domingo, 13 de fevereiro de 2011

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 14. D. Paula)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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O conto D. Paula, de Machado de Assis, escrito em 1884, foi publicado na obra Várias Histórias e percebe-se neste relato um tema que já fora desenvolvido em O Enfermeiro e outros contos: a desconexão entre o externo e o interno, pois se dizia e pregava o moralismo, no seu íntimo desejava, ou pelo menos deliciava-se com algo imoral.

Em D. Paula, Machado descreve o ambiente propício às abordagens amorosas “...o corredor, os pares que saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes...”

Na obra em análise, o narrador faz uma focalização externa de Venancinha, com a intenção de mostrar ao leitor que algo estava acontecendo: “a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar”, mas não revela o porquê de tantas lágrimas da moça, fazendo assim uma paralipse (Figura de linguagem que consiste em mencionar um assunto justamente ao negar querer fazê-lo) que representa um recurso retórico em que a narrativa não salta, como na elipse, por cima de um momento, passa ao lado de um lado.

Dessa forma a paralipse causa um breve enigma, pois não revela o motivo de tantas lágrimas derramadas pela sobrinha quando D. Paula a encontra. Nesse instante o enunciador volta-se para o leitor instigando-o a desvendar o que realmente teria acontecido, “quando Venancinha atirou-lhe aos braços, as lágrimas vieram-lhe de novo”. Mas em seguida, o leitor recebe a informação de que quando a senhora envolveu a moça em um jogo de gestos carinhosos e de palavras doces e confortáveis, Venancinha confiou à tia tudo o que havia acontecido. Trata-se de uma briga que a moça teve com o marido porque este achava que ela cometera adultério.

Esta crença do marido é revelada sumariamente:

Desde muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C..., vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados.

O sumário aumenta a velocidade discursiva, distanciando o leitor dos fatos, pois não se sabe até então se era “birra” do marido ou algo semelhante.

D. Paula, agora envolvida na situação em que o casal encontrava-se, decide ajudá-los. A princípio ela vai ao escritório de Conrado para conversar e ver se há possibilidades, entre o casal, de reconstituir a paz conjugal. Quando a senhora está de partida, a sobrinha acrescenta-lhe que: “apesar de tudo” adorava-o, gerando aí uma ambiguidade, permitindo ao leitor pensar que ela realmente traiu o marido ou estava dissimulando para se mostrar arrependida de tal situação, diante da tia. Neste momento, o narrador instiga o enunciatário a refletir se realmente houve ou não adultério, criando assim uma postura depreciativa sobre a moça em relação ao seu caráter. Esta passagem pode ser identificada quando a jovem jura que “apesar de tudo, adorava o Conrado”.

Na verdade o que se nota é que o discurso toma um rumo, quando na verdade seu foco é outro. Ou seja, o sujeito da enunciação também é um dissimulador, pois focaliza o adultério de Venancinha sendo que a trama está em volta da figura de D. Paula. Porém, isso está latente na narrativa.

D. Paula segue o seu destino a caminho do escritório do rapaz, para que possa tentar promover a paz entre a moça e Conrado, “não digo desconfiada, mas curiosa”, esta focalização interna não é tão reveladora assim, pois a tia, a partir de então, passa a possuir dúvidas a respeito da traição da sobrinha e fica instigada em saber se houve, ou não o adultério.

Quando a senhora chegou ao escritório não precisou explicar o motivo de sua visita, porque o sobrinho adivinhara tudo e em seguida “confessou que fora excessivo em algumas cousas”. Por intermédio do narrador o leitor descobre que Conrado tinha certeza de que sua mulher o traía devido a pessoa de quem se tratava. Sendo assim, pode-se observar que o moço tinha certo conhecimento do caso, para afirmar com tanta firmeza sobre a situação. Ou ainda, pode ser que ele conhecesse o caráter do sujeito; levando em consideração também a leviandade de sua esposa, e chegou a esta conclusão de que eram namorados.

Após uns minutos de conversa, a senhora propõe ao moço que a jovem passasse alguns dias com ela, em sua casa, para a recuperação de caráter. E ainda deu-lhe conselhos de brandura e prudência e também alertou-o de que esse homem não merecia todo esse cuidado que estavam tomando.

Percebe-se então que nesta circunstância a senhora não tinha o conhecimento de quem se tratava, pois até neste ponto o enunciador não estava completamente voltado para D. Paula, e sim para Venancinha. Ou seja, o narrador prende a atenção do enunciatário que está concentrado na situação em que a moça se encontra, mas isso é até o momento em que a tia descobre de quem se tratava, pois, a partir daí o sujeito da enunciação volta-se para a senhora.

Na continuidade da narrativa o narrador conta que na hora da despedida, de D. Paula com Conrado, o nome do rapaz envolvido na separação temporária entre o casal, é pronunciado e de imediato “D. Paula empalideceu”. Diante desta reação mostrada através de uma focalização externa o leitor prossegue com um mistério em mãos. Afinal por que D. Paula ficou pálida? Que valor tem o nome do rapaz na vida dela? Neste momento do enunciado começa o enigma em torno da personagem.

Para reafirmar o grande significado que este nome representa para a senhora, o sujeito da enunciação associa o modo pelo qual ela retira-se do local, usando uma focalização externa: “com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia”. Em relação a este tipo focalização, pode-se dizer que ela é geradora de significados para o leitor, pois a personagem age na frente do enunciatário sem que ele tenha o conhecimento dos seus sentimentos ou pensamentos.

Na sequência do conto o narrador utiliza outra paralipse, mas desta vez omitindo os sentimentos da tia quanto ao Vasco Maria Portela, sendo este o nome revelado na despedida. Com isso gera outro enigma na diegese (realidade interna da obra, como criada pelo autor, independente da realidade não ficcional do 'mundo real), só que agora em relação à senhora.

Então D. Paula após o choque que tomara, foi encontrar-se com a sobrinha para notificar-lhe a sentença final, a moça por sua vez aceitara tudo. Após este fato o narrador utiliza a elipse para omitir o que acontece nos dois dias que antecede a ida de Venancinha para a casa da tia. Finalmente a jovem segue para a casa da senhora, que com ajuda desta, tem a intenção de modificar-se e reconciliar-se com o marido.

Quando a tia e a sobrinha estão a caminho da casa, o enunciador usa outra estratégia para que o leitor possa imaginar o que teria acontecido nos dias anteriores.
Através do discurso modalizante da ordem do crer na expressão “pode ser também que algumas saudades”, o narrador sabe o que realmente se passa na cabeça da moça, mas não afirma e ainda não identifica de quem são estas possíveis saudades sentidas, se pelo marido ou pelo amante.

Na proporção em que o nome do Vasco foi revelado, D. Paula não teve sossego em seus pensamentos, pois a partir daí começou a escutar espécies de ecos, que a conduziam a seu passado, às suas aventuras do tempo de moça. Entende-se nesse momento, que a senhora também foi leviana, assim como a sobrinha é no presente; e que agora a tia é: “uma pessoa austera e pia, cheia de prestígio e consideração”. Com isso D. Paula deparava-se com as lembranças do passado identificando-se com Venancinha na situação em que está vivendo.

Na seqüência dos fatos o narrador revela ao leitor o que de fato aconteceu com D. Paula e Vasco Maria Portela, que consiste em uma aventura com sucessões de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de arroubos, e que foram momentos vividos intensamente. Com a intenção de anunciar que foi apenas uma aventura, o sujeito da enunciação nos fornece, em seguida, a informação do fim do relacionamento entre a tia e Vasco, e revela também que a senhora mantinha este caso “à sombra do casamento, durante alguns anos”. Aqui no tempo da enunciação o narrador sugere que no passado, no tempo da diegese, a personagem, D. Paula, não era uma figura prestigiada devido à postura que apresentava, mas que no tempo presente constitui-se de um caráter sério, digno de considerações.

Desta forma o enunciador caracteriza duas personalidades distintas referentes à senhora, sendo uma de quando era jovem e apresentava atos de leviandade; e a outra, a de agora que adquiriu experiências da vida e compõe-se de uma postura séria. Considerando este aspecto podemos chegar a conclusão de que a tia na sua juventude, mantinha uma postura não recomendável em que descaracterizava os “bons costumes” da época e consequentemente, colocava em risco sua reputação. Por outro lado nota-se o oposto, porque D. Paula atribuiu outro caráter, em relação ao que tinha, fazendo assim com que o leitor tenha uma visão apreciativa sobre ela, no presente, com isso o enunciatário passa a depositar mais confiança na senhora em relação a recuperação de caráter de Venancinha.
Na proporção em que a sobrinha relatava os fatos para a tia, esta voltava, em seus pensamentos, para o tempo passado relembrando, ou até mesmo revivendo, as suas aventuras. Diante deste processo pode-se afirmar que a moça é quem levou a senhora a recuar-se para as emoções ocorridas.

Durante uma conversa com a sobrinha, a tia percebe a dissimulação da jovem quando lhe responde uma pergunta que diz respeito às saudades da Tijuca, e a moça para dar mais intensidade à resposta faz gestos que D. Paula acompanhou, observando cada detalhe com seus olhos sagazes. Os mesmos que se mostram na conversa com Conrado, reafirmando, portanto, que ela está sempre atenta ao que acontece ao seu redor.

Diante da dissimulação de Venancinha, a senhora chega a concluir que: ”eles amam-se”. Esta descoberta fez com que avivasse ainda mais suas lembranças. Apesar de lutar contra esses pensamentos, nada adiantou, pois o passado voltara de manso ou de assalto. Desta maneira o narrador faz uma analepse sumarizada, registrando alguns momentos vividos pela tia:

D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à cara da sobrinha como sendo a mais graciosa cousa do mundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aos beijos.

Desde que a tia retornou ao tempo passado não pôde mais concentrar-se totalmente em sua missão para atingir seu objetivo, isso porque ficava dividida entre o presente e o passado. Contudo:

D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.

Na continuidade do discurso o narrador utiliza uma elipse que é caracterizada como “um segmento nulo de narrativa que corresponde a uma qualquer duração da história.”. “Nove dias depois”, Conrado fez a sua primeira visita à sua esposa e à tia. Durante essa visita ele manteve a mesma conduta de quando chegou até a sua saída; caracterizando-se em uma postura fria. Esse procedimento do marido resume-se em uma dissimulação para atingir os sentimentos de Venancinha, e assim aconteceu pois ela ficou sem reação ao vê-lo daquele jeito, que até temeu a perda do marido e a partir daí tornou o seu principal motivo de sua transformação, ou seja, quando viu o marido naquele estado, decidiu lutar pelo seu casamento.

Após dois dias do ocorrido, a jovem e a senhora vão para um passeio, como de costume, e viram em suas direções, um cavaleiro, em que Venancinha após fixar seus olhos nele, escondeu-se atrás de um muro enquanto D. Paula manteve-se em seu lugar observando-o. Com a reação da mocinha a tia pôde perceber de quem se tratava e que este relacionamento chegou a um grau perigoso, porque a reputação de sua sobrinha estava em risco.

Na mesma noite em que a jovem avistou o rapaz, a senhora com toda a sua experiência manipulou a sobrinha para lhe contar tudo o que aconteceu. O sujeito da enunciação faz neste instante um sumário caracterizando a história da moça, acelerando o tempo do discurso.

O sumário em questão mostra ao leitor o quanto a jovem se encantou com o sujeito, a ponto de comentar dele para o marido que ao escutar “franziu o sobrolho” e que “foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então não tinha”. Ou seja, a mulher falou com tanta graça sobre o rapaz, que despertou em Conrado uma certa desconfiança que antes não tinha.

Ainda na residência da tia, Venancinha continuava a revelar à D. Paula os fatos e a senhora escutava-os prestando atenção em cada detalhe pronunciado, fazendo assim com que voltasse a seu espírito jovem, criando, no entanto, mais confiança à moça. Nestas circunstâncias a sobrinha “achou ali uma confidente e amiga”. Na verdade o não julgamento pela tia era mais um ato egoísta do que humano, pois ela encontrou naquele momento em seu passado, mesmo que por alguns instantes. Para melhor exemplificar esta passagem o narrador compara a senhora “a um general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas”. É como se a senhora tentasse perdoar ela mesma.

Ao longo da confissão Venancinha contou à tia que gostou do rapaz, mas agora estava arrependida e assim foi contando-lhe mais coisas. À medida em que a sobrinha revelava os acontecimentos, D. Paula deliciava-se com as confissões retornando ao seu passado, e no final do discurso da jovem a senhora conclui que esta situação não passava de um prólogo (começo), interessante e violento. Enfim, a tia consegue colocar na cabeça da sobrinha a idéia do erro que quase cometera. Mas para a senhora esta história ainda se passava em sua mente fazendo-a viajar no tempo, isso pode ser notado quando ela “gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma xícara de chá e roer um biscoito”.

Em seguida o narrador faz uma alegoria que refere-se exatamente ao que se passou com D. Paula: “esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as cousas que viram”, que neste caso a senhora viveu a mesma situação em que a sobrinha vive atualmente. Porém D. Paula prefere dissimular ao invés de revelar à sobrinha que passou por experiência similar.

Voltando ao início do conto nota-se uma frase interessante: “Não era possível chegar mais a ponto”, que se repete no decorrer da história. No entanto com esta expressão pode-se observar que Venancinha e D. Paula encontram-se em um ponto em comum. Ou seja, ambas as personagens têm uma história semelhante, a diferença é apenas temporal, uma aconteceu no passado e a outra ocorre no presente.

Partindo da análise do conto referido, verifica-se que o adultério cometido pela personagem que protagoniza o conto foi mais extenso do que da moça, pois este foi apenas um começo e com a ajuda da senhora não foi prolongado.

Contudo, nota-se que apesar de D. Paula ter solucionado o caso de Venancinha, fica para ela a incômoda, inquietante e impossível de ser “resolvida” lembrança do passado.

Tendo em vista nosso interesse em compreender a construção ambígua da personagem D. Paula, percebemos no conto analisado que a perspectiva que prevalece para gerar efeito ambivalente ao comportamento da personagem, que nomeia o conto, é a focalização externa, permitindo assim a visualização do aspecto físico em que se encontra a personagem analisada, o que consequentemente, contribuiu para o estudo do seu comportamento.

Neste texto também foram usados os recursos anisocrônicos, como os sumários e as elipses, com a finalidade de economizar tempo e espaço, simplificando os fatos da diegese. A presença das anacronias e modalidades básicas acrescentam-se também no decorrer do conto em quantidade mínima.

Em relação aos estudos realizados em D. Paula, podemos encontrar uma chave de interpretação para o clássico Dom Casmurro e uma preocupação central da obra de Machado de Assis. Ora, se inicialmente (como em Dom Casmurro) pensamos ser a questão central do conto um dado de enredo (o adultério), logo percebemos o interesse real do escritor que se caracteriza-se em deslocar a atenção do leitor para o efeito que este dado provoca na vida interior da personagem. Ou seja, Machado de Assis direciona o conto, e paralelamente ao que acontece, há sempre o que parece estar acontecendo.

Créditos: Thalita Moraes Guimarães, Letras UEMG
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Continua… Análise do Conto “Viver!”
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

José Reinaldo de Melo Paes lança Jornal Virtual dos Trovadores de Alagoas nº 4 - fevereiro de 2011



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CONVERSA DE MESA DE BAR

Certa vez, ao ouvir um comentário elogioso do Poeta Jucá Santos sobre a minha humilde pessoa, fiz-lhe a seguinte septilha (ou redondilha maior):

Meu amigo Jucá Santos ,
bom irmão que Deus me deu,
tudo que escrevi na vida
não vale um verso seu.
Você sim é um poeta
de rima sempre correta,
muito melhor do que eu.
(Zé Reinaldo – Maceió/AL)

Mais do que depressa, de improviso, Jucá Santos fez a seguinte pérola:

Meu amigo Zé Reinaldo,
eu não sei se é modéstia
ou se apenas uma réstia
de luz que em você se vê ...
Porque se existe um poeta
de rima rica e correta,
esse poeta é você. .
(Jucá Santos – Maceió/Al)

Jucá Santos é, em minha opinião, o maior sonetista de Alagoas. Diz ele que não faz repentes, mas o que pude comprovar nas nossas conversas de mesa de bar foi justamente o contrário.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.125)

Praça do Centro de Santana do Matos/RN
Uma Trova Nacional

Discórdias, sonhos frustrados,
e as mágoas não resolvidas,
são os nós não desatados
das cordas das nossas vidas...
(JOSÉ VALDEZ MOURA/SP)

Uma Trova Potiguar

Ó coqueiro pequenino,
que tanta água nos deu!
Que ironia o teu destino:
por falta d'agua morreu!!!
(PROF. GARCIA/RN)

Uma Trova Premiada

2006 > Pitangui/MG
Tema > TERÇO > Venc.

Reze seu terço baixinho,
sem atrair atenções,
que o Deus que escuta o sozinho
é o mesmo das multidões.
(ALTIVO CINTRA/MG)

Simplesmente Poesia

MOTE.
E a terra caiu no chão.

GLOSA:
Plantei um pé de roseira
dentro de uma lata rasa,
pendurei detrás de casa
numa vara da biqueira,
numa noite de fogueira
na véspera de são João,
o danado de um barrão
pensando que era batata
furou o fundo da lata
e a terra caiu no chão.
(CHICO DE SOUSA/PB)

Uma Trova de Ademar

Para alcançar a pujança,
basta-me ter, sem fadigas,
a força e a perseverança
do Trabalho das formigas!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Hoje eu pergunto sem ira:
porque deixaste, meu Deus,
os brinquedos de mentira
parecerem que eram meus?...
(MILTON NUNES LOUREIRO/RJ)

Estrofe do Dia

Eu por ser infantil caí nos laços
das promessas do mundo deprimente
leiloei o meu corpo adolescente
nos bordéis frequentados por ricaços.
Atirei-me na noite dos devassos
paguei caro por minhas travessuras.
Pela boca das trevas mais escuras
meu destino fatal foi engolido,
o silêncio da noite é quem tem sido
testemunha das minhas amarguras.
(GERALDO AMÂNCIO/CE)

Soneto do Dia

– Rogaciano Leite/PE –
A BARCAÇA

O mar soluça e geme. A onda bravia
num véu de espuma contra o céu se envolve
e o leito enorme d’água se revolve
em convulsões de dor e de agonia.

Ao longe, uma barcaça fugidia
seu vulto branco às longas praias volve
como a garça cansada que resolve
tocar da costa a areia luzidia...

Eu vou como a barcaça em desalento,
que as águas corta por mercê do vento
e após mil temporais toca no porto...

Também após mil temporais da sorte,
do mar da vida para o cais da morte
meu coração vai navegando morto!

Fonte:
Ademar Macedo

Adélia Bezerra de Menezes (Do Poder da Palavra)

Sheherazade e o Sultão.
Bonecas criadas por Corinne Thorner
Em "As 1001 Noites", Sheherazade vence a morte e o poder, propiciando a cura através de um discurso vivo, corpóreo

“As 1001 Noites" em geral nos chegaram através de antologias infantis. Conhecemos as Histórias: "Simbad, O Marujo", "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa”, "O Pescador e o Gênio” etc. Mas tais antologias acabam por privar o leitor do plano geral da obra - a estrutura de encaixe dos contos, embutido uns dentro de outros- e, sobretudo, da poderosa figura da Sheherazade, que vence a morte através da Literatura. Trata-se da maior apologia da Palavra, de que se tem conhecimento. E analisar o papel da contadeira de histórias significará abordar o problema das relações da mulher com a Literatura, da mulher com a Palavra, da mulher com o símbolo e com o corpo.

Sheherazade é personagem da narrativa que inicia e termina "As 1001 Noites", servindo-lhes de moldura; é a partir dela que se dará o pretexto para os demais contos. Trata-se da história de Xariar, sultão de todas as Índias, da Pérsia e do Turquestão, que descobre, por intermédio de seu irmão, imperador da Grande Tártaria, que sua mulher o traía. E ele toma conhecimento disso no mesmo momento em que o irmão lhe revela que também fora traído pela mulher. A conclusão é inevitável: "Todas as mulheres são naturalmente levadas pela infâmia, e não podem resistir à sua inclinação". O sultão, no estupor da mais funda desilusão afetiva, propõe ao irmão que ambos abandonem seus Estados e toda a sua glória, e saiam pelo mundo para, em terras estranhas, melhor esconderem seu comum infortúnio. O irmão aceita, com a condição de que voltariam se encontras sem alguém mais infeliz do que eles próprios. Seguem caminho, disfarçados, e chegam à beira-mar, onde são surpreendidos por algo que parece um maremoto. Sobem a uma árvore, escondem-se entre os galhos, e presenciam uma cena qual um gênio (um djinn) tira do mar uma grande caixa de vidro, fechada a quatro chaves, onde estava encerrada uma bela mulher, quase adolescente, que ele libera da caixa. Era a sua mulher, que ele roubara para si no dia de suas núpcias, e que mantinha presa. Declarando-se cansado, o gênio diz à mulher que gostaria de deitar a cabeça nos seus joelhos, e adormece.

Os dois irmãos acabam por ser descobertos no meio das ramagens de seu esconderijo pelos olhos perscrutadores da jovem. Ela retira delicadamente a cabeça do gigante do colo, vem para baixo da árvore e propõe aos dois irmãos que tenham relação com ela. Atemorizados pela presença do gênio, eles inicialmente se recusam, mas ela os força exatamente com o argumento de que, se não dormissem com ela, ela acordaria o gênio. Obrigados, eles satisfazem sua vontade, primeiro o mais velho, depois o caçula. Ao fim, a jovem pede a cada um o seu anel. E diante de seus olhos estupefatos, abre uma pequena bolsa que continha outros 98 anéis. Conta que esses anéis foram dos homens que já a tinham possuído. "Com os dois de agora, diz ela, completo uma centena". "Uma centena de amantes, malgrado a vigilância ciumenta e a precaução do gênio, que me quer só para si". Ele se esmerava em encerrá-la numa caixa no fundo do mar, mas ela não deixava de enganá-lo... “Vede que, quando uma mulher tem um desejo, não há marido que possa impedir a sua execução" - dizendo isso, ela se senta e coloca de novo a cabeça do gênio, que continuava a dormir, tranqüilamente em seu colo.

PLANO

Os dois irmãos voltam pelo caminho de onde tinham vindo, comentando que nada no mundo ultrapassava a malícia das mulheres, e que, nesse assunto, até aquele gênio de poderes sobrenaturais era mais infeliz do que eles. Convencidos da perfídia feminina, decidem retornar cada um para o seu reino. O sultão Xariar formula um plano, que lhe permitiria manter sua honra inviolavelmente preservada, sem que fosse obrigado a prescindir de mulher: consistia em dormir a cada noite com uma virgem, e no dia seguinte, ao acordar, mandar matá-la, pelo seu grão-vizir. E escolheria uma nova para a noite seguinte, e assim por diante. A cada dia, uma jovem casada e morta. E o início dessa prática trouxe à cidade a mais intensa das desolações.

Ora, o grão-vizir, que devia ao sultão a mais cega obediência e que malgrado sua vontade, a cada noite apresentava ao sultão um nova virgem, e a cada manhã, malgrado sua repugnância, era obrigado a matá-la, tinha duas filhas: Sheherazade e Dinerzade. E assim que, textualmente, é apresentada Sheherazade, na versão de Galland:

"... tinha uma coragem maior do que se seria de esperar do seu sexo, e um espírito de uma admirável penetração. Tinha muita leitura e uma memória tão prodigiosa, que nada lhe escapava, de tudo que ela "havia lido. Aplicara-se com todo sucesso ao estudo da filosofia e da medicina, e das belas-artes; e fazia versos melhores que os mais célebres poetas do seu tempo. Além disso, era provida de uma grande beleza, e uma muito sólida virtude coroava todas essas belas qualidades." (G., vol. 1, pág. 35)

Dessa descrição ressaltam primeiro as qualidades "intelectuais" que fazem de Sheherazade uma mulher extremamente inteligente e que se cultivava (lia, estudava, fazia poesia). Mas suas características propriamente físicas -que não são dadas em detalhe, e vêm depois, e só depois, das intelectuais, também não são descuradas: trata-se de uma bela mulher.

Pois bem: essa mulher altamente interessante que parece ser Sheherazade, comunica um dia ao grão-vizir seu pai que queria tornar-se mulher do sultão:

"Desejo por um termo a essa barbárie que o sultão exerce sobre as famílias desta cidade. Quero dissipar o temor que tantas mães têm de perder suas filhas de uma maneira tão terrível. (...) Se eu perecer, minha morte será gloriosa; se tiver êxito, restarei um serviço importante minha pátria."

E combina com a irmã seu plano: Dinerzade deveria deitar-se no quarto nupcial (sob pretexto de que, ainda uma vez, elas pudessem passar uma noite próximas), e uma hora antes do romper do dia, deveria acordar Sheherazade e solicitar-lhe que contasse uma de suas histórias. É o que se passa: nessa noite, depois de ter dormido com o sultão, que a desvirgina, Sheherazade é despertada pela irmã, que lhe pede uma história -talvez pela ultima vez. Depois de obtida a permissão do sultão, Sheherazade começa a narrar. E no auge do suspense, quando a ação esta para ser definida e a curiosidade do seu real ouvinte aguçada, vendo que a aurora se anunciava, suspende sua narrativa:

"Sheherazade, nesta passagem, percebendo que era dia e sabendo que o sultão se levantava bem cedo para fazer suas preces e ir gerir seus negócios de Estado, parou de falar." (G., vol. 1, pág. 46).

Diante da observação da irmã, de que essa história era maravilhosa, Sheherazade lhe afirma que a continuação seria mais maravilhosa ainda e que, se o sultão quisesse deixá-la viver mais um dia, que lhe desse permissão para acabá-la na noite seguinte. Sheherazade ganha um dia de vida. Na segunda noite, quando a irmã a acorda, Sheherazade "satisfaz a curiosidade do sultão"; acaba a história iniciada e começa uma nova, interrompida no auge do suspense, ao romper a aurora: e assim, noite após noite, o sultão declara desejar ouvir a história iniciada na véspera, e a deixa viver por mais um dia. Não há garantia, nem Sheherazade a pede: ela consegue, à prestação, dia a dia, ganhar um dia de vida. Ela aceita assumir o risco absoluto: arrisca perder a vida, para recuperar ao sultão uma imagem feminina, perdida pela infidelidade. Há algo de épico no seu gesto: uma mulher que, através da Palavra, salva a raça feminina.

E quando chega a milésima primeira noite, o sultão se rende: "1001 noites tinham transcorrido nesses inocentes divertimentos; elas tinham mesmo ajudado muito a diminuir as prevenções iradas do sultão contra a fidelidade das mulheres; seu espírito tinha-se abrandado; ele estava convencido do mérito e da sabedoria de Sheherazade; lembrava-se da coragem com a qual ela se tinha exposto voluntariamente a tornar-se sua esposa, sem apreensão quanto à morte a que se sabia destinada no dia seguinte."

E diz o sultão: "Bem vejo, amável Sheherazade, que sois inesgotável em vossas narrativas; há muito me divertis; pacificaste minha cólera, e eu renuncio de bom grado à lei cruel que eu me tinha imposto... Desejo que sejais considerada como a libertadora de todas as moças que deveriam ser imoladas ao meu justo ressentimento". (G.vol.3,pág. 439).

MEMÓRIA

Isso, na versão de Galland. Na versão de Mardrus (1) (por muitos considerada a "tradução obscena" de "As 1001 Noites"), as coisas são apresentadas de uma maneira bem mais concreta. Em Mardrus, Sheherazade apresenta ao sultão ao fim da 1001ª noite, os filhos que, ao longo desses quase 3 anos, ela tivera com ele. A relação sexual entre o sultão e Sheherazade, que Galland omite, Mardrus explicita: ganha aqui inequívocas provas, ganha concretude.

Mas voltemos um instante à caracterização inicial de Sheherazade. Se há algo que a tipifica sobremaneira, é sua prodigiosa memória. Em "As 1001 Noites" podemos vislumbrar as ligações da narrativa com o infinito, da Memória com o infinito aspecto esse que se tornará bastante evidente se formos situar a Memória na sua dimensão mítica. Com efeito, no Panteão grego, a Memória, "Mnemosyne", é uma deusa, filha de Urano e de Gaia, irmã de Chronos e de Okeanos - a memória, filha do céu e da terra, irmã do tempo e do oceano: todas, metáforas de infinitude...

E a Memória é para os gregos a mãe das Musas, mãe das divindades responsáveis pela inspiração. ''Mnemosyne'' preside à função poética. A própria sacralização da Memória (os gregos fizeram dela uma divindade!) revela, por si só, o alto valor que lhe é atribuído numa civilização de tradição oral, como foi, entre os século 12 e 8, antes da difusão da escrita, a da Grécia.

Essa deusa feminina tem tudo a ver com Sheherazade. "Mnemosyne" revela as ligações obscuras entre o rememorar" e o "inventar": a musa inspiradora da invenção poética é, ela própria, filha da Memória. Sheherazade, a contadeira de histórias, não era apenas uma espécie de repositório vivo das histórias de seu povo, não apenas aquela que "transmitia" histórias contadas por outros; na sua caracterização inicial, fora-nos dito que ela também escrevia "versos melhores que os dos mais célebres poetas seu tempo". Ela também criava.

E assim, noite após noite, Sheherazade vai, com a ajuda da Memória, conduzindo adiante o fio de suas histórias: vai tecendo as narrativas. Não é um fio linear: é uma teia, uma trama. Infindável, infinita. Uma história dará margem a uma outra história que, embutida dentro dela, desembocará numa terceira, que contém em si o germe de uma quarta etc. etc. Na acepção do último tradutor ocidental de "As 1001 Noites", Khavam (saiu sua tradução completa, na França, em 1986), Sheherazade é "La Tisserande .des Nuits" -a tecelã das noites.

MULHER TECELÃ

Evidentemente, essa trama, essa rede narrativa eram frutos da astúcia de Sheherazade: serviam para enredar o sultão. Essa trama narrativa (trama quer dizer também procedimento ardiloso!) no limite significava... tramóia: a astúcia, velha arma dos fracos contra os fortes. E arma feminina, muitas vezes.

Sheherazade, a astuciosa, é a mulher que tece narrativas intermináveis, e que nesse fio prende o seu homem e vence seu poder. E nessa linha de astúcias, e de fios, e de tramas, há toda uma tradição (é verdade que de outra cultura, mais uma vez, a grega) de mulheres fiandeiras (2). Penso sobretudo em Penélope, de quem já se disse que é tão astuciosa quanto seu marido, o astuto Ulisses, tecendo infindavelmente o manto com o qual afastará os pretendentes à sua mão, enquanto espera a volta do seu homem. Mas há também Ariadne, que fornece a Teseu o fio com que ele enfrenta o Labirinto; e Pandora (a primeira mulher), tecelã, que aprendeu a arte das fiandeiras com a deusa Atena, cujo epíteto é exatamente Atena Penitis, a "tecelã"; e Aracnê, que desafia a deusa Atena na arte da tapeçaria e acaba transformada em aranha. E há as Parcas, que tecem a trama dos destinos humanos. Todas, mulheres. Por que é sempre feminina a personagem que lida com o fio? Num estudo sobre a Feminilidade (3), Freud tece uma engenhosa explicação: a arte da tecelagem teria sido uma invenção de mulheres, inspirada pelo pudor feminino. Com efeito, o pudor, diz ele, teria como finalidade primitiva dissimular os órgãos genitais, dissimular a fenda que existe no sexo feminino:

"Parece que as mulheres fizeram poucas contribuições para as descobertas e invenções na história da civilização; no entanto, há uma técnica que podem ter inventado traçar e tecer. Sendo assim, sentir-nos-íamos tentados a imaginar o motivo inconsciente de tal realização. A própria natureza parece ter proporcionado o modelo que essa realização imita, causando o crescimento, na maturidade, dos pelos pubianos que escondem os genitais. O passo que faltava dar era enlaçar os fios, enquanto, no corpo, eles estão fixos à pele e só se emaranham."

Mas voltemos a Sheherazade e Penélope, astuciosas e fiéis. Trata-se, aqui, do mesmo tema da fidelidade. Não nos podemos esquecer de que, na história de Sheherazade, é a fidelidade que está em jogo: o desígnio cruel que o sultão se havia imposto, de que sua mulher por uma noite fosse morta ao romper da aurora não tem outro objetivo senão preservar, ainda que à custa da morte, a fidelidade feminina. (E ao mesmo tempo, como veremos mais adiante, tal desígnio impedia-o de amar vedava ao sultão o amor: matando a mulher com quem dormia a cada noite, impedia-se de relacionar-se em continuidade, de estabelecer vínculos).

Penélope/Sheherazade Uma tece infindavelmente o manto, dia após dia, no meio dos príncipes, e sua fidelidade é condição para o reencontro; outra tece infindavelmente, noite após noite, teia de sua narrativa: sempre em suspense, sempre na terminada. Terminá-la, seria a morte.

Penélope: a fidelidade por um fio. Sheherazade: a vida por um fio. A falta de término, em ambas, é uma metáfora do infinito. Em ambos o casos, na tecelagem que praticam, é a fidelidade que está em questão. No caso de Penélope, a trama feita desfeita é seu ardil, para afastar os pretendentes reservar-se para a volta de Ulisses. No caso de Sheherazade, a construção de su teia narrativa não apenas ardil para ganhar mais um dia de vida, mas seu fio narrativo refaz, ponto a ponto, os farrapos do coração do sultão, dilacerado pela traição feminina.

Sheherazade tece o tecido de sua história, conduz o fio da narrativa. A trama da narrativa não é um fio; é uma teia, com todas as suas ramificações, e nessa rede ela enreda o sultão. Não por acaso que ela é a imagem mesma da sedução.

Penélope: aquela que tece. Seu próprio nome (em grego, Penelopéia) revela sua vocação: do grego "pene", fio de tecelagem, e, por extensão, trama, tecido (daí nosso pano do latim pannus). E c substantivo grego "penelopéia" significa: dor. Tudo se explica quando pensamos que ela vivia na nostalgia (= dor do retorno) de Ulisses, e que o pano que ela tecia (que tem a ver com a morte: era uma mortalha para Laertes, o pai do seu marido) era garantia da sua fidelidade, como que vedava o acesso de sua sexualidade aos pretendentes que a assediavam:

"Então, de dia ela tecia a grande tela e de noite, desfazia a sua obra, à luz das tochas. Foi assim que, durante três anos, ela soube esconder sua astúcia e enganar os Aqueus" ("Odisséia", cap. 24).

ASTÚCIA

Penélope, Sheherazade uma tece de dia, outra tece de noite. Três anos: aproximadamente 1001 noites. Fidelidade e sedução articuladas Em ambas, uma mulher vence o poder masculino. Qual é, exatamente, a astúcia de Sheherazade?

A primeira resposta é que Sheherazade não apenas joga com a imperiosa necessidade de ficção que habita o coração de cada homem, mas teria inventado também a técnica do suspense: inicia uma narrativa aguça a curiosidade de seu ouvinte e... não a satisfaz - naquela noite. O desenlace seria narrado na próxima noite, se o sultão lhe concedesse mais um dia. Aos poucos, vão sendo introduzidas referências às reações do sultão, e, especificamente, à sua curiosidade. Assim termina, por exemplo, a noite 33:

Sheherazade preparava­se para prosseguir seu conto; mas, percebendo que era dia, interrompeu sua narrativa. A qualidade dos novos personagens que a sultana acabava de introduzir em cena tendo aguçado a curiosidade Xariar, e deixando-o na espera de algum acontecimento singular, o príncipe esperou a noite seguinte com impaciência" (G., vol. 1, pág.25)

Ou então: "O sultão, persuadido de que a história que Sheherazade tinha a contar seria o desenlace das precedentes disse consigo mesmo: “ É preciso que eu me conceda o prazer completo."Levantou-se e resolveu deixar viver ainda este dia a sultana". (G., vol. 1, pág. 216).

Satisfazer a curiosidade, para o sultão, significa prazer. Postergá-la, significa cultura. Pois uma das coisas que diferenciam o homem do animal é exatamente isso: a capacidade de postergar a realização do prazer. E assim temos a curiosidade do sultão extremamente bem administrada por Sheherazade, com sua técnica de suspense. E os textos acima provam o quanto a qualidade narrativa de suas histórias, sua qualidade literária, portanto (a saber: introdução adequada de novos personagens; previsão de acontecimentos singulares; preparação cuidada do desenlace) conta.

E o interessante é que a curiosidade está presente em dois níveis, em "As 1001 Noites": nesse primeiro nível, da "macro-estrutura", na história que serve de moldura é a curiosidade que fundamenta o adiamento da execução da sultana. Mas também, ao nível das histórias contadas, entre os muitos motivos recorrentes nas narrativas de "As 1001 Noites", esse motivo da curiosidade adquire grande importância, dado seu estatuto de desencadeador das ações. Curiosidade necessidade imperiosa de conhecer. Aguilhão do saber por experiência. Haveria que se fazer um estudo antropológico da curiosidade, e do papel que ela desempenha em várias religiões e mitologias: desde a curiosidade de Eva, atiçada pela serpente, na narrativa mítica do Paraíso, tal como aparece no "Gênesis" ("Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do Bem e do Mal não comerás..." E o resto a gente sabe: a queda, a expulsão do Éden, o Paraíso Perdido...), passando pela curiosidade de Pandora, que abre a fatídica caixa de males que se espalharão por toda a terra, só restando no fundo da caixa a esperança...; até a curiosidade do curumim que abre o coco de tucumã que encerra noite, fazendo com que a escuridão se espalhasse pelo mundo, como na lenda indígena brasileira. Sempre a curiosidade, com o que ela representa de fálico e faustico, de motor do progresso e de propulsora do espírito humano, mas também com o que ela comporta de fragilidade: deixar-se vencer pela curiosidade significa "sucumbir a uma fraqueza", cair em tentação. Como naquela história que Sheherazade conta ao sultão, do moço a quem foram franqueadas 99 salas de um castelo, com todas as suas delícias; mas vedada a abertura da 100 ª porta: premido pela curiosidade, ele a abre, e ai começa a sua perdição. Mas sobretudo, em vários contos de "As 1001 Noites" (como "O Comerciante e o Gênio" ou "História dos Três Dervixes e das Cinco Damas de Bagdá", e muitas outras), é a curiosidade por uma narrativa a ser feita por uma personagem que lhe salva a vida, inicialmente suspendendo a execução da sentença e, finalmente, anulando-a. Assim, o mesmo elemento que se encontra, importantíssimo, a nível da estrutura geral da obra, comparece no detalhe, em numerosos contos.

E Sheherazade, o que faz é manipular a curiosidade do sultão. No entanto, ao longo das 1001 noites processasse uma evolução. Considera-se Sheherazade como a especialista do suspense. Contudo, isso é só inicialmente verdade: ao longo de suas tantas noites de contadeira de histórias, ela abandona o suspense, chegando a levar a termo, ao romper da aurora, as suas narrativas. Mas acena com a próxima... Ela abandonará o recurso do suspense - que tem algo de um golpe mais ou menos enviesado - um discursus interruptus- chegando a terminar os contos na mesma noite em que os iniciara. E mesmo prescindindo do recurso do suspense, o sultão a deixará viver, mais um dia.

E aqui está a segunda a resposta para a pergunta "em que consiste a astúcia de Sheherazade": na realidade, ela lida é com o Desejo. E todos sabemos que o Desejo não tem um objeto que o aplaque; uma vez cumulado, ele ressurge, desperto do outro, e assim sucessivamente. Não tem objeto que o supra, que o satisfaça, que o cumule. O que é que o sultão queria? Uma nova de história, e por isso Sheherazade viveria mais um dia, e depois outro, e outro. Ela não tenta obter dele, logo de do início, que lhe poupe a vida para sempre: consegue dele, a cada dia, que lhe poupe a vida por aquele dia. Mas ele, também, o sultão, daria sentido a mais um dia de sua existência, na espera/expectativa de algo que o plenifique. A função de Sheherazade era alçar sua vontade, tendê-la para algo por vir. Ela age no sentido de acutilar o Desejo, de atiçá-lo, de só ilusoriamente aplacá-lo... por uma noite. Uma vez supostamente aplacado, ele renascerá. O objeto do Desejo está sempre além, sempre adiante, visa sempre um além que escapa: é isso que nos conta a história de Sheherazade e do sultão de todas as Indias.

E o mundo do Desejo é o mundo do Id, mundo da noite, da magia e da fantasia. O dia que surge significa que a voz de Sheherazade deve-se calar; é de dia que se realizaria sua execução. Há uma fórmula quase que ritual, que esconde o fio narrativo de Sheherazade: quando rompe o dia, ela se cala, e o sultão vai "cumprir seus deveres" de chefe de Estado. Há aí um confronto entre o princípio do prazer e o princípio de realidade: o princípio do prazer cessa com a luz do dia, quando se impõe a realidade, com o seu cortejo de opressões. As noites são para as histórias e para o amor; os dias são para o trabalho (e para a morte)

PALAVRA

Referi a situação (presente tanto a nível das histórias que Sheherazade conta, quanto naquela da própria sultana, e que serve de moldura às demais) em que uma vida é trocada por uma narrativa. Isso significa um extraordinário apreço pela palavra. As vezes esse apreço é expresso materialmente. Numa das histórias que Sheherazade conta ao sultão ("A História de Ganem"), por exemplo, registra-se o seguinte:

"Ele [o califa] achou esta história tão extraordinária que ordenou a um famoso historiador que a escrevesse, em todos os detalhes. Ela foi em seguida depositada no seu tesouro, de onde várias cópias tiradas deste original a tornaram pública." (G., vol. 2, pág. 420)

As histórias excelentes são guardadas no tesouro real! Estamos numa civilização em que, literalmente, a palavra vale ouro, em que a história narrada é tesouro.

E ainda, a palavra aqui é mágica. Já repeti várias vezes que, através da Palavra, Sheherazade vence a morte e o Poder. Sheherazade, a mulher, instaura um novo tipo de poder. A força da Palavra radica na magia. A palavra aqui transforma -como no curandeirismo, na magia, na religião... e na psicanálise. O conto "Ali-Babá e os 40 ladrões", por exemplo, é expressivo disso: trata-se de uma palavra mágica, palavra eficaz, que tem o poder de remover um rochedo, o poder de fazer abrir a entrada da gruta onde os ladrões guardam seus tesouros: "Abre-te Sésamo". Ali-Babá a guarda na memória, com cuidado e respeito, e ela se torna um instrumento de força na sua boca. Mas seu irmão, o invejoso e insolente Cassim, se esquece da palavra certa, e tenta outras, que não têm, no entanto, a força mobilizadora da palavra mágica. Da palavra transformadora, que remove rochedos. Ele consegue penetrar na gruta dos ladrões, mas depois não consegue sair:

“... acontece que ele se esquecera da palavra necessária (...) e, em lugar de "Sésamo", diz "abre-te Cevada"; e espanta-se ao ver que a porta, longe de se abrir, permanece fechada. Nomeia vários outros nomes de grãos, diferentes daquele que era necessário, e a porta não se abre". (G., vol. 3, pág. 247).

Ele se esquecera da palavra certa, da boa palavra acaba perecendo às mãos dos ladrões, que o pilham preso dentro da gruta.

Pois bem, há algo de mágico na palavra, na história do rei Xariar e da bela Sheherazade, que consegue demover seu coração de pedra. A tentação de um paralelo com a psicanálise é bastante grande: essa situação extraordinária em que a Palavra (aquela que é preferida pelo paciente, e aquela que é ouvida por ele) é palavra eficaz: provoca alterações, transforma aquele que a recebe. Restaura-se aqui o poder arcaico e mágico da Palavra.

O poeta, o mago e o psicanalista: aqueles que constroem coisas com a palavra, que alteram a realidade, modificam a essência profunda do ser. E ao lado poeta, do mago e do psicanalista, a mãe, que conta histórias, a mulher.

A mulher contadeira de histórias: sua influência foi reconhecida por todos aqueles que, desde a Antiguidade, se preocuparam com o problema da eficácia da Palavra, da força transformadora da palavra:

"Por conseguinte, teremos de começar pela vigilância sobre os criadores de fábulas, para aceitarmos as boas e rejeitarmos as ruins. Em seguida, recomendaremos às mães que contem a seus filhos somente as que lhes indicarmos e procurem amoldar por meio delas as almas das crianças com mais carinho do que por meio das mãos fazem com o corpo." ("República", livro 1 2,377b).

O grifo, evidentemente é meu, realça a importância extrema que Platão atribui às narrativas: capacidade de moldar, de plasmar almas. Não seria exatamente isso que Sheherazade faz com o sultão? Ela plasmou, moldou sua alma, "abrandando o seu espírito".

Jeanne Marie Gaguebin, num artigo publicado no Folhetim (4), articula essa passagem de Platão a um texto de Walter Benjanim, que se intitula, exatamente, "Narrar e Curar" (5). Além da ligação entre a fala e o gesto, entre a voz e a mão (a que retornarei mais adiante), o texto de Benjamin aponta, de uma maneira extremamente pertinente, para a cura pela narração (não fosse esse o seu título!) - que é, como todos sabemos, apanágio da psicanálise ("talking cure') e de certas técnicas de cura xamanísticas.

Pode-se considerar o sultão doente, ferido na sua afetividade, na sua capacidade amorosa, pela traição feminina; pois bem, nessas longas noites de história, Sheherazade vai exercendo junto a ele um longo processo terapêutico, analítico, pontuado, a cada manhã, pela interrupção com que ela o remetia á vida real. Ao fim das 1001 noites, o sultão se declara "curado", abandona o "sintoma" e se dá alta: "Vós pacificastes minha cólera, e eu renuncio de bom grado e, vosso favor, à lei cruel que eu me tinha imposto". E Sheherazade cessa suas narrativas.

Num processo analítico, o paciente fala; ao analista, cabe a escuta. Ele também fala, interpretando; mas o que funda a psicanálise é o discurso do analisando. Pois bem, aqui se trata de um processo invertido: é a escuta que é transformadora, é a escuta que cura o sultão.

Falei da psicanálise e também aludi a certos processos de cura xamanistica, que, aliás, estabelecem com a psicanálise mais de um vínculo. Lévi Strauss relata, na "Antropologia Estrutural" (no capitulo "L'Efficacité Symbolique") um procedimento dos índios Cuna do Panamá, por ocasião dos partos difíceis: o xamã canta para a mulher grávida, diz palavras ao seu ouvido, e assim o nascimento da criança é facilitado. Trata-se, como observa o antropólogo, "de uma medicação puramente psicológica, uma vez que o xamã não toca no corpo da paciente, nem lhe administra remédios; mas, ao mesmo tempo, é colocado diretamente e explicitamente em causa o estado patológico e seu centro: diríamos antes que o canto constitui uma manipulação psicológica do órgão doente, e que é desta manipulação que a cura é esperada' (6). Manipulação psicológica: metáfora expressiva para o processo psicanalítico. E também para aquele processo em que as narrativas, como queria Platão, moldam as almas, "com mais carinho do que por meio das mãos fazem com o corpo". Mas voltemos a Lévi Strauss. Diz ele que o xamã fornece à sua doente uma 'linguagem: "E é a passagem a esta expressão verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob uma forma ordenada e inteligível uma experiência atual, mas sem isso, anárquica e inefável) que provoca o desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num sentido favorável, da sequência da qual a doente sofre o desenvolvimento" (pág. 218).

O sultão se encontra crispado na sua ira de traído, bloqueado na sua capacidade de amar: Sheherazade oferece a ele uma linguagem, na qual esse estado pode exprimir-se. Sheherazade fala, e o sultão escuta. É como se a perturbação afetiva grave, de que fora acometido, na sua ira de traído pelas mulheres, só fosse acessível à linguagem simbólica da poesia e da literatura. E aqui a gente encontra a narrativa restaurada no seu sentido pleno e primordial, de veículo de experiência humana.

Sheherazade oferece ao sultão uma linguagem, um discurso simbólico que possa atingi-lo, por inteiriçado e crispado que ele estivesse na sua incapacidade afetiva. Ela oferece ao sultão o acesso ao mundo simbólico; oferta-lhe uma linguagem, como queria Lévi-Strauss, "na qual podem exprimir-se estados não formulados e, de outro modo, não formuláveis". "Não é portentoso que na noite 602, o rei Xariar ouça da boca da rainha a sua própria história?", pergunta-se Jorge Luís Borges (7) extasiado.

Sheherazade apresenta a Xariar o nível mítico: apresenta-lhe à consciência conflitos que o traumatizaram, bloqueando sua capacidade afetiva, de tal maneira que ele possa lidar com eles. É por isso que ela não expurga de suas narrativas as histórias de adultérios e traições femininas, não omite casos em que as mulheres enganam a seus maridos; ela não faz ao rei uma narrativa "ad usum delphini"; é notável a ausência de censura moral nas suas histórias.

Trata-se aqui, como na psicanálise, (e na cura xamanística), de propiciar uma transformação interior, consistindo numa reorganização estrutural da personalidade: trata-se de recuperar a capacidade amorosa do sultão. Pois bem, Sheherazade, como na transferência, propicia ao sultão que reviva com ela uma experiência afetiva continuada e para isso ela precisava de tempo (a saber: 1001 noites -o tempo de uma terapia?) e assim resgata sua capacidade afetiva.

Falei em paralelo com a psicanálise. Mas trata-se aqui de um paralelismo que, evidentemente, não exclui as diferenças. Pois há em "As 1001 Noites", como aparece em Platão, como sugere W. Benjamin, uma ligação entre a fala e o gesto, entre a voz e a carícia. Não nos podemos esquecer de que as narrativas de Sheherazade se seguiam às suas noites de amor com o sultão e são suas histórias que lhe facultam a possibilidade de dormir próxima noite com ele. É a narrativa que possibilita o encontro futuro. Já se disse que se Sheherazade tivesse oferecido ao sultão só o seu corpo, ela teria sido executada, logo após a primeira noite: foi o que, todas as suas antecessoras fizeram, e todas pereceram. E Sheherazade salva não apenas a si própria e a todas as mulheres em idade de casar do seu povo: ela salva também o sultão: ela o cura de sua ira patológica e assassina, e possibilita a ele uma descendência. A persistir no seu plano cruel e genocida, o sultão se privaria para sempre de amar, e de filhos. Sheherazade oferece a ele o tempo e, junto com as suas histórias, a História; oferece a ele o tempo, e, junto com ele, as coisas todas que dele precisam para se engendrarem: os filhos, a duração do afeto, a permanência de vínculos, o longo processo (analítico) de uma cura. Sheherazade oferece ao sultão um discurso vivo.

Sheherazade ou do poder da palavra. A sultana era uma contadeira de histórias, não em primeira linha uma escritora: ela as contava de viva voz. Aquelas 1001 noites eram marcadas pela cálida proximidade da 'mulher, da mulher na sua inarrável corporeidade. Não podemos esquecer da carga corporal que a palavra falada carrega. Na narrativa oral, a Palavra é corpo: modulada pela voz humana, e portanto carregada de marcas corporais; carregada de valor significante. Que é a voz humana senão um sopro (pneuma: espírito...) que atravessa os labirintos dos órgãos da fala, carregando as marcas cálidas de um corpo humano? A palavra oral é isso: ligação de sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequívoca dimensão sensorial.

"No princípio era a Ação", diz o Fausto de Goethe. Mas entre a Ação e a Palavra, em "As 1001 Noites" a escolha está feita. "No princípio era o Verbo", parecem dizer-nos elas, retomando o início do texto do mais visionário dos Evangelistas. No entanto, esse texto não para aí: "...e o Verbo se fez carne": restaura-se, assim, a dialética sema/soma, inscrita no cerne da palavra a Palavra é também, inapelavelmente, corpo.

Notas
1. Utilizo aqui basicamente o texto de Antoine Galland (1717), em edição Garnier , 1965, recorrendo também por vezes, ao texto de Mardrus (1899), publicado por Robert/Laffont, Paris, 1985.
2. Cf. Gilbert Lescault Figurées, Défigurées (Petit Vocabulaire de la Féminité Représentée)", Union Générale d'Editions, Paris, 1977, em que, no vocábulo "Fileuses" são elencadas várias mulheres mitológicas que lidam com o fio.
3. Freud: "A Feminilidade", Conferência 33 das "Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise", 1933, vol. 22 das "Obras Completas", Imago, pág. 162. A referência a esse ensaio foi sugerida pela leitura de Gilbert Lescault: "Figurées, Défigurées", op. cit.
4. "Narrar e Curar", Folhetim, S. Paulo, 1 de setembro de 1985.
5. "Erzaehlung und Heilung", in "Gesammelte Schriften", vol. 4, Suhrkamp Verlag, pág. 430.
6. Cf. capítulo "L'Efficacité Symbolique", in "Anthropologie Structurale", Paris, Plon, 1958, págs. 211 e seguintes.
7. Cf. J. L. Borges -"Los Traductores de las 1001 Noches", in "Historia de la Eternidad", Emecé Editores, Buenos Aires, 1953.

Fonte:
Publicado no caderno Folhetim/Folha de São Paulo, em sexta-feira, 29 de janeiro de 1988
Disponível em Revista Virtual Partes. Ano I - Nº9 - dezembro de 2000. http://www.partes.com.br/educacao09.html

Adélia Bezerra de Menezes


Possui graduação em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (1965),

Mestrado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1975) e

Doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1981).

Foi docente de Literatura Brasileira no Leitorado de Romanística da Technische Universität de Berlim,

Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP e na UNICAMP, onde se aposentou.

Atua na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, trabalhando principalmente com: Literatura e Psicanálise, Sonho e Literatura, O "pathos" amoroso na Literatura, Literatura e Sociedade, Chico Buarque e Guimarães Rosa.

Autora de A Obra Crítica de Álvaro Lias e Sua Função Histórica" (Vozes) e "Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque" (Hucitec)

Fontes:
http://www.partes.com.br/educacao09.html
Radio USP

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Carlos Alberto de Assis Cavalcanti (Livro de Trovas)


Tinha viúva demais
no velório do bacana,
todas choravam iguais:
enganaste, seu sacana!

Os moradores do além
não causam mal aos de cá,
mas os que moram aquém
é que nos mandam pra lá.

Discursava no plenário,
se dizendo popular,
mas na hora do salário,
só pensava em se aumentar.

Se antigamente era a mão
que o noivo à noiva pedia,
agora os dois, de antemão,
já nem mais esperam o dia...

Há quem diga que a mentira
tem pernas curtas pra andar,
mas o dono dela estira
as suas para ajudar.

Há quem chore por defunto
bem na beira do caixão,
mas ninguém quer ficar junto
do finado sob o chão.

No domingo, bem contrito,
comunga da eucaristia;
na segunda, bem aflito,
comunga da carestia.

No passado, bem remoto,
havia a mata e o primata;
no presente, se bem noto,
nem primata, nem a mata.

Logo se fez um tumulto
na prova de Português,
achar um sujeito oculto.
pois aluno quer de vez

De que adianta tua cobiça,
teu rasante olhar de abutre,
se há de ser também carniça
essa carne que te nutre.

Se dizia o mais temido
lá no morro do presunto,
sendo assim foi promovido
de valente pra defunto.

Quando o homem é o predador
das belezas naturais,
não respeita nem a dor
que provoca aos animais.

Tão radical se mantinha
quando entrava em discussão,
que nem ele mesmo tinha
pra peleja a solução.

Era um deputado obeso,
mesmo estando em exercício,
tinha um salário de peso
pra tão pouco sacrifício.

Fontes:
UBT Nacional
Curriculo Lattes

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Avulsas)


A HORA DO CANSAÇO

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto ocre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

AMAR-AMARO

porque amou por que amou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou desesperados
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula evidente?

ah PORQUE AMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos ecos
lúgubres de você mesm(o,a)
irm(ã,o) retrato espetáculo por que amou?

se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida
é indignação do achado e aguda espotejação
da carne do conhecimento, ora veja

permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de nuncarás.

O AMOR BATE NA AORTA

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não posso compreender...

NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que não amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia.
Joaquim se suicidou e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

DENTADURAS DUPLAS

Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica? ... )

Resovin! Helocite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada...
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poético-
sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.

Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.

Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
férricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!

A MÃO SUJA

Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.

A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.

E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.

Ai, quantas noites
no fundo de casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
não limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.

Eu era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
- o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.

Inútil reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar!
Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura - transparente -
colar-se a meu braço.

A. A. de Assis (60 Trovas de Saudade)


01
Curvada ao peso da idade,
a vovó serena e bela
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela...
A. A. DE ASSIS

02
Saudade é tarde chorando
um tempo em que foi aurora,
ao ver a noite levando
o brilho do sol embora.
ADÉLIA VICTÓRIA FERREIRA

03
Para matar as saudades,
fui ver-te em ânsias, correndo...
– E eu, que fui matar saudades,
vim de saudades morrendo!
ADELMAR TAVARES

04
Noites feitas de saudade,
de lembranças, de meiguice...
Tão curtas na mocidade,
e tão longas na velhice!
ALFREDO DE CASTRO

05
Morre o amor... o espólio é feito...
tudo partido em metade;
minha, inteira, por direito,
só ficou mesmo a saudade.
ALMERINDA LIPORAGE

06
Maria, só por maldade,
deixou-me a casa vazia...
Dentro da casa: saudade!
E na saudade: Maria!
ANIS MURAD

07
Velhice é um tempo que encerra
saudades e desenganos.
Por isso é que Deus, na Terra,
só viveu trinta e três anos!
ANTÔNIO ROBERTO FERNANDES

08
Saudade, ponte encantada
entre o passado e o presente,
por onde a vida passada
volta a passar novamente!
ARCHIMIMO LAPAGESSE

09
A minha roça eu troquei
pelas luzes da cidade.
Nesse dia eu comecei
meu plantio de saudade!
ARLINDO TADEU HAGEN

10
Saudade, palavra doce,
que traduz tanto amargor!
Saudade é como se fosse
espinho cheirando a flor!
BASTOS TIGRE

11
Quando a saudade me embala,
o teu nome a repetir,
o silêncio tanto fala,
que não me deixa dormir!
CAROLINA RAMOS

12
Não me importo se demoras,
quando a tristeza me invade.
Para que contar as horas,
se já não sinto saudade?...
CLENIR NEVES RIBEIRO

13
A todo mundo insinuas
que não mando no que é teu,
mas tenho saudades tuas
e o dono delas sou eu.
COLBERT RANGEL COELHO

14
Gostar de ti, quem não há de?
Inspiras tal simpatia,
que a gente sente saudade
se deixa de ver-te um dia.
COLOMBINA

15
Desprezei tua amizade,
queria mais, muito mais!...
Hoje sou nau da saudade,
apodrecendo no cais.
CONCEIÇÃO DE ASSIS

16
Não há palavra nenhuma
tão grande quanto "saudade",
que em sete letras resuma
a dor e a felicidade!
DIAMANTINO FERREIRA

17
Deprimida, com saudade,
por saber que foste embora,
só me restou a vontade
de eu mesma jogar-me fora...
DJALDA WINTER SANTOS

18
Numa página, a saudade;
no verso – não tem escolha –
quase sempre a mocidade
faz parte da mesma folha!...
DOMITILLA BORGES BELTRAME

19
Trem-de-ferro, o teu apito
lembra-me um sino plangente:
tanta mágoa no teu grito,
tanta saudade na gente!
DOROTHY JANSSON MORETTI

20
Saudade, ninguém por certo
a definiu deste jeito:
– saudade é um mundo deserto
que temos dentro do peito!
DULCE SIQUEIRA

21
Beijo-lhe a foto!... E, na espreita
deste amor que eu idolatro,
minha saudade se ajeita
no retrato três por quatro...
EDMAR JAPIASSÚ MAIA

22
Saudade – lembrança triste
de tudo que já não sou...
Passado que tanto insiste
em fingir que não passou!
EDGARD BARCELOS CERQUEIRA

23
A saudade se embaraça
e a paixão se intensifica...
– Não pelo instante que passa,
mas pelo instante que fica!
EDUARDO A. O. TOLEDO

24
Orgulho bobo... vaidade...
caprichos do amor sobejo...
Eu, morrendo de saudade,
fingir que nem te desejo!
ELISABETH SOUZA CRUZ

25
Ia um casal caminhando,
bem velho, trôpego o passo...
Era a Saudade, levando
o Passado pelo braço...
ELTON CARVALHO

26
... E se morresse a saudade?
Fatalmente, eu morreria...
Pois é essa doce maldade
o alimento do meu dia!
FERNANDO CÂNCIO ARAÚJO

27
Na ausência que não nos poupa,
saudade é formiga arisca
que fica dentro da roupa
e volta e meia belisca.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI

28
A espera é aquele momento
em que a saudade dispara
e o relógio fica lento,
fica lento e quase pára...
GÉRSON CÉSAR SOUZA

29
A saudade da saudade
varreu de mim a alegria,
levando a felicidade
que eu pensava que existia!
GISLAINE CANALES

30
Qual um pastor diligente
cuidando do seu rebanho,
pastoreio no presente
minhas saudades de antanho.
GUTEMBERG ANDRADE

31
Temos certeza da idade
quando as rugas do sol-posto
passeiam com a saudade
na tarde do nosso rosto.
HÉRON PATRÍCIO

32
A vida pôs, por maldade,
tanta distância entre nós,
que, quando eu canto, é a saudade
que faz a segunda voz...
IZO GOLDMAN

33
Nem sempre a felicidade
vem da vitória ou da fama:
pode estar numa saudade
ou nos sonhos de quem ama!
JEANETTE MONTEIRO DE CNOP

34
Com a saudade eu reparto
minhas noites de abandono;
mal apago a luz do quarto,
ela vem tirar meu sono...
JOAQUIM CARLOS

35
Saudade – estranha ilusão
que a solidão recompensa;
presença no coração
maior que a própria presença!
J. G. DE ARAÚJO JORGE

36
Saudade, momento onírico;
saudade, momento trágico;
saudade, momento lírico;
saudade, momento mágico!
J. J. GERMANO

37
O apito daquele trem
que te levou da cidade
foi um soluço, meu bem,
dando começo à saudade!
JOSÉ ANTÔNIO DE FREITAS

38
Amor há no coração
que é feito brasa apagando.
Se vai virando carvão,
surge a saudade soprando...
JOSÉ FABIANO

39
Entre a tua e a minha idade,
filho meu, quanta distância...
– És a infância da saudade!
– Sou a saudade da infância!
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO

40
Ante a dor que me espezinha,
a esperança se evapora...
Até a saudade que eu tinha
não quis ficar... foi embora!
JOSÉ MESSIAS BRAZ

41
Mamãe fazia a polenta,
papai pitava um cigarro.
– Hoje a saudade é que esquenta
o velho fogão de barro!...

42
Saudade, que dor enorme,
é triste o nosso sentir:
você se deita e não dorme
e nem me deixa dormir!
JOSÉ VALDEZ DE CASTRO MOURA

43
Meu amor foi-se acabando...
mas a saudade chegou:
– chuva boa refrescando
o chão que o sol causticou.
LILINHA FERNANDES

44
Lembra a saudade uma estrela
nas águas de um ribeirão
que fica sempre a retê-la,
enquanto as águas se vão...
LUIZ ANTÔNIO PIMENTEL

45
Se a saudade fosse fonte
de lágrimas de cristal,
há muito havia uma ponte
do Brasil a Portugal!
LUIZ OTÁVIO

46
Tímida, meio sem jeito,
uma saudade enxerida
entrou aqui no meu peito...
e hoje manda em minha vida!
MARIA MADALENA FERREIRA

47
A distância, achando meios
para unir nossas metades,
somou nossos devaneios
e dividiu as saudades !...
MARIA NASCIMENTO

48
Saudade... perfume triste
de uma flor que não se vê.
Culto que ainda persiste
num crente que já não crê.
MENOTTI DEL PICHIA

49

A saudade às vezes fala
e até grita – quem diria! –
quando a rede, a sós, se embala
numa varanda vazia...
MIGUEL RUSSOWSKY

50
A tristeza que me invade
e que nunca chega ao fim
é a esquina de uma saudade
que eu dobro dentro de mim.
MILTON NUNES LOUREIRO

51
É tanto o amor que me invade
quando em seus braços estou,
que cada instante é saudade
do instante que já passou!
NEWTON MEYER

52
Dona Saudade, velhinha,
bordadeira paciente,
não tem agulha nem linha,
mas borda os sonhos da gente!
ONILDO DE CAMPOS

53
Ah, coração, tem piedade...
Batendo tão forte assim,
vais acordar a saudade
que dorme dentro de mim!
ORLANDO BRITO

54
Saudade, saudade minha,
quanta saudade restou;
saudade, saudade eu tinha,
saudade, saudade eu sou.
OTAVIO VENTURELLI

55
Poeta, gêmeo do santo:
sofre muito e não blasfema;
faz dos gemidos um canto,
faz da saudade um poema.
PADRE CELSO DE CARVALHO

56
Ao mesmo tempo em que mata,
mata e faz viver também...
Saudade é dor que maltrata,
maltrata fazendo bem!
PEDRO EMÍLIO DE ALMEIDA E SILVA

57
Quando o passado me embala
e o sono, aos poucos, se evade,
até o relógio da sala
vem acordar a saudade!
RODOLPHO ABBUD

58
A saudade que me resta
vai comigo, quando eu vou
à procura de uma festa
que há muito tempo acabou.
SEBAS SUNDFELD

59
Teu retrato até rasguei
para fugir à verdade...
"Sem lembranças"... eu pensei,
mas ninguém rasga a saudade!
THEREZA COSTA VAL

60
Saudade!... Foto em pedaços,
que eu colei, com mão tremida,
tentando compor os traços
de quem rasgou minha vida!...
WALDIR NEVES

Fonte:
Disponível em Biblioteca Virtual "Cá Estamos Nós"., dezembro de 2005.

Lucia Constantino (Poetrix)


AMOR PROFUNDO

Um amor profundo torna a vida calma.
Rio que atravessa um mundo
pra dormir na foz da alma.

CORPO CÓSMICO

No corpo cósmico
as diferenças só refletem
a grandeza de Deus.

SEGREDO

Tempo provisório de minha presença.
Amparo-me na Luz. Preciso dela em mim.
Sempre acesa.

GRAMÁTICA POÉTICA

Companheirismo,
generosidade e solidariedade.
Têm que ser verbos ao homem de Letras

PRECISO DE TI

Dá-me Teu ombro.
Esta é uma dor gigante
e não sei mais o meu tamanho

GERADOR

O que vem do Alto
vem de dentro.
O olhar tem que ser sol

PRESENÇA DA VIDA

Em cada ser, um pequeno sol.
Em cada sol, a presença divina.
Células de Deus - Um e Todos.

SUBLIME ENCONTRO

Dize-me com quem andas.
Te pedirei que me leves junto.
Dentro do teu coração.

DESPERTO...

Não verei o tempo dormir
como a neve em seu berço.
Sou filha do sol - aqueço

UM SONHO....

Que fosse assim. Um mundo pátrio.
O Hino Nacional da Terra,
cantado a plenos corações.

INTERLÚDIO

Fala-me a sede de viver
no verde lume que clareia
essas manhãs do meu entardecer.

EVENTO

Queria entender a Luz
quando passa pelo rosto.
E o que ela deixa, que não enxergamos

AO RAIAR DA MANHÃ

Orvalho dormindo na flor.
Despertam meus olhos
essas lágrimas do céu

E ELA DISSE:

Se eu tivesse ego
seria maior que vossa Terra.
Vossos versos são frutos do universo

Fonte:
http://www.luciaconstantino.prosaeverso.net/publicacoes.php?categoria=S

Goulart Gomes (Sobre o Poetrix... )


O POETRIX surgiu em 1999, com a publicação do livro TRIX – Poemetos Tropi-kais, de Goulart Gomes, premiado com Menção Especial pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores – RJ, em 2000.

1. No POETRIX, o título é desejável, mas não exigível. Ele exerceria uma função de complementaridade ao texto, definindo-o ou sendo por ele definido.

2. Não existe rigor quanto ao número de sílabas, métrica ou rimas no POETRIX, mas o uso do ritmo e da similaridade sonora das palavras, sim.

3. O uso de metáforas e outras figuras de linguagem são uma constante no POETRIX, assim como a criação de neologismos.

4. A interação autor/leitor deve ser provocada através da subliminaridade do POETRIX.

5. O POETRIX é necessariamente uma arte minimalista, ou seja, ele procura transmitir a mais completa mensagem com o menor número de palavras.

6. O POETRIX considera Passado, Presente e Futuro como uma só dimensão: TEMPO, podendo ser utilizado indistintamente.

7. No POETRIX o observador (autor), as personagens e o fato observado podem interagir, criando condições suprarreais ou ilógicas ("non sense").

O POETRIX é tipicamente urbano. Ele também aproxima-se das leituras visuais, concretas, do epigrama e do caligrama, podendo ganhar formas animadas.

Sobre a estrutura dos POETRIX

"Dos poetrix", porque mesmo no plural, ainda poetrix, duplix, triplix, multiplix.

Apesar de ser linguagem poética recente, e linguagem viva, portanto sujeita a alterações e evolução, como todas são, como linguagem, é convenção. E é dessa convenção são extraídas as considerações abaixo expostas:

- Tema: O poetrix não se subordina a qualquer tema, conceitual ou formalmente. Não está restrito a quaisquer eventos, estações do ano, momentos da vida e da natureza. Sendo uma poesia "urbana" não exclui a vida do campo. Como manifestação livre trata de idéias e momentos que tenham inspirado seu autor. Também não é "arte engajada". Estética e logicamente trata de sensações físicas, ambientais, percepções visuais e paisagísticas, emoções, conceitos, sociedade e pensamento. Se não dá espaço, por ser minimalista, a "derramamentos" emotivos não deixa de registrar momentos de fortes emoções, comunicadas em sínteses, muitas vezes fortíssimas. O envolvimento autor_e_obra e antropomorfismos não são vedados (diferentemente dos haicais, que parecem não recomendar tais conteúdos). Temporalmente, não está vinculado ao passado, presente ou futuro, e o seu tempo nem é linear ou cíclico. Pode nem mesmo se tratar de um tempo real.

- Título: nos poetrix o título é obrigatório e parte importante do mesmo. Pode funcionar como um mote, integra-se ao poema, dá-lhe coerência, produz contradições que levam ao "susto" ou estranhamento bem vindo e induz ao desenvolvimento da poesia. Não deve ser elaborado de forma a que o poetrix seja uma quadra sem título que se disfarça em terceto.

- Terceto: uma estrofe composta de três versos livres quanto a rima (que também pode ser usada, quando natural e bela), e onde o rítmo deve ser compatível com o assunto e a natureza do tema (parece que isso é da poesia).

- Versos: O tamanho dos versos também é livre, não tendo um rígido número de sílabas (como os 5/7/5 dos haicais tradicionais). A contagem das sílabas deve ser feita até a última tônica de cada verso. No total, o poetrix comporta no máximo 30 sílabas, naturais ou modificadas por contrações, elisões, sinéreses e sinalefas.

- Figuras de linguagem, gramaticais e de estilo: Tratando-se de poesia minimalista, recorre a essas figuras para no continente permitido, conseguir expressar o conteúdo que se pretende, ou que aflora. Metáforas e elípses são permitidas e mesmo recomendadas por questões estéticas ou práticas. Polissemia, catacréses, aliterações, hipérbatos, zeugmas, anacolutos, etc... um arsenal à disposição do poeta.

- Grafismos: além das letras do alfabeto, sinais gráficos, os convencionais, são usados com certa freqüência. Parênteses, hífens, signos da matemática, interrogações, exclamações, pontos, chaves e reticências...

- Neologismos e deformações das palavras. Regionalismos e estrangeirismos : também e tudo à disposição do autor.

- Concretismo: embora ainda se ensaiando e não discutido mais profundamente, por manipulação da geometria dos versos e pela construção de signos a partir dos sinais gramaticais, o concretismo se insinua e se esboça em algumas composições.

- Poesia compartilhada: Os poetrix se desdobram pelo encadeamento de dois ou mais poetrix de autores que se alternam, dando origem aos duplix, triplix e multiplix.

GRAFITRIX:

Entre as formas múltiplas do Poetrix reconhecidas pelo Movimento Internacional Poetrix (MIP), está o GRAFITRIX, que é um Poetrix inspirado por uma imagem ou associado a ela. Em geral, escreve-se o poetrix sobre a foto ou o desenho.

O GRAFITRIX é uma criação de Murillo Falangola.

Fonte:
http://poetrixando.blogspot.com/

Goulart Gomes (Dez Dicas para um Bom Poetrix)



1. EVITE AS ORAÇÕES COORDENADAS.
Um poetrix não é uma frase fatiada em três partes. Vamos tomar um exemplo:

TELEFONEMA

passei a noite em casa
esperando que ela ligasse
mas ela não ligou

Isso não é um poetrix, é a primeira oração de um texto! Está simplesmente horrível! Mas, notemos como ele poderia ficar bem melhor, se a idéia fosse expressada de outra forma:

TELEFONEMA

noite em branco
telefone mudo
até o amanhecer

2. EXPLORE O PODER DO TÍTULO.
Uma das grandes vantagens do poetrix é a existência do título, o que não há no hai-kai. Por vezes, ele pode ganhar uma característica de “verbete”, sendo definido pela estrofe. Suprimam o título e observem diferença que faz:

SEMÁFORO

pensei ser outra lua
olho verde contra o céu
fugaz, no meio da rua

Outro trunfo é que o título não entra na contagem de sílabas. Assim, alternativas criativas podem ser formuladas. Num exercício “exagerado” desta possibilidade, uso como exemplo:

ESTUDO SOCIOANTROPOLÓGICO DE UM COMUM CIDADÃO LATINOAMERICANO DE CLASSE SOCIAL DESFAVORECIDA, À LUZ DA NOVA ORDEM MUNDIAL, IMPACTADA PELA GEOPOLÍTICA DO PETRÓLEO, NUM ENFOQUE MÍSTICO-TRANSCENDENTAL, CORROBORADO PELOS IDEAIS FREUDIANOS-LENINISTAS, SEM ASPIRAÇÕES EPICURISTAS

nasceu
cresceu
desencarnou

3. MINIMALIZE.
Corte tudo o que está sobrando. Escrever um poetrix é lapidar um diamante. Nenhum texto fica pronto “de primeira”. É preciso, sempre, trabalhá-lo. Literatura é 10% inspiração e 90% transpiração. Com o poetrix, apesar de pequeno, não é diferente. Exemplo:

ANTES:

DRAGÃO

com a cabeça no ar
e com os pés no chão
é um homem? não, um dragão

DEPOIS:


DRAGÃO

cabeça no ar
e pés no chão
homem? dragão

4. PESQUISE.
Enriqueça o seu texto com informações pertinentes. Vejam este poetrix:

XENOGLOSSIA

na Planície de Sine-Ar
decifrar tua língua
em minha Torre de Babel

Após ter a idéia, fui à Bíblia obter mais informações sobre a Torre de Babel. Lá descobri que ela foi supostamente erguida na planície de Sinear. Em latim, “sine” quer dizer sem. A informação caiu perfeitamente: a língua, a torre, alguém “sem ar”... Uma pequena informação pode fazer uma grande diferença.

5. NÃO CONFUNDA POETRIX COM HAICAI.
Para isso, é importante conhecer, também, os fundamentos do haicai (ver texto que disponibilizei sobre o assunto em www.prefacio.net). Para começar: se o tema do seu poetrix é a Natureza, desconfie. Pode ser que nasça um haicai, e não um poetrix.

6. UTILIZE FIGURAS DE LINGUAGEM.
Em todas as formas poéticas, o uso de figuras de linguagem, metáforas, tropos e imagens enriquecem bastante o texto. Por vezes, é necessário “substantivá-lo”.

QUANDO A MARÉ ENCHER

Verdi no azul do mar
tocardo forró no piano
pra Netuno e Yemanjá

7. ACABE COM AS CONJUNÇÕES ADVERSATIVAS:
Mas, Contudo, Porém, Todavia, Não Obstante, Entretanto, No entanto, geralmente não servem para nada em um poetrix, assim como a conjunção explicativa Pois.

8. NÃO FORCE RIMAS.
Poetrix não é soneto. Às vezes pode-se dispensar completamente uma rima, utilizando-se bem o ritmo, a sonoridade e a riqueza semântica das palavras.

9. POETRIX NÃO É PROVÉRBIO.
Muito menos, frase de pára-choque de caminhão. Evite coisas como (blargh!):

ARROCHA

mulher e parafuso:
comigo
é no aperto

(Só um texto explicativo, mesmo, para me fazer criar uma “coisa destas”! Que sacrifícios a gente não faz pela Literatura!)

10. O NÃO-DITO FALA MAIS QUE O DITO.
Não pense que seu leitor é burro. Não dê tudo “mastigado”. Faça com que seu texto “dialogue” com o leitor, permita que ele faça sua própria “viagem” nas palavras:

ÁCIDO

a água furou a pedra
moinhos de amsterdã
a manhã será mais bela

HOLOKAUSTO

há o que não houve
retalhos de nylon
cogumelo atônito

E, para finalizar, não esqueça:
O POETRIX é um poema composto de título e uma estrofe de três versos (terceto) com um máximo de trinta sílabas métricas.

Fonte:
http://www.goulartgomes.com/visualizar.php?idt=409722

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.124)

Uma Trova Nacional

Grita a sogra, lá do morro,
ao ver o genro chegar:
– não te chamo de cachorro
que é pra não te elogiar!
(HÉRON PATRÍCIO/SP)

Uma Trova Potiguar

Ao final do casamento
toda mulher é um sócio,
que leva o faturamento
sem abrir mais o negócio...
(HELIODORO MORAIS/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Bandeirantes/PR
Tema > TRABALHO > Menção Especial

Vendo o luxo da cigarra,
que não trabalha... faz “ponto”,
a formiga quer, na marra,
alterar aquele conto!
(SELMA PATTI SPINELLI/SP)

Simplesmente Poesia

– Carlos Drummond de Andrade / MG –
A hora do cansaço

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gozo acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Uma Trova de Ademar

Trabalho só é bacana
se tiver, por sua vez,
uma folga por semana
e férias de mês em mês!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

“Limpou” o supermercado
e desculpou-se ao ser presa:
- Não é roubo, delegado,
é mania de limpeza!
(MARIA DOLORES PAIXÃO/MG)

Estrofe do Dia

Por causa de um café morno
mamãe terminou morrendo,
se pai foi corno, não é,
você continua sendo;
se meu pai foi, não sabia
você é corno sabendo.
(JOÃO FURIBA/PE)

Soneto do Dia

– Soneto a cinco Mãos –
UM JANTAR NO “PAU DE ARARA”

Quando o garçom chegou, desajeitado,
servindo a mesa, com total descaso,
a sopa que me trouxe em prato raso
esparramou-se, ao chão... por todo lado!
(Heloísa Zanconato)

Confesso que fiquei bem irritado
e a minha reação foi “um arraso”:
– Chutei cadeiras, destruí um vaso
e botei p’ra correr o desgraçado!
(Renata Pacolla)

Depois me arrependi – (pobre garçom!)
que, educado não foi para ser bom
e servir com respeito a freguesia...
(Thalma Tavares)

Então, dei uma “grana’ para o “cara”,
que veio do Pará num “pau de arara”
e há tempo uma gorjeta merecia!!!
(EduardoToledo)

Fonte:
Ademar Macedo