sexta-feira, 8 de julho de 2011

Monteiro Lobato (Negrinha)


Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.

Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.

Ótima, a dona Inácia.

Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

— Quem é a peste que está chorando aí?

Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.

— Cale a boca, diabo!

No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...

Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.

— Sentadinha aí, e bico, hein?

Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.

— Braços cruzados, já, diabo!

Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.

Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...

O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...

A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.

— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.

Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.

— Traga um ovo.

Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:

— Venha cá!

Negrinha aproximou-se.

— Abra a boca!

Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?

E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.

— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!

— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.

— Sim, mas cansa...

— Quem dá aos pobres empresta a Deus.

A boa senhora suspirou resignadamente.

— Inda é o que vale...

Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?

Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.

— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo:

— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.

Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

— É feita?... — perguntou, extasiada.

E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.

As meninas admiraram-se daquilo.

— Nunca viu boneca?

— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?

Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?

— Negrinha.

As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:

— Pegue!

Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.

Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.

Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.

Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?

Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.

Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...

Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!

Assim foi — e essa consciência a matou.

Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.

Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.

Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.

Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.

Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.

Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

Mas, imóvel, sem rufar as asas.

Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...

E tudo se esvaiu em trevas.

Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...

E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.

— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.

— “Como era boa para um cocre!...”

Fonte:
Ítalo Moriconi (seleção). Os cem melhores contos brasileiros do século. RJ: Objetiva, 2000.

Cilza Carla Bignotto (Duas Leituras da Infância Segundo Monteiro Lobato)


Emília. O nome de uma boneca provavelmente é a primeira “palavra-chave” que a memória puxa do fundo dos arquivos pessoais quando o assunto é Monteiro Lobato. A palavra Emília certamente abrirá algumas gavetas empoeiradas, onde a memória guarda O Sítio do Picapau Amarelo e todos os seus habitantes. Pode ser que, além de histórias infantis lidas e assistidas na tv, as gavetas também guardem Jecas Tatus, um artigo chamado Paranóia ou Mistificação, ou quem sabe, algumas histórias envolvendo petróleo.

O que for lembrado depois de Emília pode variar bastante de leitor para leitor. De qualquer forma, a boneca, sempre metida onde não é chamada, estará sentada no topo de tudo o que estiver arquivado com a etiqueta “Monteiro Lobato”. Clichê maior que começar artigo sobre Lobato falando de Emília não há. A força da boneca, porém, é grande: se Gustave Flaubert disse “Madame Bovary sou eu”, Emília poderia muito bem ter dito, em suas Memórias, “Monteiro Lobato sou eu”.

Mas Emília só começou a falar em 1921, ano de lançamento de Narizinho arrebitado, livro que iniciou a série de aventuras dos habitantes do Sítio. Antes disso, Lobato já havia escrito três livros de contos: Urupês, Cidades Mortas e Negrinha. É deste último livro o conto homônimo sobre uma menina que, como Narizinho, tem sua vida transformada por uma boneca.

No conto Negrinha, o cenário é uma fazenda. Esta fazenda pertence a uma velha senhora, Dona Inácia, que cria uma menina órfã, a Negrinha do título. As Reinações de Narizinho acontecem em um sítio, que pertence a outra velha senhora, Dona Benta, que cria a menina órfã e reinadora do título. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas - Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem.
Dona Inácia é ótima (...) mas não admitia choro de criança (...) Assim mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança [Negrinha], gritava logo nervosa: - Quem é a peste que está chorando aí?

Narizinho, a encantadora, é neta da dona do sítio. Negrinha, a peste, é filha de escrava da dona da fazenda. Uma menina é apresentada como Lúcia, e depois como Narizinho. A outra é apresentada como Negrinha, e se tem nome, não é dito no conto. O apelido Narizinho tem origem em uma característica física, o nariz arrebitado. A menina tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns biscoitos de polvilho bem gostosos.

Negrinha também tem sete anos, e seu apelido também tem origem em uma característica física.
Preta? Não, fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados (...) seus primeiros anos vivera-os pelos cantos da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos.

O nome “inicia a existência religiosa e civil da criatura. O pagão é apenas uma perspectiva de direitos até que lhe imponham o nome”, afirma Luiz da Camara Cascudo. Sem nome, não há batismo, documentos, identidade social ou identidade individual. O que é imposto a Negrinha é um apelido que, dentro dos costumes de tratamento brasileiros poderia até ser considerado afetivo. Essa possibilidade desaparece algumas linhas depois:

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa (...) - não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam.

Seu corpo “era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo.”

O narrador entra nas casas pela cozinha, cômodo em que nos são apresentadas as meninas. Em seguida, descreve-as fisicamente. As primeiras informações que se lê sobre Negrinha e Narizinho lembram dados de Censo do IBGE: nome, filiação, idade, cor. Essas “fichas” das crianças servem para mostrar o lugar que ocupavam na sociedade brasileira. O fato de aparecerem pela primeira vez na cozinha, mostra o espaço que ocupavam dentro de casa, na família.

A cozinha era o lugar das mulheres. Narizinho sabe cozinhar, e isso funcionacomo mais um atributo, porque saber cozinhar bem era ato valorizado na educação das mulheres da época. Seu papel ativo na cozinha revela que ocupa um lugar importante dentro da família. Negrinha vive “pelos cantos”, como um “gato sem dono”. Seu papel passivo, dentro de um grupo duplamente passivo (criadas negras), num lugar consagrado ao sexo “frágil”, torna-a ainda mais “coisa”.

Portanto, Negrinha não tem nome - tem apelido; não tem família - tem dona, que não cuida dela; não tem cor definida - é mulatinha escura; não tem lugar dentro da cozinha, dentro da casa, dentro da sociedade. Não é à toa que parece “um gato sem dono” - sua condição é quase a mesma de um animal. “Aprendeu a andar, mas quase não andava”.

Apesar de todas essas diferenças, as duas garotas vão encontrar na companhia de bonecas as experiências que trasnformarão suas vidas.

Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma - na princezinha e na mendiga. E para ambas é a boneca o supremo enlevo.

Este trecho é de Negrinha. Duas sobrinhas de Dona Inácia vem passar férias na fazenda. Trazem, entre outros brinquedos, uma boneca.

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial. - É feita? ...- perguntou, extasiada.

As meninas deixam que ela se aproxime e ficam admiradas com seu assombro. “- Nunca viu boneca?” E Negrinha repete: “Boneca? Chama-se boneca?” As meninas, depois de rirem-se “de tanta ingenuidade”, perguntam o nome da companheira. “Negrinha”. Mais risos, e Dona Inácia, comovida, deixa que Negrinha vá para o jardim brincar com “a criancinha de cabelos amarelos...que falava “mamã”...que dormia...” e suas louras donas.

Acontece, então, o despertar da consciência da menina.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia que tinha uma alma. Divina eclosão! (...) Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa - e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi - e essa consciência a matou.

A imaginação de Negrinha, que só ousava acompanhar os movimentos de um relógio-cuco da patroa, liberta-se durante o ato de brincar. E irrompe de forma tão forte em seu “doloroso inferno” que, quando as meninas vão embora e a vida volta “ao normal”, Negrinha vai definhando e morre em sua esteirinha, rodeada de “bonecas, todas louras, de olhos azuis”. Sua humanidade, restaurada pela imaginação, só encontra liberdade na morte. Antes de tudo se esvair “em trevas”, a imaginação, na forma mais dolorosa de delírio, a rodeia de brancas bonecas e anjos de olhos azuis.

Narizinho vive sua primeira aventura na companhia da boneca Emília. As duas vão ao Reino das Águas Claras, convidadas pelo príncipe Escamado. A boneca é de pano, e foi feita por tia Nastácia “com olhos de retrós preto e sombrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa.” Emília toma uma pílula do Dr. Caramujo e começa a falar. A primeira coisa que diz não é o óbvio “mamã”, mas: “Estou com um horrível gosto de sapo na boca! E falou, falou, falou, mais de uma hora sem parar”.

Narizinho “viu que a fala de Emília não estava bem ajustada” e “viu também que era de gênio teimoso e asneirenta, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu”. Qualquer semelhança com Monteiro Lobato...

O ato de falar é fundamental nessas histórias. Negrinha não pode dizer asneiras, sob pena de ser torturada. Quando chama de “peste” uma criada que lhe roubara um pedaço de carne, é torturada por Dona Inácia, que põe um ovo quente em sua boca. Aliás, não pode falar nada. Talvez por isso seja tão fascinada pela “bocarra” do cuco e seu único passatempo, antes da boneca, seja vê-lo “cantar as horas”. A iniciativa da conversa cabe às sobrinhas de Dona Inácia. A boneca delas fala “mamã”.

Narizinho tem liberdade para falar com quem quiser, seja tia Nastácia ou um Príncipe Escamado. E Emília passa a participar ativamente da história a partir do momento em que começa a falar. Boa deixa para se fazer uma abordagem, agora, do conceito de infante - palavra que, na origem latina, significa “aquele que não fala”.

Quem fala sobre, para e pela infância são os adultos. Que, através dos séculos, têm esticado, espremido e torcido o conceito infância, de acordo com visões de mundo peculiares a cada época e a cada povo. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo”, afirma Philippe Ariès.

É só a partir do fortalecimento da burguesia como classe, com intenções políticas e ideológicas a firmar, que a categoria criança, como a conhecemos hoje, passa a designar um grupo específico, com necessidades específicas quanto à roupas, comida, educação, lazer. Mercados são criados para suprir essas necessidades familiares; é quando a literatura passa a ter seu ramo infantil. Não é para pessoas de uma determinada idade que são escritos livros infantis; mas para pessoas de uma determinada idade que fazem parte das classes média e alta, que vão à escola e que são cuidadas por gente que se preocupa com sua educação e pode comprar seus livros.

Portanto, os dados iniciais das duas narrativas são muito significativos. Ao mostrar como as meninas são fisicamente e qual a sua condição familiar e social, as narrativas permitem que se possa situá-las dentro de um contexto histórico. E a partir daí, analisar como as representações do que seja ou não uma criança podem mudar de acordo com vários fatores, todos externos.

No momento em que aparecem as bonecas, o foco narrativo das duas histórias passa a se concentrar no interior das meninas, em sua imaginação, ou “alma”, como escreve Lobato. E então elas se mostram iguais, com as mesmas potencialidades e desejos. Mas primeiro vamos olhar mais de perto estes fatores externos.

Negrinha é filha de escrava. Dona Inácia “nunca se afizera ao regime novo - essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia!” Qualquer coisinha, no caso, é “uma mucama assada no forno porque se engraçou dela o senhor”. O que são alguns espancamentos em uma pessoa que até pouco tempo atrás era considerada oficialmente mera mercadoria? Delso Renault, em seu livro Indústria, Escravidão e Sociedade: Uma pesquisa historiográfica do Rio de Janeiro no século XIX, apresenta vários anúncios de jornal que demonstram claramente a condição de “coisa” dos escravos negros. Um exemplo é o anúncio publicado no Jornal do Commercio em 29/01/1851:

Na rua do Ouvidor vendem uma negrinha muito bonita e elegante, muito própria para presente, sabendo coser bem e andar com crianças, a qual é muito carinhosa

Vende-se uma negrinha como se fosse uma boneca, para dá-la de presente e deixá-la andar com crianças. O leitor contemporâneo de Lobato, assim como o leitor de hoje, estão inseridos em um mundo ideologicamente diverso daquele em que viviam as crianças negras no século XIX. O horizonte de perpectivas do leitor atual abrange conceitos como o de “direitos da criança”, conceito este que serve, pelo menos em teoria, para todas as crianças. Diferente era o modo de pensar de alguém que fosse senhor de escravos - e esse modo de pensar não desapareceu com a abolição da escravatura, infelizmente.

Lobato situa a história de Negrinha em um tempo em que a escravidão havia sido abolida por lei - mas leis não têm força para abolir costumes culturais entranhados em pessoas que conheceram uma época em que a lei era outra. O mundo (ou o Brasil, a vida, o “certo”) para Dona Inácia ainda é aquele da escravidão. A ideologia da ex-senhora de escravos choca-se violentamente com a nova ideologia decretada no 13 de maio. Para o narrador Negrinha é uma criança, e é assim que ele a apresenta ao leitor - não é à toa que a palavra criança aparece 8 vezes no conto, sempre ligada à menina. Mais: ele mostra o interior da menina, diz que ela tem alma - portanto é gente.

É natural para Dona Inácia que Negrinha seja “boa para uns croques”, viva dentro de sua casa como um enfeite da sala e, a princípio, não possa brincar com suas sobrinhas. Negrinha é a boneca de Dona Inácia, que a conserva como “remédio para os frenesis” - daí as marcas de espancamentos no corpo da menina, como as marcas que as crianças deixam em alguns brinquedos. Boneca que não corresponde, porém, ao ideal físico imaginado para as bonecas da época. Razão pela qual, talvez, receba apenas os croques, e não carinhos.

O culto das bonecas louras e de olhos azuis entre as meninas da gente mais senhoril ou rica do Império deve ter concorrido para contaminar algumas delas de certo arianismo; para desenvolver no seu espírito a idealização das crianças que nascessem louras e crescessem parecidas às bonecas francesas; e também para tornar a francesa o tipo ideal de mulher bela e elegante aos olhos das moças em que depressa se transformavam nos trópicos aquelas meninas.

Este comentário de Gilberto Freyre reforça a idéia de que uma criança negra não era considerada uma criança na época de Negrinha. E mesmo para uma boneca, ela estava longe do ideal, e portanto dos cuidados, que “o culto” das meninas deveria proporcionar às bonecas loiras. Aliás, no final do século passado era famosa uma cantiga de roda com os seguintes versos:

Quem são estes anjos
Que estão me rodeando?
(...) Somos filhos de um Conde
e netas de um Visconde

Negrinha, ao morrer, vê-se rodeada de anjos e bonecas, todos louros. Como se queriam louras as crianças filhas da elite brasileira. Quem faz brinquedos, e os dá às crianças, são os adultos. Brinquedos são objetos nada ingênuos. Carregam informações sobre a ideologia de seus produtores e compradores. Quem dá o brinquedo à criança pela primeira vez são os adultos, que fazem representar no objeto o seu ideal de infância. Walter Benjamin comentou a respeito:

E mesmo que a criança conserve uma certa liberdade de aceitar ou rejeitar, muitos dos mais antigos brinquedos (...) de certo modo terão sido impostos à criança como objeto de culto, que somente graças à sua imaginação se transformam em brinquedos. É, portanto, um grande equívoco supor que as próprias necessidades infantis criem os brinquedos.

A boneca é um brinquedo cuja origem se confunde com a própria origem humana. Miniaturas de seres humanos têm sido usadas, há milênios, como objeto de culto, representações de deuses e demônios, anjos e musas. Quando produz o objeto boneca, o homem projeta e modela nele a imagem de ser humano ideal que traz dentro de si, de acordo com os horizontes históricos, sociais, religiosos e estéticos de sua cultura. A boneca representa, portanto, não uma criança, mas o ideal de criança ou de adulto de um determinado grupo social; é a projeção, em forma de roupas e aparência física, dos valores deste grupo.

Negrinha percebe que a boneca das meninas louras é “uma criança artificial”. Usando de um certo exagero, poderíamos fazer um exercício imaginário e enxergar a pequena escrava no momento em que contempla a boneca. Uma criança real, brasileira, pobre e sofrida contempla a forma que deveria ter para ser considerada criança pelos adultos que ditavam os valores ideológicos no país. Valores esses importados da Europa, juntamente com estilos literários, modelos de leis e vestidos.

Quando Monteiro Lobato entra em cena, o modelo europeu de um “projeto educativo e ideológico que via no texto infantil e na escola (e, principalmente, em ambos superpostos) aliados imprescindíveis para a formação de cidadãos” havia sido apropriado por vários escritores e educadores e adaptado à realidade brasileira. Com a industrialização, algumas crianças pobres puderam passar a frequentar escolas. A literatura infantil da época, no entanto, se pudesse ser traduzida em forma de brinquedo, seria muito mais parecida com a boneca loira do que com Emília. Basta lembrar o sucesso dos livros Le Tour de France par deux garçons (1877), de G. Bruno, e Cuore (1886), de Edmundo de Amicis. Em 1901, Afonso Celso publicaria Por que me ufano de meu país, proclamando em português o patriotismo tematizado pelos escritores europeus. Em 1930, quando Narizinho e Emília já eram sucesso, Cuore continuava best-seller no Brasil: é desse ano a 39ª edição da tradução brasileira do livro.

O subtítulo do primeiro livro de Lobato para crianças, Narizinho Arrebitado, é “segundo livro de leitura para uso das escolas primárias”. O autor visava, mais do que as crianças, os “escolares” 12. Dentro do Sítio do Picapau Amarelo, porém, ele encontrou espaço não só para um projeto estético ou pedagógico, mas para um projeto político que envolvia inúmeros setores da vida brasileira. Mostrou idéias sobre literatura, história, economia, política, religião... Idéias que nem sempre estavam de acordo com o que queria o tal projeto educativo brasileiro. Seus livros sofreram campanhas. Não era “recomendável” que a futura elite lesse, nas Memórias da Emília, que “a verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia”, entre outras “inconveniências”.

A maior inconveniência, porém, era a existência, ainda, de gente como Negrinha. Ela não tem nome porque é uma multidão. Quantas meninas brasileiras foram chamadas assim? Quantas foram analfabetas, maltratadas, tratadas como coisas? Quantas são assim? Negrinha é o símbolo de uma grande parte da população brasileira, criança e mulher, da época de Lobato e da nossa época. Negrinha é a criança real.

A boneca de olhos azuis também não tem nome. É o símbolo da criança ideal, modelo europeu. A fôrma dessa criança ideal, branca e virtuosa como um anjo, só existiu no mundo das idéias. Dela só era possível saírem bonecas e personagens, crianças artificiais, como percebeu Negrinha; não gente de verdade. As louras sobrinhas de Dona Inácia não são virtuosas; riem-se da miséria intelectual e material de Negrinha. Também elas não têm nome. Mas são crianças reais: brancas, ricas, filhas de uma elite dominante, que se espantam ao perceber a existência de crianças como Negrinha. Quantas meninas poderiam se encaixar nessa descrição?

Esse conto põe para brincar juntas crianças símbolos de duas classes sociais, separadas por um abismo econômico e ideológico, e unidas por um modelo de ser ideal, pretendido para “o país do futuro”. No começo deste século, a literatura para crianças no Brasil era importada, como a boneca loura. Traduzia-se o francês maman para mamã e as mamães compravam o produto. Ou emprestava-se a fôrma estrangeira para fabricar aqui mesmo as bonecas e histórias européias. Monteiro Lobato, quando escreveu esse conto, com certeza não pensou em tal comparação. Isso é trabalho para Viscondes de Sabugosa. Ele simplesmente criou Lúcia-Narizinho e Emília.

A família da menina tem um ramo europeu e outro africano, como a maioria das crianças reais brasileiras. A boneca nasceu de uma mistura de vários objetos: macela, pano de saia velha, retrós. Como a literatura infantil de Lobato, que costura juntos crianças e bichos mágicos, políticos e sabugos falantes, o Brasil e o mundo. Essa boneca não tem fôrma, é única. Por isso mesmo não
é um anjo. “O mau romance é aquele que visa a agradar, adulando, enquanto o bom é uma exigência e um ato de fé”. Aí está a força da literatura de Lobato e a raiz das polêmicas causadas por seus livros.

A boneca loira chegou às mãos de Negrinha por meio de uma mulher branca e rica - Dona Inácia. Emília chega às mãos de Narizinho por meio de uma mulher negra e pobre - Tia Nastácia. Esse fato singular, que passa quase despercebido no meio do imenso desfile de narrativas maravilhosas que compõe o universo do Sítio do Picapau Amarelo, é importantíssimo.

A boneca que iria virar mania infantil, símbolo da obra de Lobato e portanto símbolo da literatura infantil brasileira, foi feita por uma velha negra. Levando em conta o que foi dito acima a respeito dos valores ideológicos que uma boneca representa, e que o “público-alvo” de Lobato era formado por escolares, ou seja, pelas crianças de melhor condição social, é simples entender o que isto significa.

A criança não é nenhum Robinson, as crianças não constituem nenhuma comunidade separada, mas são partes do povo e da classe a que pertencem. Por isso, o brinquedo infantil não atesta a existência de uma vida autônoma e segregada, mas é um diálogo mudo, baseado em signos, entre a criança e o povo.

Enquanto os adultos conceituavam de diversas maneiras a infância, num mundo de idéias que o tempo foi modificando, e a representaram de acordo com esses diferentes conceitos, no mundo real gente continuava a nascer, crescer, aprender, amadurecer. Durante todo esse tempo, os brinquedos foram um elo entre adultos e crianças, a representação de um diálogo mudo.

Ao dar o dom da fala a Emília, Monteiro Lobato estava usando essa espécie de “transmissorde sinais” que é o brinquedo para mandar suas mensagens, sua visão de mundo, para as crianças. Da boca de pano fez sair uma resposta pessoal, singular, para a “ordem mundial” e brasileira de seu tempo. Sua verdade pessoal personificou-se em Emília, e por meio desse outro diálogo mudo que é a literatura, tornou-se uma verdade compartilhada por milhões de leitores.

A grande ironia é que, anos depois, quando o Sítio do Picapau Amarelo virou seriado na televisão, a boneca feia e ordinária virou brinquedo caro, ganhou olhos azuis e foi parar nas
mãos de crianças ricas. Mas isso já é outra história.

Fontes:
http://www.monografias.com
Imagens:
Negrinha = Cabeça de mulata, por Di Cavalcanti
Emília = Diário Catarinense

António Ramos Rosa (Antologia Poética)


POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

A PALAVRA

A palavra é uma estátua submersa,um leopardo
que estremece em escuros bosques,uma anémona
sobre uma cabeleira.Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua,mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada.Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos,os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.

UMA VOZ NA PEDRA

Não sei
se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

A NOITE CHEGA COM TODOS OS SEUS REBANHOS

Uma cidade amadurece nas vertentes do crepúsculo
Há um íman que nos atrai para o interior da montanha.
Os navios deslizam nos estuários do vento.
Alguma coisa ascende de uma região negra.
Alguém escreve sobre os espelhos da sombra.
A passageira da noite vacila como um ser silencioso.
O último pássaro calou-se.As estrelas acenderam-se.
As ondas adormeceram com as cores e as imagens.
As portas subterrâneas têm perfumes silvestres.
Que sedosa e fluida é a água desta noite!
Dir-se-ia que as pedras entendem os meus passos.
Alguém me habita como uma árvore ou um planeta.
Estou perto e estou longe no coração do mundo.

NASCIMENTO ÚLTIMO

Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono,germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite,lentamente,sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono,na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento,na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui,o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser,os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.

AMO O TEU TÚMIDO CANDOR DE ASTRO

a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva
Por ti eu sou a leve segurança de um peito
que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata
Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar
Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

António Ramos Rosa (1924)


Poeta e ensaísta português, natural de Faro. Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, Ramos Rosa tomou o rumo para Lisboa, depois de ter passado a juventude em Faro. Na capital, vivendo intensamente a vitória dos Aliados, trabalhou no comércio, actividade que logo abandonou para se dedicar à poesia.

Nos anos cinquenta, um dos diretores das revistas Árvore, Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia.
Colaborou ainda com textos de crítica literária na Seara Nova e na Colóquio Letras, entre outras publicações periódicas.

Como poeta, estreou-se na coletânea O Grito Claro (1958). Estava criado o movimento da moderna poesia portuguesa. Ramos Rosa era o poeta do presente absoluto, da «liberdade livre» e sobe todos os degraus da admiração europeia. Em Portugal é comparado com os grandes escritores nacionais. Urbano Tavares Rodrigues considerou-o como o empolgante poeta da coisas primordiais, da luz, da pedra e da água.

Em meados dos anos sessenta, Ramos Rosa radicou-se em Lisboa, onde publicou Viagem Através Duma Nebulosa (1960). Um dos mais fecundos poetas portugueses da contemporaneidade, a sua produção reflete uma evolução do subjetivismo, em relação à objetividade. Refletem-se nela variadas tendências, desde certas formas experimentais até a um neobarroquismo. A sua escrita, caracterizada por uma grande originalidade e riqueza de imagens táteis e visuais, testemunha muitas vezes uma fusão com a natureza, uma busca de unidade universal em que o humano participa e se integra no mundo, estabelecendo uma linha de continuidade entre si e os objetos materiais, numa afirmação de vida e sensualidade. Nos seus textos, está frequentemente presente uma reflexão sobre o próprio ato da escrita e a natureza da criação poética, a questão do dizível e do indizível.

Ramos Rosa, também tradutor, escreveu dezenas de volumes de poesia, entre os quais Voz Inicial (1960), Sobre o Rosto da Terra (1961), Terrear (1964), A Constituição do Corpo (1969), A Pedra Nua (1972), Ciclo do Cavalo (1975), Incêndio dos Aspectos (1980), Volante Verde (1986, Grande Prémio de Poesia Inasset), Acordes (1989, Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores), Clamores (1992), Dezassete Poemas (1992), Lâmpadas Com Alguns Insectos (1993), O Teu Rosto (1994), O Navio da Matéria (1994), Três (1995), As Armas Imprecisas (1992, Delta, Pela Primeira Vez (1996) e A Mesa do Vento (1997, primeiramente editado em França), Pátria Soberana e Nova Ficção (2000).

Entre os seus ensaios, contam-se Poesia, Liberdade Livre (1962), A Poesia Moderna e a Interrogação do Real (1979), Incisões Oblíquas (1987), A Parede Azul (1991) e As Palavras (2001).
Tem recebido numerosos prémios nacionais e estrangeiros, entre os quais o Prémio Pessoa, em 1988. É geralmente tido como um dos grandes poetas portugueses contemporâneos.

Para Ramos Rosa, escrever é, sempre, a necessidade de respirar as palavras e de às palavras fornecer o frémito do ser, os pulmões do sonho, e, com elas, criar a dádiva do poeta.

Em 2001, o poeta lançou Antologia Poética, com prefácio e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes

Fonte:
As Tormentas

Maria Estela Guedes (A. Ramos Rosa: Obra ao Verde)


Conferência proferida na homenagem a António Ramos Rosa na II Bienal de Poesia. Câmara Municipal de Silves, 22-24 de Abril de 2005, por Maria Estela Guedes

1. Os leitores face à obra

Nascido em Faro, em 1924, António Ramos Rosa é um dos mais acarinhados poetas portugueses contemporâneos, e com toda a justiça. Faz parte de uma constelação de grandes visionários da palavra que nos têm dado a nós, portugueses, e também a povos de outras línguas, alguns dos mais importantes exemplos da excelência e beleza da nossa lírica - Natália Correia, Mário Cesariny de Vasconcelos, Eugénio de Andrade, Herberto Helder, para citar alguns.

Foi em Faro que António Ramos Rosa publicou o primeiro livro de poemas, "O grito claro", em 1958. Aí foram editadas as revistas Árvore (1951-53), Cassiopeia (1955) e Cadernos do Meio-Dia (1958), que dirigiu, até as publicações terem sido interrompidas pela censura. Nessa fase importante, criou amizade e companheirismo com outro grande poeta, Casimiro de Brito, que ainda dura. É importante esta fase inicial porque António Ramos Rosa, com as revistas, estava a criar dispositivos de autonomia literária e independência do sistema. Uma revista que nos pertence é diferente daquela de cuja direcção e aceitação do nosso trabalho estamos dependentes. As revistas não duraram muito tempo, mas o facto de a censura ter aparecido em cena prova que a independência de espírito dos autores dava os seus frutos e que a sua presença se fazia sentir de várias maneiras, e não apenas no espaço literário.

A obra de António Ramos Rosa é muito vasta e variada, dentro e fora da literatura e do país. Dentro e fora da literatura, porque também se dedica às artes visuais, não só como ilustrador, mas expondo em galerias de arte. Dentro e fora de Portugal, porque está traduzido em vários países, sobretudo de língua francesa e castelhana.

Uma consulta rápida na Biblioteca Nacional permite verificar que António Ramos Rosa figura como autor em mais de duas centenas de títulos, e como título numas dezenas de registos de livro. Além de serem já muitos os volumes de poesia publicados, vários são duplos, como o mais recente, "Génese", que inaugura uma nova colecção de poesia, dirigida por Casimiro de Brito (1). Realmente são dois livros num único registo: "Génese seguido de Constelações", número um da colecção Sopro, na Roma Editora. Já não é viável aproveitar ocasiões como esta, em que homenageamos o autor, para apresentar um estudo que contemple ao menos parte significativa dos seus livros, porque são muitos.

Quanto a registos com o nome de António Ramos Rosa em título, trata-se naturalmente de livros sobre a sua obra: teses de mestrado, antologias, retratos de jornalistas e ensaios literários. Entre os ensaios, saliento "António Ramos Rosa ou o diálogo com o universo", de João Rui de Sousa (2), e "Mediação crítica e criação poética em António Ramos Rosa", de Ana Paula Coutinho Mendes (3). Esta autora também assina a "Antologia portátil de António Ramos Rosa", que abrange textos desde o primeiro livro, "O grito claro", de 1958, até "Choque e pavor", de 2003 (4). Já que falo de antologias, é preciso lembrar Casimiro de Brito, íntimo leitor do poeta, seu amigo de muitos anos, que assinou um livro de ensaios poéticos sobre a sua obra, "Vagabundagem na poesia de António Ramos Rosa seguido de uma Antologia (5).

O reconhecimento dos leitores pela obra do poeta manifesta-se, além das entrevistas e do muito ensaísmo sobre os seus livros, dado à estampa em jornais e revistas, e agora também na Internet, nos mais importantes prémios que em Portugal se atribuem aos intelectuais. Entre outros, António Ramos Rosa já recebeu o Prémio Pessoa, o do Pen Clube, e o Grande Prémio de Poesia. O Grande Prémio de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, foi-lhe atribuído em 1988 ou em 1989, pertencia eu então aos corpos directivos. Fiz parte do júri que o elegeu. E como o discurso se tornou agora tão pessoal, informo a audiência, e em especial António Ramos Rosa, que entre os sítios no ciberespaço onde se editam poemas seus e ensaios sobre a sua obra, se conta o TriploV (http://triplov.com), que dirijo. António Ramos Rosa tem a sua webpage no TriploV, construída com a colaboração dos poetas Rui Mendes e António Cardoso Pinto.

Homenagens também já várias foram prestadas a António Ramos Rosa, esta que hoje lhe fazemos na II Bienal de Poesia não é a primeira nem será a última. Como estamos no Algarve, recordo a que lhe fez Faro, sua terra natal, em 1999, com um festival de poesia de que resultou a obra colectiva "Encontros de Outono"(6).

Passemos agora ao que tem motivado o reconhecimento do público, a obra de António Ramos Rosa. Entre os cerca de duzentos títulos em que o seu nome figura como autor, a maior parte são os livros de poesia. Mas o poeta é também tradutor, ensaísta, crítico de literatura e de artes visuais, por isso recordo os seus ensaios: "A Poesia moderna e a interrogação do real" (7), "Poesia, liberdade livre" (8), "Incisões oblíquas" (9) e "A parede azul: estudos sobre poesia e artes plásticas" (10).

Para terminar esta nota introdutória, refiram-se as muitas traduções que desde sempre Ramos Rosa tem assinado, invariavelmente de autores muito marcantes da literatura mundial: Paul Éluard, Marguerite Yourcenar, Michel Foucault, André Gide, Brecht, Teilhard de Chardin, Albert Camus e tantos outros.

2. Liberdade de ser

António Ramos Rosa, como outros poetas que começaram a publicar antes do 25 de Abril, manifesta na sua poesia linhas temáticas que, apesar do regime de censura, são politicamente muito claras. Esses temas dizem respeito, como não podia deixar de ser, e tendo ele a experiência da tesoura, à falta de liberdade, e por isso à prisão da vida mesquinha de todos os funcionários cansados, sob a ditadura de Salazar. É ao desejo de liberdade que se aspira quando nos poemas aparecem gaiolas, prisões e pássaros, como acontece precisamente no conhecido Poema dum funcionário cansado, que remata com "palavras soterradas na prisão" da vida (11). Essa reclamação aparece com grande veemência no redundante título da colectânea de ensaios, "Poesia, liberdade livre".

Parece que no meio das muitas correspondências poéticas, a poesia é o mesmo que liberdade. Mas se a liberdade da poesia é uma liberdade livre, quer dizer que fora dela o não é. Admitindo-se assim que há uma liberdade que não é livre, verificamos que entre os termos "liberdade" e "livre" não existe total correspondência. Ou então só existe na poesia.

A falta de liberdade não se limita à prisão do corpo, e por isso o poeta não a perde como linha de força em mudanças de regime político, nem nos confins dos primeiros poemas. É um tema permanente, ontológico, ele atravessa toda a obra, unindo linguagem e ser numa só natureza ou estado de correspondência. Declara António Ramos Rosa, numa entrevista: "A minha poesia é cognitiva e metapoética. Se a metafísica é uma forma de conhecimento do universo, das coisas, da linguagem, então sim, tenho essa inquietação. Os meus textos não se reduzem a um âmbito circunstancial. Mas quando escrevo um poema, o tema que se me impõe imediatamente é o da palavra, da linguagem. Desde sempre." (12).

A liberdade que o poeta reclama para a palavra ultrapassa a liberdade de expressão, porque o ser e a palavra não se distinguem na sua perspectiva ontológica: o poeta escreve sol (13) da mesma maneira que as árvores falam, isto é, o poeta cria mundo com as palavras. Dos diversos mundos ou diversas categorias de realidade, entre elas a criada pela linguagem, ocupou-se Karl Popper. Há de facto uma dimensão cognitiva na poesia de António Ramos Rosa, que decorre da perspectiva filosófica com que vê a comunicação, e não só humana, pois também admite os códigos da Natureza.

Porque a Natureza fala, o poeta escreve: "Conheço as palavras das árvores" (14). O homem é um ser de linguagem, todo o seu afecto, saber e história residem nela. Por isso, ao interrogar a palavra, é o mundo e a vida que questiona. E também por isso a liberdade reclamada para a palavra é a liberdade de ser, e não apenas a de ser proferida ou impressa. Porque o universo é sentido como linguagem, a poesia tem nele um referente e um interlocutor, e ao poeta, o primeiro tema que se lhe impõe é o da palavra. É assim que se estabelece, entre a Natureza e a palavra, e entre a linguagem e o homem, a maior de todas as correspondências.

Mas deixemos a porta aberta, neste domínio das correspondências, em que verde é a letra "u", como escreve Rimbaud, a transmutações mais fáceis do que as alquímicas: quando num poema falamos desse assunto, nós, que escrevemos em português, temos também em mente e no plano de significação imediata dos termos, a correspondência amorosa, o estabelecimento de elos afectivos entre leitor e autor. O poeta assinou um pacto consigo mesmo e com o público, tem um compromisso ao qual sente que deve responder. E a liberdade faz parte dessa relação de intersubjectividade, em que de um lado existe uma expectativa e do outro o desejo de correspondência. Eis o que lemos em "Génese" (1), o mais recente livro de António Ramos Rosa, no qual não havia razão para estar presente o tema da liberdade, se essa liberdade fosse apenas aquela que nos garante a democracia:

Escrever é procurar corresponder
Ainda que não se saiba a quê ou se esse quê existe
A nossa liberdade nasce de uma incerteza radical
E a sua metamorfose é a invenção de um espaço
De correspondências que visam uma esfera inviolável

Vivemos num mundo prático, utilitário, economicista. O nosso cérebro, mesmo poeta, só se satisfaz com argumentos contabilizáveis. Por isso, ainda o poeta vivia no Algarve, fez contas à vida, interrogou-se sobre o sentido da sua e do que escrevia. Olhando para o resultado das contas, tomou a decisão que lhe pareceu mais justa. Sabemos qual foi a opção de António Ramos Rosa: a liberdade do franciscanismo poético. Não uso sem critério a imagem de S. Francisco: na Natureza dos poemas não faltam pássaros com os quais o poeta comunica. E apesar de não transparecer na obra nenhum tema católico, a verdade é que esvoaçam anjos nela. Por muito que sejam Anjos de terra (15), e o poeta esclareça que os anjos que conhece são de erva e de silêncio (16), anjos são anjos, e vivem na cor da esperança.

Sem emprego, sem cargos públicos, a vida, dedicada apenas à arte, só podia oferecer-lhe dificuldades materiais. No entanto, essa marginalidade franciscana não impediu Ramos Rosa de ter voz activa nas convulsões políticas e sociais em geral, e em particular nas anteriores à revolução portuguesa do 25 de Abril. Pertenceu ao MUD juvenil, embora nunca tivesse militado em nenhum partido político. Por ter ido receber Maria Lamas a Portimão, com outros intelectuais, foi preso pela PIDE, a Polícia política de então (17).

Entende-se assim que o desprendimento por empregos ou cargos públicos, e mesmo a recusa em receber um prémio do SNI, correspondeu à rejeição de um sistema político anti-democrático. Se S. Francisco falava às aves e Santo António aos peixes, é porque com os homens não era possível o diálogo.

Insisto porém em que o tema da liberdade, embora vinculado a estas experiências de vida, não está preso a elas - é mais amplo e mais profundo. Eduardo Pitta considera os ensaios "emblemáticos de uma obra centrada na noção de liberdade" (18). Essa centralidade constitui uma rede que põe todos os poemas em comunicação, não apenas próprios como alheios. Tal como a linguagem, também a liberdade é interpelada quanto ao que de facto é e quanto aos seus limites. No seu último livro, "Constelações", a liberdade é condicional, depende do desaparecimento do sujeito na brancura, isto é, da anulação do ser na inexistência de cor:

Talvez a condição da liberdade seja esta abolição no branco
Que tornará possível a nudez de um começo o esplendor do novo (19)

A liberdade, em Ramos Rosa, é a possibilidade de sermos o que queremos ser. Resultado da soma de querer e poder, a liberdade é tão difícil de alcançar que se projecta no plano da utopia. Nos versos que acabei de citar, a abolição no branco não é absoluta: ela abre a porta à renovação, e por conseguinte ao esplendor cromático da vegetação. Esta brancura é o lugar de onde fala o sujeito poético, o vazio de sentido e de valores que José Augusto Mourão, em ensaio sobre Ramos Rosa publicado agora pela primeira vez, no TriploV, diz ser insuportável ao pensamento ocidental (20). A nossa natureza tem horror ao vazio, por isso lança sementes em todos os buracos.

Se não podemos dizer que António Ramos Rosa seja um poeta católico, apesar dos seus anjos, também não poderemos dizer que seja um poeta hermético. Mas que há na sua poesia uma obra ao verde, bem primaveril, lá isso, há, como vamos ver.

3. As palavras são cores

A poesia de António Ramos Rosa deambula entre conceptualismo e pintura. Certos poemas são muito impressionistas no colorido, e já sabemos que o poeta também é artista visual e também faz crítica de pintura. Não admira assim que nos surja uma criação poética estimulada pela percepção da luz e das cores. Por vezes, à semelhança da pintura moderna, mais voltada para o efeito plástico dos materiais do que para o que possam representar, as palavras são cores, pincelando a página de verde, azul, branco, negro e amarelo, que simultaneamente produzem música:

A praia era de guitarras destruídas,
voos negros rosados sobre azul,
e sobre o branco multiplicado do céu cantava
o azul,
cantava o branco sol e azul
e os fragmentos de guitarra verdes vermelhos
negros
cantavam mar azul, praia vermelha,
voos de andorinha negros . (21)

Nos poemas pictóricos, sobretudo nos que surtem efeito figurativo, percebemos corpos e objectos em movimento num discurso que se apresenta como paisagem. Nem todos os elementos da paisagem são naturais, concretos como os pontos de referência do conhecido que guardamos na memória. Mas eles tornam-se elementos naturais pelo facto de terem certas cores. A cor é algo próprio da matéria, ou é algo que a luz faz reagir na matéria. Em António Ramos Rosa, as cores dominantes são o branco e o verde. Na brancura há sinal negativo, é quase sempre uma falta que o poeta precisa de cumular com a palavra, pois a falta está associada à página antes do Génesis, a génese da escrita, como o último título do poeta deixa claro: "Génese" tem por tema o nascimento do poema, ser orgânico, animal, como Aristóteles o definiu, por isso expresso pelo léxico normal do parto. O poema é um elemento da Natureza, como uma árvore. Daí que fale dele como gerado num "útero verde" (22).

No extremo oposto da brancura, signo da falta e do vazio, não está o negro. O negro, tal como o branco, é sinal de ausência de luz, e a luz não é só um elemento natural, próprio da physis, ela é também um elemento psíquico e cognitivo: a treva mete medo porque não sabemos o que se esconde nela, ao passo que a luz acalma ao iluminar objectos de serenidade. A luz torna visíveis as coisas, por isso as ficamos a conhecer pelo olhar e pela inteligência.

A equilibrar a balança, pesada de carga negativa com a brancura, fica, em Ramos Rosa, uma cor positiva, eufórica, cheia de esperança - o verde, evidentemente. Basta notar que quase sempre o verde surge em situação de redundância, para nos apercebermos do seu valor genesíaco, o valor de "útero verde".

Na poesia rosiana, as coisas mexem, os elementos são dotados de som, forma, cor e velocidade. Alguns reiteram-se, como ícones que conhecemos noutros autores e noutras pinturas, caso da mulher que irrompe venusinamente do seio das águas. Os textos conceptuais tendem para a filosofia, esboçando ideias e temas. Além da liberdade, do amor, do erotismo, da questa de felicidade, da génese, etc., aponte-se ainda a adolescência como estado privilegiado da poesia. Neste último livro, "Génese seguido de Constelações", a adolescência associa-se naturalmente à fertilidade, ela é um estado de alma propício para a criação poética:

Como o abdómen de uma adolescente
a página suscita a fértil fragilidade
de uma caligrafia que se apaga sobre os sulcos de neve (23)

Ramos Rosa é um poeta nervoso e inquieto, por isso certamente não encontraremos poemas puros, nem fóticos nem reflexivos, antes híbridos. A sua lírica acusa variações e mudanças bruscas de ritmo, não só ao longo dos anos como ao longo dos poemas de um mesmo livro, e até num só poema. Para usar um modelo de análise fornecido por Fontanille, numa obra que trata da semiótica da luz (24), e que propõe três estesias na obra de cultura, a estesia reflexiva, a estesia transitiva e a estesia recíproca, podemos considerar que a estesia reflexiva, em Ramos Rosa, diz respeito aos poemas centrados na relação do sujeito consigo mesmo; a estesia transitiva, que é a relação entre o sujeito e o mundo, tem um exemplo transparente em frases como "escrevo árvores", "escrevo casas", em que a transitividade do verbo se desloca dos seus objectos próprios para algo que pertence de resto à estesia reflexiva, por ser a concepção da linguagem como organismo, logo como criadora do mundo: o poeta não escreve poemas sobre a natureza, as palavras são as cores, as casas, por isso a linguagem cria a Natureza. E finalmente, ensina Jacques Fontanille, há a estesia recíproca, uma dimensão na arte que cria relações de intersubjectividade. A intersubjectividade, em Ramos Rosa, passa, como já referi, pelo desejo de correspondência, de responder ao pacto amoroso com o leitor; às vezes, mais explicitamente, com a leitora.

O movimento entre o reflexivo, o inventivo e o amoroso pode relacionar-se com posicionamentos paradigmáticos, próprios de opções de escola ou de movimento. É admissível que o poeta recuse a transparência, se lhe parece colada a uma estética fora de moda, mas Ramos Rosa alcançou uma posição em que essas questões se tornam insignificantes e os conceitos a que se ligam não passam de preconceitos. Eu diria que as variações se devem ao desejo de obscuridade, pois há na poesia um lado de enigma e mistério que convoca a vontade de conhecimento, e também a deslizamentos do humor. Em geral a revelação e o irrevelável andam de mãos dadas, acontece um poema começar com uma ideia claramente expressa, que depois se enigmatiza e transmuta em pintura muito colorida, passando-se assim de um estilo a outro completamente diverso. Vejamos um poema para exemplo, de que cito os dois primeiros e os dois últimos versos. Entre eles, estabelece-se uma polifonia de pinceladas que impedem o que, a desenvolver-se segundo as expectativas criadas nos versos iniciais, daria qualquer coisa como um ensaio, e um ensaio certamente sobre a transparência de cristal das palavras:

Talvez a simplicidade nunca seja atingida
Porque a nudez está entre a ficção e o real
[.]
Que ele reúna a chama e o grito numa lâmpada
De cristal e uma sombra se mova como uma lâmpada na lâmpada . (25)

4. A obra ao verde

Para entrarmos de chofre no tema da obra ao verde, dou como exemplo o "Telegrama sem classificação especial" (26), em que aparece um sujeito de enunciação plural, o nós, todos os que partilhavam com o poeta as mesmas contrariedades. Vejamos os primeiros versos:

Estamos nus e gramamos.
Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um poeta lírico,
que se nasceu
é certo que não cantou .

Gramamos, temos de gramar, nada de mais disfórico do que as emoções contidas na palavra, no sentido habitual do termo "gramar", calão, ou langue verte, como diriam os franceses. "Gramar" é vocábulo da língua verde , o calão dos adivinhos, e neste poema é verde de forma redundante, pois que o termo "grama" também indica a relva, e além destas duas verduras ainda temos terceira, a do pássaro que canta. Ora como se chama a língua dos pássaros, além de se chamar linguagem das aves, como sabem todos os que leram Fulcanelli e outros alquimistas? Língua diplomática, diva garrafa, argótica, língua das gralhas, etc.. A língua verde é a dos alquimistas e de escritores como Rabelais, Rimbaud ou André Breton. É a língua falada pelos deuses, pelos anjos, pelos elementos da Natureza, aquela que recorre aos símbolos, aos anagramas, aos códigos destinados a iludir os inquisidores, os polícias e os curiosos que não fazem parte das confrarias do segredo.

Nada de mais afastado de Ramos Rosa, um poeta do concreto e do material, sem tendências esotéricas, crípticas nem religiosas, não é verdade? Mas não é ele quem diz que o poeta não escreve o poema, o poema é que cria o poeta? Pois então, aí está: seja o que for que o poema escreva, fá-lo com a língua verde, a falada pelo rumorejar do vento no arvoredo.

A verdura pode ter valor satírico, como aliás tem neste poema em que gramamos, ou podem ser subversivas as nossas verduras, aliás em certas circunstâncias de esoterismo, pode o verde ser maléfico, mas está sempre do lado oposto do suicídio invocado no poema que citei, "Telegrama sem classificação especial". Em António Ramos Rosa, a obra ao verde é a alquimia da esperança, o verde é metonímia da floresta, da vegetação, de toda a Natureza. É nesse espaço vegetal que o poeta se renova, renasce alquimicamente, como ele escreve, nesse livro intitulado à medida do movimento cíclico, que propicia o renovo primaveril, "Volante verde":

É uma corrente de ar brilhante, é um lugar que emerge
De obscuras veias. Que leveza no vento! Estou no meio do espaço.
Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.
Sou renovado pelo espaço, nasço num espaço verde.
O que eu amo está perto entre a terra e o ar . (27)

Na obra ao verde, a liberdade de ser o que se quer ser passa por um renascimento idêntico ao das plantas, em que a língua verde (28) cria a própria liberdade. Para que a liberdade exista, é preciso que o poeta a escreva, tal como lemos em "Constelações": "Escrevo para que a liberdade respire com os seus veios de nada" (29). Para a escrever, precisa da língua verde, a linguagem divina, falada pelas aves e pelas árvores. A respeito da capacidade transmutatória da palavra e das sílabas, escreve Ramos Rosa, mais alquimista do que o próprio Hermes Trismegisto:

A sua inteligência porosa está na sua língua verde
que não procura os frutos mas a fábula que os transforma
num sabor obscuramente lúcido
que tem a frescura obscura da noite constelada
e a leve densidade de um silêncio de adorável surpresa
que pulsa como uma pálpebra na virgindade da página (28)

Esta aparição do hermetismo na forma da língua verde, a diva garrafa de Rabelais, poder inebriante que inspira e obriga a dizer a verdade, no caso dos ritos dionisíacos, não é de agora. Já em 1977, em "Boca incompleta", o poeta se referia à "língua áspera e verde", e ao seu oposto, o "silêncio verde" (30). Se a boca está incompleta, poderá ser por falta da língua como órgão, mas não por falta da linguagem verde.

Parece banal esta ideia de associar o verde à vegetação, mas nem por isso. Só numa primeira análise é verista pintar folhas de verde, quando, de modo geral, as cores estão desvinculadas do objecto a que em princípio pertencem, na realidade. E é útil anotar que a folha, em Ramos Rosa, tanto é folha de papel como de planta, na maior parte dos casos não há hipótese de seleccionar o valor. Verdade se diga também que a Física nega que os elementos da physis tenham cor, o que os não-daltónicos vêem como vermelho ou violeta não passa de vibrações de corpúsculos sob as ondas luminosas. Para o provar, dizem os físicos, basta apagar a luz. Não discuto, aponto apenas que em Ramos Rosa o colorido das paisagens não visa concordar com as ciências naturais, à excepção talvez do verde.

Talvez. Repare-se que o verde parece tão verista na pintura e metonímia da folhagem que é frequente anteceder elementos vegetais como a erva, a relva, as folhas. Quase sempre isto acontece, por isso faço uma única citação:

Tudo é calado alento,
Tudo é sombra verde
De um pensar sobre o sono
Das relvas espalhadas . (31)

A sombra é verde, escreve o poeta. Isto é espantoso, porque a sombra é a ausência de luz e por isso de cor. Neste poema o verde é propriedade da sombra e não das relvas, palavra de que está algo afastado. Sendo propriedade do obscuro, o verde remete para a magia, em que é considerada a mais misteriosa cor da paleta. Seria caso para voltarmos aos anjos verdes, em especial ao anjo portador da esmeralda na qual se talhou um famoso vaso, mas António Ramos Rosa, a despeito de toda esta obra ao verde, não é um poeta hermético.

E no entanto estamos mergulhados em plena obra alquímica, a que que visa a transmutação do chumbo em Leão verde, o ouro dos filósofos. É a própria cor, o verde, que tem dons transmutatórios. Tudo aquilo em que cai pincelada verde muda de natureza. E assim a Natureza tem "geometria verde", as mulheres são verdes ou de musgo, os anjos são de erva e de silêncio, os animais transformam-se em vegetais numa frase como "Alto caule de cavalo aceso", o poema tem "lábio verde" e "verde chifre", e o poeta lamenta: "A saudade torna-me verde".

Vamos ficar por aqui, nada existe que não possa ser verde na poesia rosiana. Não há que ter medo das palavras nem dos sentimentos: quando o poeta diz que a saudade o faz verde, quer dizer que a poesia é uma barragem contra a morte. Face a esta encantada Primavera da esperança, só temos de ficar contentes.

5. Referências

(1) Escrever é procurar corresponder. Em "Génese seguido de Constelações". Lisboa, Roma Editora, 2005.
(2) João Rui de Sousa, "António Ramos Rosa ou o diálogo com o universo". Leiria, Diferença, 1999.
(3) Ana Paula Coutinho Mendes, "Mediação crítica e criação poética em António Ramos Rosa ". Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2003.
(4) Ana Paula Coutinho Mendes, "O poeta na rua, Antologia portátil de António Ramos Rosa". Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2004.
(5) Casimiro de Brito, "Vagabundagem na poesia de António Ramos Rosa seguido de uma Antologia". Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2001.
(6) Augusto Miranda (ed.), "Encontros de Outono - 1999, Homenagem da cidade de Faro a António Ramos Rosa". Câmara Municipal de Faro, 1999.
(7) "A poesia moderna e a Interrogação do Real". Lisboa, Arcádia, 2 vols, 1979-1980.
(8) "Poesia, liberdade livre". Lisboa, Ulmeiro, 1986.
(9) "Incisões oblíquas: estudos sobre poesia portuguesa contemporânea". Lisboa, Editorial Caminho, 1987.
(10) "A parede azul: estudos sobre poesia e artes plásticas". Lisboa, Editorial Caminho, 1991.
(11) Poema dum funcionário cansado . In: "O grito claro", 1958.
(12) António Ramos Rosa - Só a poesia . Entrevista de Ana Marques Gastão no Diário de Notícias, 4 de Julho de 1998.
(13) Estou vivo e escrevo sol . Em "Animal Olhar", Lisboa, Plátano, 1966.
(14) Os prestígios simples . Em "Volante Verde", 1986.
(15) Anjos de terra . Em "O não e o sim", 1990.
(16) Os anjos que conheço são de erva e de silêncio . Em "Ciclo do cavalo", 1975.
(17) Maria Leonor Nunes, António Ramos Rosa , V ida de palavras . Jornal de Letras, 4 de Abril de 2001.
(18) Eduardo Pitta, " Constelação Terrestre". Diário de Notícias, Outubro de 1998.
(19) Eis a cal da página sem constelações. Em "Génese seguido de Constelações", 2005.
(20) José Augusto Mourão, Em torno de um texto teórico de Ramos Rosa. Em linha em http://triplov.com/poesia/ramos_rosa/jam/index.htm
(21) Göetz . Em "Animal Olhar", 1975.
(22) Se a vida como um rio tivesse duas margens . Em "Génese seguido de Constelações", 2005.
(23) Há palavras que esperam que o branco as desnude . Em "Génese seguido de Constelações", 2005.
(24) Jacques Fontanille, «Sémiotique du visible - Des mondes de lumière». PUF, Paris, 1995.
(25) Talvez a simplicidade nunca seja atingida. Em "Génese seguido de Constelações", 2005.
(26) Telegrama sem classificação especial . Em «Viagem através duma nebulosa", 1960.
(27) O obscuro . Em "Volante Verde", Lisboa, Mooraes Editores, 1986.
(28) Esta leve obstinação de um cálido tremor . Em "Génese", 2005.
(29) Escrevo para que a liberdade respire . Em "Génese", 2005.
(30) As palavras no centro vazio. Em "Boca incompleta", 1977.
(31) Transcrição da terra . Em "Animal olhar", 1975.
(32) É assim que vem o fogo como troncos de uma grande pedra. Em "Génese seguido de Constelações", 2005.


Fonte:
http://www.monografias.com

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) IV – O céu de noite


Estava um céu lindo, transparente como cristal. O assanhamento do brilho das estrelas parecia os olhos dos meninos quando viam a bandeja de doces que o Coronel Teodorico mandava no dia dos anos de Dona Benta. Antes de levantarem a toalha da bandeja, os olhos de todos ali no sítio ficavam como as estrelas daquela noite.

Dona Benta tomou fôlego e falou, apontando para o céu: — Olhem lá aquelas quatro formando uma cruz! É a constelação do Cruzeiro do Sul. Constelação quer dizer um grupo de estrelas. Esta constelação do Cruzeiro é a de maior importância para os povos que vivem do equador para o sul, como nós. Tem a mesma importância da célebre constelação da Ursa Maior para os povos que vivem ao norte do equador, como os europeus e norte-americanos. O Cruzeiro do Sul é o nosso relógio noturno. No dia 15 de maio de cada ano essa constelação fica bem a prumo sobre as nossas cabeças, como o sol ao meio-dia, e então sabemos que são exatamente nove horas da noite.

— Que engraçado! — exclamou Pedrinho. — Estamos em fins de abril. Logo chegaremos ao 15 de maio — e eu vou acertar o nosso relógio da sala de jantar pelo Cruzeiro do Sul. Que beleza, hein, vovó?

— Sim, meu filho. Saber é realmente uma beleza. Uma isquinha de ciência que você aprendeu e já ficou tão contente. Imagine quando virar um verdadeiro astrônomo, como o Flammarion!

— Aí, então, ele fica com cara de bobo, a rir o dia inteiro, só de gosto da ciência que tem lá por dentro — disse Emília.

Dona Benta achou graça e continuou a falar do Cruzeiro.

— As quatro estrelas do Cruzeiro — disse ela — são designadas por meio de letras gregas. Gama é a estrela do topo da cruz; alfa é a do pé da cruz; beta e delta formam os braços.

— Mas por que essas estrelas são tão importantes? — quis saber Pedrinho.

— Por causa da disposição regular em forma de cruz, disposição que as torna de fácil encontro no céu. Num instante a gente corre os olhos e encontra o Cruzeiro. Encontrar as outras constelações já é mais difícil — exige prática; mas o Cruzeiro até a boba da Tia Nastácia descobre no céu. Não há por aqui caboclo da roça, nem há negro da África, nem atorrante da Argentina, nem gaúcho do Uruguai, nem índio de todas as repúblicas da América do Sul, nem selvagem australiano, nem negro do Congo, Moçambique ou Hotentótia, nem bôer da Colônia do Cabo, nem papua da Nova Guiné, que não conheça o Cruzeiro.

— Então Robinson Crusoe também via o Cruzeiro, vovó! — lembrou Pedrinho. — A ilha dele era a de Juan Fernández, que fica ao sul do equador, perto das costas do Chile.

— Exatamente, meu filho. Quantas vezes Robinson e o seu bom índio Sexta-Feira não estiveram, como nós agora, a olhar para as quatro estrelas do Cruzeiro!...

— Estou vendo-as — disse Narizinho. — Duas estrelas maiores e duas menores... — Sim, as maiores são a alfa e a gama e são também das mais brilhantes dos céus do sul.

— E qual é a mais brilhante de todas, vovó?

— Aqui nos céus do sul é uma da constelação do Centauro, que fica logo ao lado do Cruzeiro.

— Qual é ela? — perguntou Pedrinho.

Dona Benta riscou o céu com o dedo, dizendo:

— Se você tirar uma linha que toque na delta e na beta do Cruzeiro e a prolongar nesta direção (e o dedo de Dona Benta ia riscando), essa linha vai encontrar duas estrelas da constelação do Centauro, justamente a alfa e a beta do Centauro — e pronto! Você terá achado a constelação do Centauro, que é das maiores dos céus do sul. E nessa constelação a estrela alfa é uma das mais conhecidas de todas. É a terceira em brilho de todo o céu e uma das mais próximas de nós.

— E aquela mancha negra que estou vendo lá? — perguntou a menina, apontando.

— Pois aquilo é o célebre Saco de Carvão da Via-láctea. Repare na beleza da Via-láctea, que fica atrás do Cruzeiro. Em certo ponto escurece. Isso quer dizer que naquele ponto há uma nebulosa escura que tapa as estrelas — e por isso recebeu o nome de Saco de Carvão.

Pedrinho não tirava os olhos das estrelas da constelação do Centauro.

— Por que, vovó, deram o nome de Centauro àquelas estrelas? Que relação há entre elas e os monstros meio cavalos e meio homens da mitologia grega?

Dona Benta assoprou.

— Ah, meu filho, os astrônomos, que são homens de muita imaginação, acharam que uma linha ligando todas as estrelas desse grupo lembra a forma dum Centauro.

— Mas lembra realmente?

— Olhe e decida por si mesmo — e Dona Benta indicou as principais estrelas da constelação do Centauro. Pedrinho ligou-as com uma linha imaginária e não viu formar-se centauro nenhum.

— Estou vendo, vovó, que os astrônomos possuem ainda mais imaginação do que a Emília...

— E assim são as linhas que você tirar de todas as outras constelações — continuou Dona Benta. — Umas dão uma vaga idéia de qualquer coisa; outras, só com muita força de imaginação lembram as coisas indicadas pelo nome. Temos ali (e o seu dedo apontava) a constelação do Pavão. E temos aquela ali que é a do Tucano... Ah, meus filhos, não há nada mais poético do que a astronomia, ou ciência dos astros! Está aí uma aventura que vocês podem realizar um dia: um passeio pelas constelações!... Que lindo! Podiam começar pela estrela Polar, que nós não vemos daqui, mas que para as criaturas humanas é a mais importante.

— Por que, vovó?

— Porque foi a bússola das mais antigas civilizações. Os egípcios, os babilônios, os chineses, os hindus, todos os velhos povos ao norte do equador, guiavam-se por essa estrela, que está sempre visível e marca o pólo. Fica bem em cima do pólo norte. E perto dela ficam duas constelações muito célebres, a Ursa Menor e a Ursa Maior.

— Por que têm esses nomes? — quis saber Narizinho.

— Porque os mais antigos astrônomos lhes deram esses nomes. Não podiam dar o nome de Tucano ou qualquer bicho das zonas quentes, próximas do equador. Deram-lhes o nome do animal que gosta de viver nos gelos — o urso polar. Por essa estrela se guiavam os navegantes do norte, no tempo em que não havia a bússola. Depois da bússola os navegantes dispensaram as estrelas — a agulhinha da bússola está sempre voltada para o norte.

— E as outras constelações?

— Ah, meu filho, há tantas... E inúmeras designadas por meio de nomes de animais, como as do Escorpião, do Leão, do Cavalo, do Carneiro, dos Peixes, do Cisne, da Lebre, da Hidra, do Corvo, do Peixe-Voador, da Abelha, da Ave-do-Paraíso, da Girafa, da Raposa, do Lagarto, da Rena, do Gato...

— E a tal Cabeleira de Berenice, que a senhora falou tanto outro dia? — quis saber Pedrinho.

— Ah, essa constelação tem um nome muito romântico. Trata-se duma história meio compridinha...

— Conte, conte — pediram todos — e Dona Benta contou a história dos cabelos da Princesa Berenice, esposa de Ptolomeu Evergete, rei do Egito.

— Este Ptolomeu — disse ela — havia partido à frente duma expedição guerreira contra a Síria; e, tomada de medo, Berenice fez à deusa Vênus a promessa de cortar a sua linda cabeleira e depositá-la no templo da deusa, caso Evergete voltasse vivo e vitorioso. Ora, o rei voltou vivo e vitorioso e a rainha cumpriu o voto: cortou os cabelos e depositou-os no templo da deusa. Mas aconteceu uma coisa inesperada: no dia seguinte a cabeleira havia desaparecido do templo!... E vai então, um astrônomo da ilha de Samos, que acabava de descobrir no céu uma nova constelação, mandou dizer ao rei que a cabeleira de Berenice estava lá: eram as sete estrelas que ele havia descoberto entre as constelações do Leão e de Arturus — e desde esse tempo o grupo das sete estrelas passou a ser conhecido sob o poético nome de Cabeleira de Berenice.

— Que lindo! — exclamou a menina. — Quando eu tiver uma gatinha, vou botar-lhe o nome de Berenice...

— Há constelações de nomes ainda mais curiosos — continuou Dona Benta — como a da Coroa, da Lira, da Flecha, do Altar, da Balança, do Relógio, do Telescópio, da Oficina Tipográfica, etc. E há as de nome poético, como essa da Cabeleira de Berenice, a da Pomba de Noé, a dos Cães de Caça, a da Harpa de Jorge, a do Buril do Gravador, a do Escudo de Sobieski, a do Coração de Carlos II, a da Cabeça de Medusa, a do Homem Ajoelhado, etc. E há a de Sírio ou do Cão Maior, onde aparece a mais bela estrela do nosso céu, afastadíssima de nós. Imaginem que Sírio está a mais de 81 trilhões de quilômetros de distância — isto é, a 540.000 vezes a distância entre a Terra e o Sol...

— E qual é a distância entre a Terra e o Sol?

— É de mais de 150 milhões de quilômetros. Sírio está tão longe de nós que sua luz gasta quase nove anos para chegar até aqui — e, no entanto, a velocidade da luz é uma coisa louca. Vamos ver quem sabe qual é a velocidade da luz. Eu já contei.

Pedrinho lembrava-se.

— É de 300.000 quilômetros por segundo — disse ele.

— Por segundo? — admirou-se Narizinho. — Então enquanto eu pisco os olhos a luz vai daqui até... até... Trezentos mil quilômetros é daqui até onde, vovó?

— É fora deste nosso mundinho, menina, porque você bem sabe que só com 40.000 quilômetros a gente já dá a volta em redor da Terra.

— Então quer dizer que, enquanto eu abro e fecho os olhos, a luz faz sete vezes e meia a volta da Terra?

— Isso mesmo.

— Puxa! Já é ser apressadinha...

— É que a luz tem botas de 300.000 léguas — lembrou Emília. — Imaginem o coitadinho do Pequeno Polegar, com suas botinhas de sete léguas, apostando corrida com a luz! Enquanto ele dava um passo, a luz dava sete...

— Sete o quê, Emília?

— Sete voltas em redor da Terra. Maior danada não pode existir.
–––––––––––-
Continua … V – O Telescópio
–––––––––––-
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Fábio Augusto Antea Rotilli (O Celeiro)


Terceira das cinco cronicas vencedoras do V Concurso Literário “Cidade de Maringá”

Lá estava ele a escovar o potro. Ela entra:

- Oi! Careçu falá coce! Vim mi discupá!

Tinha-o traído. O que diria? Não há desculpas quando se joga assim. Na real, ela nem sabia o que fazia ali – apenas sentia responsabilidade, um peso que devia expiar de alguma forma. O capataz, num ímpeto de dignidade, fitou-a severamente. Ela desmanchou-se. Gostava dele. Mas o outro era patrão – dizia-se – no norte. Era melhor a razão, melhor que o coração. E os dois ali, no celeiro... foi quando o rapaz, sentindo que tinha direitos, se aproximou dela, ousadamente. Ela ficou. Queria também. O sexo deles era bom. E o lugar, sugestivo e discreto. Então se atracaram. Bichos no celeiro. Os animais eram cúmplices, nisso partilhavam as mesmas essências. Ao se demorar no monte de feno, eles não se saciavam... a apoteose se estremava em meio aos bichos presos. Eles, sempre bichos presos, gozando derradeiro momento de liberdade.

Depois do ardor e do fogo nas ventas, o relaxamento e o apaziguamento. Foi quando dialogaram:

- Sim, bem, vou sim’bora cum Eli! Eli num discunfia di nóis.

- Pois vá! – qui aprovu! Num ti póssu mantê!

Eram xucros que se entendiam, brutalmente. O supetão e o arrebatamento eram seu dialeto. Mas no coração eram anjos de simplicidade, cujo sexo selvagem se traduzia numa honestidade da carne.

E foi ali que se despediram: no celeiro. Lugar de guardar tralha, grãos e bens vivos. O que ela não sabia é que, dele, foi celeiro: foi carregando sua semente, que o outro adubará e cujo fruto terá por seu.

Fonte:
AGULHON, Olga e PALMA, Eliana. V Concurso Literário “Cidade de Maringá”. Maringá: Academia de Letras de Maringá, 2011.
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Ialmar Pio Schneider (Homenagens em Soneto VII)


SONETO A LAURINDO RABELO
– In Memoriam –
Nascimento do poeta em 8.7.1826 - . –

Foi poeta... sofreu e fez seus versos,
clamando que seriam ais sentidos,
pois quanto mais tristonhos, mais perversos,
representando corações partidos...

Mas sua obra é vasta e os dias idos
na existência de sonhos tão dispersos,
lamentou como se fossem perdidos
os cantos que compôs, os mais diversos...

E no soneto “O Tempo” põe sua alma
arrependida de gastá-lo em vão,
tal como se fosse perder a calma.

Um conselho final então dos diz:
de não desperdiçarmos, sem razão,
o tempo em que se pode ser feliz...

SONETO PARA JAYME CAETANO BRAUN
– In Memoriam –
Jayme Caetano Braun, o inimitável poeta gauchesco e pajador, falecido há 12 anos, ou seja, em 8 de julho de 1999, aos 75 anos de idade.

Jayme Caetano Braun quando tu cantas,
eu me quedo silente a te escutar;
em teus poemas de belezas tantas,
encontro o Rio Grande a me falar.

Não posso compreender quem não encantas
no teu nobre e gauchesco linguajar;
sobre as coxilhas quando te levantas
eu vejo um farroupilha em teu lugar.

Primoroso cantor, valente e forte,
sem temor de lutar, de altivo porte
tal qual o lutador galo de rinha

que morre de tortura e não se entrega
e aguenta firme a ríspida refrega,
pois morre sem deixar dobrar a espinha.

SONETO A ARTHUR AZEVEDO
– In Memoriam –
Nascimento do escritor em 7.7.1855

Foi dramaturgo, poeta e contista,
com “Arrufos”, um soneto forte,
após desentender-se com a consorte,
fez uns ares de quem do amor desista...

Toma o chapéu e sai, sem que suporte,
fingir que não mais ama e se contrista,
mas algo o faz voltar e então persista
a manter a paixão até a morte...

Assim são os amores verdadeiros,
ao menos na aparência dos amantes,
que às vezes têm questiúnculas por nada...

E quando voltam ficam companheiros
para viverem todos os instantes,
seguindo adiante pela mesma estrada...

SONETO A SÃO FRANCISCO DE ASSIS
– Nascimento em 5 de julho de 1182 -

Quero ao “O Pobre de Deus” render meu preito
de gratidão por suas orações;
quando pregava às aves, com efeito,
ele atingia a todos os corações...

“Padroeiro dos Trovadores”, aceito
e venerado pelas multidões,
seu nome São Francisco tem conceito,
e nos consola em horas de aflições...

Pregou a paz entre os irmãos e santo
permanece p´ra sempre no seu canto
de amor sublime a todas as criaturas...

Hoje, no dia do seu nascimento,
que sua bênção traga um sentimento
de concórdia, de luz e de ternuras...

SONETO A ERNEST HEMINGWAY
– In Memoriam –
Morte do escritor em 2.7.1961

Lembra-me “Adeus às armas”, um romance
que li mais de uma vez, pois foi chocante
a emoção que senti naquele lance:
Catherine despede-se do amante...

Henry, desesperado, vive o instante,
e reza para um Deus, sentindo o transe
que o acomete, e não está confiante
que faça qualquer coisa ao seu alcance...

Um trágico final a um grande amor
em que Ernest Hemingway desenvolveu
a efemeridade da vida e a dor...

Com certeza, não há maior tortura
do que aquela em que ele descreveu
a passagem da amada criatura...

Fonte:
Sonetos enviados pelo autor

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 266)

Uma Trova Nacional
Essa ternura que exalas, e os meus receios acalma, faz um voo sem escalas da tua pele... à minh’alma! –SÉRGIO FERREIRA DA SILVA/SP– Uma Trova Potiguar Deixei de ser um galã em telas grandes, pequenas e transformei-me em seu fã no “palco” de nossas cenas. –TARCÍSIO FERNANDES/RN– Uma Trova Premiada 2008 - Nova Friburgo/RJ Tema: ESCOLHA - M/H Esta saudade tão rude que faz minha alma deserta vem desde o tempo em que eu pude mas não fiz a escolha certa! –PEDRO MELLO/SP– Uma Trova de Ademar O racismo nos redime deste contraste obsoleto, o “ser branco” é tão sublime como sublime é “ser preto”! –ADEMAR MACEDO/RN– ...E Suas Trovas Ficaram Salve a princesa Isabel, mulher de grande valor. Bonito foi seu papel, tirando o negro da dor. –AUROLINA DE CASTRO/AM– Simplesmente Poesia –HÉLIO CRISANTO/RN– Galope Praieiro A tarde morria pouco ensolarada, A brisa soprava menstruando a noite, Um corvo passava procurando acoite Em umas palmeiras quase desfolhadas Um ébrio, em monólogo, parindo risadas. Como se alguém estivesse a escutar E eu abismado, de longe a olhar O mar bocejando espumas tão frias E a hóstia do sol tecendo elegias Ao dia que parte pra não mais voltar Estrofe do Dia Do buraco as formigas vem pra fora Os besouros, terreiro nenhum cabe. Quando o céu engravida a nuvem sabe Que vai da luz de chuva a qualquer hora; Um lençol de neblina envolve a flora Mexe a gruta um pirão de areia e lama, A montanha esfumaça sem ter chama, Dá até pra pensar que a terra fuma; O nordeste se enfeita e se perfuma Quando o pranto da nuvem se derrama. –NONATO COSTA/CE– Soneto do Dia –JOSÉ ANTONIO JACOB/MG– Revelação Nada sabeis de mim e sabeis nada Porque venho regresso de outra lida. Nada me perguntastes na chegada E nada vos direi na despedida. Se eu cheguei de uma alegre caminhada - Ou se deixei tristeza na partida - Pode ser que ao final dessa jornada Nada ainda sabereis da minha vida. Não entendeis do céu que nos assiste? Trago nos olhos grandes o olhar triste, Tais quais olhos da noite arregalados. Espiai essas estrelas tão banais: Tantos mundos distantes revelados, Mas que aos olhos dos homens são iguais!
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