô- São visões de poeta! Nunca as coisas se passaram assim.

M- Mas porque? A professora, na aula de Geografia disse que foi o Infante D. Henrique que...Por isso, chamam-no.. o...Gator..., o Aligator!

A- O avô sorriu, acariciando ternamente a cabeleira loura do neto : N-A-V-E-G-A-D-OR, corrigiu-o, e, depois, riu sem se poder conter: o Infante Dom Henrique nunca navegou além de Marrocos e já tinha morrido e os seus ossos estavam mais brancos do que o meu cabelo quando as grandes descobertas tiveram lugar...

M- O menino ficou com os seus olhos enormes, inteligentes, abertos, olhando para o avô com estupefacção.-

A- Se quiseres e se tiveres tempo, vou contar-te a verdade: vou contar-te como tudo sucedeu...

M- Conta, conta, disseram duas vozes em coro, porque, entretanto, a irmã gémea que brincava, ali mesmo, num canto da sala, não tinha perdido pitada sobre o que o avô estava a contar ao irmão e também queria ouvir a história. Na verdade, as histórias do avô eram sempre apaixonantes..., ao ponto de fazer esquecer o cheiro apetitoso da sopa que a avó, a lume brando, confeccionava na cozinha...

Estava um dia frio, de chuva e vento. Sacudiam ambos, ritmicamente, as vidraças. Apesar disso, sentia-se na sala um silêncio de igreja. O momento tinha algo de ritual sagrado.

O avô, sentado na sua antiga poltrona de baloiço com os meninos sentados no chão, cheirou o cachimbo, riscou um fósforo e acendeu lentamente uma boa cachimbada – porque isso acontecia há muito tempo, quando os avôs ainda fumavam o cachimbo, eu era o menino e o avô era o meu avô - , e depois de algumas baforadas que encheram a sala de uma fumaça odorante e ondeante, o avô alisou a barba grisalha e começou a contar a história seguinte com a voz tão forte e grave que se ouvia por toda a casa:

A- Naquele tempo, há muitos muitos anos, até séculos, pouco depois de terem vencido os muçulmanos, os Portugueses não tinham mais nada para fazer, senão coser meias e sonharem, comentou o avô, sem que soubesse muito bem porque estava a distorcer propositadamente a verdade histórica . Tinham ouvido dizer que para o Oriente, numa “das Índias”, porque pensavam que havia várias Índias, vivia um grande imperador cristão, o Preste João, imensamente poderoso e rico, que era ao mesmo tempo preste e rei. Era das Índias donde provinham as cobiçadas especiarias, o marfim, a seda, as pedras preciosas Faziam parte do império do Preste João, toda a espécie de monstros e outros seres lendários...

M- Monstros? exclamaram-se em uníssono os meninos, cujo interesse tinha dobrado O cão que se tinha acostado ao lado das crianças despertou olhando-os com um ar de reprovação. Quanto ao gato, ronronava no tapete em frente à casa.

A- Monstros, sim, repetiu o avô. No entanto, havia mais...Também do lado do poente, os Portugueses daquela época ouviram falar de ilhas, reinos, dioceses lendárias, terras fabulosas, povoadas de bichos monstruosos... no imenso Mar Tenebroso e para além dele.

M- O Mar Tenebroso? Perguntou o neto. E foram eles para lá, para ver?

A- Sentiam-se atraídos, mas contavam-se terríveis histórias com monstros, perigos, obstáculos...O Mar Tenebroso era uma lenda transmitida ou forjada pelos Árabes que descrevia um oceano habitado por seres estranhos e mergulhado numa escuridão constante, onde todos os navios naufragavam nas ondas medonhas ou nas águas ferventes...Além disso muitos estavam convencidos que a terra era plana, um pouco como a parte de cima da mesa redonda da sala de jantar: se viajassem longe de mais encontrariam o fim do mundo e os barcos cairiam num abismo sem fundo. Os amedrontados marinheiros hesitavam pois em ir para Sul ou para Ocidente, por terem medo de não mais voltar. Para Sul, havia como que uma fronteira natural, o Cabo Bojador. A muitos quilómetros de distância do Cabo ouvia-se o rugido das vagas altas que batiam contra os penhascos; a costa era perigosa. Havia nevoeiros espessos...Os marinheiros pensavam que chegavam ao Mar Tenebroso e ao fim do mundo e quando avistavam o longo promontório do Cabo, penetrando com profundidade pelo mar, ficavam convencidos que ali era o limite, a barreira, o fim do mundo, o abismo...

O meninos fixavam o avô com os olhos, como que suspensos nos seus lábios, mas não diziam nada. Lá fora, como que despertando com a história do avô, o vento e a chuva tinham-se intensificado e batiam nas vidraças com mais violência.
O avô como falando a si mesmo recitou com um tom declamatório:
A- “Quem passou além do Bojador passou além do dor”
M- O que é?, perguntaram os meninos em coro.
A- Um poema.
M- Quem o escreveu?
A- Pessoa
M- Pessoa! riram ás gargalhadas as crianças
A- O avô sorriu e prosseguiu, sério: Fernando Pessoa...
M- Então, Pessoa transpôs o Bojador, disse a menina.
A- Não, o poeta Pessoa, viveu muito, muito tempo depois, respondeu o avô sorrindo, nem uma pessoa, mas muitas pessoas transpuseram o Bojador, porque o Bojador como o Mar Tenebroso, era mais ou menos uma coisa na cabeça.., e dizendo isso, o avô coçou a cabeça com o dedo. Na verdade havia ventos muitos perigosos, tempestades, naufrágios, tribos selvagens e ferozes, e até piratas*, mas monstros ou outros seres fabulosos não se vislumbravam. Pouco a pouco, os Portugueses, e outros na Europa daquele tempo, especialmente os comerciantes e os pescadores, movidos por razões fortes, venceram o medo do desconhecido e aventuraram-se cada vez mais longe para sul e para ocidente, amansando pouco a pouco o seu terror aos terríveis Bojador e Mar Tenebroso.
M- Porque? Como foi isso?, perguntou o menino muito admirado. Eu nunca teria podido ser marinheiro: teria tido muito medo dos Monstros ou dos piratas!
A- O ouro, a atracção pelo ouro, repetiu o avô com um ar misterioso. O ouro era o motivo mais poderoso para vencer o medo. As minas de ouro do continente produziam cada vez menos do precioso metal, À Europa faltava-lhe. Precisava-se de ouro, em particular, para comprar as mercadorias preciosas que chegavam do Oriente pelas vias terrestres: especiarias, madeira e pedras preciosas, marfim, seda. O ouro era necessário ao florescimento do comércio.

M- E o ouro encontrava-se no mar? perguntou a menina com a sua ingenuidade habitual, o que pôs o irmão às gargalhadas.

Cortando ao meio as gargalhadas do neto, o avô beliscou ternamente a bochecha da neta e disse-lhe:

A- A ideia não é tão estúpida: o ouro não ficava no mar, mas o mar, o caminho do mar, era a solução.

M- Mas como, avô ?, interrompeu o menino, arrependido, da sua curiosidade natural, superando o seu orgulho varonil.

A- Lembram-se do Preste João e do seu reino fabuloso e riquíssimo? perguntou o avô aos netos, que aprovaram da cabeça. Os Portugueses não sabiam exactamente onde ficava este reino fabuloso mas estavam muito ansiosos e desejosos por encontrar um monarca tão poderoso e rico. Pensavam que o reino ficava numa das Índias, na Ásia, mas não muito longe, porque neste pensava-se que esta parte do norte da África era já a Ásia. Mais tarde soube-se que o lendário reino cristão do Preste João correspondia ao reino da Etiópia e o Preste João foi identificado como o soberano da Etiópia.

Os irmãos intensificaram a atenção quando ouviram o avô falar da África e da Etiópia, porque nas últimas aulas de geografia a professora tinha falado precisamente do continente africano.

A- Além disso, prosseguiu o avô, sentindo a necessidade de acelerar um pouco o ritmo da narração porque o cheiro apetitoso da bela sopa que a sua mulher terminara, era cada vez mais irresistível e já se ouvia na cozinha alguns sons familiares que indicavam que alguém estava a pôr a mesa- os Portugueses pensavam que existia ouro algures em África, e a Sul do reino do Preste João, porque as caravanas árabes ou dominadas pelos Árabes traziam-no para o mundo muçulmano. E isto, porque os Portugueses imaginaram que, percorrendo a costa ocidental da África em direcção ao Sul, os seus navios acabariam por contornar o continente africano e o mundo árabe e encontrariam um caminho para chegarem ás jazidas auríferas e ao reino do Preste João. Mas o continente africano era muito mais extenso do que eles pensavam, e é assim que respondendo ao apelo irresistível do ouro, os Portugueses aventuraram-se, cada vez mais para sul, ultrapassando mesmo o terrível Bojador, até que um dia, em 1488 exactamente, um deles, de seu nome, Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança, contornou a África e assim abriu um caminho marítimo para a Ásia e para as verdadeiras Índias: China, Índia, Japão, etc. Mas isso é outra história.

M- Mas, avô, perguntou, a menina, a quem o ouro havia exercido sempre um grande fascínio: E os Portugueses encontraram o ouro?

A- Encontraram, sim, minha filha. Muito Ouro muitas outras riquezas. Contornando a costa ocidental de África, os Portugueses, como os Espanhóis, tinham encontrado ilhas e arquipélagos, com terras férteis para o cultivo de trigo, de que precisavam também, e particularmente madeira para a construção de barcos e outros usos. Aliás um destes arquipélagos, é hoje uma região autónoma de Portugal que se chama Madeira. Além disso, prosseguiu o avô, com uma certa tristeza na voz, os Portugueses explorando as costas da África e penetrando no interior do continente encontraram outro tipo de ouro: o ouro preto...

M- O ouro preto! exclamaram em uníssono os meninos que nunca tinham ouvido falar nem visto o ouro preto.

A- Isso é uma história muito triste e uma vergonha nacional, comentou o avô, mostrando no tom da voz e na expressão do rosto um real desgosto que os netos perceberam bem. Eu chamo ouro preto, às centenas de milhar, até milhões de Negros, homens jovens, mulheres, crianças, que os Portugueses e outros nações da Europa, arrancaram, com a cumplicidade dos Árabes e também de outros Negros, das costas e do interior de África, para tornarem-nos em escravos para os suas plantações nos arquipélagos e no Brasil, porque, como provavelmente sabem já, outros navegadores tinham viajado para ocidente onde tinham também descoberto terras com muitas riquezas e recursos naturais, e precisava-se de escravos para as explorarem. O transporte dos escravos fazia-se por comerciantes sem escrúpulos e em condições inumanas e terríveis: um grande número deles morria durante a viagem. Os Portugueses usavam os escravos para as suas próprias plantações, mas também as vendiam e isso deu origem a um comércio muito mais lucrativo do que o comércio do ouro. É por isso que de “ouro preto.”

O silencio fez-se na sala mais intenso, pesado. Sentia-se que o avô e os dois netos partilhavam uma mesma emoção. Muito profunda, uma mesma indignação, a mesma dor, de gente simples e sensível, face a uma injustiça irreparável. Depois de uma pausa comprida, foi o menino que rompeu o silêncio de uma voz hesitante e trémula:

M- E, avô, o...Infante Henrique..., também ele teve....fez...o comércio do...do ouro preto?

O avô compreendeu, por esta pergunta do neto, que a sua primeira resposta à pergunta do menino sobre o Infante Henrique, dito o Navegador, tinha ferido o neto na admiração que tinha por este herói que toda a nação portuguesa venera, pelo papel que se lhe atribui nos Descobrimentos portugueses. Então o bom avô quis atenuar um pouco a impressão que tinha dado ao neto a de que Henrique o Navegador era mais ou menos um impostor.

A- Não, menino, é provável que o Infante tenha tido escravos, como todas as famílias nobres da época, mas não penso que tenha sido ele mesmo a fazer esse comércio infame...que se desenvolveu sobretudo após a sua morte.. O Infante Dom Henrique foi uma personagem muito influente e importante da sua época, mas não a mais rica ou a mais poderosa Era um dos filhos do rei João I e recebeu de seu pai o governo perpétuo de todo o Algarve e os direitos sobre a pesca em toda a região. Além disso, entrou numa ordem religiosa, a Ordem de Cristo, cujo comando lhe foi entregue em 1420. Essa Ordem não lhe permitia casar-se, mas podia armar uma frota... Como ele geria uma casa opulenta e tinha muitos empreendimentos políticos e militares, precisava de aumentar o seu património e as receitas, constantemente em maré baixa...Mais do que descobrir novas terras, o que interessava ao Infante era a descoberta das minas de ouro de África! Comparado com numerosos outros aristocratas e nobres do seu tempo, o seu interesse pela navegação e os descobrimentos teve mais a ver com uma motivação para o comércio e as necessidades e o enriquecimento da sua casa, do que com o ideal da expansão e do fortalecimento de Portugal. É provável que o Infante Dom Henrique não tenha navegado muito pessoalmente, mas ele fez muito para tornar possível a navegação e o comércio. Em Sagres, reuniu á sua volta estudiosos de matemática, astronomia, ciência náutica, além de físicos hebraicos e peritos comerciais italianos; fez construir no promontório de Sagres a sua famosa escola de navegação que desempenhou um papel essencial no desenvolvimento da capacidade de navegar á distância que permitiu mais tarde as grandes Descobertas.

O menino pareceu ter ficado satisfeito com a comprida explicação do avô, porque embora o mito do herói Infante, o Navegador se tivesse muito esvaído, a figura do Infante Henrique ainda lhe parecia ter tido um papel importante na história do seu país, até lhe parecia agora, sem o lustro do mito, tomar uma dimensão mais humana. Como o irmão guardava o silêncio, foi a menina que o rompeu com uma pergunta que parecia reter desde vários minutos:

M- E...o senhor Rei..., permitia que arrancassem da África os coitados dos escravos negros?

A- Sim, netinha, respondeu o avô sem que tivesse necessidade de lhe esconder a verdade, mas olhando a neta com muita ternura, os reis permitiam-no. Para os reis como para toda a gente da época, os negros eram pagãos, ou “infiéis”, como os muçulmanos, e não tinham direitos; muitos, interrogavam-se até se os negros tinham uma alma, se eram verdadeiros seres humanos e tratavam-nos como animais... Desde os tempos muito recuados em que os muçulmanos do Norte de África tinham invadido e ocupado o território que abarca o Portugal de hoje, todos os descendentes do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, se queriam investidos da missão divina de combater os infiéis, de repeli-los para fora de Portugal, e até de persegui-los nas suas próprias terras para estender não só o reino de Portugal, mas também o reino de Deus....Eram como os Cruzados que combateram para libertar a Terra Santa do domínio dos Infiéis. Este motivo foi um dos mais poderosos para dar um impulso à expansão e aos Descobrimentos, Por fazerem isso, os Reis de Portugal e dois outros reinos de Europa, obtinham o apoio do Papa que era o monarca mais poderoso da Europa, a quem todos os outros reis dos países católicos prestavam vassalagem.

M- Então porque é, avô, perguntou a menina, depois de uma reflexão profunda, porque é que Portugal ficou sempre tão pobre?....

Neste momento, a porta da cozinha abriu-se e a avó saiu, aureolada por um aroma tão bom que a menina se calou e, voltando-se na sua direcção; dirigiu-se directamente para o grupo, dobrou-se para beijar os netos: Têm fome, não é?, perguntou-lhes, olhando o marido com um olhar cúmplice. Basta de histórias hoje. Vamos comer. E enlaçando os dois netos pelos ombros, a avó seguida do avô, dirigiu-os para a cozinha onde os esperava uma sopa bem quente e bem fumegante.

Fonte:
http://www.teiaportuguesa.com/renaldconto.htm