segunda-feira, 11 de abril de 2011

Carlos Leite Ribeiro (Encontro Inesquecível)


Joaquim Saraiva era um pacato cidadão. A sua vida era uma perfeita rotina: levantava-se às 7.30 horas para apanhar o Metro às 8.15 horas para estar no emprego sempre às 8.55 horas, altura em que picava o cartão de presença na firma onde trabalhava. Os colegas, por graça, alcunharam-no de “relógio suíço”. De regresso a casa, entretinha-se a fazer o seu jantar, para depois ver a televisão quando lhe interessava ou ler um livro ou revista enquanto o sono não chegava.

Já há mais de um ano que não ia a um cinema ou teatro. Ah, também gostava de ver futebol na televisão ou ouvir pela rádio o relato do seu clube favorito.

Um dia, ao chegar a casa encontrou na caixa do correio uma carta do Tribunal Distrital, a convocá-lo para comparecer em determinado dia para prestar declarações e com multa por ter faltado à primeira convocatória. Ficou muito admirado com o que leu, pois, em consciência não tinha faltado a nenhuma convocatória e nem sabia porque tinha sido convocado.

Na data e hora marcada pela convocatória, o Joaquim (Quim, para os amigos) entrou no Tribunal. Passou pela Secretaria onde o mandaram esperar numa sala de espera, onde já se encontrava um militar da GNR, pois, a Delegada do Ministério Público queria falar com ele. Esperou mais de uma hora e por fim chamaram-no. Já em frente da Delegada, esta perguntou-lhe:

- O seu nome é Joaquim Saraiva?

- Sim, Srª. Doutora. Só não sei porque estou aqui, pois, em consciência nada fiz.

- É a desculpa que todos dão… Está aqui como testemunha de um embate de carros e, também, para se justificar a sua ausência na primeira convocatória.

- Perdão Sr. Doutora, em não testemunhei (felizmente) nem faltei à primeira convocatória, pois, não a recebi.

- Vamos ver se nos entendermos: seu nome é Joaquim Saraiva e mora em Leiria, na rua Almirante Reis, nº 1233: Certo?

- Certíssimo. Moro nessa morada, há mais de 22 anos. Numa casa…

- Vamos ver: onde estava você, na madrugada do dia 22 de Novembro. Pelas 2.40 horas?

- Sem receio de me enganar, estava em minha casa e a essa hora a dormir. Não tenho hábito de sair à noite nem de fazer madrugadas. Não tenho ninguém que possa confirmar, pois, vivo sozinho.

- Não queira criar confusão (que eu nem aceito confusões). Rosa, chame o militar da GNR…

GNR: - v. Exª., posso entrar?

Delegada: - Entre – respondeu-lhe a Delegada, que continuou – Conhece ou lembra-se deste senhor?

GNR: - Saiba V. Exª, que não conheço nem me lembro de alguma vez o ter visto. Nem sei a que processo se refere.

Delegada: - O processo é referente àquele embate entre dois carros, na Batalha, em Novembro último que provocou ferimentos ligeiros numa senhora. O Sr. Tomou conta da ocorrência…

GNR: - Deve haver qualquer engano, pois, o indivíduo que provocou esse acidente, era estrangeiro e mal falava o português. Além de ser mais alto que este senhor, tinha o cabelo louro e olhos azuis.

Delegada: - Já vamos ver o que está a acontecer. Rosa, vá à Secretaria e traga-me todo o processo nº 222233/11. Não demore por favor.

Poucos minutos depois, a secretária da Delegada entrou no gabinete com dois dossiers debaixo do braço. “Aqui tem todo o Processo, Srª. Delegada”

Delegada: - Vamos ver… até aqui tudo bem: nome e morada…

Quim: - A Srª Delegada pode dizer-me a data em que o Tribunal mandou a primeira convocatória?

Delegada: - Foi no dia, foi no dia, 3 de Janeiro. Seu nome está correcto, mas a morada não… O Sr. Joaquim Saraiva morou (ou esteve alguns dias) na cidade de Setúbal?

Quim: - Nunca vivi nessa cidade e há mais de 25 anos que não vou a Setúbal, e, quando ia lá era para apanhar o barco para Tróia.

Delegada: - Que confusão… vamos ver a participação da ocorrência feita aqui pelo Sr. da GNR … pois, o nome que aqui está é Joaquim (com letra “n”) Swart, com residência em Setúbal. Este engano foi feito aqui na Secretaria. Vou tratar do caso…

Rosa: - Srª Delegada, chegou a D. Isabel Rosa, a vítima desse acidente. Posso mandar entrar?

Delegada: - Mande entrar. – D. Isabel Rosa, conhece este senhor?

Isabel: - Não sei, Srª. Delegada…

Delegada: - Não se lembra se foi este senhor que abalroou o seu carro e provocou-lhe ferimentos?

Isabel - : - Pode ser… não sei… pela altura e corpulência…talvez…

Delegada: - Talvez, nunca foi certo: É ou não é – responda por favor.

Isabel: - Eu estava no chão e não o via bem… Talvez seja…

Delegada: - Estou elucidada. O Sr. Joaquim Saraiva pode retirar-se em paz, assim como o Sr. da GNR. Quanto a D. Isabel, tenho que fazer-lhe mais umas perguntas.

Na saída do Tribunal, Quim suspirou profundamente. Psicologicamente, não se sentia capaz de ir trabalhar (o que era muito raro nele). Apanhou um táxi e foi para casa: deitou-se na cama e só acordou à noite.

O tempo passou e o caso foi esquecido.

Uma manhã, quando o Quim saia do Metro e a caminho do trabalho, um carro parou junto dele e uma voz, depois de baixar o vidro, gritou-lhe:

Isabel: - Olhe lá seu homezeco, o carro que você abalroou, como vê, já está arranjado. Mas você vai-mas pagar – isso vai…

O Quim não lhe respondeu, mas pensou para si: “Ai que o dia me vai correr mal!”

Poucos minutos de se sentar à sua secretária da companhia de seguros onde trabalhava, um colega foi ter com ele:

Vitor - o Abel hoje não vem e está no balcão uma senhora que quer saber em que ponto está o processo de um acidente que teve. Tu que trabalhas em colaboração com ele, vai atendê-la. Mas já te vou avisar que essa senhora, é muito bonita mas tem cá uma língua de víbora, que não é brinquedo nenhum. Não te demores muito pois senão ela é bem capaz de invadir as instalações!

Com pouca vontade, o Quim levantou-se e dirigiu-se ao balcão para atender a cliente. Quando chegou ao balcão, ouviu logo a “saudação” com que a cliente o presenteou:

Quim – Em que lhe posso ser útil? … Mas você aqui?!

Isabel – O mesmo direi eu: que faz você aqui? Até parece que me anda a perseguir depois de ter amachucado meu carro!

Quim – Perdão, primeiro, não tenho carro e já há muito que não conduzo (dirijo). Portanto e como ficou amplamente demonstrado que não fui eu que provoquei o acidente. Disto isto, diga-me por favor, em que lhe posso ser útil?

Isabel – Sempre a mesma desculpa… Olhe, quer saber quando esta seguradora me paga os prejuízos que tive?

Quim – Só lhe posso dizer que esta firma lhe pagará tudo a que tem direito quando receber o processo que o Tribunal nos vai. Só não lhe sei dizer quando isso acontecerá.

Isabel – Oxalá que você não atrase essa comunicação, por simples vingança…

Algumas semanas depois.

O Quim e os colegas estavam na pausa da tarde para tomar café, perto da seguradora, quando junto ao balcão, quando uma voz de mulher pediu em alta voz “Tire-me um café bastante forte, pois estou com muita pressa”.

Ao ouvir aquela voz, o Quim voltou-se e viu a moça que o acusava de ter amachucado seu carro, ao mesmo tempo que ela também o via. Ela, já com a chávena (xícara) na mão, sem quer fez um movimento brusco e entornou o café por cima do Quim.

Isabel – Desculpe sr (não sei quantos), não foi por mal. Mas estou disposta a pagar a lavagem da camisa…

Quim – Como lhe posso perdoar, se estou todo sujo de café? E não é só a camisa como as calças e roupa interior até às meias? Como posso voltar ao escritório neste estado?

Isabel – Já lhe disse que pago tudo!

Quim – Recuso essa opção. Você, é que tem de lavar tudo e passar a ferro, senão…

Isabel – Eu lavo tudo pois até me fica mais barato. Quer boleia até sua casa para mudar de roupa?

Quim – Se não me der boleia, também paga o táxi!

No Domingo seguinte, logo pela manhã, a campainha da casa onde morava o Quim, tocou. Com grande admiração sua, quando abriu a porta encontrou uma linda moça com as suas calças e camisa na mão e um pequeno saco com as meias e cuecas. Estafado pela situação, só pode balbuciar:

Quim – Não sei seu nome? Eu sou o Quim…

Isabel – E eu sou a Isabel!

Quim – Fico-lhe muito agradecido pela sua gentileza de vir entregar-me a roupa. Pode entrar…

Isabel: - Não entro não!

Quim – Então, como já são horas do almoço, convido-a para almoçar comigo. Você dá a boleia e eu pago-lhe o almoço?

Isabel – Bem… Então despache-se pois, eu com fome só impossível de aturar. E já agora, onde vamos almoçar? Olhe que não gosto de peixe com muitas espinhas…

Quim – Contava ir almoçar uma pizza ao Colombo…

Isabel – Não se demore. Olhe que só espero 8 minutos!

O almoço correu bem, com conversa de nível elevado, principalmente, quando o Quim lhe disse que a indenização da seguradora estava pronta para ser entregue e o que o verdadeiro culpado do acidente tinha sido apanhado pela polícia quando se preparava para sair do país. A partir desse dia, começaram a tomar o café depois do jantar, em princípio uma vez por semana, depois duas vezes até que chegaram a tomar o café todos os dias e ao domingo almoçavam juntos quase sempre.

Num sábado, ela atrasou-me na hora marcada para o café depois do jantar. Desculpou-se que tinha ido ao veterinário com seu gato, para este fazer uma “pequena” cirurgia (castração), pois, as vizinha se queixavam que o gato andava sempre atrás de suas gatas.

Quim – Coitadinho, nem gato se pode ser nesta terra!

Isabel – Também tive pena, mas teve de ser…

Num sábado de Lua Cheia, o parzinho depois do jantar no restaurante onde costumavam frequentar, resolveram ir a uma discoteca perto de uma praia. A discoteca estava cheia e o barulho era muito. Por essa razão, resolveram sair e ir admirar a lua (que estava linda) numa falésia junto à praia. A conversa era banal e em determinada altura, num movimento natural e brusco de suas cabeças, seus lábios se colaram num longo e lânguido beijo. Naquela situação, começaram a aliviar a roupa um ao outro, esquecendo de admirar a Lua…

Algum tempo depois, Isabel começou a ver uma luz que se dirigia para o carro, e exclamou:

Isabel – Quim, será que a Lua descesse à Terra?

Quim – Estou a vê-la lá em cima…

Isabel – Então o que será aquele foco de luz?

Quim – Não faço a menor ideia do que seja. Talvez seja um extraterrestre. Mas pelo sim pelo não, vamos enrolar a roupa em volta dos nossos corpos.

Segundos depois, a tal “luz” bateu no vidro do carro e pediu para abrir. Era uma guarda-florestal que andava a passar a ronda:

Guarda – Que estão aqui a fazer a esta hora?

Muito atrapalhados e sem saberem qual a melhor justificação a dar ao guarda-florestal, disseram ao mesmo tempo:

- Estamos a admirar a Lua que está belíssima!

O guarda deu uma enorme e sonora gargalhada, antes de responder:

Guarda – E para admirar a Lua, é preciso estarem meios nus?

A situação era embaraçosa. A Isabel teve então uma “brilhante” ideia:

Isabel – Senhor guarda, nós pertencemos a um grupo de adoradores da Lua Cheia e, para melhor a adorámos, temos que tirar a roupa…

Perante tal resposta, o guarda-florestal voltou a dar uma sonora gargalhada e aconselhou-os:

Guarda – Bem, bem… vistam-se que a noite está fresca e regressem a casa. Boa Noite!

Os meses foram passando e cada vez a amizade crescia, embora por vezes com umas discussõezinhas à mistura. Durante um jantar, o Quim pediu a mão a Isabel. Ela sorriu.
Isabel – Mas só a mão, pois não podemos esquecer aquela Lua Cheia, aquela luz e sobretudo o guarda-florestal. Mas prometo-te que vou pensar muito bem e com muito cuidado na tua proposta. Por fim, pensou a aceitou.

Meses depois, na véspera do casamento, Isabel telefonou a seu noivo.

Isabel – Quim, sempre vais à despedida de solteiro com os teus colegas?

Quim – Sim vou. Vais ser uma pequena festa num restaurante…

Isabel – Num restaurante? Olha, antes dessa despedida, convido-te a acompanhar-me ao veterinário.

Quim – Ao veterinário? O que vais lá fazer? O gato está doente?

Isabel – O gato está de boa de saúde. Quero ir lá para o veterinário te fazer a operação que fez ao gato – recordas-te?

Quim – Deixa-me rir! Podes ter confiança em mim, para mais, hoje não é dia de Lua Cheia!

Ano e meio depois, numa maternidade, Isabel acaba de dar à luz um lindo bebé. Depois do parto, Quim aproximou-se da mulher.

Quim – Como estás minha querida? Ainda tens muitas dores?

Isabel – Já sinto menos dores, mas, continuo a pensar que devia ter-te levado ao veterinário… Olha, desde já fica combinado que se tivermos mais algum filho, será tu que o tens…

Fontes:
Colaboração de Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) IX – A Madrasta


Havia um viúvo com três filhas. Um dia resolveu casar-se de novo — e casou com uma mulher muito má, que tinha ódio às meninas. Fazia-as trabalhar como verdadeiras escravas.

No quintal havia uma grande figueira. Quando chegou o tempo dos figos, a madrasta botou as meninas lá tomando conta para que os passarinhos não bicassem os figos.

As três coitadinhas passavam debaixo da figueira o dia todo, dizendo aos sanhaços que se aproximavam:

Xô, xô, passarinho,
aí não toques o biquinho.
Vai-te embora pro teu ninho...

Mas mesmo assim aparecia um ou outro figo bicado e a madrasta batia nas três.

Um dia em que o homem fez uma longa viagem a madrasta aproveitou-se para mandar enterrar vivas as coitadinhas. Quando o homem voltou e indagou das filhas, a peste respondeu que haviam caído doentes e morrido, apesar de todos os remédios. O pobre pai ficou muito triste.

Mas aconteceu que no lugar onde as meninas tinham sido enterradas brotou logo um lindo capinzal — dos cabelos delas, e quando batia o vento o capinzal murmurava:

Xô, xô, passarinho,
aí não toques o biquinho.
Vai-te embora pro teu ninho...

Um negro, tratador dos animais da casa, andando a cortar capim, ouviu aqueles murmúrios e teve medo de mexer nas pontinhas. Foi contar o caso ao patrão.

O patrão não quis acreditar, e disse-lhe que cortasse o capim com murmúrio e tudo. O negro obedeceu. Mas quando levantou a foice, ouviu novamente a misteriosa voz, que dizia:

Capineiro de meu pai,
não me cortes os cabelos;
minha mãe me penteava,
minha madrasta me enterrou
pelo figo da figueira
que o passarinho bicou.

O negro foi correndo contar o caso ao patrão, com um grande susto na cara. E tanto fez que o obrigou a chegar até lá. E então o pai das meninas ouviu o lamento das filhas enterradas.

Mandou buscar uma enxada e cavar, e retirou-as da terra, vivas por milagre de Nossa Senhora, que era madrinha das três.

Quando voltaram para casa, na maior alegria deram com a madrasta estrebuchando. Um castigo do céu tinha caído sobre a peste.
–––––––––
— Bom — disse Emília — esta história já está bem mais aceitável. Tem sua originalidade e explica tudo. Desde que houve milagre, era natural que as enterradinhas vivas não morressem. Milagres não se discutem.

— E há ainda um traço delicado — disse dona Benta — esse das cabeleiras das meninas que viraram capinzal murmurejante ao vento. Aparece também a figura da madrasta, que é muito comum nas histórias populares. Toda madrasta tem que ser má. O povo não admite a possibilidade de madrasta boa.

— E não há — disse Narizinho. — As que eu conheço, como a madrasta da Quinota e a da Maricoquinha, não chegam a ponto de enterrar crianças vivas — mas boas não são.

— E a do Zeferininho da Estiva, que dava na cabeça dele com a colher de pau? — acrescentou Pedrinho.

— Sim — disse dona Benta. — Talvez a regra seja a madrasta má, embora as haja excelentes. Sei dois casos de madrastas boníssimas, quase como mães. Tudo depende da criatura, e não do ato de ser mãe ou madrasta. Há mães tão perversas como as piores madrastas.

— Mas o povo assentou que as madrastas não prestam e não prestam mesmo — concluiu Emília. O coitado do povo sofre tanto que há de saber alguma coisa. Esse ponto da madrasta má o povo sabe. São más como caninanas — embora haja alguma degenerada que seja boa. Madrasta boa não é madrasta. Para ser madrasta, tem que ser uma bisca das completas. Eu, se pilhar alguma por aqui, furo-lhe os olhos.
–––––––––––––
Continua… X – Manuel da Bengala
–––––––––––––-
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Delasnieve Daspet (Poesias ao Anoitecer)


SUAVE BRISA

Gosto de te ouvir,
Deixa um sussurro no meu travesseiro!

Gosto de te sonhar,
Fecho os olhos e vôo nos meu sonhos!

Gosto do teu silêncio,
Tu transformas o inverno e o silêncio em flor de saudade!

Gosto que me toques,
Teu toque me inebria e excita!

Gosto do teu cheiro,
Trazes ao meu olfato o cheiro da vida!

Gosto de andar contigo,
Peguei a estrada no meio do nada e segui tua estrela!

Gosto da tua partida,
Pois estarei pronta quando minha hora chegar,
Não vou me atrasar para o nosso encontro.

Gosto da tua ausência,
Ela virou uma lágrima quente que banha minhas faces!

Gosto de te seguir,
Vou atras de ti - para onde a água correr e o vento soprar!

Gosto de te sentir,
Roçando em minha face como um terno beijo!

Gosto de ti,
Brisa Suave que me embala os sonhos e o porvir!

ESCREVO PARA NÃO MORRER...

Para não morrer, para não explodir,
Para desabafar meus sentimentos,
Esta força que me avassala e oprime,
É por isso que escrevo!

E por que tenho vida - vou escrevendo;
Meu interior pede a tradução em letras e versos
Do que se agiganta em mim...

Escrevo, enfim, para renascer.
Pois o turbilhão que minh´alma encerra
Me lança a extratosfera...

Escrevendo chego ao infinito,
E como uma onda num oceano de areia,
Densa, vou num crescendo, rolando nas dunas...

Escrevo, pois preciso dizer o que aprendi!
Muitas coisas nos esperam além da estrada,
Da imensidão, indiziveis e invisiveis a olhu nú,
A eternidade!

E escrevo, enfim, para que caibam dentro de mim,
Todas as angústias e dores que carrego,
E antes que eu desabe, como um grão de areia
Que se joga ao vento,
Escrevo para não morrer....

COM CHEIRO DE TERRA MOLHADA ...

Olho a chuva cair na tarde,
Molhando minhas saudades...
Penso em versos...
Vou construir um poema úmido
Com cheiro de terra molhada.

Leve e perfumado
Como o vento que se enrosca
Nas folhas mortas das árvores
E sibilando as carrega,
Mudando tudo de lugar...

Muduram com o vento
Os meu sonhos e as minhas emoções!
Rolaram as ribanceiras
Com tanta velocidade
Que me arranhei toda
Com as idas e vindas da vida!

E nas sombras das nuvens
Meu coração se esconde!
Entre um olhar e outro,
Na esfera da fumaça,
A chuva cai.

E na terra que o asfalto comeu
A água se coagula em lama,
Como lágrimas borradas
Na maquiagem!

Eu preciso
Fazer a água escoar pelos
Canais do tempo
Diluindo minhas verdades e mentiras
Apagando minhas inseguranças,
Limpando minhas impurezas,
Fazendo brotar a vida
Na verde folha da paz!

QUANDO AS ESTRELAS NÃO APARECEM ...

Quando fico no escuro
E as estrelas aparecem,
Não importa a situação,
Os dedos tocam os sonhos,
E te buscam na eternidade
De uma canção.

Cansei de andar só,
Como um pardal na chuva.
E sem usar as máscaras permitidas,
Mal consigo sobreviver...

Para fechar o ciclo,
Não busco piedade
Sigo pela estrada, caminhando...
Quando as trevas se fecham em delírios,
Quando as estrelas não brilham
Lágrimas queimam a minha alma,
E escurecem a minha noite.

Fonte:
Colaboração da Autora

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 182)


Uma Trova Nacional

Planta sem folhas, despida!
Teus galhos tortos, tristonhos,
lembram que o outono da vida
também desfolha os meus sonhos...
–MARINA BRUNA/SP–

Uma Trova Potiguar

O outono ali vem chegando,
já me sinto à sua espera...
contudo vou degustando
uns restos de primavera.
–UBIRATAN QUEIROZ/RN–

Uma Trova Premiada

2002 > Belém/PA Tema > FRUTO > M/E

Alegrias coleciono
neste meu tardio amor.
É na colheita do outono
que os frutos têm mais sabor!
–WANDA DE PAULA MOURTHÈ/BH–

...E Suas Trovas Ficaram

No outono, seca, sofrida,
sou a folha da ilusão;
vou pairando, esmaecida,
por sobre a relva no chão.
–EVA REIS/MG–

Simplesmente Poesia

–EFIGÊNIA COUTINHO/SC–
Tardes de Outono.

Nestas tardes monótonas de outono
Onde o mormaço em árvores repousa,
Tendo o céu imenso como patrono,
As sombras, na minha alma fazem pouso.

No silencio, vem chegando à memória
Em subtis lapsos, vou meditando,
Como se eu pudesse atravessar a trajetória
Que meu coração foi alimentando...

Mas a mercê da solidão escondida,
Que o mundo vai levando tudo de meu.
Num trajeto de ansiedade desmedida
Como vôo do pássaro que geometriza o céu.

Em silencio e mais nada me entrego,
Em busca da minha plural realidade
E na esperança que no peito carrego,
Bendigo do outono, a monótona tarde!

Estrofe do Dia

Em nome de CAMINHADA,
eu te agradeço, Ademar.
Os poemas de que falas
são frutos do meu pomar,
que colhi durante o outono,
quando Apolo, no seu trono,
me pôs feliz a sonhar.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Soneto do Dia

–MIGUEL RUSSOWSKY/SC–
Solidão.

Maio. Minha tristeza avisa ser outono...
Poucas nuvens no céu... Uma rima vadia,
começa a solfejar pela casa vazia,
tentando afugentar os recados do sono.

Envelhecer me dói... ( mas antes não doía )
Meus sonetos de amor – cães magrelos sem dono –
se põem a reclamar que os deixei no abandono.
Folhas caem, devagar,na tarde azul e fria.

Domingo sem ninguém, de novo o mesmo tema
querendo constituir-se em núcleo do poema...
(Falo com meus botões, os botões tem bom senso )

O silêncio parece um anseio que chora...
Aprender a ser só, se aprende, mas demora...
Uma lágrima só... não faz peso num lenço.

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

domingo, 10 de abril de 2011

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Cora Coralina)

Casa de Cora Coralina (autor: ???)
(In Memoriam – Cidade de Goiás, 20 de agosto de 1889 — Goiânia, 10 de abril de 1985)

Poesia simples, plena de filosofia,
de gente humilde da cidade e do interior,

que só nos trouxe tanta vida e tanto amor,

colhidos no lutar no afã do dia-a-dia...

Viveu a transmitir sua sabedoria,
na qual não faltaram as pitadas de dor,
mas momentos também de jovem alegria,

em que desenvolveu seu talento de humor...

Foi Cora Coralina, a poetisa exemplar,
cuja existência de noventa e cinco anos,

quase um século de conhecimento audaz...


Seus versos vão viver por longo tempo,
a dar
uma bênção sublime aos viventes humanos,
porque ela foi feliz, sempre pregando a paz...
--
Porto Alegre – RS, 10 de abril de 2011-04-10, às 10h07min. em frente ao Rio Guaíba, cujas águas aparecem sob a neblina da manhã nublada.

Fontes:
Colaboração do Autor
Pintura obtida em http://curtapoesia.blogspot.com/ (autor desconhecido)

Cora Coralina (Livro de Poemas)


CORA CORALINA, QUEM É VOCÊ?

Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.

Nasci numa rebaixa de serra
Entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares”.
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.

Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.

Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentro
da imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.

Numa ânsia de vida eu abria
O vôo nas asas impossíveis
do sonho.

Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia caída e a república
que se instalava.

Todo o ranço do passado era presente.
A brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
Os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes.

Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.

Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
Para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.

Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e racionada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a
consciência de ser autêntica.

Nasci para escrever, mas, o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros, contra-marcaram minha vida.

Sou mais doceira e cozinheira
Do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada à vida e
à saúde humana.

Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.

Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.

A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.

Foi assim que cheguei a este livro
Sem referências a mencionar.

Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.

Nem Menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.

Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
Minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.

Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.

Quem sentirá a Vida
destas páginas...
Gerações que hão de vir
de gerações que vão nascer.

(Meu Livro de Cordel, p.73 -76, 8°ed, 1998)

TODAS AS VIDAS

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

O CHAMADO DAS PEDRAS

A estrada está deserta.
Vou caminhando sozinha.
Ninguém me espera no caminho.
Ninguém acende a luz.
A velha candeia de azeite
de lá muito se apagou.

Tudo deserto.
A longa caminhada.
A longa noite escura.
Ninguém me estende a mão.
E as mãos atiram pedras.
Sozinha...
Errada a estrada.
No frio, no escuro, no abandono.
Tateio em volta e procuro a luz.
Meus olhos estão fechados.
Meus olhos estão cegos.
Vêm do passado.

Num bramido de dor.
Num espasmo de agonia
Ouço um vagido de criança.
É meu filho que acaba de nascer.

Sozinha...
Na estrada deserta,
Sempre a procurar
o perdido tempo que ficou pra trás.

Do perdido tempo.
Do passado tempo
escuto a voz das pedras:

Volta...Volta...Volta...
E os morros abriam para mim
Imensos braços vegetais.

E os sinos das igrejas
Que ouvia na distância
Diziam: Vem... Vem... Vem...

E as rolinhas fogo-pagou
Das velhas cumeeiras:
Porque não voltou...
Porque não voltou...
E a água do rio que corria
Chamava...chamava...

Vestida de cabelos brancos
Voltei sozinha à velha casa deserta.

DAS PEDRAS

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

ASSIM EU VEJO A VIDA

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

HUMILDADE

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.”

POEMINHA AMOROSO

Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...”
-----------------
Biografia
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/04/cora-coralina-1889-1985.html
Mais Poesias
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/12/cora-coralina-casarao-poetico.html
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/04/cora-coralina-teia-de-poesias.html

Cora Coralina (O Lampião da Rua do Fogo)


Ali, naquele velho canto onde a Rua de Joaquim Rodrigues faz um recanteio, morava Seu Maia, casado com Dona Placidina, numa casa de beirais, janelas virgens da profanação das tintas, porta da rua e porta do meio. Portão do quintal, abrindo no velho cais do Rio Vermelho. Isso, há muito tempo, antes da rua passar a 13 de Maio e da casa ser fantasiada de platibanda.

Seu Maia era muito conhecido em Goiás e era porteiro da Intendência. Boa pessoa. Serviçal, amigo de todo mundo e companheirão de boas farras. Gostava de uma pinguinha em doses dobradas, dessas antigas que pegavam fogo. Então, se misturava vinho, conhaque e aniseta; só voltava para casa carregado pelos companheiros, que o entregavam aos cuidados da mulher.

Esta, acostumada, embora com a sina ruim, como dizia, não poupava a descalçadeira quando recebia o marido naquele fogo, arrastando a língua, de pernas moles, isto quando não virava valente, quebrando pratos e panelas e disposto a lhe chegar a peia.

Dona Placidina era muito prática, nessas e noutras coisas... Ajeitava logo um café amargo, misturado com frutinhas de jurubeba torrada, que o marido engolia careteando e o empurrava para a rede, onde roncava até pela manhã ou se agitava e falava a noite inteira.

— Coitada de Dona Placidina, comentavam as amigas. Seu Maia é um santo homem sem esse diabo da pinga.

E ensinavam remédios, simpatias, responsos, rezas fortes. Simpatia que dera certo em outros casos, era nada para ele. Remédios? Inofensivos como a água do pote. Os próprios santos se faziam desentendidos dos responsos, velas acesas e jaculatórias recitadas.

Dona Placidina, cansada daquele marido incorrigível, acabou botando o coração ao largo, embora achasse, no íntimo, que melhor seria uma boa hora de morte para ela... ou antes, para o marido, esta parte no subconsciente.

Naquele dia, como a dose da boa fosse mais pesada, Seu Maia, que já vinha se ressentindo do fígado com passamentos e vista escura, se achou pior.

Os amigos o trouxeram para casa mais cedo. Tiveram mesmo de o levar para a cama e o meter entre as cobertas. De nada valeu a chazada caseira.

No dia seguinte, chamaram Seu Foggia que diagnosticou empanchamento e doença do coração. Receitou um purgativo e uma poção. Seu Maia piorou. Dona Placidina se desdobrou em cuidados especiais. Esqueceu o defeito do marido, as desavenças, os pratos quebrados e passou a sentir, antecipadamente, os percalços da viuvez.

Os amigos não arredaram. Faz-se a conferência médica das vizinhas prestativas. Escalda-pés, benzimentos, sinapismo, nada deu jeito. Nem valeu promessa de muito boa cera ao senhor São Sebastião. Seu Maia morreu.

Os companheiros tomaram conta do morto. Levaram o corpo.Vestiram-lhe o fato preto de sarjão, que tinha sido do casamento. Calçaram meias, ajuntaram-lhe as mãos no peito. Pearam as pernas e passaram um lenção branco, bem apertado, no queixo. Chamaram um canapé, largo de palhinha, para o meio da sala, deitaram o cadáver, cobriram com um lençol. Cuidou-se do pucarinho de água benta, com seu ramo de alecrim. Acenderam-se as quatro velas e, nos pés do morto, botou-se um caco de telha com brasa e grãos de incenso. Era assim que se arrumava defunto em Goiás, antigamente.

Os amigos foram chegando, tomando posição e começou o velório. Dona Placidina, entregue aos cuidados das amigas, mal escapava de uma vertigem, caía noutra. Afinal, à força de chás de arruda, de casca de tomba e de Água Florida de Murray, voltou a si e, como era decidida e de espírito prático, botou de parte o abatimento e passou a cuidar do pessoal que fazia sentinela.

Café com biscoito pelas 10 horas. Mais tarde, mexido de lombo de porco e ovos fritos com farofa, comido na cozinha, e requentão quando a noite esfriou mais e os galos passaram amiudar.

Entre a diligência caseira e suspiros puxados, a viúva, de vez em quando, levantava a ponta do lençol que cobria o marido e enxugava umas lágrimas hipotéticas. “Bom marido”, lastimava e, lá consigo, “não fosse a pinga, era a falta que tinha...”

No dia seguinte, veio o caixão com tampa solta, como de costume. Agasalharam ali o defunto. Chegaram mais amigos e mais comadres. Dona Placidina louvava as virtudes conjugais do finado, em crises nervosas de choro seco — sem lágrimas, o choro mais difícil que existe.

A cada visita que chegava, com seu carinhoso abraço e formalíssimos “meus pêsames”; havia uma exaltação no choro ressecado da viúva.

Pelas duas horas, começou a fazer vento de chuva e um trovão surdo se ouviu ao lado da Santa Bárbara. Como o caixão teria mesmo de ser carregado na força dos braços, os amigos resolveram apressar o saimento, antes que o tempo enfarruscado se decidisse em água. Vento da Santa Bárbara é chuva certa no São Miguel. E enterro debaixo de chuva era a coisa mais estragada que podia acontecer em Goiás.

Dona Placidina se debruçou em cima do morto. Não queria deixar sair Seu Maia, coitado... As amigas com chazadas de alecrim. Os amigos tomaram conta das alçadas e ganharam a rua. Entraram na outra, que era Direita, naquele tempo. Passaram a ponte da Lapa, subiram e entraram no Rosário para encomendação do corpo.

Os sinos das igrejas, todas, dobrando a lamentação de finados. Pela intenção do morto, cada amigo mandava dar um sinal nas igrejas, quanto quisesse. Ainda que os sinos tocam como a gente quer, alegres ou soturnos.

Os sineiros sempre tiveram esmero especial para anjinho ou defunto. Essas duas palavras, em Goiás, delimitavam as circunstâncias da idade, sem mais explicações. Anjinho era criança mesma ou moça virgem e, defunto, gente pecadora.

Ia o cortejo subindo e os homens se revezando nas alças, que o morto estava pesado. Com a doença curta, nem tivera tempo de emagrecer. Iam depressa, que a chuva já tinha posto uma carapuça branca no cocuruto do Canta Galo.

Na frente, um popular, afeito àquele préstimo, carregava a tampa que só ia ser colocada na beira da cova. Outros levavam os dois tamboretes, tradicionais, para o descanso do ataúde, quando se trocavam os que iam carregando. Os músicos, de fardão escuro, tocavam um funeral muito triste. Sendo de notar que não havia enterro em Goiás sem acompanhamento de música, somente os muito pobrezinhos. Na rabeira, a molecada da rua. Queriam ver o caixão descer no buraco, se divertiam com aquilo.

Na esquina da Rua do Fogo com a Rua da Abadia, existiu, durante muito tempo, um poste de lampião antigo, saliente, fora de linha, puxando mesmo para o meio da rua. Era um tropeço. Coisa embaraçosa. Não foram poucos os esbarros, cabeçadas, encontrões verificados ali.

Enterros que subiam, já de longe, começavam a torcer à direita para se desviar do lampião, que não tinha outra conseqüência senão atrapalhar. Naquele dia, com a aflição da chuva que vinha perto e com o peso do caixão que era demais, ninguém se lembrou do poste. Foi quando o compadre Mendanha, que ia na alça dianteira pela esquerda, pisou de mau jeito num calhau roliço, falseou o pé, fraquejou a perna e... bumba! Lá se foi o caixão bater com toda força no lampião.

Com a violência do baque, o defunto abriu os olhos, desarrumou as mãos e fez força de levantar o corpo.

A essa hora, o pessoal do enterro tinha se desabalado, em doida carreira pela rua abaixo e largado o morto se soltando da laçada das pernas. O dia inda estava claro, não era hora de assombração. Alguns, mais esclarecidos, resolveram voltar e ver de perto o acontecido.

Encontraram Seu Maia de pé, muito amarelo, escorado no poste, com tremuras pelo corpo e olhando, com desânimo o caixão vazio. Reconheceram, então, que o mesmo estava vivo e que era preciso voltar com ele para casa. Guardaram o caixão inútil na igreja da Abadia e desceram a rua, amparando o ex-morto.

Todas as janelas, agora, com gente assombrada ante aquele caso novo na cidade. A meninada na frente, gritava:

— Evém o defunto...

De dentro das casas, os moradores corriam para as portas e só se ouvia:

— Vem ver, Maricota... vem ver, Joaninha. Óia o defunto que evém voltando...

Amparado pelos amigos, metido naquele sarjão preto, desusado, calçado só de meias, lenço na cara e muito devagarinho vinha Seu Maia de volta.

Um portador foi na frente avisar Dona Placidina, daquela ressurreição e conseqüente retorno, ao que ela só teve expressão sintomática:

— Seja pelo amor de Deus.

Seu Maia chegou afinal, entrou, recebendo um abraço de boas-vindas mais ou menos calorosas da mulher. Bebeu um cordial. Meteu-se na cama e de novo foram chamar Seu Foggia. Este veio. Examinou, apalpou, auscultou, pediu para ver a língua. Concluiu, com sabedoria, que tinha sido um ataque de catalepsia, muito parecido com a morte, mas que não era morte, não.

A providência tinha sido o lampião do meio da rua, senão teria sido mesmo enterrado vivo.

A cidade comentou o caso por muito tempo. Seu Maia foi entrevistado por todos os sensacionalistas da terra — gente insuportável daquele tempo. Muita língua desocupada levantou a suspeita de que vários fulanos e sicranos daquele tempo tivessem sido enterrados vivos e toda a gente ficou se pelando de catalepsia. Os letrados foram até o Chernoviz e Langard. Conferiram-se diploma no assunto e discorriam de doutor e com muita prosódia, sobre catalepsia ou morte aparente.

Enquanto os comentaristas faziam roda, o doente recuperava a saúde. Dona Placidina, muito prática como sempre, aproveitou o acontecimento para uma pequena homilia doméstica, complicada e cheia de boa dialética feminina, de que “aquilo fora aviso do céu e castigo de Deus...”

E já pelo choque emocional — vá lá que naquele tempo não havia destas coisas não — já pelo medo de novo ataque e de ser mesmo enterrado vivo, o certo é que o homem moderou a bebida.

Dona Placidina, no entanto, já havia, no seu foro íntimo, aceitado a idéia da viuvez e aquela volta inesperada do marido vivo não melhorou de muito os pontos de vista da ex-viúva.

Alguns meses depois, Seu Maia adoecia gravemente. Vieram os amigos da primeira viagem. Apareceram as clássicas e inefáveis comadres. Deram-se os remédios. Da botica e extrabotica. Foi bem purgado e lhe aplicaram ventosas e sinapismos. Nada serviu. Seu Maia morreu.

Seu Foggia então declarou que, por via das dúvidas, só levassem o morto quando começasse a feder. Fez-se de novo o velório com todas as regrinhas de costume. Café com biscoito pelas dez horas. Viradinho de feijão e lingüiça comidos, com voracidade e discrição na cozinha, e quentão forte de canela e gengibre, quando a noite esfriou e os galos amiudaram.

Contaram-se casos. Louvaram as virtudes do finado, num breve necrológio. Passaram a anedotas discretas. Falou-se da carestia da vida, dos erros do governo e se fez a filosofia da morte.

A viúva chorou, mais ou menos conformada com aquela segunda via. O compadre Mendanha tomou conta de trocar as velas que iam se consumindo, de regrar o pucarinho de água benta com seu raminho de alecrim.

No dia seguinte, quando perceberam que não mais haveria engano, os amigos ajuntaram as alças e levantaram o caixão.

Dona Placidina, muito experiente, despediu-se do morto em soluços alternados. Teimou com as amigas: dessa vez havia de acompanhar, ao menos até a porta.

O compadre Mendanha, muito metódico e apegado aos velhos hábitos de sempre pegar caixão pela alça da frente e da esquerda, tomou posição. Outros pegaram pelos lados, adiante saiu a tampa, carregada por um popular e os tamboretes indispensáveis, renteando o caixão aberto.

Espalhado pelas ruas, o acompanhamento, só de homens. Agrupada com seus instrumentos enlaçados de crepes, a banda do funeral. Arrumado o cortejo, Dona Placidina botou o corpo fora da porta e chamou alto:

— Compadre Mendanha... Escuta, compadre, cuidado com o lampião da Rua do Fogo, viu... Não vá acontecer como da outra vez.

Fontes:
CORALINA, Cora. Estórias da casa velha da ponte. SP: Global, 2000.
Imagem = http://casadecoralina.blogspot.com

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) – VIII – A Moura-Torta


Era uma vez um pai de três filhos, que não tendo dinheiro com que dotá-los deu a cada um uma melancia, quando eles falaram em sair a correr mundo. Mas recomendou que não as abrissem em lugar onde não houvesse água,

O filho mais velho, ansioso por saber de sua sina, abriu a melancia à beira do caminho logo adiante. De dentro pulou uma moça muito linda, a gritar: "Dai-me água ou leite!" Mas como ali não houvesse água nem leite, ela inclinou a cabecinha e morreu.

O filho do meio, que havia tomado por outra estrada, também resolveu conhecer sua sina e abriu a melancia num ponto onde não havia nem sombra de água perto. Surgiu de dentro uma jovem ainda mais bela, que disse: "Dai-me água ou leite!" Mas como não houvesse por ali nem uma nem outra coisa, ela também pendeu a cabecinha e morreu.

O filho mais moço, porém, deu muito tento à recomendação paterna, de modo que só abriu a sua melancia ao pé duma fonte. Também de dentro pulou uma moça belíssima, que pediu água ou leite. O moço deu-lhe água da fonte, que ela bebeu a fartar. Mas como estivesse nua, o moço pediu-lhe que subisse a uma árvore e lá ficasse escondidinha entre as folhas enquanto ele ia buscar-lhe um vestido. A moça subiu à árvore e escondeu-se entre as folhas.

Logo depois apareceu uma moura-torta, com um pote à cabeça. Vinha enchê-lo naquela fonte. Olhou para a água e viu o reflexo da moça escondida na árvore.

— Ora que desaforo! Pois se eu sou uma beleza assim, como é que ando a carregar água para os outros? — E jogou o pote, quebrando-o em vinte pedaços.

Mas ao voltar para casa tomou uma grande descompostura da patroa, que a mandou à fonte com outro pote. A moura-torta foi e novamente viu o reflexo da moça na água. E quebrou o segundo pote.

A moça na árvore não conteve uma gargalhada. A moura-torta olhou para cima e percebeu tudo. Jurou vingar-se.

— Linda, linda moça — disse ela fazendo voz macia — que bela cabeleira tu tens, minha flor. Que vontade de correr os dedos por esses lindos fios de ouro! Deixa-me que te penteie.

A moça, sem desconfiar de nada, deixou. A moura-torta subiu à árvore e começou a pentear aquela belíssima cabeleira loura. Súbito, zás! — fincou-lhe um alfinete na cabeça. Imediatamente a moça virou uma pombinha e voou. A moura-torta, muito contente, ficou no lugar dela.

Nisto apareceu o moço com o vestido, mas ao ver a sua beleza transformada naquele monstro arregalou os olhos.

— Que queres? — disse a moura. — Demoraste tanto que o sol me queimou, deixando-me preta assim.

O moço deu um suspiro; mas como se tratasse de sua sina, não podia evitar coisa nenhuma. Levou a moura para o palácio e com ela se casou, tudo na maior tristeza.

Desde o primeiro dia começou a aparecer por ali uma pombinha, que se sentava nas árvores do jardim e dizia ao jardineiro:

"Jardineiro, jardineiro, como vai o rei meu senhor e mais a sua moura-torta?"

Dizia isso e voava. Mas tanto repetiu aquela frase que o jardineiro falou ao rei.

O rei, já meio desconfiado, mandou armar uma armadilha de prata para pegar a pombinha. A pombinha não caiu no laço. Mandou armar uma armadilha de ouro — e nada. Uma de diamante — e nada. Por fim o jardineiro fez uma de visgo e nessa a pombinha ficou presa.

O jardineiro levou-a ao rei, o qual a pôs numa gaiola muito linda.

Imediatamente a moura-torta manifestou desejo de comer a pombinha assada, e tanto insistiu que o rei foi obrigado a dar licença para aquele crime. Mas no dia em que a pombinha ia morrer, o rei tomou-a nas mãos e afagou-a. Percebeu logo em sua cabeça um carocinho. Olhou. Era uma cabeça de alfinete. Puxou-o — e logo que o alfinete saiu a pombinha se transformou na linda moça da melancia.

— Oh! és tu, minha amada! — exclamou ele, na maior alegria.

A moça contou-lhe toda a traição da moura-torta. O rei, furioso mandou amarrá-la na cauda de um burro bravo e soltá-la pelos campos.
––––––––––––––––––––––-
— Essa história — disse Emília — começa bastante bem e vai bem até certo ponto. Depois derrapa como automóvel na lama. O tal moço era um coitado que só possuía uma melancia. De repente está num palácio, e sem mais aquela vira rei...

— Isso mostra — explicou dona Benta — como na tradição do povo as histórias se vão adulterando. Vê-se que está incompleta. Com a passagem dum contador para outro, perdeu um pedaço.

— A idéia — disse Narizinho — me parece linda e original — a idéia do alfinete fincado na cabeça da moça, embora seja um absurdo. Em cabeça de gente não entra nem prego, quanto mais alfinete. Mas passa, porque nas histórias não há naturalismo; tudo é possível. O que não engulo é o moço deixar-se enganar pela moura-torta. Isso é demais.

— Um bobo desse tamanho — ajuntou Pedrinho — eu nunca vi igual. Pois então toda a feiúra da moura-torta ele acreditou que fosse dum bocadinho de sol que a moça havia tomado? Grandíssimo sandeu! Além do mais, ele a havia deixado escondida dentro da folhagem — e que sol é esse que penetra dentro da folhagem das árvores?

— Esta história está cheia de "popularidades" — disse Emília — mas pelo menos tem o mérito de alguma coisa nova: o alfinete enterrado na cabeça da moça, a sua transformação em pombinha e, melhor que tudo, o caso da moura confundir o reflexo da moça com a sua própria imagem. Está tudo muito tosco e bruto, mas passa. Dou grau seis.

— Só porque apareceu uma pombinha! — exclamou dona Benta. — As histórias com pombinhas dentro sempre encantaram a Emília.

— E tenho razão — disse a ex-boneca. — Não há nada mais lindo que uma pombinha bem branca, com aqueles olhos tão redondos. A minha ave predileta sempre foi a pombinha. E a sua, tia Nastácia?

A negra teve vergonha de dizer. A ave predileta de tia Nastácia sempre fora uma galinha bem gorda, das boas para fazer de molho pardo.
–––––––––––––
Continua… IX – A Madrasta
–––––––––––––-
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 181)


Uma Trova Nacional

Sem medo estou afirmando
não merece compaixão.
Quem passa a vida sonhando
vivendo só de ilusão!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE– Uma Trova Potiguar

Por maldade, um certo amor
habitou meu coração,
tornou-se dono e senhor
e partiu sem compaixão...
–MARIA ANTONIETA BITTENCOUR/RN–

Uma Trova Premiada


1993 : Niterói/RJ

Tema : GRITO ; M/H


Dou Gritos de compaixão
quando penso nos sem-terra...
Mas, ao pensar nos sem-pão,
os meus gritos são de guerra!
–JOSÉ MARIA DE ARAUJO/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram

Sem entender o tormento
que a seca traz ao sertão,
o boi se arrasta sedento
implorando compaixão.
–HILDEMAR DE ARAÚJO/BA–

Simplesmente Poesia


DJALMA MOTA/RN–
Ave dos meus Sonhos

Há tempos, não ouvia a tua voz!
Ausente tantos dias
do pomar dos sonhos meus...

Ó ave encantadora!
Quão imensa a minha felicidade
em ver-te outra vez
amenizando a minha solidão.

Vem... Vem... Alimenta minha verve.
Minh'alma carece de tua sonoridade.

Acalenta-me...
Canta a doce e adorável melodia...
Abre tuas asas... Vai... Mas, volta!
Um dia, talvez, sintas compaixão de mim...
Ave dos meus sonhos!

Estrofe do Dia


Angélica causou-me uma emoção,
talvez foi a maior da minha vida;
quando ela olhando assim enternecida,
me perguntou com ar de compaixão:
por que só tens uma perna e não duas?
Pois das pessoas que andam pelas ruas
nunca vi uma assim igual a tu;
mas não vá fique triste... Eis o por que:
vou comprar uma perna pra você
Quando eu for mais vovô no “Carrefu”!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

–MARTINHO FERREIRA DE LIMA/PB–

Eu Vejo

Eu vejo a dor na face dos que penam,
mas não tiveram do mundo a compaixão,
e perdoando não culpam, não condenam,
nem a revolta lhes chega ao coração;

Eu vejo os lenços brancos que acenam,
pois não enxergam na guerra a solução,
e entretanto os fortes, os que ordenam,
na ambição de poder negam perdão.

Eu vejo um dia melhor onde a ciência,
seja usada enfim com consciência,
não a serviço do ódio que destrói.

E vejo a era de um homem diferente,
onde harmonia e paz mostrem pra gente,
que a semente do amor, amor constrói.

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo.

sábado, 9 de abril de 2011

Paulo Leminski (O Assassino era o Escriba)


Meu professor de análise sintática era o tipo do
sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular com um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.

Fontes:
Paulo Leminski.Caprichos e relaxos.São Paulo: Brasiliense,1983.
Imagem
= Introdução à Didactica do Portugues

Moacir Scliar (A Casa das Ilusões Perdidas)


Quando ela anunciou que estava grávida, a primeira reação dele foi de desagrado, logo em seguida de franca irritação. Que coisa, disse, você não podia tomar cuidado, engravidar logo agora que estou desempregado, numa pior, você não tem cabeça mesmo, não sei o que vi em você, já devia ter trocado de mulher havia muito tempo. Ela, naturalmente, chorou, chorou muito. Disse que ele tinha razão, que aquilo fora uma irresponsabilidade, mas mesmo assim queria ter o filho. Sempre sonhara com isso, com a maternidade – e agora que o sonho estava preste a se realizar, não deixaria que ele se desfizesse.

- Por favor, suplicou. – Eu faço tudo que você quiser, eu dou um jeito de arrumar trabalho, eu sustento o nenê, mas, por favor, me deixe ser mãe. Ele disse que ia pensar. Ao fim de três dias daria a resposta. E sumiu.

Voltou, não ao cabo de três dias, mas de três meses. Àquela altura ela já estava com uma barriga avantajada que tornava impossível o aborto; ao vê-lo, esqueceu a desconsideração, esqueceu tudo – estava certa de que ele vinha com a mensagem que tanto esperava, você pode ter o nenê, eu ajudo você a criá-lo.

Estava errada. Ele vinha, sim, dizer-lhe que podia dar à luz a criança; mas não para ficar com ela. Já tinha feito o negócio: trocariam o recém-nascido por uma casa. A casa que não tinham e que agora seria o lar deles, o lar onde – agora ele prometia – ficariam para sempre.

Ela ficou desesperada. De novo caiu em prantos, de novo implorou. Ele se mostrou irredutível. E ela, como sempre, cedeu.

Entregue a criança, foram visitar a casa. Era uma modesta construção num bairro popular. Mas era o lar prometido e ela ficou extasiada. Ali mesmo, contudo, fez uma declaração:

- Nós vamos encher esta casa de crianças. Quatro ou cinco, no mínimo.

Ele não disse nada, mas ficou pensando. Quatro ou cinco casas, aquilo era um bom começo.

Fontes:
Folha de São Paulo - 14.junho.1999
Imagem - Humor Babaca

Rubem Braga (Homem no Mar)


De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.

Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.

Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá. Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem.

É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade, nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solidário com ele, e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então eu poderei sair da varanda tranqüilo, pensando — "vi um homem sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o com atenção durante todo o tempo, e testemunho que ele nadou sempre com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele o atingiu".

Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.

Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.

Janeiro, 1953.

Fontes:
BRAGA, Rubem. A Cidade e a Roça. RJ: Editora do Autor, 1964.
Imagem = Cyberdiet

Jorge Amado (Roça de Cacaus)

Cacaus (Pintura de
Marcio Roberto Roza)

A sombra das roças é macia e doce, é como uma carícia. Os cacaueiros se fecham em folhas grandes que o sol amarelece. Os galhos se procuram e se abraçam no ar, parecem uma árvore subindo e descendo o morro, a sombra de topázio se sucedendo por centenas e centenas de metros. Tudo nas roças de cacau é em tonalidades amarelas, onde, por vezes, o verde rebenta violento. De um amarelo aloirado são as minúsculas formigas pixixicas que cobrem as folhas dos cacaueiros e destroem a praga que ameaça o fruto. De um amarelo desmaiado se vestem as flores e as folhas novas que o sol pontilha de amarelo queimado. Amarelos são os frutos precoces que pecaram ao calor demasiado. Os frutos maduros lembram lâmpadas de oiro das catedrais antigas, fulgem com um brilho resplandecente aos raios do sol, que penetram a sombra das roças. Uma cobra amarela - uma papa-pinto - acalenta o sol na picada aberta pelos pés dos lavradores. E até a terra, barro que o verão transformou em poeira, tem um vago tom amarelo, que se prende e colore as pernas nuas dos negros e dos mulatos que trabalham na poda dos cacaueiros.

Dos cocos maduros se derrama uma luz doirada e incerta que ilumina suavemente pequenos ângulos das roças. O sol que se filtra através das folhas desenha no ar colunas amarelas de poeira, que sobem para os galhos e se perdem além, por cima das folhas mais altas. Os juparás, macacos plantadores de cacau, pulam de galho em galho, numa algazarra, sujando o oiro dos cacaueiros com o seu amarelo fosco e sujo. A papa-pinto desperta, estira seu dorso cor de gema de ovo, parece uma vara de metal que fosso flexível. Seus olhos amarelos de cobiça fitam os macacos que passam, bando buliçoso e alegre. Caem gotas de sol através dos cacaueiros. Vão rebentar em raios no chão, quando batem nas roças de água lhe dão um colorido de rosa-chá. Como se houvesse uma chuva de topázio caindo do céu, virando pétalas de rosa-chá no chão de poeira ardente. Há todos os tons de amarelos na tranqüilidade da manhã nas roças de cacau.

E, quando corre uma leve brisa, todo aquele mar de amarelo se balança, as tonalidades se confundem, criam um amarelo novo, o amarelo das roças de cacau, ah! O mais belo do mundo! Um amarelo como só os grapiúnas vêem nos dias de verão do paradeiro. Não há palavras para descrevê-lo, não há imagem para compará-lo, um amarelo sem comparação, o amarelo das roças de cacau!

Fontes:
AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. SP: Livraria Martins, 1968.

Imagem =
Galeria Da Vinci

Carlos Drummond de Andrade (A Hora do Cansaço)


As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gozo acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Fontes:
Corpo-Novos Poemas. RJ: Record, 1984.
Imagem = http://sergiomarcos.blogspot.com

Monteiro Lobato (Histórias da Tia Nastácia) VII – O Homem Pequeno


Uma vez o príncipe D. João saiu a caçar com alguns amigos, internando-se na floresta. O príncipe, que ia na frente, acabou por distanciar-se dos companheiros, perdendo-se no mato. Quis sair da floresta e não pôde. Andava de cá para lá às tontas, sem conseguir orientação. De repente avistou um muro alto que nem uma montanha, e para lá se dirigiu.

Soube que estava num reino pertencente a uma família de gigantes. O dono da casa era tão alto que dava com a cabeça nas nuvens. Era casado com uma mulher também gigantesca e tinha uma filha também giganta, de nome Guimara.

Quando o gigante viu o príncipe, ficou muito espantado. "Que andas a fazer por aqui, homenzinho?"

O príncipe contou-lhe sua história e o gigante disse: "Pois bem. Posso admiti-lo como meu criado", e o príncipe, que não tinha outro remédio, ficou morando lá.

A filha do gigante achou-o tão engraçadinho que por ele se apaixonou. O pai percebeu a coisa. Chamou o príncipe e disse-lhe:

— É verdade, pequenote, que andas dizendo que és capaz de derrubar numa noite o muro do meu castelo e de construir um palácio?

— Não, senhor meu amo — respondeu o príncipe. — Eu nunca falei semelhante coisa; mas se meu amo manda, farei isso.

— Pois quero ver — disse o rei.

D. João saiu dali muito triste, indo ter com a sua amada Guimara, à qual contou a conversa.

— Não se incomode — respondeu Guimara. — Eu arrumarei tudo.

E assim foi. Graças às suas artes mágicas, Guimara derrubou o muro durante a noite e ergueu um palácio maravilhoso. Quando na manhã do dia seguinte o gigante viu aquilo, assombrou-se.

— Olá, homem pequeno, foste tu mesmo que fizeste isso ou foi minha filha Guimara?

— Fui eu, senhor — mentiu o príncipe.

Passaram-se uns dias. O gigante, cada vez mais desconfiado levantou outro aleive contra o príncipe.

— Escuta cá, homenzinho, andam dizendo por aí que te gabas de seres capaz de fazer daquele monte selvagem um lindo jardim de flores. É certo?

— Eu nada disse, mas se meu amo me manda fazer isso, farei.

— Pois faze, que do contrário te cortarei essa cabecinha.

O príncipe foi ter com Guimara, que o sossegou dizendo: "Não se aflija, meu amor, eu arrumarei tudo."

E assim foi. À noite ela fugiu do seu quarto e junto com o príncipe trabalhou no morro, de modo a transformar tudo aquilo no mais belo dos jardins.

Quando pela manhã o gigante viu a obra, ficou furioso, e resolveu lá consigo que o melhor era dar cabo do homenzinho e de Guimara, pois o tal jardim só podia ser obra dela.

Mas Guimara leu o pensamento do gigante e convidou o príncipe a fugir antes que anoitecesse. E fugiram, cada qual num cavalo que avançava cem léguas de cada passada. O pai saiu em sua perseguição, montado num cavalo que avançava cento e vinte léguas de cada passada.

Vendo que seriam alcançados, Guimara se transformou num riacho; virou o príncipe num negro velho; as selas, num canteiro de cebolas; uma espingarda que levavam, em beija-flor; e os cavalos, em árvores. O gigante, ao ver aquele negro velho tomando banho no riacho, parou para pedir informações.

— Meu negro velho — disse ele — não viu por acaso, de passagem por aqui, dois cavaleiros, um moço e uma princesa?

O negro olhou para o canteiro de cebolas e respondeu: "Plantei estas cebolas mas não sei se darão boas." E repetia sempre essas mesmas palavras, por mais que o gigante insistisse em saber do moço e da moça.

Aborrecido com o negro, o gigante fez a mesma pergunta ao beija-flor — mas a resposta foi uma bicada que quase lhe furou os olhos. Desesperado da vida, o gigante voltou para casa.

Quando sua mulher soube de tudo, gritou logo:

— Que grande idiota és tu! Pois não percebeste que o riacho era a Guimara, o negro o homenzinho, o beija-flor a espingarda, o canteiro de cebolas eram as selas, e as árvores os cavalos?

O gigante voltou para lá com a maior rapidez, mas não encontrou mais nada daquilo. Guimara e o príncipe haviam desencantado e avançado caminho, para de novo se transformarem, muito adiante, ela numa igreja, ele num padre, a espingarda num missal, e mudarem as selas num altar e os cavalos em dois sinos. O gigante varou pela igreja adentro, perguntando:

— "Senhor padre, não viu passarem por aqui dois cavaleiros, um moço e uma princesa?"

O padre, que fingia dizer missa, respondeu com um versinho:

Não ouço o que me diz, não...
Sou um padre ermitão,
devoto da Conceição, não ouço o que me diz não...
Dominus vobiscum.

Por mais que o gigante repetisse a pergunta, o padre respondia sempre do mesmo modo. Por fim, desesperado, o gigante voltou para casa e contou tudo à mulher.

— Que tolo que és! Volta para lá no galope. A igreja é Guimara, o padre é o homenzinho, o altar são as selas, o missal é a espingarda e os sinos são os cavalos.

O gigante voltou no galope, mas nada mais viu. Os fugitivos já estavam longe. O gigante, porém, breve os avistou, e então Guimara soltou no ar um punhado de cinzas, que se transformou no mais espesso nevoeiro. O gigante, não podendo enxergar mais nada, voltou para o seu castelo danadíssimo da vida.

Os dois fugitivos, finalmente, chegaram ao palácio do príncipe. E então Guimara lhe pediu que ao chegar não beijasse a mão de sua tia. O príncipe prometeu, mas ao entrar no palácio a primeira pessoa que viu foi sua tia — e sem lembrar-se da promessa beijou-lhe a mão. Assim que fez isso, esqueceu completamente Guimara e tudo quanto se tinha passado.

O encantamento de Guimara havia desaparecido desde o instante em que ela pisou naquele reinado estranho. Ficou do tamanho de todas as moças e muito triste, porque o seu adorado príncipe já não tinha a menor idéia dela, nem do que ela fizera para lhe salvar a vida. E acabou-se a história.
–––––––––––––––––

— Nesta história há uma novidade — disse Emília — mas o fim está muito atrapalhado e sem pé nem cabeça. Eu gosto de fantasia, mas de fantasia com pé e cabeça. Tudo que não tem pé nem cabeça, me parece errado.

— Essa sua teima de exigir nas histórias pé e cabeça, Emília, tem sua razão de ser — disse dona Benta. — As coisas sem pé nem cabeça dão-nos a impressão de monstruosidades, de coisas contra a natureza. Uma história pode ser a mais fantástica possível, mas há de ter pé e cabeça. Você tem razão nessa exigência.

— Eu também acho a história descabeçada demais — disse Narizinho. — Pois se o tal gigante era tamanho que dava com a cabeça nas nuvens, então nem enxergar o príncipe poderia. Feita a proporção, seria o mesmo que eu lidar com um micróbio. E para matar esse micróbio o idiotíssimo gigante inventava aleives, etc. Para matar um micróbio eu assento um pé em cima, e pronto.

— Outra coisa que não me agrada — disse Pedrinho — é o tal canteiro de cebolas. Bem se vê que é história contada por negras velhas, cozinheiras. Só faltou transformarem a moça num saquinho de sal, a espingarda em uma cabeça de alho e os cavalos num frango assado.

— Tudo passa — concluiu Emília. — Só não passa o fim da história. A coitada da Guimara devia ter uma recompensa. Fez tudo pelo príncipe e afinal saiu lograda. E por quê? Porque ele beijou a mão da tia. Bolas! Então beijar a mão de tia traz esquecimento? Essa burrice eu não perdôo. Dou grau cinco para a primeira metade da história, mas dou zero para o final.
–––––––––––
Continua… VIII – A Moura-Torta
–––––––––––––-
Fonte: LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995. Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Antonio Bras Constante (Passagem)

Pintura de EdvardMunch (1910)
De repente me percebo chegando. Olhos perdidos no nada, pois o que vejo são lembranças passadas. Caminhos vividos, que dançam girando em minha volta, clamando por uma chance de conseguir retornar.

O corpo cansado respirando fundo, vislumbrando meu mundo diante de mim, sorrindo tristonho a cada lembrança, me vendo primeiro como criança e agora assim.

Queria poder ser mais forte, quem sabe vencer a morte, ou ao menos tentar. Ter o dom da conquista, como troféu à vida, que teima em me abandonar.

No trem da minha existência, cada vagão tem seu tempo. Neles eu sigo sozinho, sofrendo baixinho, percebendo o fim. A chegada é iminente, e a passagem que tenho só me traz até aqui…

Fonte:
Colaboração do Autor

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 180)


Uma Trova Nacional

O churrasquinho no espeto
agora me fez pensar:
– onde anda meu gato preto,
que não escuto miar?!
–ANTÔNIO CARLOS TEIXEIRA/DF–

Uma Trova Potiguar

Foi uma cena humilhante,
na medicação sem base,
quando eu tomei um laxante
pensando ser “colestase”.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Uma Trova Premiada

2009 > Bandeirantes/PR Tema > CHILIQUE > Venc.
Teve um chilique tão forte
que logo tomou vacina
e se mandou para o norte
temendo a gripe sulina...
–RENATA PACCOLA/SP–

...E Suas Trovas Ficaram

Se alguém me chamar de “pão”,
apesar de pitoresco,
fico puto e com razão:
pão só é bom quando é fresco!...
–JORGE MURAD/RJ–

Simplesmente Poesia

MOTE: Lamparina sem pavio; é besteira botar gás.

GLOSA:
Quando moço fui vadio
fiz tudo o que quis fazer,
eu fiz até acender
lamparina sem pavio;
aceitava desafio
viesse do satanás,
se hoje não faço mais
porque o fogo apagou-se,
se a lamparina furou-se
é besteira botar gás.
–AUGUSTO MACEDO/RN–

Estrofe do Dia

Conheço demais o rio Paraíba,
que nasce sozinho, lá dentro da praia!
parece um cambito de pau de "cangaia",
as suas enchentes têm mel de tubiba;
na frente, recebe um tal rio furiba,
e passa correndo pra Madagascar;
alaga Recife, demora em Dacar,
no tempo de inverno é seco demais:
foi quando "Oliveiro" enfrentou Ferrabrás,
que luta pai-d'égua na beira do mar!
–ZÉ LIMEIRA/PB–

Soneto do Dia

–ISMAEL GAIÃO/PB–

Os Quatro Cornos


Quatro cornos sentados numa praça
Lamentavam por ter desilusões.
O primeiro lembrando as traições:
- Eu me vingo das pontas na cachaça.

O segundo chorava da desgraça
E dizia: não perco as ilusões.
Se a mulher preferiu ter Ricardões
Isso é fase, mas sei que logo passa.

O terceiro chifrudo, o mais matreiro:
O que importa é a mulher trazer dinheiro
Pra o que falam de mim, nunca liguei.

Já o quarto cornão, foi taxativo:
- Quando a minha me trai sou vingativo.
Eu arranjo outro bofe e vou ser gay.

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Paulo Leminski (Dois Loucos no Bairro)


dois loucos no bairro

um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também

Imagem duplicada =
http://porqueeucorro.blogspot.com

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) VI – A Raposinha


Era uma vez um príncipe que saiu a correr mundo, em procura dum remédio para o rei, seu pai, que estava cego. De pois de muito andar, passou por uma aldeia, onde viu vários homens dando uma sova num defunto.

— Que é isso? — perguntou o príncipe.

— É que este homem nos devia dinheiro e morreu sem pagar. O costume cá da aldeia manda meter a lenha no cadáver.

O príncipe revoltou-se contra a brutalidade, e pagando a dívida do morto deu ordem para que o enterrassem.

Seguiu caminho. Adiante encontrou uma raposa que lhe perguntou para onde ia. O príncipe contou que andava atrás dum remédio para a cegueira do rei, seu pai.

— Pois sei dum remédio — disse a raposinha. — Basta esfregar nos olhos do rei um pouco de "ungüento de papagaio", mas dum certo papagaio lá do reino dos Papagaios. Vá lá, meu príncipe, entre à meia-noite no lugar onde estão esses pássaros e não olhe para os bonitos, os que moram em gaiolas douradas. Pegue no mais velho de todos, o mais depenado e sujo, que está a um canto, num poleiro imundo. Esse é o bom.

O príncipe foi. Quando entrou no reino dos Papagaios, ficou de boca aberta de tantas aves lindas que viu, em gaiolas de prata e ouro, e até cravejadas de diamantes. Esquecido da recomendação da raposinha, pegou na gaiola do mais bonito e foi saindo. Mas o papagaio deu um' berro. Os guardas acordaram e prenderam o príncipe.

— Que queres com este papagaio? — disseram. — Vais morrer, gatuno!

O príncipe, com muito medo, explicou do que se tratava. Os guardas então lhe disseram:

— Pois muito bem: damos-te o papagaio se fores ao reino das Espadas e nos trouxeres uma — e soltaram-no.

O príncipe saiu muito triste porque não sabia onde era o tal reino. A raposinha apareceu-lhe de novo.

— Então, meu príncipe, que tristeza é essa? — e depois de saber do acontecido falou assim: — Eu bem recomendei que pegasse o papagaio mais velho e feio.

Agora o que tem a fazer é o seguinte: vá ao reino das Espadas (e contou onde era) e entre lá à meia-noite. Encontrará espadas de todos os jeitos, de ouro e prata, muitas cravejadas de pedras preciosas — mas não pegue nenhuma dessas. Pegue uma velhinha e enferrujada, que está num canto. Essa é a boa.

O príncipe foi, e lá no reino das Espadas ficou de boca aberta diante das tantas mavilhosas que viu. Mas não teve coragem de pegar na espada mais velha e ferrujenta; escolheu, ao contrário, a mais rica de todas. Quando ia saindo, fez barulho sem querer; os guardas acordaram e o prenderam. Iam levá-lo ao rei de Espadas.

O príncipe, porém, contou sua triste história de modo a comover os guardas, os quais disseram: "Bem. Perdoaremos o seu crime, se for ao reino dos Cavalos e nos trouxer um."

O príncipe saiu em procura do reino dos Cavalos. Logo adiante encontrou a raposinha. "Para onde vai tão triste o senhor príncipe?" — perguntou ela.

O príncipe contou tudo.

— Bem feito — disse a raposinha. — Por que não fez como eu disse? O remédio agora é um só — ir ao reino dos Cavalos (e contou onde era) e lá entrar à meia-noite. Encontrará muitíssimos cavalos de todas as cores e raças, cada qual mais lindo. Mas não pegue nenhum desses. Escolha o mais velho e feio. Esse é o bom.

O príncipe foi, mas tão lindos animais viu no reino dos Cavalos que não teve ânimo de pegar no mais velho e feio. Escolheu, ao contrário, o mais lindo de todos. Ao sair, o cavalo rinchou, acordando os guardas, que o prenderam.

Houve explicação e por fim os guardas disseram:

— Pois bem, nós o perdoaremos se você furtar a filha do rei.

O príncipe prometeu e saiu. Logo adiante encontrou a raposinha que lhe disse:

— Príncipe, saiba que sou a alma daquele defunto que levou a sova por causa das dívidas. Ando a protegê-lo por todos os modos, mas nada tem adiantado. Você nunca faz o que eu digo. Vamos ver se agora me atende. Arranje um cavalo e vá à meia-noite ao palácio do rei; entre; agarre a moça, ponha-a na garupa e dispare no galope. Passe pelo reino dos Cavalos e pegue o que eu disse. Depois passe pelo reino das Espadas e pegue a que eu disse. Depois passe pelo reino dos Papagaios e pegue o que eu disse. E dispare a toda para a casa de seu pai, porque o velho está morre não morre. Mas nunca entre por veredas, nem dê atenção a coisa nenhuma antes de chegar em casa. E adeus

O príncipe lá se foi. Chegando ao palácio do rei, furtou a moça; chegando ao reino dos Cavalos, pegou o mais velho e feio; chegando ao reino das Espadas, levou a mais velha; chegando ao reino dos Papagaios, pegou o mais feio — e seguiu no galope na direção de sua casa.

Pelo caminho, porém, encontrou seus irmãos que tinham saído à procura dele, mas que ao verem aqueles objetos ficaram com inveja e resolveram matá-lo para roubar. Para isso convenceram-no de que devia deixar a estrada e seguir por um atalho, porque indo pelo atalho estaria livre de ser assaltado por ladrões.

O moço caiu na esparrela; tomou pelo atalho. Logo adiante os maus irmãos assaltaram-no, roubaram-no e jogaram-no numa buraqueira, certos de que estava morto. E voltaram para casa com os des-pojos. Aconteceu, porém, uma porção de coisas. A moça não queria comer nem falar; o papagaio enfiou a cabeça sob a asa e não disse uma só palavra; a espada ficou mais enferrujada ainda e o cavalo pendeu a cabeça como se fosse morrer.

Quando o moço, lá na buraqueira, acordou do longo desmaio, viu diante de si a raposa, a qual o tirou dali e o botou no caminho. Ele seguiu para casa manquitolando. Assim que chegou, a espada perdeu a ferrugem, ficando novinha em folha; o papagaio criou penas novas e foi sentar-se em seu ombro; a moça deu uma gargalhada gostosa e falou pelos cotovelos; o cavalo ergueu a cabeça e engordou num instante.

O príncipe, então, dirigiu-se ao quarto do rei cego e esfregou-lhe nos olhos um pouco de "ungüento de papagaio" — e o rei imediatamente recobrou a vista e a saúde.

Foi uma grande alegria na corte. O bom príncipe casou-se com a moça e os maus irmãos foram expulsos do reino. E acabou-se a história.
-------------
— Bom — disse Emília. — Esta já está mais bem arranjadinha. Mas eu noto uma coisa: as histórias populares parecem que são uma só, contada de mil maneiras diferentes. Falam tanto na tal imaginação do povo e eu não vejo nada disso. Vejo apenas uma grande pobreza.

— Sim — disse dona Benta. — Também eu não encontro grande riqueza de imaginação no nosso povo. As histórias que por aí correm de fato se repetem, parecendo ser todas do mesmo ciclo.

— Ciclo? — repetiu Narizinho. — Que é isso?

— Quando há uma idéia central e em redor dela surgem muitas histórias parecidas umas com as outras, dizem os sábios que elas pertencem ao mesmo ciclo. Na Europa houve, na Idade Média, o ciclo das histórias da Raposa. Houve também o ciclo das histórias do rei Artur. O povo encanta-se com uma idéia e vai tecendo variantes em torno.

— No cinema de hoje noto a mesma coisa — disse Pedrinho. — Sempre que aparece uma fita original, todas as companhias se aproveitam da idéia e dão fitas sobre o mesmo tema. Até enjoa a gente essa repetição.

— E na literatura também é assim — disse dona Benta. — Sempre que um escritor lança uma obra original, com alguma novidade que caia no gosto do público, todos os maus escritores se metem a usar e abusar daquele tema. Quando aqui no Brasil apareceu O Guarani de José de Alencar, veio logo uma fúria de romances e contos de índios que não acabava mais. Eram obras de pouco valor, imitações que o tempo varreu para o lixo com a vassoura do esquecimento. Só ficou O Guarani.

— Bom — disse Pedrinho. — Nesse caso, temos nas histórias populares o ciclo dos príncipes Joãozinhos que saem a correr mundo em procura de velhas que ensinam remédios e mais coisas milagrosas. As que tia Nastácia já contou parece pertencerem ao mesmo ciclo. Já estou cansado desse "ciclismo"...
–––––––––––
Continua… VII – O Homem Pequeno
–––––––––––––-
Fonte: LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995. Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 179)


Uma Trova Nacional

A saudade uma quimera
se apresenta tão vulgar,
nos devora tal qual fera
não tem hora nem lugar. Alinhar ao centro–JOSIAS ALCÂNTARA/ES–

Uma Trova Potiguar

Tristeza no peito eu sinto
em ver que a mãe terra come
o próprio filho faminto
que ela matou pela fome!!!
–LUIZ DUTRA/RN–

Uma Trova Premiada

Aqueles grãos sem valor
- e eu fico pensando agora –
eram sementes de amor
e eu, sem saber, joguei fora...
–MARINA BRUNA/SP–

...E Suas Trovas Ficaram

Teimei no amor... e errei tanto
na teimosia de amar,
que eu mesmo não sei mais quanto
errei tentando acertar!...
–ALOÍSIO ALVES DA COSTA/CE–

Simplesmente Poesia
.
–SÉRGIO AUGUSTO SEVERO/RN–

Matutando...


Por onde andará o som,
quando a Noite silencia?
E onde andará o tom,
se a partitura é vazia?

Me respondam, por favor,
me deem a compreensão:
-Por onde andará o Amor,
quando chega a solidão ?

São perguntas que assim postas,
necessitam de respostas,
mais fáceis de compreender...

Como ninguém me responde,
vou procurar, não sei onde,
uma forma de entender.

Estrofe do Dia

No deslumbrar da aurora
um coro de muitas aves
canta as canções mais suaves
que a gente cantava outrora,
na cama ela reza e chora
ouvindo a doce aquarela,
desperta, vai pra janela,
recorda nossa amizade;
nasceu um pé de saudade
no jardim da casa dela.
–ZÉ FERNANDES/CE–

Soneto do Dia

–JOÃO JUSTINIANO DA FONSECA/BA–

Longevidade

Hoje, espiando o tempo, eu mal raciocino…
Vilão maior do mundo engole, absorve tudo.
Vejo meus filhos, olho-os inquieto e mudo,
Uma velha e um velho em cada um menino…

Vejo os amigos pasmo. A voz triste do sino
Badala aqui e ali… E já não há entrudo
Nem carnaval nem nada. O que ontem foi graúdo
Hoje é insignificante, humilde, pequenino.

Viver é bom, mas dói. Dói a longevidade,
A paciência encurta e encurta a vaidade.
Constrange, humilha, abate o moral e faz pena…

As articulações, as pernas, as mil rugas…
As lágrimas e o dó… Homem, jamais enxugas
As lágrimas da idade… E eis a megera à cena!

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo