sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Avulsas III)


A BRUXA

A Emil Farhat

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse nesse minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.

A CÂMARA VIAJANTE

Que pode a câmara fotográfica?
Não pode nada.
Conta só o que viu.
Não pode mudar o que viu.
Não tem responsabilidade no que viu.
A câmara, entretanto,
Ajuda a ver e rever, a multi-ver
O real nu, cru, triste, sujo.
Desvenda, espalha, universaliza.
A imagem que ela captou e distribui.
Obriga a sentir,
A, driticamente, julgar,
A querer bem ou a protestar,
A desejar mudança.
A câmara hoje passeia contigo pela Mata Atlântica.
No que resta - ainda esplendor - da mata Atlântica
Apesar do declínio histórico, do massacre
De formas latejantes de viço e beleza.
Mostra o que ficou e amanhã - quem sabe? acabará
Na infinita desolação da terra assassinada.
E pergunta: "Podemos deixar
Que uma faixa imensa do Brasil se esterilize,
Vire deserto, ossuário, tumba da natureza?"
Este livro-câmara é anseio de salvar
O que ainda pode ser salvo,
O que precisa ser salvo
Sem esperar pelo ano 2 mil.

ACORDAR, VIVER

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

A CORRENTE

Sente raiva do passado
que o mantém acorrentado.
Sente raiva da corrente
a puxá-lo para a frente
e a fazer do seu futuro
o retorno ao chão escuro
onde jaz envilecida
certa promessa de vida
de onde brotam cogumelos
venenosos, amarelos,
e encaracoladas lesmas
deglutindo-se a si mesmas.

(in A Paixão Medida)

A EXCITANTE FILA DO FEIJÃO

Larga, poeta, a mesa de escritório,
esquece a poesia burocrática
e vai cedinho à fila do feijão.

Cedinho, eu disse? Vai, mas é de véspera,
seja noite de estrela ou chuva grossa,
e sem certeza de trazer dois quilos.

Certeza não terás, mas esperança
(que substitui, em qualquer caso, tudo),
uma espera-esperança de dez horas.

Dez, doze ou mais: o tempo não importa
quando aperta o desejo brasileiro
de ter no prato a preta, amiga vagem.

Camburões, patrulhinhas te protegem
e gás lacrimogêneo facilita
o ato de comprar a tua cota.

Se levas cassetete na cabeça
ou no braço, nas costas, na virilha,
não o leves a mal: é por teu bem.

O feijão é de todos, em princípio,
tal como a liberdade, o amor, o ar.
Mas há que conquistá-lo a teus irmãos.

Bocas oitenta mil vão disputando
cada manhã o que somente chega
para de vinte mil matar a gula.

Insiste, não desistas: amanhã
outros vinte mil quilos em pacotes
serão distribuídos dessa forma.

A conta-gotas vai-se escoando o estoque
armazenado nos porões do Estado.
Assim não falta nunca feijão-preto

(embora falte sempre nas panelas).
Método esconde-pinga: não percebes
que ele torna excitante a tua busca?

Supermercados erguem barricadas
contra esse teu projeto de comer.
Há gritos, há desmaios, há prisões.

Suspense à la Hitchcock ante as cerradas
portas de bronze, guardas do escondido
papilionáceo grão que ambicionas.

É a grande aventura oferecida
ao morno cotidiano em que vegetas.
Instante de vibrar, curtir a vida

na dimensão dramática da luta
por um ideal pedestre mas autêntico:
Feijão! Feijão, ao menos um tiquinho!

Caldinho de feijão para as crianças...
Feijoada, essa não: é sonho puro,
mas um feijão modesto e camarada

que lembre os tempos tão desmoronados
em que ele florescia atrás da casa
sem o olho normativo da Cobal.

Se nada conseguires... tudo bem.
Esperar é que vale - o povo sabe
enquanto leva as suas bordoadas.

Larga, poeta, o verso comedido,
a paz do teu jardim vocabular,
e vai sofrer na fila do feijão.

(in Amar Se Aprende Amando)

A FALTA DE ÉRICO

Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de Sexta-feira
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.
Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda - como tarda!
a clarear o mundo.
Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente,
falta o casal passeando no trigal.
Falta um solo de clarineta.

A FALTA QUE AMA

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.129)


Uma Trova Nacional

Por mais que eu garimpe e tente,
nos meus pedregulhos tantos,
nem com lupa ou forte lente
eu não acho os meus encantos.
(TIA PRISCA/SP)

Uma Trova Potiguar

Amo bastante, não minto;
sem envolver-me em lambanças,
sentir saudades, não sinto;
sinto, agradáveis lembranças.
(PEDRO GRILO/RN)

Uma Trova Premiada

2010 > Curitiba/PR
Tema > IMAGEM > Menção Honrosa

A grande riqueza humana
consiste em se perceber
quando a luz do "ter" profana
e ofusca a Imagem do "ser".
(WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ/PR)

Simplesmente Poesia

– Sérgio Severo/RN –
TRIBUTO A NOVA FRIBURGO.

Nova Friburgo se ergue
das brumas de um pesadelo
e não há ninguém que negue:
nunca o fez por merecê-lo.

Essa Cidade tão Bela,
"Capital dos Trovadores",
tornará a ser aquela,
"Eterna Terra das Flores".

Ó Terra dos meus Avós,
permita falar por Vós,
e ao Brasil, todo, eu conclamo:

"Venham à Terra revivida,
de novo, cheia de Vida,
Nova Friburgo, TE AMO!!"

Uma Trova de Ademar

Estão nos desígnios meus
lições de uma eternidade:
só na colheita de Deus
se colhe Fé de verdade!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Para não sentir remorsos
de roubar os beijos teus,
cada dia mais me esforço
de pagá-los com os meus.
(MIGUEL RUSSOWSKY/SC)

Estrofe do Dia

Relembrar um grande amor,
uma ausência lamentar,
ficar triste, suspirar,
ver a beleza da flor,
andar com ar sonhador,
parecendo estar ausente,
isso é banzo recorrente
uma coisa que maltrata,
pois saudade ninguém mata,
é ela que mata a gente.
(JOSÉ ALBERTO COSTA/AL)

Soneto do Dia

– Humberto Rodrigues Neto/SP –
PLÁGIOS.

Há poetas que vivem no ostracismo,
mas julgam-se a si próprios magistrais,
e em tábidas manobras imorais
fazem do plágio seu falaz lirismo.

Surdos à lei e às convenções morais,
entregam-se da inveja ao fatalismo,
essa filha bastarda do egoísmo
que tantos danos à poesia traz!

Por falha herdada de um viver pretérito,
pouco lhes toca que um poema ultrajem
pra disfarçar seu crônico demérito!

Mal sabem os medíocres que assim agem,
que a inveja é até uma forma de homenagem
que prestam, sem saber, aos que têm mérito!

Fonte:
Ademar Macedo

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

João Freire Filho (Caderno de Trovas)


A lua, que nos clareia,
é diferente de quem,
recebendo luz alheia,
não ilumina ninguém!

Ante a dor... não esmoreço,
sabendo, em meu caminhar,
que a Vida não cobra preço
que não se possa pagar

A Terra vive conflitos,
sangrando, de guerra em guerra,
e é com voz branda... e, não, gritos...
que se há de ter Paz... na Terra!

A saudade é dependência...
É meu vício, em tal medida,
que você se fez a ausência
mais presente em minha vida!

As revoltas não têm fim
e explodem cada vez mais,
que a fome acende o estopim
das convulsões sociais!

A tormenta, que atordoa,
não distingue, em mar bravio,
a humildade da canoa...
da soberba do navio!...

A Verdade anda tão rara,
que a Mentira, sorridente,
já nem sequer se mascara
para enganar tanta gente!

A vida me presenteia
com tamanhas alegrias,
que a tristeza é um grão de areia
na ampulheta dos meus dias!

Bendita a fonte escondida...
que escorre e, por onde passa,
trazendo a graça da vida,
dá tanta vida de graça!

Cai na rua... Perde o tino,
no alcoolismo em que se esvai...
E, aos passantes... um menino
diz, inocente: - "É meu pai"...

Cantando terno estribilho
e esquecendo que era escrava,
Mãe Preta aleitava o filho
de quem os seus açoitava!...

Com sabor de penitência...
de brinde contra a vontade,
vou bebendo a tua ausência...
em meus porres de saudade!

Da ternura ao desvario..
do desvario à ternura,
nosso amor vive no fio
da mais sublime loucura...

Distante, a lua prateada,
entre nuvens de inconstância,
me lembra a mulher amada...
mais amada... se à distância!

Distante do olhar das ruas,
num sonho que me enternece,
em nosso céu brilham luas
que só nosso amor conhece!...

Dos meus tempos mais risonhos
descubro, agora, os segredos:
- cabia um mundo de sonhos
no meu mundo de brinquedos!

É o desvario do mando
de alguns Senhores da Terra...
que implanta, de quando em quando,
os desvarios da guerra!

Eu compreendo os desvios
a que leva uma paixão...
As vezes, são desvarios
que dão à vida... razão!...

Fim do amor... Desiludidos,
sabemos juntos, mas sós,
que há silêncios inibidos...
tentando falar por nós!

Hoje, em meu leito, sem ela,
enquanto resisto ao sono,
a Saudade é sentinela...
dando plantão... no abandono!

Imperfeito, eu rogo, aflito,
por nosso amor, que é perfeito:
- Não faças de mim um mito...
que mitos não têm defeito!

Liberdade -- sentinela
da Paz, em qualquer lugar!
E quem não lutar por ela...
não tem mais por que lutar!

Lutando por ideais,
mesmo à beira da utopia,
tenho enfrentado os "jamais"
com meus "sempres" de ousadia

Meu coração se acautela
e, imerso em desilusões,
faz da razão sentinela...
contra novas invasões!

Meus ideais mais risonhos
correm livres, sempre em frente,
numa corrente de sonhos,
que rompe qualquer corrente!

Na vida, que te conduz
às mais diversas pelejas,
se não puderes ser luz,
que, ao menos, sombra não sejas!

Nosso amor, desde o começo,
tem tal alcance e medida,
que, quanto mais envelheço,
mais o sinto... além da vida!

O meu amor te ocultei!
Seguimos rumos diversos...
Passou-se o tempo, e, hoje, eu sei:
- permaneceste em meus versos!

Poeta é aquele que abraça
a noite, sentindo-a sua,
e bebe estrelas na taça
inspiradora... da lua!

Quem ama... libera o ardor
dos impulsos naturais,
que, em desvarios de amor,
loucura alguma é demais !

Quem tem a luz do saber,
muito mais que outro qualquer,
tem de cumprir o dever
de ser luz... onde estiver!

Saudoso, namoro a Lua
e sinto, por seu feitiço,
que o nosso amor continua,
embora nem saibas disso!

Sonhador, poeta... e amante
de quanto a vida me dá,
que importa a lua distante...
se os meus sonhos chegam lá ?!...

Tenho um segredo profundo
- e, é de amor... – e, tarde ou cedo,
eu gostaria que o mundo
soubesse desse segredo!

Teu ciúme, cortando os laços
do nosso amor, me magoa...
mas meu amor abre os braços
e, por amor, te perdoa!

Toda noite ela regressa
em meus sonhos erradios...
Não há distância que impeça
de eu tê-la... em meus desvarios !

Vem do sol a luz de prata
que parte da lua encerra...
E a lua, modesta e grata,
deita pratas sobre a terra!

João Freire Filho (1941)



Nasceu no Rio de Janeiro, em 29 de maio de 1941.

Cursos de Bacharel pela Faculdade de Letras e Licenciatura pela Faculdade de Educação, ambas da UFRJ. Também em ambas foi professor, tendo se aposentado após mais de 35 anos de serviço.

Foi também diretor do Colégio de Aplicação daquela universidade.

Iniciou-se na Trova em 1979. Sua primeira premiação foi em São Bernardo do Campo, no mesmo ano.

Magnífico Trovador (gênero "líricas e filosóficas") por Nova Friburgo.

Ex-presidente da UBT - União Brasileira de Trovadores.

Lançou, em 2007, o livro de trovas "Entre achados e perdidos".

Lygia Fagundes Telles (Dia de Dizer Não)


Esse dia vai ser hoje, resolvi quando acordei: dia de dizer Não! E pensei de repente em Santo Agostinho, o vera artificiosa apis Dei - abelha de Deus. Admirada e amada abelha de caráter tão forte que conhecendo o sim e o não na sua natureza mais profunda cedeu para em seguida resistir, ah! Como ele resistiu até se instalar na cidade sonhada. Não! ele disse ao invasor daquele tempo e que devia ser parecido com o invasor atual, esse invasor-cobrador a ocupar um espaço que não lhe pertence.

Falei na Cidade de Deus. E estamos nesta cidade aqui embaixo onde tem invasor de todo tipo, desde os extraterrestres (em geral, mais discretos) até aqueles mais ambíguos: o invasor da vontade. Esse vem mascarado. Aproveitando-se, é claro, do mais comum dos sentimentos, o da culpa. No imenso quadro do mea culpa, a postura fácil é a da humildade que quer dizer fragilidade. Isso comove o invasor? Não comove não, ao contrário, ele se sente estimulado a insistir até dobrar a vontade enferma que acaba por ceder fortalecida na crença de que mais adiante pode se libertar. Libertou-se? Não porque o sim vai se multiplicando como os elos de uma corrente na qual ele se enrola, passivo. E acreditando lutar porque não perde a esperança. Mas a esperança é cega e na desatinada cegueira acaba por se transformar na esperança da desesperança.

O próximo que Jesus pediu para amar, eu sei. Mas Ele está vendo como ficou o próximo neste século. E não estou pensando no próximo real (o povo) mas nesse próximo oficial, o político-invasor que nem está se importando realmente quando ouve a recusa: faz uma cara aborrecida mas logo vai tomar chope ou cocaína e esquece. Contudo, mostra-se exigente. E costuma fazer perguntas no tom de quem não aprecia respostas pessimistas, o cobrador é o oposto do negativista. Tudo bem?, ele pergunta e o invadido deve responder, Tudo bem! com aquele ar atlético de quem já deu a volta por cima quando na realidade está caído de borco no chão. É o sim do comodismo. Da servidão.

A cega esperança. Com os cegos encarneirados no servilismo que gera a insegurança. O medo. Medo até de sentir medo e daí a fragilizada vontade sonhando com a evasão. Com a fuga. Mas fugir para onde se a Miséria e a Violência (as irmãs gêmeas) estão em toda parte num só galope, montadas nos pálidos cavalos do Apocalypse. Neste Ano do Dragão (Horóscopo Chinês) o homem ficou mais cruel ou ele foi sempre desse jeito mesmo? Dia de dizer Não. Peço a Deus que aumente a minha fé, peço tão ardentemente, é a depressão? E esta dor não localizável, outra gripe? Por pudor não me jogo no chão nem arranco os cabelos que já estão ralos na cabeça dolorida, mas onde está aquele bom invasor (o extraterrestre) que vai ensinar a desatarraxar a cabeça latejante para dependurá-la com delicadeza no cabide? Dissolvo aspirinas. Uma parte de mim mesma se deita no escuro enquanto a outra parte (estou dividida) me aponta a rua. Porque já tem um cobrador no éter (o telefone) cobrando e interpelando, Por que essa voz? Engulo depressa a saliva e respondo que estou bem. Estou ótima! posso até declarar aos quatro ventos, quais são os quatro ventos? Esqueci. Sei de um único vento que apenas varia de intensidade assim como a Pizza dos Quatro Queijos, atração do restaurante: a gente encomenda e ela vem soltando fumaça, quatro queijos! Na realidade, há um único queijo que vai variando ao capricho dos molhos. A solução é fingir (mentir) que a gente acredita e de mentira em mentira ir regredindo até culminar no triunfo do otimismo só alcançado por aquele filme, lembra? O galã levou uma rajada de metralhadora no peito, a camisa ensopada de sangue (suco de tomate ou calda de chocolate?) e ainda assim consegue chegar rastejante até o policial que faz a clássica pergunta: Tudo bem? E o galã responde, Tudo bem! quando devia gritar, Que merda, eu estou morrendo! Mas nesse pedaço entram os violinos (cinema comercial norte-americano) e o galã fica sentimental porque pensa na amada. Mais violinos. Horas non numero nisi serenas! - ele pode citar com a ênfase do relógio no jardim parisiense, Conto somente as horas felizes!
Contagem em dólar! sopra o materialista eufórico. Pois é, a ênfase.

“As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade. Ficam tristes as coisas e a espécie humana, eu acrescento. Com a licença dos ateus eu queria dizer ainda que na ênfase está a alma.

Tive a minha juventude tão impregnada pelo som colonizador que considero um milagre me ver insubmissa nesta altura, tentando desde sempre - ai de mim! - forjar uma vontade com a resistência do ferro.

Manhã de céu claro. Limpo. O motorista do táxi liga o rádio e pergunta se quero escutar esse político falando. Não, respondo. Digo que não gosto de discurso e ele sugere então uma música sertaneja, já estacionou no canal das violas. Desafinadas, descubro e me calo: se essa sua cordialidade não tiver resposta, ele vai se irritar e na irritação pode trombar com o carro da frente, um ônibus que já está invadindo o nosso espaço. Cuidado!, eu sussurro e me encolho inteira para não ser arremessada para fora. Num impacto do qual saio, no mínimo, com uma perna quebrada. Tento relaxar enquanto vou brincando (brincando?) com as idéias: imagino uma senhora de perna quebrada e entrando num pronto-socorro público em dia útil. Ou inútil, não importa, sempre há gente demais. Demais! - exclama o médico ao qual me dirijo com delicadeza, na insegurança a voz fica delicadíssima. A senhora teve apenas uma fratura, ele diz. E olha só como está isso!, explode e corre em seguida para receber um capacete de motoqueiro com miolos dentro. O policial com o capacete está gaguejando, pois o jovem teve a cabeça prensada contra o poste e na colisão ficaram esses miolos, ele esclarece estendendo o capacete. Recolhi o que pude, esclareceu e apontou para o corredor: O corpo é aquele que está ali... Que estava, porque a padiola já vai sendo rapidamente removida. O policial e o médico, ambos precisam correr atrás dessa padiola. Em vão, porque foram interceptados por outro médico que chega esbaforido e perguntando pelo corpo de outra vítima, outra?! Esse segundo médico aponta para a padiola onde está apenas um braço amputado e meio enrolado numa folha de jornal com respingos de sangue. Pasmo total dos dois médicos e do policial gaguejante. Mas logo aparece um senhor bem barbeado, metido numa elegante malha esportiva. Apresenta-se como testemunha: Este não foi um acidente mas um assalto, ele diz fechando o zíper do blusão azul. Eu vinha fazendo o meu cooper quando vi num buraco do asfalto um dedo apontando no meio da lama, tinha chovido, doutor. E o bueiro entupiu, o senhor sabe, estão sempre entupidos. E o braço decepado pelo elemento foi cair justo nesse buraco, o susto que levei! O segundo médico (o primeiro já tinha desaparecido com o policial) inclinou-se para ver melhor o braço com placas de lama e sangue. E ainda com uns restos do tecido da camiseta cavadona, o calor. A testemunha abre o zíper do blusão e prossegue: A vítima vinha guiando o seu Gol último tipo quando fechou o sinal e lá veio o elemento com o revólver que falhou. A vítima então abriu o vidro da janela e abriu os braços, a recomendação é essa, a vítima não deve jamais reagir, ao contrário, deve demonstrar afeto. Infelizmente o elemento não entendeu e puxou a peixeira, tinha falhado o revólver, já dei esse detalhe. E todo mundo que ia passando por perto e fazendo que não estava nem aí, todo mundo vendo e disfarçando enquanto o elemento continuou completando o seu serviço! arrematou a testemunha apontando para a padiola. Puxou o maço de cigarro do bolso do blusão e interrompeu o gesto quando leu o aviso, É proibido fumar. O médico inclinou-se atento até à padiola, Mas o corpo? Onde está esse corpo? A testemunha empertigou-se: Também não sei, doutor! Suponho que o corpo veio na frente, está por aí, disse e apontou vagamente para o corredor atulhado de padiolas e camas improvisadas. Só encontrei esse braço que esqueceram no local, conforme já disse. O resto mesmo eu não sei onde foi parar, isso daí eu não sei. O médico tirou uma pinça do bolso do avental e futucou o corte sob a crosta de sangue: Um trabalho perfeito, disse.

Recolho as pernas para bem junto do banco e olho aflita para o motorista que está atendendo a um chamado no seu celular, dirige apenas com a mão esquerda. Enfim, o ônibus ameaçador já desapareceu no tumulto. Consigo moderar a respiração. A charanga das violas segue livre no rádio e agora o motorista guia com ambas as mãos, depositou o celular ao lado. Abro uma nesga no vidro da janela e onde o vendedor já introduziu uma caixinha, Morangos, dona? Digo Não e vou repetindo o Não ao vendedor que oferece panos de limpeza e ao outro que oferece chicletes, vassouras... A miséria trabalhando, penso e digo um Não mais brando ao moço que oferece uma cestinha de violetas. Aproxima-se um pequeno cacho de mendigos. Fecho depressa o vidro e no espelhinho vejo a cara congestionada do motorista que me lança um olhar agressivo, Está quente, não?

Na avenida ensolarada, a miséria (aquela galopante) me pareceu mais calma. Ainda assim, presente. Abri o vidro da janela esquerda quando o sinal fechou lá no cruzamento. Abre logo! fiquei desejando. Mas esse era um farol distraído, tão distraído que deu tempo para o menino vendedor de bilhetes de loteria vir vindo capengando: equilibrava-se nas muletas debaixo dos braços ossudos e ainda assim avançava rapidamente, esgueirando-se ágil por entre as filas de carros. Mesmo lá longe devia ter visto a janela aberta e agora chegava triunfante. Pronto, conseguiu, pensei recuando enquanto a mão magra entrava pela abertura, não vendia bilhetes mas papel de cartas.

- Cartas perfumadas! anunciou com voz estridente ao abrir o leque colorido de envelopes. Mande uma carta perfumada, olha só, esta tem perfume de rosa! Esta daqui é de jasmim, coisa linda!

Escorreguei para o canto oposto do carro e ele insistindo a sacudir o arco-íris de papel. Senti o perfume adocicado e voltei o olhar ansioso para o farol vermelho, tão vermelho! mas não vai abrir?! E o menino magrela e dentuço falando sem parar, Carta azul é para amigo mesmo, mas esta daqui cor-de-rosa, está vendo? esta é carta de amor! Esta daqui branca é de amor que acabou mas esta roxa é a carta da saudade, a saudade é roxa, leva tudo e faço um preço especial!

Fixei o olhar nas suas duas muletas, uma de cada lado a sustentar o tronco ossudo e saltado sob a camiseta de propaganda política. Então me lembrei de minha mãe lá no seu jardim, as mãos sujas de terra tentando segurar com duas estacas a planta murcha, vergada para o chão.

- Não tenho a quem escrever.
O menino riu a sacudir o maçarote.
- Mas nenhum namorado, uai!

O motorista achou graça e sacudiu os ombros num risinho de cumplicidade, O perfume é bom! aprovou em voz baixa. Voltei-me para o sinal, mas não vai abrir nunca mais? E aquela intimidade que de repente se armou ali dentro, a música sertaneja no auge das violas e o menino também no auge do entusiasmo, a sacudir as cartas:

- Escuta só isso, ele pode estar longe mas vai voltar correndo se receber esta carta verde que é do perdão. Puro cravo!
- Abriu! O sinal abriu, anunciei ao motorista distraído, todo voltado como um girassol para o vendedor.

Ele retomou a direção, eu disse o Não definitivo e as filas dos carros recomeçaram a avançar furiosamente. A mão alada fugiu feito um pássaro pela fresta do vidro. Vi ainda a silhueta magrela esgueirar-se capengando entre as muletas e desaparecer atrás de um jipe.

- Fica para outra vez, eu disse fechando a janela.
- O perfume era bom, resmungou o motorista.

Ele estaria me censurando ou a censura estava apenas em mim? Fui cumprindo as tarefas da rotina: uma passagem pelo banco que achei diferente, mas onde está aquele antigo clima de amenidades, de confiança? Tantos homens
armados. As caras severas - mas este banco virou um quartel? Ouço sem emoção as ofertas de valiosos planos que o gerente oferece e aos quais vou educadamente recusando, Não, não... Parto em seguida para o corredor tumultuado dos Correios e Telégrafos. A fila é bastante longa e então tenho tempo para ouvir os apelos, esta mulher com uma criança quer dinheiro para comprar os remédios, o homem desdentado pede uma passagem para voltar ao Nordeste, o moço com chapéu de vaqueiro quer que eu participe de um sorteio fantástico, posso ganhar um carro importado! Não, Não... vou repetindo e no cansaço faço agora apenas um gesto meio vago para o mendigo que me aborda na calçada e que fixa em mim um olhar interpelativo, Mas o que a senhora tem aí no peito? Uma pedra?

- Podemos ir, eu disse ao motorista que me aguardava no táxi. Ele tinha desligado o rádio e examinava um folheto. A cara fechada.
- Onde agora?

Fiquei muda ao sentir que meu semblante tinha descaído como os semblantes bíblicos nas horas das danações. Baixei a cabeça e pensei ainda em Santo Agostinho, “a abelha de Deus fabricando o mel que destila a misericórdia e a verdade”. Afinal, o dia de dizer Não estava mesmo cortado pelo meio porque na outra face da medalha estava o Sim. A vontade podia servir tanto de um lado como do outro, o importante era escolher o lado verdadeiro e para isso seguir a inspiração da razão. Ou do coração? Ora, liberdade nessa inspiração, toda a liberdade para não me sentir como estava me sentindo agora, uma esponja de fel. A ênfase da inspiração! decidi e levantei a cabeça no susto da revelação: o menino das muletas! Era nele que pensava (e não pensava) o tempo todo.

- Por favor, vamos voltar para o mesmo caminho, pedi ao motorista. Quero comprar as cartas daquele menino, vou comprar todas! anunciei e ouvi minha voz com alegria.

Ele voltou a ligar o rádio. Deu a partida:

- O perfume era bom.

Lá estava o cruzamento da avenida e com o mesmo farol vermelho acendendo glorioso. Abri rapidamente o vidro da janela, Que sorte! E procurei ansiosamente, Mas não era por aqui que ele estava? O motorista saiu do carro para ajudar na busca, olhou para um lado, para o outro, gesticulou. Fez perguntas, E aquele moleque das muletas?...

Abri a porta e perguntei ao jornaleiro, Onde está o vendedor das cartas, você conhece? Então, aquele... ah! onde a mão ossuda sacudindo o jardim do arco-íris, onde?! Vi o vendedor de figos e vi a menina dos caramelos. Fui olhar da outra janela e dei com o jovem dos potes de flores.

- Um menino de muletas vendendo cartas! perguntei e as pessoas tentando vagamente ajudar, Cartas?...

O motorista voltou para a direção, lá adiante o farol já estava verde.

- Mas onde esse moleque foi parar?

Vi ainda o jornaleiro e o camelô dos relógios, vi a mocinha distribuindo anúncios de imóveis, e o menino das cartas perfumadas, esse eu não vi mais.

Fonte:
TELLES, Lygia Fagundes. Invenção e Memória. Editora Rocco, 2000.

Lígia Leivas (Um Gaúcho de Coração Calado)


Pelas bandas das coxilhas, na vasta estância a perderem-se de vista seus limites, vivia ele de viver os dias como ordenasse o destino ou quisesse o senhor lá de cima... sabe-se lá... Apenas o olhar fazia arabescos a mostrar que o velho gaúcho sentia coisas mais além do que o seu jeito sossegado aparentava. Sem mulher, sem filhos, sem família, servia o patrão estancieiro com lealdade e respeito. Viera parar ali ainda guri, à procura de trabalho. Todos os que o conheciam, tratavam-no com consideração e certa distância. Havia noites em que se ouvia ao longe o som de sua gaitinha de boca, tocada admiravelmente. De pouquíssimas palavras, era mesmo um homem estranho. Mas estimado. E ninguém o queria perder de vista, nem imaginavam que ele um dia pudesse ir embora dali.

E assim ia o tempo. Quando sobravam algumas horas, o gaúcho atendia as redondezas nas estâncias e fazendas e assim ganhava uns trocados que nem tinha em que gastar.

Um dia chegou da cidade grande um casal parente dos patrões. Ele, homem vistoso, de bom gosto, roupas elegantes e ainda um sorriso pronto, franco. Ela, jovem senhora, moça fina, pele morena, muito, muito bonita. Tudo mudou na estância.

O serviço aumentou. Mais almoços, mais arrumações e limpezas. Mais passeios, na tentativa de conhecerem toda a propriedade. Era preciso manter tudo sem qualquer sinal de desleixo.

O gaúcho sempre quieto e fazendo suas lides. Apenas observava o ambiente enquanto completava as tarefas. Tinha prazer em mostrar suas habilidades para assim também agradar os visitantes.

À noite, na roda do chimarrão, enquanto todos conversavam e ele organizava as atividades para o outro dia, ficava a olhar, encantado com a moça e sua beleza, sua simpatia. Até pensara em comprar para ela um colar de continhas que vira lá no armazém da vila. Enfim, sentia que o mundo por ali havia mudado. Um novo colorido e até uma vontade de andar mais garboso, com botas em vez de alpargatas; com bombachas mais alinhadas; com os apetrechos de gaúcho mais cuidados. Até o lenço vermelho voltara a usar no pescoço.

Passados mais de dois meses, cedinho ainda, manhã já com ares de primavera, o gaúcho surpreendeu-se ao ver a moça montar o baio e sair campo afora... Ficou matutando, pensando, enquanto enrolava seu cigarrinho de palha. Não demorou muito, meia hora depois, o marido, troteando um alazão, embretou-se campo adentro, levantando a poeira dos caminhos. Que teria acontecido?...

Passou o meio-dia, a tarde, a noite. Não voltaram naquele dia. Nem no outro, nem no seguinte. Começaram as buscas. Naquelas lonjuras, tudo muito difícil. Sabia-se que por aquelas terras havia lugares que nenhum homem ainda havia pisado.
Todos - ou os poucos - daquelas paragens diziam alguma coisa, davam opinião. Mas ninguém sabia nada mesmo e nem poderiam imaginar.

Quando chegou a próxima lua cheia, uns dez, doze dias depois, o casal finalmente foi encontrado lá pelas barrancas do rio Uruguai... o colar de continhas ainda enfeitava o esguio pescoço da mulher bonita. Nem o moço vistoso perdera seu jeito bonito.

Naquela noite, o gaúcho tocou por muito mais tempo sua gaitinha de boca. E a quietude parecia mais profunda...

No domingo seguinte, já com certo calor nas pradarias, o gaúcho não levantou na hora de costume. O cão, seu leal companheiro, também dormia sossegado no portal do rancho.

Era preciso fazer a ordenha. Por que o gaúcho ainda não se mexeu hoje, perguntou o patrão a um outro peão.

Encaminharam-se para o rancho.

No catre forrado de pelego de ovelha, no canto do quarto, o gaúcho, enrijecido, tinha apertada entre as mãos a fotografia do moço bonito que viera da cidade grande para distribuir sorrisos - coisa pouco comum naquelas plagas distantes.

Fontes:
Revista "Recanto da Prosa e do Verso" ano III Setembro de 2010 . Portal CEN.
Imagem = Pagina Aberta

Folclore Latino-americano (Acoitrapa e Chuquilhanto)


Na cordilheira que fica em cima do vale de Yyucay, em Cusco, pode-se ouvir todos os sons. O vento sopra com sua bocarra; a manhã, obrigada a se levantar sempre antes dos outros, boceja morta de sono; os pássaros, seus eternos namorados, acordam cantando ao ouvi-la se espreguiçar.

De repente, silêncio. Acaba de chegar Acoitrapa, o pastor de lhamas. Ele é jovem e belo. Toca a quena tão docemente, que até as flores mais tímidas se abrem e despontam entre os galhos das árvores para escutá-lo.

Certa vez, as duas filhas do sol passaram perto de seu rebanho. Encantadas com a música, se aproximaram para ver quem tocava tão bem assim aquele instrumento. O pastor ficou deslumbrado ao vê-las. Os três conversaram e riram, sem se preocupar com o correr das horas.

Quando o sol se escondeu, as jovens, com muita pena, precisaram se despedir. O pai permitia que passeassem pelo vale, porém ai delas se não chegassem em casa antes do anoitecer!

Chuquilhanto, a mais velha, se sentiu mais triste que sua irmã. Sem saber como, se apaixonara por Acoitrapa.

Chegando ao palácio, Chuquilhanto não quis comer. Correu para o quarto, a fim de ficar sozinha. Deitou-se, fechou os olhos, ficou se lembrando de seu doce pastor, e então adormeceu. Em sonhos, viu um belo rouxinol que cantava suave e harmoniosamente. Falou-lhe, então, de seu amor e de seu medo: temia que seu pai considerasse um guardador de lhamas muito pouco para uma filha do sol.

O rouxinol, comovido pela aflição da jovem, lembrou-lhe que no palácio havia quatro fontes de água cristalina: se ela se sentasse no meio delas cantando o que o seu coração sentia, e as fontes lhe respondessem com a mesma melodia, significava que poderia fazer sua vontade e que seus desejos seriam atendidos.

Chuquilhanto acordou. Lembrava-se perfeitamente do sonho. Vestiu-se depressa e foi aos jardins do palácio. Ali estavam as fontes, dando de beber à manhã. Seguindo as instruções do passarinho, Chuquilhanto sentou e começou a cantar uma triste melodia. As fontes entenderam a sua angústia e manifestaram isso cantando em uníssono, consentindo, portanto, em ajudá-la. Chamaram a chuva e ordenaram-lhe que transmitisse ao pastor o carinho que Chuquilhanto sentia por ele.

A chuva saiu a cântaros do palácio, em direção à choupana de Acoitrapa. Ao encontrá-lo, banhou-lhe o coração com a imagem da jovem.

O pastor, com o peito traspassado pela saudade da princesa, se pôs a tocar sua quena, com tanta tristeza, que até as frias pedras se comoveram. Desolado, compreendeu que o sol jamais permitiria que a filha se casasse com um pobre guardador de lhamas. Mas, que cansada estava sua alma de tanto sonhar com Chuquilhanto! Assim, adormeceu com a quena apertada entre os dedos.

Ao anoitecer, chegou sua mãe. Vendo os olhos do filho cobertos de lágrimas, pressentiu o que estava acontecendo. Como boa velhinha, sabia que um homem só chora dormindo quando está longe de sua amada. A velhinha não suportava ver o filho sofrer. Pensando num modo de aliviá-lo, lembrou-se de um velho bastão mágico que herdara de seus antepassados e que serviria perfeitamente a esse propósito. Então, arquitetou um plano; ordenou ao filho que fosse para a montanha, que se ocupasse do rebanho.

Enquanto isso, Chuquilhanto despertara com os primeiros raios de sol. Agora sentia o coração otimista, os pés leves e um só desejo: encontrar seu amado. Apostando corrida com o vento, chegou à choupana de Acoitrapa. Ao ver que ele não estava, seus olhos se encheram de lágrimas. Tratou de disfarçar sua tristeza e se dirigiu à velhinha, que a olhava com atenção:

— Boa velhinha, tudo na senhora é belo! Jamais vi um bastão semelhante a esse que está em suas mãos. Suas pedras preciosas nada têm a invejar dos campos de flores e brilham como a lua cheia.

— Minha filha — respondeu-lhe a velha —, os seus olhos sabem apreciar o que é belo. De agora em diante, este bastão é seu, sei que o deixo em boas mãos.

Chuquilhanto agradeceu e, acariciando as alvas tranças da senhora, recebeu o bastão.

— Obrigada, boa senhora!
— Adeus, Chuquilhanto — despediu-se a velhinha. — Que o amor a acompanhe!

Chuquilhanto fez o caminho de volta ao palácio. Quando cruzou a porta, os guardas, notando a tristeza em seus olhos, se perguntaram em voz baixa:

— O que estará acontecendo com a princesa que, mesmo possuindo tantas riquezas, tem tanta melancolia?

Quando, por fim, ficou sozinha em seu quarto, pôs o bastão de lado, se atirou na cama e caiu num pranto desconsolado, pensando em seu pastor.

De súbito, que susto! Que surpresa! Alguém a chamava pelo nome! Acendeu a lamparina, com cuidado para não fazer o menor ruído, e viu que o bastão mudava de cor: do rosa ao prateado, do verde ao vermelho, laranja, azul e mil tons diferentes. A voz que a chamava provinha do bastão, não havia dúvida.

— Não se assuste — disse-lhe. — Sou o bastão mágico do amor. Minha missão é unir e proteger os que se amam e sofrem por estar separados.

Chuquilhanto já não sentia medo. Ao contrário, estava maravilhada. Então, o bastão mágico se abriu como uma flor, no centro da qual apareceu Acoitrapa. Ela se aproximou, abraçaram-se, beijaram-se e, cobrindo-se com finas mantas, dormiram juntos.

Ao alvorecer, temendo o castigo do sol, os jovens amantes fugiram do palácio. Mas um guarda os viu sair e imediatamente avisou o pai de Chuquilhanto. Furioso, o sol se pôs à testa de um grande exército e partiu atrás dos fugitivos. Estes, de longe, escutavam sua voz irada apressando os soldados.

Depois de se distanciarem do sol e de suas tropas, esgotados pela longa corrida, os jovens pararam para descansar. Sentados sob a folhagem de um altíssimo eucalipto, se olharam: havia amor em seus olhos. Sabendo-se perdidos, porque cedo ou tarde o sol os alcançaria, fizeram um último pedido ao bastão mágico:

— Transforme-nos em pedra. Assim, nada nem ninguém poderá nos separar.

O bastão, cuja única missão era unir os que se amam, realizou o último desejo do casal. E ainda hoje, perto do povoado de Calca, existem duas estátuas de pedra, que os habitantes da região chamam Pitu Sirai. São Chuquilhanto e Acoitrapa, amando-se para sempre.

Fontes:
Ana Rosa Abreu et al. Alfabetização : livro do aluno / Brasília : FUNDESCOLA/SEFMEC, 2000.
Imagem = http://elmundodegladiola.blogspot.com/

Amélia Pinto Pais (Da Criação Poética)


"Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j'ai fait n'est pas bon, je n'en suis plus responsable; c'est que je ne peux vraiment pas faire mieux". Henri Matisse
(Eu trabalho como posso e da melhor forma possível, todos os dias. Eu dou todo o meu potencial, todos os meus meios. E então, se o que eu fiz não é bom, eu sou mais responsável, porque eu realmente não posso fazer melhor)
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A Flor
Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.

Passado algum tempo o papel está cheio de linhas, umas numa direcção, outras noutra; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.

Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.

Depois a criança vem mostrar essa linhas às pessoas: uma flor!

As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!

Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!
José de Almada Negreiros
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Vou partir deste belíssimo texto poético de Almada Negreiros para abordar um pouco a questão do que é a criação poética e do fazer poético na óptica do criador e na óptica do destinatário, o leitor de poesia.

Assim: — segundo Almada, criar é fazer o percurso que a criança faz, ao desenhar, a pedido, uma flor. Segundo ele, a palavra "flor" entrou na cabeça da criança, foi da cabeça para o coração e deste outra vez para a cabeça, em busca das linhas com que se desenha uma flor. Terminado o processo (que é, afinal, de criação), a criança apresenta o seu produto — em que eventualmente o adulto não reconhece a flor — mas em que Deus se reconhece, pois são essas as linhas com que ele mesmo a fez.

Ora bem: — parece-me a mim que outra coisa não é que aquilo que os poetas sempre fizeram e Fernando Pessoa teorizou na sua célebre "Autopsicografia"1, ao afirmar, como base da criação poética, a noção de "fingimento" — segundo ele, o poeta "finge" a dor "que deveras sente". Que pretende ele dizer? Que o poeta mente? Não creio, nem ele diz tal. O que ele afirma aqui é o primado da dor eventualmente sentida (com o coração ou com a imaginação). Mas sentir é sentir, imaginar uma dor é imaginar a dor que poderia eventualmente existir. Criar um poema é algo de diferente.

Num outro poema que deve ler-se como complemento a "Autopsicografia", o poema "Isto"2, ele afirma mesmo: "Dizem que finjo ou minto / Tudo o que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. /Não uso o coração".

Um poema é um objecto, ao lado de outros objectos (como o desenho da flor é um objecto, neste caso gráfico, e não a flor em si mesma...). Resulta, diz o poeta "fingidor", (alguém preferiu chamar-lhe finge –dor) de um processo mental que designa de "fingimento" — isto é, neste caso do poema, a dor real ou imaginada vai do coração para a cabeça, torna-se objecto verbal — transfiguração do sentir em palavras (e não esqueçamos, as palavras, a linguagem, são produto, construção mental e objecto de aprendizagem — e não algo de inato,) em busca da sua expressão, igualmente verbal, em texto poético ou poema.

Ora, o leitor de poesia, como o adulto que olha os traços feitos pela criança e que ela diz ser uma flor, tem acesso apenas ao produto final — o poema ou o desenho da flor — que é a "dor" verbalizada através do tal processo mental de busca das linhas, neste caso, das palavras (que constituirão imagens, metáforas e outros processos como os que conseguem a música de que também é feito o poema). E a dor sentida então pelo leitor pode ou não ser idêntica à dor expressa verbalmente pelo poeta — como o adulto reconhece e se reconhece ou não nos traços / linhas do desenho da flor feito pela criança .

Ou seja: adulto ou leitor fazem exactamente o percurso inverso ao do criador: — têm acesso ao produto criado (desenho ou poema) e cumpre-lhes a caminhada até ao sentir originário ("na dor lida sentem bem/ não as duas que ele teve/ mas só a que eles não têm").

Criança e poeta buscam então, no processo de criação, a tal palavra ou linhas originais com que Deus fez a flor... No caso do poeta, e como afirma Pessoa em "Isto" a palavra seria então a plataforma, o terraço, para "outra coisa ainda". E "essa coisa (o poema, que mais não é que emoção transfigurada pela linguagem) é que é linda".

Levando às últimas consequências esta sua visão do processo de criação poética, Pessoa desdobrou-se em heterónimos — em que dissocia o Eu que escreve (ele, autor de todos) do Eu que "sente" ou "finge", transfigurando em palavras dores diversa ou semelhantemente sentidas e que não o são (sentidas) por ele, autor, mas por Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e tantos outros.

E preveniu-nos: — atenção, isso que têm aí, senhores leitores, não são dores, mas palavras que fingem dores eventualmente sentidas (ou imaginadas — "Dizem que finjo ou minto / Tudo o que escrevo. Não / Eu simplesmente sinto / Com a imaginação./ Não uso o coração". — poema "Isto"). Se querem sentir, sintam — mas sintam os vossos próprios sentires — "Sentir, sinta quem lê".

Mas, a verdade é que só sentimos com os poemas que estavam já como que em botão dentro de nós e que "partilhamos" com o poeta que os "fingiu" nessa luta incessante em busca da palavra justa...

Por isso, dizia-me uma amiga poetisa, a Soledade Santos (que integra o volume Quatro Poetas da Net): "Será por isso que às vezes, reconhecendo a grande qualidade de um poema (ou de um poeta), somos incapazes de nos comover? Há um reconhecimento da sua qualidade estética, mas o gozo estético não tem lugar".

Talvez seja por isso mesmo que, dizia eu em tempos, — Viver, ler e sentir a poesia é também sentir, tocar com a nossa alma e coração o coração e a alma que habitam o poema — ou que o poema sugere. Vem-me daí esse sentimento de uma certa espécie de "plágio" que eu sinto em relação a tantos poemas e poetas — os que dizem o indizível que só a palavra transfigurada permite. Como se eu fosse, também, uma espécie de coautora.

Sentir, sinta quem lê — é certo. Será, então, o leitor de poesia que se reconhece no sentir encontrado no poema uma espécie de coautor? Em todo o caso, será o leitor uma espécie de co-sentidor ???

Difícil sermos definitivos, na resposta. Como em quase tudo na vida, afinal...

É que, diz ainda Pessoa:

"E assim nas calhas de roda / gira a entreter a razão /Esse comboio de corda /Que se chama coração".

Coração — palavra chave de Almada Negreiros e também de Pessoa e palavra-chave do entendimento ("só se vê bem com o coração", dizia a raposa ao Principezinho) e que, sabemo-lo, "tem razões a razão desconhece".

Notas

1 AUTOPSICOGRAFIA (1930)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda,
Gira, a entreter a razão,
Essse combóio de corda
Que se chama coração.

2 ISTO (1930)

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé.
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fonte:
Revista Gemina. dezembro, 2010

Amélia Pinto Pais (1943)



Amélia Pinto Pais. Nascida em 1943, vive em Leiria, Portugal.

Licenciou-se em Filologia Românica, pela Universidade de Coimbra

É atualmente professora aposentada de Português no Ensino Secundário.

Escreveu obras de caráter ensaístico e de incidência didática, sobre Camões, Fernando Pessoa, Gil Vicente, Padre Antônio Vieira e, também, uma História da Literatura em Portugal (3 volumes).

Foi autora dos manuais escolares Ler por Gosto (Antologias para os 10.º, 11.º e 12.º anos e respectivo livro auxiliar), Ser em Português (0.º, 11.º e 12.º anos) e Saber Português.

No Brasil foram publicados os seus livros Fernando Pessoa — o menino da sua mãe e Padre Antônio Vieira — o imperador da língua portuguesa, estando em curso, ainda, a publicação de Para compreender Fernando Pessoa(todos pela Companhia das Letras).

Participou ativamente - muitas vezes com comunicações – em diversos encontros e congressos sobre literatura e seu ensino, nomeadamente camoniano e pessoanos, organizados pelas universidades e outras associações ou escolas.

Escreve os blogues Ao Longe os Barcos de Flores (http://barcosflores.blogspot.com/); e Cristalina. Integra listas de poesia no Yahoo.

Fontes:
Revista Gemina
www.orelhas.pt

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.128)


Uma Trova Nacional

Uma lágrima dorida,
nos olhos turvos, tristonhos.
No encontro da despedia,
a renúncia dos meus sonhos.
(SÔNIA SOBREIRA/RJ)

Uma Trova Potiguar

Ai que saudades que tenho
das brincadeiras de rua,
hoje só vejo, em desenho,
o que o brinquedo insinua.
(MARCOS MEDEIROS/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Bandeirantes/PR
Tema > AUDÁCIA > Menção Especial

Tanta falsidade existe
por gosto ou necessidade,
que a audácia maior consiste
em dizer sempre a verdade!
RENATA PACCOLA/SP

Simplesmente Poesia

UM DIÁLOGO POÉTICO.

Meu amigo Jucá Santos ,
bom irmão que Deus me deu,
tudo que escrevi na vida
não vale um verso seu.
Você sim é um poeta
de rima sempre correta,
muito melhor do que eu.
(ZÉ REINALDO/AL)

Meu amigo Zé Reinaldo,
eu não sei se é modéstia
ou se apenas uma réstia
de luz que em você se vê ...
Porque se existe um poeta
de rima rica e correta,
esse poeta é você...
(JUCÁ SANTOS/AL)

Uma Trova de Ademar

Seu carinho me enternece,
contém meiguice e calor.
Seu desvelo mais parece
uma flechada de amor!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Somos dois gritos calados
dois momentos desiguais,
dois seres desencontrados
mas que se buscam demais.
(MARISOL/RJ)

Estrofe do Dia

Só há no peito dos vates
espaço para a ternura,
fraternidade nos atos,
riso fácil e alma pura;
cada poro derramando
pingos de literatura.
(WELLINGTON VICENTE/RO)

Soneto do Dia

– Fahed Daher/PR –
SONETO - CIDINHA.
(Para Mª Aparecida Frigeri)

Ah! Ser bonita é dom da natureza.
Ser primorosa é dom da inteligência.
Ser esmerada faz a sutileza
que dá o fulgor e cria a excelência.

É nobre cultivar esta vivência
de se doar ao bem e a esta beleza
de promover a idéia, pra existência
da comunhão social em sua grandeza.

Bem sabe conduzir e executar
na modéstia que exalta o seu valor
e na bondade de quem sabe amar.

Não só na Academia ela se aninha,
mas toda a sociedade quer o seu fulgor,
pois muito vale o gênio da Cidinha.

Fonte:
Ademar Macedo

Cascavel irá Realizar a Primeira Virada Cultural


Artistas e produtores culturais da cidade de Cascavel e da região já podem se inscrever para participar da 1ª Virada Cultural, que será realizada neste município do Oeste do Paraná, entre os dias 19 e 20 de março.

Os interessados em mostrar os seus trabalhos deverão formalizar a inscrição até o dia 25 de fevereiro, na sede da Secretaria de Cultura da cidade ou por email.

A virada cascavelense será realizada no Centro Centro Cultural Gilberto Mayer, sendo que o espaço será utilizado interna e externamente. A mostra também contará com atividades no Círculo Militar.

A produção da mostra artística está sendo coordenada pela Comissão Organizadora da 1ª Virada Cultural, que reúne artistas e representantes do Poder Público. Baseada na experiência pioneira da cidade de São Paulo, a Virada Cultural de Cascavel irá durar 24 horas. A meta é abrir espaço para todas as manifestações artísticas e culturais tanto da cidade como da região.

As inscrições para a 1ª Virada Cultural podem ser efetuadas por meio do e-mail cultura_cvel@hotmail.com , ou pessoalmente na Secretaria de Cultura, localizada na Rua Paraná, 2.786.

Fonte:
Boletim Guata – fevereiro de 2011

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

José Tavares de Lima (Caderno de Trovas)


Confesso que, fascinado
por tua graça invulgar,
se te amar foi um pecado,
não sei viver sem pecar!

Porque te dei muito amor
fiquei só... Pois não sabia
que vai perdendo o valor,
o que é dado em demasia!...

Se o amor que te dou te espanta
de tão grande, eis o motivo:
és a seiva; sou a planta;
se me faltares... não vivo!

Amar-te em segredo aceito,
mas tens que entender meu ais,
porque te amar deste jeito
é doloroso demais!...

Foi o amor que nos unia
tido como insensatez...
Mesmo assim, como eu queria
ser insensato outra vez!

Por culpa de alguns receios
e de tolos preconceitos,
somos, hoje, dois anseios
que não foram satisfeitos...

Vence o receio e confia
nos teus sonhos; pois, em suma,
sem um pouco de ousadia
não se alcança coisa alguma!

Esquecer-te? De que jeito?!...
Teu receio é sem motivo,
porque, dentro do meu peito,
tens lugar definitivo!

O receio evidencia,
às vezes, sábia conduta;
mas disfarça a covardia
de alguns que fogem da luta!

Muito te amo. Podes crer.
Mas tenho um receio louco
de que, para te prender,
todo este amor seja pouco!

O sujeito caloteiro
diz ao cobrador que insiste:
- hoje eu não tenho dinheiro,
mas volte... Milagre existe!...

Nunca dizia: “não pago”.
Mas em calote doutor,
simulava que era gago
até cansar o credor!

Lamenta-se o caloteiro:
- O meu ganho anda precário...
- Está faltando dinheiro?
- Não! Está faltando otário!

Mas o que faz esse “artista”?
- Pensa em calo o dia inteiro.
- Quer dizer que ele é calista?
- Negativo... é caloteiro!

Que eu devo partir, urgente,
ela entende, e não replica...
mas, em súplica silente,
seus olhos me dizem: fica!

Fazer prece a todo instante
tão importante não é;
para Deus, mais importante
é o suplicante ter fé...

Partes, alheia aos meus ais,
mas te suplico, sincero:
mesmo que não venhas mais,
fala que vens... que eu te espero!

A quem, lutando, persegue
um sonho que não alcança,
suplico a Deus que não negue
o consolo da esperança!

Que não me queres, sei bem...
Suplico a Deus, mesmo assim,
que transforme o teu desdém
num pouco de amor por mim...

Diz, louquinha pra casar,
a viúva, num gemido:
só eu sei como é ficar
dez anos sem ter marido!...

No sufoco que o atormenta
geme o velhinho, intranqüilo:
a mulher com mais de oitenta
voltou a pensar naquilo!...

Gemendo, diz: meu marido
só me chama de canhão!...
E ao vê-la, alguém, distraído:
seu marido tem razão!

Passa linda... do alto, a lua
surpresa ao ver tanta graça,
ilumina mais a rua
no momento em que ela passa !

Dói-me tanto a ausência tua
que, imerso na angústia imensa,
se a noite é linda ou sem lua,
nem percebo a diferença!...

Numa imagem que revela
contrastes da vida ingrata,
a lua cobre a favela
com lindo lençol de prata!

No momento em que partiste,
a lua, no céu, sozinha,
me pareceu muito triste...
mas a tristeza era minha!

Se em meu rumo há névoa e abrolhos,
nem assim me intranqüilizo:
tenho as luas dos teus olhos;
tenho o sol do teu sorriso!

Topa um "programa" vovô?
E o velhinho, triste, fala:
- agora, borocoxô,
só topo o pé na bengala!

Uma topada incomum
a minha vizinha deu.
Não feriu dedo nenhum
mas a barriga... cresceu!

A "feia" caça um marido.
Porém ao vê-Ia, há quem diga
que só um doido varrido
pode topar essa briga!...

Veja o golpe do Clemente:
- diz que foi uma topada
que o fez cair, justamente,
lá na cama da empregada!

Não tem marido, contudo,
vai, de topada em topada,
a Maria topa-tudo,
aumentando a filharada!

O nosso amor sem recatos
é uma loucura, porém,
nós somos dois insensatos
felizes como ninguém!...

Para voltar, não me peças...
seria uma insensatez
eu crer nas tuas promessas,
e arrepender-me outra vez.

Não sei bem por que partiste;
mas para o gesto insensato
eu sei que o remédio existe:
teu regresso imediato!...

Mente quem diz que não fez
durante a vida, algum dia,
a gostosa insensatez
de amar a quem não devia...

Por amor eu sou capaz
de fazer insensatez,
daquelas que a gente faz
sem lamentar por que fez...
=================
A biografia de José Tavres de Lima se encontra em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/02/jose-tavares-de-lima.html

Simões Lopes Neto (O Papagaio)



Uma anedota - a história do papagaio que falava latim, por exemplo - circula entre as pessoas e às vezes chega aos ouvidos de um escritor que a transforma em conto.

Foi assim com Le Perroquet Missionaire, de Alphonse Allais, em Ne nous frappons pas. Humberto de Campos recontou-a numa coluna de jornal. E o gaúcho João Simões Lopes Neto, o grande nome do nosso regionalismo, retomou-a e deu-lhe a dimensão de uma história. Publicou-a no jornal Correio Mercantil de Pelotas, no começo do século. O Papagaio só tomou forma de livro (Contos de Romualdo), postumamente, em 1952.
–––––––––

O reverendo Padre Bento de S. Bento - que o senhor talvez conhecesse, não? - era um Santo homem paciente - paciente! paciente! - como naquela época outro não houve.

Nos circos de burlantins muita cousa curiosa tenho apreciado: cachorros sábios, cabras que fazem provas, cavalos dançarinos e burros que a dente pegam o palhaço pelo... atrás das pantalonas; mas a paciência para esse ensino não pode comparar-se, não se pode, com a do reverendíssimo.

O Padre Bento, farto de aturar sacristãos e não querendo estragar a sua paciência, que estava-lhe na massa do corpo, resolveu dizer as suas missas... sozinho.

Preparava as galhetas, o missal etc.; depois pachorrentamente paramentava-se e pachorrentamente esperava a hora de oficiar; chegada, encaminhava-se para o altar, e começava e concluía, parte por parte, tudo muito em ordem.

Mas o filé, o bem-bom, era quando entrava a ladainha: ele cantava o nome do soneto e uma vozinha esquisita, porém muito clara, respondia logo:

- O-o-a por nob-s!

E os fiéis, em seguida, pela pequena nave afora, acudiam ao estribilho:

- Ora pro nobis!

Dessas ladainhas assisti eu a muitas, na capelinha de S. Romualdo, que era próxima a nossa casa, na Vila de...

Agora sabem quem cantava as ladainhas do Padre Bento?

Era o Lorota, um papagaio amarelo, criado na gaiola e muito bem falante... com ele diverti-me muitas vezes:

- Lorota, da cá o pé!

E ele, ensinado pelo padre, respondia, amável!
Coitado!... O padre morreu e o Lorota, não tendo mais a quem dar contas, fugiu. Passaram-se os anos.

Uma vez, estava eu na Serra, numa espera de onça, quando senti - confesso, não medo, mas um arrepio de... frio - quando ouvi, nas profundezas do mato virgem, uma ladainha religiosa!...

E pausada, afinada, bem puxada em suma!

Seria um sonho?... Estaria eu errado na tocada das onças, e, em vez de estar na floresta cheia de bichos ferozes, estava na vizinhança de algum convento, de alguma capela, de alguma romaria?...

E a ladainha, compassada e cheia, vinha se aproximando:

- Bento S. Bento!
- Ora pro nobis!
- Santo Atanásio!
- Ora pro nobis!
- S. Romualdo!
- Ora pro nobis!

Eu mergulhava os olhos por entre os troncos, os cipós e as japecangas a ver se bispava uma cor de opa, uma luz de tocha, uma figura de gente; nada!

Nisto, a ladainha pousou nas arvores, por cima de mim. Pousou, sim, e o termo próprio, porque quem cantava era um bando de papagaios e quem puxava a ladainha era o papagaio do Padre Bento, era o Lorota!

A paciência do bicho!... Ensinar, direitinho, aos outros, a cantoria toda!... Pasmo daquele espetáculo, e duvidando, quis tirar uma prova real, e perguntei para
cima:

- Lorota? Dá cá o pé!...

Pois o papagaio conheceu a minha voz, conheceu, porque logo retrucou-me com a antiga resposta que ele sempre dava:

- Romualdo é bonito! Bonito!...

E como para obsequiar-me fez um - crr! - como aviso de comando e recomeçou a ladainha:

- Bento S. Bento!
- Ora pro nobis!
- Santo...

Nisto tremeu o mato com um berro pavoroso... o Lorota e seu bando bateu asas... e eu olhei em frente: a sete passos de distância estava agachada, de boca aberta, pronta para o salto, uma onça dourada, uma onça ruiva; uma onça de braça e meia de comprido!...

E na aragem do mato ainda soou um vozerio distante.

- Or... a pro no... bis!
- S... Ro... mual... do!
- Ora... pro... nobis!...

Fonte:
Os 100 melhores contos de humor da literatura universal / Flávio Moreira do Costa (org.). Rio de Janeiro: Ediouro, 2001
.

Florbela Espanca (Livro de Poemas)


FOLHAS DE ROSA

Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo...

E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente...

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

NAVIOS-FANTASMAS

O arabesco fantástico do fumo
Do meu cigarro traça o que disseste,
A azul, no ar, e o que me escreveste,
E tudo o que sonhastes e eu presumo.

Para a minha alma estática e sem rumo,
A lembrança de tudo o que me deste
Passa como o navio que perdestes,
No arabesco fantástico do fumo...

Lá vão! Lá vão! Sem velas e sem mastros,
Têm o brilho rutilante de astros,
Navios-fantasmas, perdem-se a distância!

Vão-me buscar, sem mastros e sem velas,
Noiva-menina, a doidas caravelas,
Ao ignoto País da minha infância...

SUAVIDADE

Pousa a tua cabeça dolorida
Tão cheia de quimeras, de ideal,
Sobre o regaço brando e maternal
Da tua doce Irmã compadecida.

Hás-de contar-me nessa voz tão qu’rida
A tua dor que julgas sem igual,
E eu, pra te consolar, direi o mal
Que à minha alma profunda fez a Vida.

E hás-de adormecer nos meus joelhos...
E os meus dedos enrugados, velhos,
Hão-de fazer-se leves e suaves...

Hão-de pousar-se num fervor de crente,
Rosas brancas tombando docemente,
Sobre o teu rosto, como penas de aves...

TOLEDO

Diluído numa taça de oiro a arder
Toledo é um rubi. E hoje é nosso!
O sol a rir... Vivalma... Não esboço
Um gesto que me não sinta esvaecer...

As tuas mãos tacteiam-me a tremer...
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço,
É como um jasmineiro em alvoroço
Ébrio de sol, de aroma, de prazer!

Cerro um pouco o olhar, onde subsiste
Um romântico apelo vago e mudo
- Um grande amor é sempre grave e triste.

Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo...
Uma torre ergue ao céu um grito agudo...
Tua boca desfolha-me num beijo...

NIHIL NOVUM

Na penumbra do pórtico encantado
De Bruges, noutras eras, já vivi;
Vi os templos do Egipto com Loti;
Lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.

No horizonte de bruma opalizado,
Frente ao Bósforo errei, pensando em ti!
O silêncio dos claustros conheci
Pelos poentes de nácar e brocado...

Mordi as rosas brancas de Ispaã
E o gosto a cinza em todas era igual!
Sempre a charneca bárbara e deserta,

Triste, a florir, numa ansiedade vã!
Sempre da vida ? o mesmo estranho mal,
E o coração ? a mesma chaga aberta!

SE TU VIESSES VER-ME...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

SER POETA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

LOUCURA

Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada! ...

Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada! ...

Pesadelos de insónia, ébrios de anseio!
Loucura a esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!

Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!

À MORTE

Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto

FUMO

Longe de ti são ermos os caminhos.
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisantemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos! ...

A TUA VOZ NA PRIMAVERA

Manto de seda azul, o céu reflecte
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios húmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo beijo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...

Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!

Fonte:
ESPANCA, Florbela. Poemas Selecionados. Disponível no Portal Domínio Público.

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 16. O Cônego ou Metafísica do Estilo)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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Conto metalingüístico que em alguns aspectos antecipa as sondagens introspectivas e intimistas da prosa modernista.

É a história de um cônego que se dedicava à escritura de um sermão. Tem sua tarefa interrompida porque não conseguia achar um adjetivo que se ligasse adequadamente ao substantivo que havia colocado em seu texto. Esforçava-se, mas a palavra não vem.

Enquanto o protagonista espairece, para descansar a mente e buscar inspiração, o narrador mergulha no cérebro da personagem, defendendo a idéia de que as palavras têm sexo. Assim, o substantivo, masculino, que é nomeado como Sílvio, está procurando um adjetivo, feminino, designado Sílvia. É interessante nesse ponto como todo o universo de elementos que povoam nossa mente – sonhos, impressões, sensações, lembranças – é bem metaforizado ao ser apresentado como os obstáculos que o casal tem de suplantar até que finalmente consiga efetuar o seu encontro. Concretizada a união, o estalo mental surge para o cônego. Finalmente conseguia dar prosseguimento a redação de seu sermão, terminando-o.
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

Machado de Assis (O Cônego ou Metafísica do Estilo)

Brasão de cônego
— "VEM DO LÍBANO, esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras, deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda casta de pombos..."

— "Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor..."

Era assim, com essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um ao outro na cabeça do Cônego Matias um substantivo e um adjetivo... Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito da tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar.

Nesse dia, — cuido que por volta de 2222, — o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum. Então esta página merecerá, mais que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver.

Matias, cônego honorário e pregador efetivo, estava compondo um sermão quando começou o idílio psíquico. Tem quarenta anos de idade, e vive entre livros e livros para os lados da Gamboa. Vieram encomendar-lhe o sermão para certa festa próxima; ele que se regalava então com uma grande obra espiritual, chegada no último paquete, recusou o encargo; mas instaram tanto, que aceitou.

— Vossa Reverendíssima faz isto brincando, disse o principal dos festeiros.

Matias sorriu manso e discreto, como devem sorrir os eclesiásticos e os diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes gestos de veneração, e foram anunciar a festa nos jornais, com a declaração de que pregava ao Evangelho o Cônego Matias, "um dos ornamentos do clero brasileiro". Este "ornamento do clero" tirou ao cônego a vontade de almoçar, quando ele o leu agora de manhã; e só por estar ajustado, é que se meteu a escrever o sermão.

Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil cousas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio. Subamos à cabeça do cônego.

Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo cousa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita cousa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cônego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que ainda assim não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual...

— Sexual?

Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo.

— Mas, então, amam-se umas às outras?

Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada.

— Confesso que não.

Pois entre aqui também na cabeça do cônego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem é que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o cônego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjetivo, que lhe não aparece: "Vem do Líbano, vem..." E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: "Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol." Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o thaler ou o dólar, o florim ou a libra que é tudo o mesmo dinheiro.

Portanto, vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjetivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio.

Ouvem-se agora e procuram-se. Caminho difícil e intrincado que é este de um cérebro tão cheio de cousas velhas e novas! Há aqui um burburinho de idéias, que mal deixa ouvir os chamados de ambos; não percamos de vista o ardente Sílvio, que lá vai, que desce e sobe, escorrega e salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas raízes latinas, ali abordoa-se a um salmo, acolá monta num pentâmetro, e vai sempre andando, levado de uma força íntima, a que não pode resistir.

De quando em quando, aparece-lhe alguma dama — adjetivo também — e oferece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é a única, a destinada ao eterno para este consórcio. E Sílvio vai andando, à procura da única. Passai, olhos de toda cor, forma de toda casta, cabelos cortados à cabeça do Sol ou da Noite; morrei sem eco, meigas cantilenas suspiradas no eterno violino; Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede um certo amor nomeado e predestinado.

Agora não te assustes, leitor, não é nada; é o cônego que se levanta, vai à janela, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o resto. O papagaio em cima do poleiro, ao pé da janela, repete-lhe as palavras do costume e, no terreiro, o pavão enfuna-se todo ao sol da manhã; o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o raio vem, e pára diante da janela: "Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e pai." Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso daquele galé do espírito. Ele próprio alegra-se, entorna os olhos por esse ar puro, deixa-os ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho e de um piano; depois fala ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos, encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia.

Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em cousas estranhas, eles prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também.

Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre embriões e ruínas. Grupos de idéias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras idéias, grávidas de idéias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras idéias virgens. Cousas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura.

— Vem do Líbano, esposa minha...
— Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém...

Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam eles às profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. E eles vão rasgando, levados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os obstáculos e por cima de todos os abismos. Também os desgostos hão de vir. Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego, cá estão, à laia de manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o que quer que seja da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a rapidez do amor e do desejo.

Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba; é o cônego que se sentou agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do trabalho, e relê o que escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a ao papel, a ver que adjetivo há de anexar ao substantivo.

Justamente agora é que os dous cobiçosos estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios deles, tocados de febre. Frases alegres, anedotas de sacristia, caricaturas, facécias, disparates, aspectos estúrdios, nada os retém, menos ainda os faz sorrir. Vão, vão, o espaço estreita-se. Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que fizeram rir ao cônego, e que ele inteiramente esqueceu; ficai, rugas extintas, velhas charadas, regras de voltarete, e vós também, células de idéias novas, debuxos de concepções, pó que tens de ser pirâmide, ficai, abalroai, esperai, desesperai, que eles não têm nada convosco. Amam-se e procuram-se.

Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência. "Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?", pergunta Sílvio, como no Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que "é o selo do seu coração", e que "o amor é tão valente como a própria morte".

Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena cheia de comoção e respeito completa o substantivo com o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo, se ele coligir os seus escritos, o que não se sabe.

Fontes:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Ed. Martin Claret
Imagem = Dominus Vobiscum

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.127)


Uma Trova Nacional

Revivendo o meu passado,
me torturo de tal jeito,
que chego a crer que é pecado
guardar saudades no peito !
(MARIA NASCIMENTO/RJ)

Uma Trova Potiguar

Só para mim mesmo minto,
disfarçando uma verdade.
Toda saudade que sinto,
eu finjo não ser saudade...
(FRANCISCO MACEDO/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > N.Friburgo/RJ
Tema > SAUDADE > 4ºLugar.

Saudade é um velho barquinho
que vence o tempo e a distância
e recolhe, no caminho,
os pedacinhos da infância...
(ERCY MARIA M. DE FARIA/SP)

Simplesmente Poesia

MOTE.
Mandei a saudade embora;
ela se foi mas voltou.

GLOSA:
Tenho que agir agora,
vou resolver a questão,
pra poupar meu coração
mandei a saudade embora;
agi logo sem demora
pois ela a paz me roubou,
quase até que me matou
e criou ódio de mim,
querendo ver o meu fim,
ela se foi mas voltou.
(MAJÓ/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Para matar as saudades,
fui ver-te em ânsias, correndo...
– E eu, que fui matar saudades,
vim de saudades morrendo!
(ADELMAR TAVARES/PE)

Uma Trova de Ademar

Pela insensatez da idade
e pelo que o amor requer,
choro, às vezes, de saudade
fingindo uma dor qualquer!
(ADEMAR MACEDO/RN)

Estrofe do Dia

Eu no tempo que podia
farreava todo ano,
por vaidade ou engano
fiz tudo quanto queria,
fazer hoje o que eu fazia
não faço nem a metade,
de fazer tenho vontade
porém não posso fazer;
me faço forte sem ser
pra suportar a saudade.
(LUIZ AMORIM/CE)

Soneto do Dia

– Diniz Vitorino/PB –
SAUDADE MORTA.

Um sepulcro em minh’alma ficou feito!
Quando ela lacônica se ausentou.
Exclamei: ninguém tem amor perfeito!
Vou matar a saudade que restou.

Matei sim. Sepultei-a no meu peito,
ela, inerte, jamais ressuscitou.
Hoje a quero de novo, não tem jeito,
implorei que voltasse, não voltou.

O mais triste é que em alta madrugada,
vejo em sonho o perfil da minha amada,
me acusar pelo mal que pratiquei.

Eu desperto num mar de ansiedades,
delirando, morrendo de saudades,
da primeira saudade que matei.

Fonte:
Ademar Macedo