terça-feira, 5 de julho de 2011

Leon Eliachar (O Precavido)


Há seis meses que foram morar no prédio novo e há seis meses que Eurico não botava os pés na rua. A mulher vivia reclamando.

— Quando é que você vai trabalhar, Eurico? Ele repetia sempre o seu ponto de vista:

— Quem quis morar na Zona Sul foi você,não fui eu. Já lhe disse que tenho medo de ir pra rua, porque é muito perigoso. Os jornais estão aí pra não me deixar mentir.

E abria sempre nas seções policiais e exibia pra mulher:

— Olha aí: “Padeiro esfaqueou freguês por¬que reclamou o troco”... “Barbeiro degolou a manicure na porta do açougue”... “Chofer de ônibus estrangulou o guarda-civil pra não pagar a multa”... “Passageiro assaltado e despido pelo motorista de praça”...

Eurico não só tinha medo de sair como estava ficando maníaco. Passava o dia inteiro cortando jornais e colando nas paredes as manchetes poli¬ciais. Em criança, quis ser detetive, mas desistiu da idéia quando um amigo lhe disse:

— Sabe quem morreu? O Sócrates.

— Quem?

— O Sócrates, aquele nosso amigo que era detetive.

— Morreu de quê?

— No cumprimento do dever. Deu um fla¬grante na mulher de um coronel e levou bala.

Desse dia em diante, preferiu ser corretor de imóveis. Nada de flagrantes, nada de se meter com a vida dos outros. Cada um que cuidasse da sua — e já não era pouco. Mas não perdeu a mania de ler as seções policiais. Tinha verdadeira adoração por crime e quanto mais complicado melhor. Até que veio morar na Zona Sul, influenciado pela mulher. No dia em que botou os pés dentro do apartamen¬to, exclamou:

— Agora vai ser fogo pra sair daqui, Arlete. Estamos morando bem na fonte das manchetes. Isto aqui é uma verdadeira “universidade do crime”. Sujeito que mora na Zona Sul, ou mata ou morre.

Foi assim que comprou o seu primeiro revól¬ver. Mas nunca teve coragem de atirar, nem pra caçar passarinho. Tinha pena de matar bicho, muito menos gente. Mas a mulher já não agüentava mais aquele homem o dia inteiro dentro de casa, de pija¬ma, recortando e colando manchetes pelas paredes: “Vizinha do sexto assalta a vizinha do quinto”... “Matou o transeunte por causa de meio quilo de carne”... “Encontrado boiando na praia duas se¬manas depois de ter desaparecido”...

Eurico era antes de tudo um revoltado. Tinha estudado pra melhorar a ação da polícia e a prin¬cipal conclusão a que chegou foi que a polícia era deficitária de policiais. “Se fosse deputado”, dizia, “ia fazer um projeto pra erguer um monumento ao cadáver desconhecido.''

— A polícia não tem culpa. O saldo de cri¬minosos encalhados na rua é muito maior que o estoque de policiais enfileirados nos distritos.

Mas a mulher não suportava mais nem as suas manchetes nem as suas teorias:

— Amanhã faz seis meses e dois dias que você está aqui dentro, Eurico. Vai pra rua de qualquer maneira, nem que seja pra comprar cigarro.

Dito e feito. Eurico relutou um pouco, mas acabou saindo. Mal chegou na porta do edifício, ouviu quatro disparos. Não deu tempo de correr, um balaço o acertou no pé. Quando a vizinhança veio socorrê-lo, deu por falta da carteira. Disse pra mulher:

— Está vendo? E não venha me dizer que não tenho razão.

Arlete não teve outra saída:

— Foi coincidência. Ele gritou:

— Coincidência você vai ver de agora em diante pra me tirar de dentro de casa. Nunca mais.

Dois meses depois, deu ladrão em sua casa e roubou todas as jóias da mulher. Eurico nem viu, estava colando manchetes no quarto da empregada.

Fontes:
ELIACHAR, Leon. A mulher em flagrante. Círculo do Livro. Digitalizado, revisado e formatado por Susana Cap
Imagem = http://www.luzdegaia.org/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 264)


Uma Trova Nacional

Procure espalhar, na vida,
alegria em sua estrada,
que a alegria dividida
é sempre multiplicada!
–DOMITILLA B. BELTRAME/SP–

Uma Trova Potiguar


Que o mais lindo sol desponte
sobre o milênio terceiro,
e que debaixo da ponte
ninguém ponha o travesseiro!
–JOAMIR MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada


2008 - Bandeirantes/PR
Tema: AUDÁCIA - M/E.

Meu velho peito se inflama
sob a chama da paixão,
porque a audácia de quem ama
é maior do que a razão!
–EDMAR JAPIASSÚ/RJ–

Uma Trova de Ademar


Poetas e Trovadores,
com inspiração divina,
são os interlocutores
dos versos que Deus ensina!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Tudo a juntar-nos: o amor,
o gênio igual, a constância,
até mesmo a própria dor. . .
- Só nos separa a Distância.
–LUIZ OTÁVIO/RJ–

Simplesmente Poesia

–HÉLVERTON BAIANO/GO–
Compreensão

O que eu construir
tem destino certo
é feito pra ruir
quando for aberto.

O que eu destruir
pelo meu caminho
se fará porvir
nesse torvelinho.

O corpo carrega
novelos de sonhos
tece e sonega
o que eu componho.

E o medo medonho
que a gente sofre
por temê-lo, ponho
guardando meu cofre.

Estrofe do Dia

Toca doze por oito na batida,
este sino de carne funciona,
o seu eco na alma excursiona
e fala toda paixão da nossa vida;
estremece na hora da partida,
tange triste no fim das ilusões,
se alimenta no fogo das paixões,
na esquerda do peito faz seu leito;
toca o ritmo silente em nosso peito
o maestro de nossas emoções.
–OLIVEIRA DE PANELAS/PE–

Soneto do Dia


–JOSÉ OUVERNEY/SP–
A Semente

Nós que herdamos de Deus o dom da fala
temos que nos ater ao seu valor,
fazendo do bom senso o seu censor,
no intuito natural de preservá-la.

Sabendo sempre, como e quando usá-la,
a vida terá muito mais sabor:
é tão fácil, tão bom falar de amor!
Basta gostar da idéia e adotá-la!

Nós precisamos da seara rica
que o bom uso da fala dignifica:
por isso Ele nos fez semeadores;

porque a palavra em qualquer solo medra:
se mal plantada, irá nascer só pedra...
- E o mundo é mais feliz... quando há mais flores!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Élbea Priscila de Sousa e Silva (Pequena e Doce Crônica)


Segunda das cinco cronicas vencedoras do V Concurso Literário “Cidade de Maringá” (Cronicas Vencedoras) Troféu Laurentino Gomes.

ÉLBEA PRISCILA DE SOUSA E SILVA
(Caçapava/SP)
PEQUENA E DOCE CRÔNICA

A sua despensa era o seu “celeiro”.

Ali ela guardava ovos de suas adoradas galinhas, as quais batizava: Branquinha, Dengosa, Gorda, Andeja e por aí afora. Estocava o feijão mulatinho da última safra, o arroz vermelho, socado no pilão, a farinha de trigo integral, as frutas do pomar... Ah! E os potes de geléia e vidros de conserva e a ardida e deliciosa pimenta dedo-de-moça... e os doces cristalizados e a goiabada cascão... e os queijos e manteiga...

Aquele celeiro de provisões e guloseimas era o orgulho de minha mãe. Era parte de seu doce mundo.

Quando chegava uma visita inesperada, ela me chamava:

- Querida, vá até o “celeiro” e traga queijo, geléia, manteiga, que eu já vou aprontar um café para a nossa amiga. E também, traga broinhas de fubá e caramelos para as crianças...

A mesa do café ficava um sonho só, com a toalha branca, de linho bordada, herança da vovó, e com os guardanapos ao lado das xícaras de porcelana. Era uma festa para os olhos e paladares.

Nós morávamos na roça, mas... cultura vem do berço, e aqueles requint3es todos acariciavam a alma de mamãe e de todos nós, filhos e marido.

Aquela mesa era o carinho concretizado de seu espírito sensível.

Quando ela se foi, com ela se foi o “celeiro”.

Ninguém continuou a tradição porque os tempos são outros...

A fazendo foi vendida, os filhos partiram e papai mora comigo.

Eu lhes conto, porém, um segredo: ele, o celeiro, se transferiu para o meu peito, e aí está sempre repleto de doces sabores, de olores suaves e da presença etérea e eterna de uma adorável quituteira.

O “celeiro” e ela vivem aqui, em cores, em meio às demais lembranças, em branco e preto.

Fonte:
AGULHON, Olga. PALMA, Eliana. V Concurso Literário “Cidade de Maringá”. Maringá: Academia de Letras de Maringá, 2011.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Giuseppe Garibaldi)


– In Memoriam – Nascimento do herói em 4.7.1807, em Nice, França

Foi “herói de dois mundos” e lutou
pelo nobre ideal do farroupilha,
quando os imperiais ele enfrentou,
do seu barco Mazzini sobre a quilha.

Em Laguna encontra Anita que amou
e com ela então forma uma família,
e o filho Menotti em Mostardas gerou,
quando pra Montevidéu segue a trilha.

Giuseppe Garibaldi, sempre lembrado
pelos que lutam contra a tirania
e veem em seu exemplo augusta glória.

Lembrem-se: quem não evoca o passado,
vai ter, com certeza, no dia a dia,
volta à opressão que já viu na História !

Porto Alegre – RS, 4 de julho de 2011-07-04
às 13h48min. – Bairro Tristeza.
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Sobre Giuseppe Garibaldi
Conhecido como "herói de dois mundos" por ter participado de conflitos na Itália e na América do Sul, dedicou sua vida à luta contra a tirania. Ainda menino, tornou-se marinheiro e conheceu a vida no mar. Aos 25 anos chegou ao posto de capitão da marinha mercante, ao mesmo tempo que se aproximava do movimento "Jovem Itália", que lutava pela independência e unificação dos diversos Estados em que se dividia a península itálica.

Foi condenado à morte e fugiu para a América do Sul, desembarcando no Rio de Janeiro em 1835. Logo, porém, segue para o Rio Grande do Sul e se junta aos republicanos da Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, destacando-se nos combates às forças imperiais. Juntamente com o general Davi Canabarro, tomou o porto de Laguna, em Santa Catarina, onde proclamaram a República Juliana.

Em Laguna, Garibaldi conheceu Ana Maria de Jesus Ribeiro, com quem se casaria. Ela se tornou sua companheira de lutas na América do Sul e na Europa e entrou para a história com o nome de Anita Garibaldi. Pouco antes do fim da Guerra de Farrapos, foi dispensado por Bento Gonçalves de suas missões e mudou-se para o Uruguai.

Naquele país, em 1842, foi nomeado capitão da frota uruguaia na luta contra o ditador argentino Juan Manoel Rosas. No ano seguinte, exerceu papel fundamental na defesa de Montevidéu, impedindo que a cidade fosse tomada pelos argentinos.

Em 1848, Garibaldi voltou à Itália para combater os exércitos austríacos na Lombardia (norte da Itália) e dar início à luta pela unificação italiana. Fracassou na tentativa de expulsar os austríacos e foi forçado a refugiar-se primeiro na Suíça e depois em Nizza (hoje Nice, na França). Visando conquistar Roma ao papado, os liberais italianos marcharam contra aquela cidade e a tomaram. Garibaldi partcipou da campanha com um corpo de voluntários e foi eleito deputado na assembléia constituinte da República Romana.

Contudo, os franceses e os napolitanos cercaram a cidade, visando a restabelecer a autoridade papal. A cidade caiu em 1º. de julho de 1849. Garibaldi recusou um salvo-conduto do embaixador americano e empreendeu uma retirada com 4 mil soldados, sendo perseguido por três exércitos (franceses, espanhóis e napolitanos), que somavam dez vezes o seu número de homens. Ao norte da Itália, o exército austríaco, com 15 mil soldados, também aguardava Garibaldi. Durante os combates, Anita foi morta, em 4 de agosto de 1849.

Condenado ao exílio, Garibaldi morou na África, em Nova York e no Peru. Entretanto, voltou à Itália em 1854, participando da Segunda Guerra de Independência contra os austríacos. O Conde de Cavour, primeiro ministro do Piemonte (norte da Itália), nomeou-o comandante das forças piemontesas e sob seu comando a Lombardia foi tomada à Áustria. Com isso, a Itália do norte estava unificada.

Garibaldi voltou-se então para o centro do país, com o apoio de Vítor Emanuel 2º, rei do Piemonte, e de seu ministro Cavour. No centro da Itália, porém, a política e a diplomacia prevaleceram sobre as armas e os acordos com que Cavour e o rei cederam Nice e Savóia à França foram considerados uma traição por Garibaldi, que decidiu agir por conta própria. Seguiu para o sul, onde conquistou a Sicília e o reino de Nápoles.

Governante absoluto do sul da península, Garibaldi promoveu um encontro de suas tropas com as de Vítor Emanuel, que se tornou o primeiro rei da Itália unificada, ou quase. Ainda faltava libertar Veneza dos Austríacos (1866) e Roma do papa, o que Garibaldi tentou em vão em 1869, sendo derrotado mais uma vez pelos franceses.

Ainda assim, em 1871, uniu-se a eles na guerra Franco-Prussiana, onde venceu algumas batalhas, apesar das quais, a França perdeu a guerra. Não havendo aceitado o título de nobreza e a pensão vitalícia que o rei Vítor Emanuel lhe oferecera, Garibaldi retirou-se para sua casinha na ilha de Caprera, e lá permaneceu até o fim da vida.

Fontes:
Soneto enviado pelo autor
Biografia = Uol Educação

Carlos Drummond de Andrade (Antologia Poética)


O AMOR BATE NA AORTA

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não posso compreender...

NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que não amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia.
Joaquim se suicidou e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

DENTADURAS DUPLAS

Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica? ... )

Resovin! Helocite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
emgenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada...
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poético-
sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.

Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.

Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
férricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!

A MÃO SUJA

Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.

A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.

E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.

Ai, quantas noites
no fundo de casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
não limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.

Eu era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
- o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.

Inútil reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar!
Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura - transparente -
colar-se a meu braço.

Leon Eliachar (A Outra)


Amâncio tinha outra mulher. Toda a vizinhança sabia, menos ela, Iracema, que era a verdadeira. Chegara a duvidar se a mulher verdadeira é a que é casada, com juiz de paz e tudo direitinho, ou se é a outra, que aparece sem mais nem menos e toma o marido das outras. Sempre fora uma boa esposa, econômica, doméstica, não era dada a extravagâncias — no fim deu nisso que todo mundo dizia. Não sabia até que ponto um homem pode fingir dentro de casa, sem que a mulher perceba. Amâncio continuava, aparentemente, o mesmo homem. Em casa não faltava nada, nem mesmo carinho. Talvez fosse veneno das amigas:

— Deixa de ser boba, você não quer acreditar porque é ingênua. Todo mundo sabe que seu marido não é fiel. Segue até mulher na rua.

Uma amiga mais íntima chegou a dizer frontalmente:

— Não tenho nada com a sua vida, só lhe digo isso porque somos amigas há mais de doze anos. Mas o seu marido tem outra mulher. E digo mais: se você bobear, ele vai trocar você pela outra.

Iracema não queria dar ouvidos. Sempre viveu bem com o marido, não era agora que ia dar trela pras fofoquices dos invejosos. “É despeito de quem fala”, pensava consigo mesma. Mas no íntimo, muito lá no íntimo, não se mostrava assim tão conformada.

— Que é que posso fazer?

Até o porteiro do edifício já olhava pra ela como se ela fosse uma boboca, passada pra trás pelo marido. Talvez até ele estivesse levando algum pra ficar na moita, mas o seu ar zombeteiro, quando ela o cumprimentava, já estava atravessando os limites da sua paciência. Os tormentos não paravam:

— Faz macumba, sua boba.

Ela fez tudo que podia fazer: macumba, prece, cartomante, pitonisa, promessa, nada deu certo. Chegou ao cúmulo de dar trotes pelo telefone e de fazer ameaças com cartas anônimas. Estava se sentindo ridícula ante a certeza dos outros e a sua dúvida. Por mais que quisesse se afastar da idéia de que o marido a traía, os boatos e os cochichos acabaram vencendo e trazendo à tona o seu amor-próprio. Era preciso tomar uma atitude e só tendo provas concretas poderia ter coragem pra falar com o marido.

— Põe um detetive atrás dele. Uma vez aconteceu isso com uma conhecida minha e. . .

Ouviu dezenas de casos, todos semelhantes. Não agüentava mais ouvir as histórias das outras, sempre atribuídas a uma amiga ou uma conhecida. Nunca era com elas mesmas.

— Vivo muito bem com o meu marido, mas se isso que está acontecendo com você fosse comigo, não sei não.

Iracema não resistiu à pressão. Uma tarde, bateu o telefone pra uma agência dessas que resolvem problemas: “Serviço rápido e eficiente, mantendo completo sigilo”. Nem sequer deu o seu nome, inventou um qualquer, o próprio detetive disse que assim era melhor, que a agência não fazia questão, pra inspirar mais confiança.

— Às oito está bom?

— Não, senhor, às oito meu marido está em casa. Prefiro às quatro.

— Qual o endereço, por favor?

— Prefiro num lugar distante da minha casa.

— Compreendo, minha senhora.

— No barzinho Lagoa, que ele nunca passa por lá.

— Combinado, às quatro em ponto. Como é que a senhora vai vestida?

— Bem simples. Uma saia cinza e uma blusa branca, com um broche do lado esquerdo.

— Perfeito. Eu vou de terno cinza.

Iracema foi viva, achou melhor ir toda de verde, pra despistar. Às quatro em ponto, lá estava ela, tomando um guaraná, quando entrou o marido:

— Você aqui, Amâncio?

Ele puxou uma carteirinha do bolso:

— Nunca lhe disse nada, mas nas horas vagas sou detetive particular.

E começou a bronca:

— E você? Que é que está fazendo aqui a esta hora da tarde?

Iracema não teve saída. Voltaram discutindo o caminho todo, ele acusando, ela se defendendo.
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Sobre o autor = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/leon-eliachar-1922.html
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Conheça-se a si mesmo = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/leon-eliachar-conhea-se-si-mesmo.html
O homem ao quadrado = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/leon-eliachar-o-homem-ao-quadrado.html

Fontes:
ELIACHAR, Leon. A mulher em flagrante. Círculo do Livro. Digitalizado, revisado e formatado por Susana Cap
Imagem = http://www.apostilahacker.com.br/

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) II – O Visconde Novo


Em virtude da lembrança da marquesa, a grande novidade daquele dia foi o reaparecimento do Visconde de Sabugosa.

Os leitores destas histórias devem estar lembrados do que aconteceu ao pobre sábio naquele célebre passeio ao País das Fábulas, quando o Pássaro Roca ergueu nos ares o Burro Falante e o Visconde. Os viajantes haviam se abrigado debaixo da imensa ave julgando que fosse um enormíssimo jequitibá de tronco duplo — troncos inconhos. Tudo porque o Pássaro Roca estava imóvel, dormindo de pé! Mas quando a imensa ave acordou e levantou o vôo, lá se foi pelos ares o pobre burro pendurado pelo cabresto, e agarrado ao burro, lá se foi o pobre Visconde.

Na maior das aflições, Pedrinho teve uma boa idéia: correr ao castelo próximo em procura do Barão de Munchausen. Só o barão, o melhor atirador do mundo, poderia com uma bala cortar o cabresto do burro. Pedrinho sabia que o barão já fizera uma coisa assim naquela viagem em que, alcançado pela noite num grande campo de neve, apeou-se para dormir e amarrou o cavalo a um galo de ferro que viu no chão — o único objeto que aparecia no campo de gelo. Na manha seguinte, com grande surpresa sua e de toda gente, acordou na praça pública duma cidadezinha, e erguendo os olhos viu no alto da torre da igreja, atado ao galo de ferro, o seu cavalo de sela! Compreendeu tudo. E que na véspera, quando chegou àquele ponto e parou para dormir, a neve havia coberto totalmente a cidadezinha, só deixando de fora o galo da torre da igreja... E ele então tomou da espingarda, apontou para as rédeas do cavalo pendurado e pum! cortou-as com uma bala. O cavalo caiu sem se machucar. O barão montou e lá seguiu viagem, muito contente da vida.

Ao ver o Burro Falante pendurado pelo cabresto a uma das pernas do Pássaro Roca, Pedrinho lembrou-se dessa história e correu a pedir socorro ao barão, o qual morava num castelo próximo.

O barão veio e com um tiro certeiríssimo resolveu o caso: cortou o cabresto do burro, sem ferir nem a ele nem ao Pássaro Roca. E o pobre burro, sempre com o Visconde a ele agarrado, caiu no mar, donde foi salvo por Pedrinho — mas o Visconde morreu duma vez. Emília encontrou-o lançado à praia pelas ondas, sem cartolinha na cabeça, depenado dos braços e das pernas, salgadinho, todo roído pelos peixes — e guardou aquele toco em sua canastrinha com a idéia de um dia restaurá-lo.

E esse dia afinal chegou, naquele “descanso-de-lagarto” do mês de abril. Emília lá estava no quarto de Tia Nastácia, insistindo com a boa negra.

Tia Nastácia arrenegava, dizia que era o mês do repouso, etc, etc. — mas quando Emília tinha uma coisa na cabeça era pior que sarna. Tanto amolou que a negra, depois de muito resmungo, resolveu acabar com aquilo — e o meio de acabar com aquilo era um só: satisfazer o desejo da boneca.

— Está bom, diabinha, faço, faço. Que remédio? Não sei por quem puxou esse gênio de sarna. A gente está descansando da trabalheira e a malvadinha aparece com as encomendas... Dê cá o toco

Emília entregou-lhe o toco do Visconde. A negra olhou bem para aquilo e riu-se com toda a gengivada vermelha.

— Che, não dá jeito! Isto nem toco é mais — é toco de toco. Melhor botar fora e fazer um Visconde completamente novo, dum sabugo fresco lá do paiol.

— Botar fora!... — repetiu Emília com indignação. — Fique sabendo que isto são os sagrados restos mortais do Visconde. Vou fazer um enterro, como se faz com os defuntos.

Tia Nastácia estava com preguiça de discutir.

— Pois enterre lá o seu defunto enquanto eu faço um Visconde novo — e encaminhou-se para o paiol de milho enquanto a boneca se dirigia para a horta. Por que a horta? Porque no fofo dos canteiros da horta era mais fácil abrir um buraco. E lá no canteiro das alfaces Emília enterrou os restos mortais do Visconde, pensando consigo: “Quem comer salada destas alfaces vai ficar sábio sem saber como nem por quê...”

No paiol, Tia Nastácia debulhou uma bela espiga de milho vermelho para obter um sabugo novo, e teve a luminosa idéia de deixar uma fileira de grãos, de alto a baixo, a fim de servirem de botões. Também teve a idéia de trançar as palhinhas do pescoço em forma de “barba inglesa”, isto é, repartida em duas pontas. E como o sabugo era vermelho, ou ruivo, saiu um Visconde muito diferente do primeiro, que era de sabugo de milho branco.

Depois de arrumá-lo muito bem, com duas compridas pernas, dois belos braços e cartolinha nova na cabeça, foi mostrá-lo aos meninos.

Emília torceu o nariz. “Está falsificado. Não presta.” Mas Pedrinho aprovou: “Está ótimo, embora pareça mais um banqueiro inglês do que um sábio da Grécia”.

— E que nos adianta banqueiro aqui? — observou Narizinho. — Melhor transformá-lo em explorador africano, como aquele Doutor Livingstone de que vovó tanto fala, o tal que andou anos e anos pelo centro da África procurando as origens do Nilo. Basta trocar essa cartola por um chapéu de cortiça com fitinha pendurada e vesti-lo dum fraque de xadrez. Eu tenho um retalho que serve, daquele meu vestido de escocês.

A idéia agradou a Emília. “Sim, serve. Um explorador africano será excelente aqui — para procurar objetos perdidos. Arranjaremos diversas origens para ele procurar.”

E foi desse modo que surgiu no Sítio do Pica-Pau Amarelo aquele grave personagem de fraque de xadrez, botões de milho no peito e chapéu de cortiça com fitinha caída atrás.

Mas o Doutor Livingstone veio ao mundo com um defeito: era sério demais. Não ria, não brincava — sempre pensando, pensando. Tão sério e grave que Tia Nastácia não escondia o medo que tinha dele. Não o tratava como aos demais do sítio. Só lhe dava de “senhor doutor”; e depois que Narizinho lhe disse muito em segredo que o Doutor Livingstone era protestante, a pobre preta não passava perto dele sem fazer um pelo-sinal disfarçado e murmurar baixinho: “Credo!”

— Mas será mesmo protestante, menina?

— É, sim, Nastácia. Tanto que já arranjou a bibliazinha que vive lendo.

A negra derrubou um grande beiço. Depois olhou para suas mãos cheias de calos e disse:

— Este mundo é um mistério!... Quando me lembro que estas mãos já fizeram uma bonequinha falante, e depois o tal “irmão de Pinóquio”, e depois um visconde que sabia tudo e agora acaba de fazer um protestante, até sinto um frio na pacuera. Credo! Deus que me perdoe...

Na primeira semana de sua vida aconteceu com o Doutor Livingstone uma tragédia que muito consternou a todos da casa. Estava ele certa tarde lendo a sua bibliazinha no quintal, quando um frangote veio vindo. O sábio fechou a Bíblia e dirigiu algumas palavras em inglês ao frango, visto como era um frango leghorn, descendente dum galo vindo dos Estados Unidos e que, portanto, devia entender alguma coisa da língua de seus avós. O frango, porém, nada entendeu (ou fingiu que não entendeu); aproximou-se mais e mais, virando a cabecinha como fazem as aves quando descobrem petisco. É que tinha enxergado os lindos “botões” vermelhos do peito do inglês...

— Do you like my buttons? — perguntou com a maior ingenuidade o sabugo, como quem diz: “Está gostando dos meus botões?” Mas em vez de responder e elogiar a beleza daqueles botões, sabem o que o frango fez? Avançou de bicadas contra o pobre sabugo e comeu-lhe cinco botões, um depois do outro! Os berros do Doutor Livingstone atraíram a atenção de Nastácia, que veio correndo com a vassoura e tocou o frango a tempo de salvar o resto dos botões. Como fossem treze, ainda ficaram oito — mas falhados. O maldito frango tinha desfeito a obra-prima de Tia Nastácia...

— Deixa estar, mal-educado! — berrou ela furiosa. — Assim que crescer mais, eu te pego e prego na caçarola — e o senhor doutor aqui há de comer a moela. Desrespeitar desse modo uma criatura de tanta sabedoria, que não faz mal a ninguém e vive quieto no seu canto lendo a sua Bíblia! É ser muito sem compreensão das coisas... Credo! — E Tia Nastácia deu um tapa na boca porque achava inconveniente pronunciar essa palavra perto dum protestante.

Desde esse dia o Doutor Livingstone ganhou um medo horrível às aves. Bastava que uma galinha cacarejasse no terreiro, ou um galo cantasse lá longe, para que o seu coraçãozinho batesse apressado, enquanto, com mãos trêmulas, ele fechava o fraque de xadrez em defesa dos oito botões restantes.

— Vejam — disse um dia Pedrinho. — Este nosso Doutor Livingstone tem cara de não ter medo de leão, nem de rinoceronte, nem de leopardo, nem de nenhuma fera africana. Mas a gente percebe que tem um medo horrível de qualquer ave das que não sejam de rapina. Sendo de rapina, isto é, das que só comem carne, ele não dá importância, nem que seja um monstruoso condor dos Andes. Mas se é ave das que comem milho, ah, o medo dele é como o de vovó com as baratas. Se vê uma galinha, empalidece; e quando um galo canta, o seu coraçãozinho pula dentro do peito como um cabritinho novo...
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Continua … III – As Estrelas
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Juliana Boeira da Ressurreição (A Importância dos Contos de Fadas no Desenvolvimento da Imaginação) Parte II, final


3. Imaginado o que foi imaginado

O maravilhoso dos contos de fadas faz com que aos poucos a magia, o fantástico, o imaginário deixem de ser vistos como pura fantasia para fazer parte da vida diária de cada um, inclusive dos adultos que já se permitem em muitos momentos se transportar para este mundo mágico, onde a vida se torna mais leve e bem menos operativa.

Imaginação s. f. ( lat. imaginatio, imaginationis). 1. Faculdade que permite elaborar ou evocar, no presente imagens e concepções novas, de encontrar soluções originais para problemas. 3. Faculdade de inventar, criar, conceber”. (Dicionário CULTURAL. 1992, p. 604)

As situações reproduzidas no conto maravilhoso acontecem num espaço redigido por leis totalmente diferentes daquelas que dominam nosso mundo cotidiano, embora haja uma preferência muito grande pelos bosques e florestas. Quer dizer, neste espaço, onde dominam as leis do sobrenatural e do imaginário, não existem distâncias e os personagens podem deslocar-se com grande facilidade da terra para o céu e deste para o mar.

Com isso, o conto maravilhoso pode até introduzir a situação inicial com a famosa frase “Era uma vez, num reino muito distante...”; contudo, num mundo imaginário e sobrenatural, o que menos importa é a localização temporal. Tudo acontece de repente e a duração dos acontecimentos não é cronometrada pelas mesmas unidades temporais que vivenciamos. Por exemplo, se o autor diz ‘dia’, ele está se referindo a um momento sideral preciso que altera o dia e a noite. O tempo é apenas uma paisagem da situação vivida pelos personagens.

Num espaço e num tempo assim constituídos, não se poderia esperar que habitassem seres como a gente. Pelo contrário, este é o mundo habitado pelos seres maravilhosos: fadas, magos, bruxas, anões, gigantes, gênios, gnomos, ogros, dragões, duendes e outros seres criados pela natureza. Todos eles convivem com grande naturalidade e nada que lhes ocorre é considerado estranho. Também não conhecem o processo do crescimento biológico. São crianças e adultos, mas não sofrem a ação do tempo, já que este não existe. A velhice ou a juventude faz parte do caráter do personagem.

No espaço sobrenatural não existe tempo real, tudo acontece de repente e justamente, com total arbítrio do acaso. Os personagens existem, mas não foram criados por leis humanas. São, antes, fenômenos naturais. Por isso são seres encantados”. (MACHADO, 1994, p. 43)

Todo conto popular revela uma tendência muito grande para o encantamento: aquelas situações em que ocorrem transformações provocadas por algum tipo de magia, que não são explicadas de modo natural.

Há aquele tipo de história em que o encantamento ocorre em qualquer circunstância, pois o elemento mágico está presente em toda parte. Mas há também, um tipo de conto maravilhoso em que as transformações são privilégios de alguns seres encantados, dotados de poderes sobrenaturais. As narrativas mais significativas deste modelo são as histórias dos contos de fadas. São as histórias que, como o próprio nome diz, se concentram nos poderes mágicos das fadas, dos magos ou de algum outro ser dotado de poderes sobrenaturais.

“Fadas: são os seres que fadam, isto é, orientam ou modificam o destino das pessoas. Fada é um termo originado do latim fatum, que significa destino”. (MACHADO, 1994. p. 44)

Ainda que não se possa localizar no tempo a origem desses seres, a nossa tradição cultural se encarregou de definir as fadas como seres simbólicos, dotados de virtudes positivas e poderes sobrenaturais, concentrados em suas varinhas mágicas. Por isso, elas sempre aparecem nos momentos de grandes conflitos, quando as pessoas pensam que seu destino está tomado por uma fatalidade da qual é impossível fugir. Assim sendo, o conto de fadas torna-se uma manifestação valiosa na representação dos sonhos e dos desejos humanos, os mais profundos e significativos.

A professora com a qual realizei a entrevista diz que “o importante é que o maravilhoso acontece no mundo da magia, do sonho e da fantasia, onde tudo escapa às limitações da vida humana e onde tudo se resolve por meios sobrenaturais”. Foi bastante interessante ouvi-la contando sobre a reação das crianças nos momentos em ela conta as histórias, como trabalha com a entonação da voz e como as crianças reagem às situações vividas pelos personagens. Ela contou que é muito fácil perceber as emoções sentidas pelas crianças através de um olhar, de um sorriso, de um olhar de medo e até mesmo pela torcida de que, no final da história, o bem vença e os problemas se acabem e que sejam felizes.

Durante o relato, ela também contou:

“Tenho observado, no meu fazer pedagógico, satisfação e encantamento de crianças que variam dos 6 aos 10 anos de idade, cada vez que trabalhamos com contos de fadas. Ouvem com atenção, participam, opinam, contam estórias, etc. Através da fantasia, da imaginação, transmite-se à criança, valores que poderão auxiliá-la na sua formação, ajudando-a a superar medos, a enfrentar situações difíceis, enfim encorajando-a para alcançar o equilíbrio”.

Após leituras e comentários com a professora fiquei a pensar neste processo encantador pelo qual passa a nossa imaginação; o escritor, ao escrever, trabalha com sua imaginação para que o leitor venha a imaginar aquilo ele escreveu, e talvez o que o escritor imaginou pode não ter nada a ver com o que o leitor imaginou.

É incrível o quanto a nossa imaginação é livre; ao ouvirmos uma história ou ao lermos um livro, podemos viajar pelo mundo todo, por lugares nunca vistos, imaginando seres e situações nunca vividas antes. Por meio da imaginação podemos resolver nossos problemas, viver nosso presente, planejar nosso futuro e aprimorar nosso passado.

Imagino como é mágica a imaginação das crianças; para elas tudo parece tão real, mesmo no mundo imaginário. Quantas crianças possuem um amigo imaginário, com o qual brincam, conversam, cantam e até mesmo contam histórias imaginadas por elas mesmas. E este se torna um ser “real”, vem a ser uma realidade que vive somente no imaginário da criança. A professora acrescenta “um conto bem narrado ativa e intensifica toda uma série de experiências na criança, pois através da fala, dos gestos, da entonação da voz, o narrador atribui sentido ao que está sendo narrado”.

Comparo a imaginação infantil ao planejamento por meio de sonhos que alguns adultos se permitem passar; a diferença é que, em alguns casos, os sonhos podem se tornar realidade, e isto é o que faz com que a vontade de sonhar continue viva.

4. Hora do Conto na escola

A literatura infantil é algo que me encanta, me interessa; seguidamente converso com meus alunos do Ensino Médio sobre a relação que existe entre eles e as histórias infantis. Hoje percebo o quanto eles gostam de relembrar os momentos da infância e o quanto alguns personagem se tornaram inesquecíveis em sua vida. No entanto, considerei imprescindível compreender como se efetiva esse contato pedagógico do professor com a criança e os contos de fada, até mesmo para compreender mais o que os jovens manifestam de lembranças dessas vivências, e para poder disponibilizar este estudo aos professores que desempenham este papel. Decidi-me, pois, por desenvolver uma pesquisa exploratória, analisando a bibliografia pertinente e conversando com uma professora que atua com a Hora do Conto.

A pesquisa exploratória é vista como o primeiro passo de todo o trabalho científico. Este tipo de pesquisa tem por finalidade proporcionar maiores informações sobre determinado assunto; facilitar a delimitação de uma temática de estudo; definir os objetivos ou formular as hipóteses de uma pesquisa, ou, ainda, descobrir um novo enfoque para o estudo que se pretende realizar. Pode-se dizer que a pesquisa exploratória tem como objetivo principal o aprimoramento de idéias ou a descoberta de intuições. Através dessa metodologia de pesquisa avalia-se a possibilidade de se desenvolver um estudo inédito e interessante, sobre uma determinada temática. Sendo assim, proporciona maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito. De um modo geral, esta pesquisa constitui um estudo preliminar ou preparatório para outro tipo de pesquisa.

O instrumento de coleta de dados que utilizei foi uma entrevista semi-estrutura, a partir da qual apresento uma análise descritiva.

A Hora do Conto, nesta escola, é realizada uma vez por semana para alunos de pré à 4ª série. É uma atividade do laboratório de aprendizagem que oferece ainda a visita do “carro da leitura” (biblioteca ambulante que visita salas de aula uma vez por semana). Durante a visita do “carro da leitura”, todas as turmas de pré à 4ª série param outras atividades para poder ler, seja contos ou histórias em quadrinhos.

Sempre que possível, a Hora do Conto é realizada de acordo com o projeto que está sendo desenvolvido pelo currículo - contos, histórias, poesias, músicas são apresentados tanto pelas professoras responsáveis pelo Laboratório de Aprendizagem, como também pelos alunos. Algumas vezes, a Hora do Conto é enriquecida com trabalhos em dobradura, colagem, desenho e formação de textos, poesias e dramatizações.

Existe também a preocupação com o desenvolvimento da sociabilidade e desenvoltura dos/as alunos/as para se apresentarem em Horas Cívicas e festas comemorativas na escola, através de pequenas dramatizações de contos infantis, danças, músicas ou declamações de poemas.

Na conversa com a professora entrevistada, ela comentou sobre a importância do maravilhoso dos contos de fadas que concretiza imagens, símbolos, etc. como mediadores de valores eventualmente assimilados pelos ouvintes; esses valores contribuem e influenciam à formação da personalidade da criança.

A capacidade de simbolizar é fundamental para a nossa natureza psíquica e emocional, e é um atributo desejável para um desenvolvimento intelectual pleno, saudável e criativo. A professora acredita que os contos de fadas são a chave para ajudar as pessoas a desembaraçar os mistérios da realidade, e diz que talvez a resposta esteja na linguagem simbólica de que os contos de fadas se revestem, pois está ligada aos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional.

Concordo com a professora entrevistada, quando a mesma diz que “Os contos de fadas têm formas diferentes de expressar idéias, mostrando sentidos profundos e inesperados às crianças e as auxiliam a compreender a sua condição humana e a lidar com os conflitos a ela inerentes”, pois os contos de fadas, de uma forma mágica, têm o poder de mexer com os nossos sentimentos mais íntimos e verdadeiros. Por meio deles as crianças se identificam com as situações vividas pelos personagens como se fosse sua própria vida; de acordo com os acontecimentos no decorrer da história, são perceptíveis as reações das crianças. E esses conflitos, vividos por meio do imaginário, são capazes de auxiliar muito no desenvolvimento emocional e humano das crianças, ajudando-as a entender, de forma mais acessível, os acontecimentos de sua vida real.

Considerações finais

Durante cada leitura que realizei para escrever este artigo mais me encantava e vibrava com cada novas descobertas. Os contos de fadas são enriquecedores e satisfatórios, eles ensinam sobre os problemas interiores dos seres humanos e apresentam soluções em qualquer sociedade. A fantasia ajuda a formar a personalidade e por isso não pode faltar na educação.

Durante os estudos, relembrei momentos de minha própria infância: o medo de alguns personagens, como a bruxa; a ansiedade para saber o que aconteceria com a Cinderela no final da história e qual seria o destino da madrasta malvada e de suas filhas. Foi muito interessante, pois hoje todas estas sensações se transformaram em lembranças encantadoras. Percebo também essas sensações quando meus alunos relatam algumas lembranças da infância: observo as expressões do rosto, do olhar, dos gestos... É impressionante como podemos aprender, criar, sonhar, imaginar por meio de nossas leituras e recordações.

Por isso, saliento a importância dos contos de fadas e da leitura no desenvolvimento da imaginação infantil: os mesmos contribuem muito na formação da personalidade, ajudam as crianças a entenderem um pouco melhor este mundo que as cercam. Se no processo de ensino se desse uma atenção especial ao emocional que existe em cada uma das crianças, este mundo seria bem melhor!

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Ricardo. Literatura infantil: origens, visões da infância e certos traços populares. Disponível em http:// www.ricardoazevedo.com/artigo07.htm. Acessado em 17-07-2005.
BARCO, Frieda Liliana Morales, RÊGO, Zíla Letícia Goulart Pereira, FICHTNER, Marília Papaléu. Era uma vez ... na escola: formando educadores para formar leitores. Belo Horizonte: Formato, 2001.
BETTLLHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CAGNETI, Sueli de Souza. Livro que te quero livre. Rio de Janeiro: Nordica, 1986.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.
DOHME, Vania. A atividade lúdica como mídia educacional.... Disponível em http://www.ueb-df.org.br/artigo0.asp?art=11, acessado em 17/07/2005.
FACHIN, Odília. Fundamentos de metodologia. – 3.ed.- São Paulo: Saraiva, 2001.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. – 3. Ed.- São Paulo: Atlas, 1991.
MACHADO, Irene A. Literatura e redação. São Paulo: Scipione, 1994.
SOSA, Jesualdo. A literatura infantil. Literatura Infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1995
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Juliana Boeira da Ressurreição, pós-graduanda do curso de Novas Abordagens em Língua Portuguesa e Literatura da Língua Portuguesa -Faculdade Cenecista de Osório-FACOS/RS Orientadora Profa. Dra. Cristina Maria de Oliveira

Fonte da Imagem = Believe in your dreams

Antonio Manoel Abreu Sardemberg (Poemas de Amor)


AMOR E PAIXÃO

Amor é brisa suave,
é aconchego, é carinho,
vôo cadente da ave
indo em busca do seu ninho.
É bruma leve do mar
em manhã de primavera,
desejo louco de estar
com alguém que se espera.

Volúpia louca é paixão,
mar revolto, tempestade...
É amar sem a razão,
é só loucura e vontade.
Paixão é amor sem juízo,
sem norte, reta ou tino,
errante sem ter destino,
o inferno no paraíso!

Amor é paz, é ternura,
é o frescor da aragem,
a mais cálida coragem,
maior ato de bravura.
É o céu lá nas alturas,
é a mais sublime imagem!

Paixão é inconseqüência,
é demência desmedida,
é o nada, é ausência,
é o fim – a despedida!

Amor é tudo, enfim
é a vida iluminada,
é a afirmação, é o sim,
é o encontro na chegada!

SEU BEIJO


Seu beijo é favo de mel,
a seiva que me alimenta,
é pedacinho do céu,
desejo que me atormenta!

É o fogo mais ardente,
que se pode experimentar,
é sinônimo de querer,
volúpia louca de amar!

Seu beijo é tudo, enfim!
É o querer.
O gostar,
vontade imensa de ter
mas que não posso alcançar!
seu beijo é gotinha dágua,
nas profundezas do mar!

PRESA

Quero ser a sua presa,
Enroscar-me em sua teia
Sem reação ou defesa,
Ser manjar em sua mesa,
Deixar sugar o meu sangue
Até secar minha veia...

Quero ser seu alimento,
Provisão de cada dia,
Ser o seu pão, seu sustento,
E depois do acalento,
Ser sua noite de orgia.

Eu quero ser o seu vinho,
O cálice que inebria.
Ser madrugada, seu dia,
Ser seu parceiro no ninho.

Quero ser a sinfonia
Mais suave e maviosa,
Ser seu verso e sua prosa
Seu delírio e fantasia...

Quero ser a sua rima,
Sua trova e sextilha,
Sua estrada, sua trilha,
Seu fogo ardente, seu clima.

ABRAÇO

Chegou como aragem mansa
Em manhã de primavera...
Era a mais doce quimera,
A mais intensa esperança,
A desejada bonança
Que um homem quer e espera.

No rosto, abria um sorriso,
Um semblante angelical,
Um mundo pleno e total.
Era o próprio paraíso!
Nunca senti nada igual.

Nos seus olhos cor de mel
Trazia a luz que irradia
Lindo toque de magia,
Universo de esplendor
Que eu sempre quis um dia.

Seus braços aconchegantes
Eram buquê de carinho,
O afago de um ninho,
A ternura de amante,
O perfume do jasmim,
Emoção mais fascinante
Que senti dentro de mim.

E, assim, bem de mansinho,
Nossos braços se enroscaram.
E ficamos bem juntinhos
Atados como num laço...
Então eu pude sentir
Minha razão de existir
Nesse terno e doce abraço.

NOITE DE AMOR

Entro em teu quarto com meu pensamento,
Devagarinho pra não te despertar,
E pouco a pouco, em doces movimentos,
Passo em teu corpo todinho tocar!

Sinto o calor que ele me irradia,
Ouço em teu peito o coração pulsar,
Quero que a noite nunca vire dia,
Que o tempo pare, só pra te amar!

Em toques cálidos fico a percorrer,
Todo teu corpo , só para sentir,
A sensação gostosa de te ter!

E já em êxtase eu te quero tanto,
Mais, muito mais, começo a te pedir,
E você me dando todo teu encanto!

VOCÊ

No rosto traz um sorriso
terno, amigo e verdadeiro,
no peito traz um gigante,
que se abre a todo instante
e acolhe um mundo inteiro!

És ternura da mais terna,
és doçura da mais doce,
e se eu poeta fosse,
diria da forma mais Vera:
és outono, primavera,
o mais ardente verão!
És acalento, alegria,
meu sonho de cada dia,
és tudo afinal então!

E neste dia de hoje,
quero te confessar:
se eu fosse o CRIADOR,
dar-te-ia o céu, o mar,
o campo coalhado de flor,
e para arrematar,
dar-te-ia todo amor,
que se possa imaginar!

Fonte:
E-mail enviado pelo poeta
Alma de Poeta

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 263)


Uma Trova Nacional

Ante ao talento me ajoelho...
E o teu talento invulgar,
tanto me serve de espelho
como me serve de altar.
–CLÁUDIO DE CÁPUA/SP–

Uma Trova Potiguar

Em cada conto, que conto,
conto somente o que é meu,
e, dessa conta, eu desconto,
tudo aquilo que for seu.
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

2008 - Bandeirantes/PR
Tema: AUDÁCIA - M/E.

Resguarda a paz do rebanho,
dando a mão ao teu vizinho,
que é uma audácia sem tamanho
tentar caminhar sozinho!
–CAROLINA RAMOS/SP–

Uma Trova de Ademar

Quando a lua nasce cheia,
mostra reluzentes brilhos,
como a luz que Deus semeia
nos olhos dos meus três filhos!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Em sofrer minha alma insiste,
mesmo sabendo, também,
que a dor da espera é mais triste
se não se espera ninguém...
–ALONSO ROCHA/PA–

Simplesmente Poesia

–LUIZ GONZAGA FILHO/AL–
Poema do Tempo

Se alguém me perguntar agora
como foi o início de tudo,
responderei: francamente não sei!
Sei que um dia surgiu a vida
e, depois de longo momento,
surgiu o homem
e tudo passou a acontecer.
Hoje, com o homem, as ciências
a serviço do bem e do mal;
hoje, com o homem, as máquinas
a serviço da vida e da morte.
Se me perguntarem agora
o que irá acontecer amanhã.
Responderei: francamente, não sei!
Sei que existirá um Deus, eternamente.

Estrofe do Dia

Quero mostrar-lhe o desenho
Da vida, desde menino,
Um traçado do destino,
Coisas guardadas que eu tenho:
Carrego o peso de um lenho
Que Deus transforma num bem,
E quando a descrença vem,
O Mestre de Nazaré
Me devolve aquela fé
Que às vezes você não tem.
JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Soneto do Dia

–CONCEIÇÃO ASSIS/MG–
Amor, Amor!...

Amor, amor!... Assim tu me chamavas
Quando em teus braços presa me sentias
Amor, amor!... Baixinho sussurravas
E eu esquecia mágoas, nostalgias...

E de tristeza agora são meus dias...
Já não podes dizer quanto me amavas,
Não te vejo sorrir quando dormias,
Já não repousas onde repousavas...

Mas quando vou à campa onde tu dormes,
Entre ciprestes retos, uniformes,
Onde o silêncio é rei dominador,

Na voz da brisa leve eu ouço ainda
A tua voz, a tua voz tão linda,
A sussurrar baixinho: amor... amor!...

Fonte:
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