domingo, 18 de setembro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 338)

Uma Trova Nacional


Uma Trova Potiguar

Pelos mais árduos caminhos
da vida por onde fores,
verás sempre entre os espinhos
nascer as mais belas flores.
–GIOVANI XAVIER/RN–

Uma Trova Premiada

2008 - ATRN-Natal/RN
Tema: IDADE - 12º Lugar.

Quando a velhice é surgida,
esqueça dos desenganos...
não dê mais anos à vida
e sim, dê mais vida aos anos!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Uma Trova de Ademar

Nessa ausência tão sofrida
que o “ciúme” nos impôs,
vejo o grande mal que a vida
fez na vida de nós dois...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Não pisco os olhos ao vê-la
para não correr o risco
de, por momentos, perdê-la,
a cada instante em que pisco.
–ORLANDO BRITO/MA–

Simplesmente Poesia

Vida Reinventada
–JOSÉ ALBERTO COSTA/AL–

A noite minh'alma percorre
o infinito espaço
das lembranças perdidas.
Enquanto durmo,
recolhe pedaços
dispersos de mim,
reinventando uma vida
de coisas esquecidas,
revolvendo escaninhos
de desejos contidos
repletos de sonhos
da adolescência
que deixei fugir.

Estrofe do Dia

Os carinhos de mãe estremecida,
os brinquedos dos tempos de criança,
o sorriso fugaz de uma esperança
e a primeira ilusão da nossa vida,
o adeus que se dá por despedida,
o desprezo que a gente não merece,
o delírio da lágrima quando desce
nos momentos de angustia e de desgraça,
passa tudo na vida tudo passa
mas nem tudo que passa a gente esquece.
DIMAS BATISTA/PE–

Soneto do Dia

Ironia de Lágrimas
–CRUZ E SOUZA/SC–

Junto da morte é que floresce a vida!
Andamos rindo junto a sepultura.
A boca aberta, escancarada, escura
da cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margarida
do nosso corpo, Fausto sem ventura...
Ela anda em torno a toda criatura
numa dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedas
e a marteladas lúgubres e tredas
das Ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos mundos risonhos!
Lá vem a loba que devora os sonhos,
faminta, absconsa, imponderada cega!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor
Montagem da trova nacional por José Feldman

Aníbal Lopes (Quem me Quiser Conhecer)


Quem me quiser conhecer
terá de perguntar ao vento
e saberá nesse momento
que nem tudo se pode saber.

Montargil me viu nascer
quando não era esperado.
não é fácil aparecer
sem ter sido convidado.

Sonhei guitarras e violinos
mas só tive brinquedos de papel
como os que não foram meninos
também senti o gosto do fel.

Em muitos caminhos andarilho
alguns que não escolhi
outros me impuseram o trilho
que obedientemente segui.

Nem sempre fui bem recebido
nem sempre tive a porta aberta
mas quando a gente desperta
já não se sente tão perdido.

Morei em muito lado
e vagueei entre pinhais
fui vendedor de jornais
e marçano de super-mercado.

Já morei no estrangeiro
lá longe ao pé do mar
fui ajudante de pedreiro
e construí castelos no ar.

Bebi agua em muitas fontes
e tracei muitas metas
já morei em muitos horizontes
e um dia, num livro de poetas.

Fontes:
Poema enviado por Lino Mendes
Imagem = http://www.montargil.com

Pedro Du Bois (Resultado)


Certos jogos gritam resultados
trancados em gargantas
afogadas em líquidos

reaparecem em esbirros
espirros
no acordo
desacordado em regras:

ao vencedor
cabe o barulho
infernal do nada
quantificado no instante.

Depois a vida segue o trajeto
previamente decorado: ao vencedor
resta a tênue lembrança
do que esquece.

Fonte:
Poema enviado pelo autor

J. P Mahaffy (A Literatura na História)

Biblioteca de Alexandria
RARAS vezes é inteiramente apreciado que grande parte da literatura do mundo é a história, de qualquer espécie. O primitivo selvagem é provavelmente a única espécie de homem que nela não toma interesse; deve notar-se que a memória dos mortos é muitas vezes cuidadosamente obliterada por ele a os nomes ou ainda palavras sugerindo os nomes dos seus antepassados, evitados nos seus discursos. Mas logo que uma centelha de civilização ilumina esta treva primitiva, os homens começam a tomar interesse pelos outros homens, não somente no que lhes diz respeito directo, mas além dos limites das suas próprias gerações. O interesse pelo passado a previsão para o futuro, são talvez as essenciais diferenças mentais entre o homem civilizado e o selvagem.

A medida que o cuidado pelo passado a pelo futuro aumenta, toda a literatura se divide entre aquela que diz respeito às forças da natureza a aquela concernente à história do homem. Quase toda a literatura de imaginação parte desta última. Os poemas épicos pretendem cantar a história de heróis. Os poemas trágicos pretendem analisar as suas emoções em algumas grandes crises das suas vidas. Os poemas líricos são interessantes principalmente relatando-nos a história da alma do poeta. Até o romance moderno, que é manifestamente fictício, tem que se basear sobre a história de homens vulgares a buscar a maior parte dos seus enredos a ocorrências das suas vidas. O romance histórico é corno que uma ponte entre as verdadeiras ocorrências do tempo passado e o desejo de saber mais dos motivos, da espécie, do caráter dos atores, dos conhecimentos transmitidos até aos nossos tempos por documentos contemporâneos. Este gênero de romances, quando didático, como por exemplo nos livros egípcios de Ebers, pode ser pouco mais do que um simples relatório de fatos; quando artístico, como nos livros de Walter Scott, pode ser uma obra de Aura fantasia.

Contudo, existe neles sempre o interesse histórico, e é ponto discutível se a história de qualquer criatura inventada a formalmente divorciada dos anais dos homens conhecidos poderá jamais despertar esse vívido a permanente interesse que inspirará sempre a história de homens como Alexandre de Macedônia ou Napoleão. Todo o extenso repertório de ficções aglomerado em volta do nome do primeiro pretende impor-se como história; a vasta biblioteca de livros napoleônicos contém muitíssima fantasia; porém a ficção torna-se de pouco interesse se a compararmos com a história verdadeira dessa extraordinária existência.

Assim, visto a história, na acepção mais ampla da palavra, abranger a maior parte da literatura mundial, deveremos limitar-nos aqui a referir os esforços feitos por escritores nos últimos 3.000 anos, para investigar a história de homens que os precederam na vida ou passaram longe deles a existência, ou ainda para nos descrever a sociedade em que eles próprios viveram. Enquanto imperou na imaginação do homem a crença em uma idade de ouro, a de um heróico passado, os anais a os poemas épicos também se ocuparam de um passado incerto a lendário.

A História de Heródoto, justamente considerada a obra-prima de uma nova escola, tentou a narrativa de um formidável combate, cujos pormenores ainda se não haviam apagado na memória dos velhos, e demonstrar ainda as causas que levaram a realizar-se este combate. Assim, pela primeira vez se tornou importante a parte literária de urna obra, em contraste com os anais secos e monótonos ou a simples relação de fatos, adotada pelos escritores a fim de fugirem das fábulas dos contistas para entrar no domínio dos fatos. Porém o antagonismo manifestado nestes anais contra a maneira poética e ornada, tornou-se demasiado forte.

Os homens graves de então enganaram-se como os de agora ainda se enganam;
julgaram que bastava investigar e narrar os fatos cruamente, para haver a história verídica do passado. É quimérica tal ideia; nunca se poderá obter a verdadeira história da humanidade sem a descrição dos homens, das suas paixões e da lógica dos seus sentimentos. O romance histórico aproxima-nos muito mais da verdade dos fatos do que poderá jamais consegui-lo um relatório cronológico. Eis a razão por que o gênio de Heródoto, como o gênio dos historiadores do Velho Testamento, descobriu que os únicos retratos verdadeiros são os que expressam o caráter do retrato e que a perfeição desse retrato depende tanto do pintor como do assunto que ele tenta reproduzir. Os homens e
as mulheres de Heródoto e até os estados e cidades que ele descreve, vivem na nossa imaginação. Ele, mais do que outro qualquer, conseguiu tornar a história da Grécia em assunto de eterno interesse. Neste sentido, Plutarco é o seu único rival. Se não houvesse existido estes dois escritores o público educado de todas as nações europeias teria há muito perdido o contacto com os Gregos, e apenas uma restrita minoria de artistas e estudiosos se interessariam ainda pelas coisas da Grécia.

Se existe a ideia de que Heródoto conserva ainda a obscura tendência de fazer da História um poema épico e que é demasiado pródigo em digressões e pontos de paragem - todavia preciosos! - os gregos fornecem-nos um forte antídoto. Em virtude da curiosa lei que não admite que apareça esporadicamente o gênio literário (como no caso excepcional de Dante), mas antes surja em grupos (como na época de Péricles, Isabel e Napoleão) - temos como grande rival contemporâneo de Heródoto, o historiador Tucídides. Em intencional antagonismo com a livre e fácil palestra do viajante da escola antiga, que se detém com frequência na marcha da sua epopéia imortal, a fim de deleitar os seus leitores com ramalhetes colhidos nos campos da anedota, este outro gênio literário ensina-nos claramente, sem se dignar dizê-lo mais do que uma vez e em uma leve frase, que (na sua opinião) o valor permanente da história consiste, não na parte social ou artística mas sim no progresso dos movimentos políticos, nos conflitos dos grandes princípios em que se amoldam o caráter e as condições das nações. Para ele a guerra entre Atenas e Esparta, até nas suas mais insignificantes e monótonas insurreições, é bem mais importante do que a escultura de Fídias, a poesia de Sófocles, a arquitetura de Ictinos e de Mnesicles. Para ele, como para um grande número de historiadores modernos - desde Macchiavelli até Seeley - a política domina o mundo e portanto a história política excede a todas as outras em interesse e em valor.

Será possível, todavia, que algum pensador, vivendo em certo meio e tomando parte nos debates políticos do seu tempo possa dar-nos uma relação objetiva do que em volta dele se passe? É isto que Tucídides pretende fazer; e soube tão bem ocultar a sua parcialidade, com a sua seriedade e afetada exatidão, que o seu gênio literário tem-se imposto no mundo dos eruditos desde então até aos nossos dias. Sabemos agora que a sua subjetividade não era menos dominadora do que a de Heródoto. Estava porém disfarçada, como a subjetividade de um grande pintor se disfarça - para a maioria vulgar - sob a fidelidade do retrato que executa. É provável que os contemporâneos de Rembrandt insistissem na exatidão com que ele reproduzia os seus burgomeisters, as suas velhas e os seus judeus. Nós, hoje em dia, avaliamos os seus quadros não como retratos fiéis, mas como a expressão do gênio do pintor. Ora, o mesmo nos acontece com a História de Tucídides. Se Heródoto é um Van Dick, que nos oferece uma galeria das personagens da Hélada e da Ásia, Tucídides é o Rembrandt que representa o seu próprio povo, embora seja rude e feio, com toda a energia e vigor do seu sombrio gênio.

Assim são eles dois protótipos imortais até entre os Gregos, nossos mestres, porque
ao lado deles todos os seus sucessores parecem fracos. Xenofonte possui toda a técnica de um artista historiador: falta-lhe porém a energia de caráter, a subjetividade que produz a harmonia de uma obra transcendente. Políbio é dotado da subjetividade e do forte caráter de um historiador, mas é tão deficiente a sua técnica, que se encontra esquecido por todos.

Não deixa de ser interessante inquirir até que ponto se manifestam estes eternos contrastes nos grandes escritores que têm conservado aceso, em tempos modernos, o luminoso facho da história artística; porém é demasiado vasto o assunto para que nos seja aqui permitido fazer mais do que algumas ligeiras reflexões gerais. A solidariedade da Europa, as miríades de relações dos grandes reinos em constante comunicação uns com os outros, tornaram tão imensa a tarefa, que nenhum cérebro humano pode encher a tela completa da história contemporânea, com um quadro adequado e harmonioso.

Assim a Europa de Alison tinha de ser um fracasso como grande obra de arte e nenhum verdadeiro gênio histórico teria tentado escrevê-la. A única história contemporânea do autor ocupando um elevado lugar na Arte é a que se publica sob a forma de Memórias, como as de St. Simon ou de Boswell, que a refletem dia a dia à superfície de uma sociedade interessante. Aqueles que têm demonstrado verdadeiro talento como historiadores em tempos modernos, escolheram épocas dos séculos passados, em que existiram caracteres e factos de bastante importância, para não deixar de interessar ainda hoje o espírito do mundo civilizado.

O primeiro entre os historiadores ingleses foi Gibbon, o Heródoto dos tempos modernos pela amplitude do assunto, pela clareza da compreensão e pela riqueza da fantasia. É porém inferior a Heródoto como artista, tornando-se tão excessiva a pompa artificial do estilo, que chega frequentes vezes a distrair da narrativa a atenção do leitor; enquanto o velho grego havia atingido o elevado grau em que a arte se assemelha à natureza pela sua aparente simplicidade e total ausência de afetação. Apesar disto a história de Gibbon é uma grande e permanente obra de arte, que nunca será excedida pelas produções mais pragmáticas dos modernos escritores. Servia-lhe de lema o velho princípio clássico que exige ao historiador imaginação rica e fácil eloquência.

Depois do Decline and Fall de Gibbon, entre as histórias escritas na língua inglesa deve figurar, tia minha opinião, a História da Grécia, de Grote. Assemelhando-se a Tucídides, na forma grave e sóbria, na exclusiva tendência para a política, no mal velado desejo de refutar os pontos de vista dos seus predecessores, Grote carecia contudo de hábil retórica e ainda mais daquela maravilhosa concisão, que torna tão impressionante a narrativa de Tucídides.

É, de fato, na sua forma de parafrasear os seus antigos modelos, que Grote mais brilha; mas, apesar de se haver chamado à sua história um enorme panfleto de radicalismo filosófico, a sua latitude, a sua ciência, a conscienciosa forma por que procura todas as fontes de informação, fazem destacar a sua História da Grécia, acima de muitas outras histórias mais curtas produzidas por eruditos europeus. É que ele não foi apenas erudito, foi também político; sabia como se podem evitar contradições teóricas em uma constituição, por meio de transições práticas, e se cuidava pouco de arte, de arqueologia e, em geral, da nota pitoresca do assunto de que tratava, pode contudo ainda ser utilizado para corrigir a falta de conhecimentos políticos, tão frequentemente demonstrada pelos historiadores profissionais de França e da Alemanha.

As investigações dos alemães e o espírito brilhante do franceses não produziram qualquer obra de valor igual às de Gibbon e Grote, apesar de haverem contribuído para a história com excelentes e até grandiosos elementos. Entre as produções alemãs, na minha opinião destacam-se duas: a História Romana de Mommsen e as histórias de Atenas e de Roma, por Gregorovius. Ambas são tratadas com uma perfeição de estilo geralmente desusada na Alemanha e são ambas monumentos de notável e exatíssima erudição. No livro de Mommsen esta erudição acha-se - para assim dizer - encoberta pela ausência de notas no fim da página e ainda mais por uma petulância de estilo que parecia indicar um certo faciosismo sobre algumas questões políticas de capital importância. Esta suspeita, originada pelo estilo desse livro notável, podia ser confirmada fazendo-se uma cuidadosa investigarão acerca das autoridades em que ele se apoia. Por outro lado, o conhecimento dos estudos especiais de Mommsen demonstra o gigantesco poder de que dispunha na arte de coligir elementos para a história. Niebuhr, o mais notável dos predecessores destes homens, apesar de ser autor de um método novo, como escritor não soube ser grande bastante para manter a sua situação contra os competidores modernos. Apesar disso os sucessores dele, excetuando Mommsen, serão pessoas muito respeitáveis, mas não são com certeza artistas de valor. Muitos deles são eruditos de primeira ordem; porém isso aqui não vem ao caso.

Como seria de esperar da parte de uma nação que produz tão excelente prosa, a França deu-nos uma série completa de eminentes historiadores, mas foi talvez devido ao elevado nível do seu estilo que nenhum deles conseguiu obter supremacia sobre os colegas. Guizot, Taine, Thiers, Renan, Montalembert, Henri Martin e muitos outros têm-nos oferecido brilhantes exposições de várias épocas na história europeia; raras vezes, porém, conseguem libertar-se dessa subjetividade que caracteriza os franceses e prejudica a sua autoridade como juízes em assuntos históricos. Além disso, existe na maioria deles a visível preocupação do estilo, o desejo de dizer coisas brilhantes que tende mais a deslumbrar o espírito do leitor do que a iluminar o assunto de que tratam. É de crer que qualquer deles seria mais facilmente substituído do que Tocqueville, cujos estudos sobre a democracia são contudo antes exemplos de política do que de história.

Mas estas generalidades acerca de historiadores estrangeiros tornam-se pouco valiosas sem mais amplas justificações. Ocupemo-nos novamente dos escritores ingleses que tornaram célebre o século actual, e mesmo a presente geração, pelos seus estudos históricos. Entre os que mais sobressaem há dois americanos - Motley, o historiador do período mais notável da história holandesa, e Parkman que, numa tela de menores dimensões, mas com pincel seguro, nos descreveu a prolongada contenda entre a França e a Inglaterra, pela posse da América do Norte. Na nossa Inglaterra, acabam de desaparecer dois homens eminentes, apresentando tais contrastes, que merecem ser discutidos e comparados: estes homens chamaram-se Freeman e Froude.

Este último era um grande escritor, e possuindo ainda uma brilhante imaginação – faculdade esta que pode ser censurável em um historiador mas que se torna completamente indispensável para sua grandeza. Assim, apesar de haver sido acusado de muitas inexatidões, a sua compreensão e perspicácia tornaram-no frequentes vezes tão acertado nas considerações, que não posso deixar de o julgar um historiador muito superior a Freeman, seu adversário e crítico. Este, embora possuísse em mais elevado grau a ciência de investigar, e fosse muito mais exato nos pormenores, serve-se de um certo estilo grosseiro que afastará dele os leitores. Além de ostentar constantemente e com pedantesco orgulho a sua erudição, ainda afirma ou dá a entender com insolência a inferioridade dos que trabalham no mesmo campo. Desvia-se da sua História das federações gregas a fim de escrever notas sobre Napoleão III, que poderiam ser escritas por Vítor Hugo. Assim, apesar da sua grossa ciência, dos seus conhecimentos acerca da história do mundo, das suas cuidadosas investigações, Freeman será esquecido, quando ainda for lido o brilhante e gracioso Froude, que falará a milhares ele leitores, enquanto aquele já apenas o escutam algumas dezenas de ouvintes. Assim, também, os mestres do povo inglês na história são antes Shakespeare e Walter Scott do que o bispo Stubbs ou sir John Seeley, porque é esta a forma extrema do contraste entre o escritor pitoresco e o laborioso investigador. Sei que é regra entre os discípulos da escola de investigação negar-se qualquer mérito ou valor como historiadores aos escritores imaginativos.

Todavia, sustento a opinião de que para cada pessoa que arranjou alguns conhecimentos acerca de Luís XI, rebuscando-os entre crônicas contemporâneas, existem dez mil que obtiveram dele uma ideia mais geral e verdadeira pela leitura de Qentin Durward ou de Notre, Dame de Paris. Devo acrescentar que não é fácil tarefa interessar o público vulgar na leitura histórica e have-lo conseguido representa um grande passo na civilização moderna.

Ocupando um lugar intermédio entre Froude e Freetnan, coloco os meus dois amigos pessoais, Green e Lecky, os quais me aventuro a considerar como os mais populares escritores de história que a Inglaterra produziu depois de Gibbon. Green faleceu antes de poder dar a sua medida. Lecky é ainda hoje uma figura proeminente em Inglaterra; mas é considerado mais político do que historiador, visto ter trocado o estudo pelo Senado, e substituído a vida contemplativa pela atividade prática.

É pouco provável, portanto, que ele nos apresente um novo livro de história. Contudo, os oito volumes da sua História de Inglaterra no Século XVIII, já apresentariam suficiente e ampla confirmação do seu gênio, ainda que os não houvessem precedido esses outros notáveis volumes sobre a história da cultura europeia, que tornaram conhecido e popular o seu nome por todo o império britânico. Pode ser posto em dúvida se o estilo acabado e leve de Lecky iguala o de Froude, ou se as suas investigações podem ser comparadas as de Freeman; contudo. ele reúne qualidades que eles não possuíam e portanto pode ser classificado acima deles por tino crítico independente. Torna-se talvez impossível a qualquer escritor escrever com o brilhantismo de Froude, se quiser escrever com judiciosa serenidade, se for indulgente para com os seus adversários, esforçando-se pela imparcialidade em controvérsias políticas. A narrativa de Lecky não se assemelha ao impetuoso Áufido, que arrasta homens e gado nas suas inesperadas cheias; parece-se mais com o tranquilo Líris, que vai lentamente desgastando os outeiros com a sua mansa corrente.

Mas, por muito bem que Lecky saiba avaliar quanto é necessária a eloquência na confecção da história, sa igualmente subordiná-la aos seus propósitos. Nos últimos dois volumes, que relatam a revolta irlandesa de 1798, ele, convencendo-se de que era pouco provável que alguém tratasse novamente desses factos, pôs de parte beleza da sua obra, a fim de nos fornecer uma compilação de todas as mais fidedignas notas contemporâneas, transcritas com as próprias palavras das autoridades que cita. Assim, estes valiosíssimos volumes dão-nos pouco mais do que um catálogo de extratos, compilados e expresso com cuidado e perícia, aliadas a uma modéstia que o torna ainda mais admiráveis. Podem, portanto, ser imparcialmente apreciados, mais como prova real do seu espírito investigador, do que do seu estilo, além de demonstrar-nos que, longe de ser o escravo deste, sabe subordiná-lo, a fim de atingir mais elevados fins. E contudo, se o livro fosse todo escrito sob essa forma, teria sido apenas lido por estudiosos especialistas e não por toda a gente.

João Ricardo Green foi um homem notável de outro tipo, e o seu único volume sobre o progresso e a educação do povo inglês logo atingiu e conserva ainda uma excepcional popularidade; mas assim como este livro não foi executado na larga escala do Século XVIII de Lecky, também nos dá ideia de uma menos cuidada investigação. Por exemplo, o relato de operações militares é manifestamente feito por forma tão superficial que não elucida bem o leitor. Jamais saberia descrever uma batalha como sir G. Trevellyan (que poderia figurar entre os nossos primeiros historiadores se não fossem as distrações de política partidária) descreveu recentemente a de Bunker's Hill. Por outro lado, as suas narrativas de movimentos populares, como por exemplo, a que trata da reação do povo abandonando o Protetorado para abraçar a antiga soberania, são das mais brilhantes páginas que existem na literatura histórica inglesa.

Não há lugar neste estudo para a filosofia política -` para a história das ideias, independentemente das realizações políticas, como as de Mr. Lecky, acima mencionadas. Não deporei, contudo, a minha pena sem afirmar que em uma dessas obras - o imenso fragmento da vasta concepção de Buckle sobre a civilização da Europa – encontrei maior estímulo, mais sugestão, mais incitamento à reflexão e ao estudo do que jamais encontrei em livro algum do nosso tempo. Não conheço tão pouco outra obra que a possa substituir completamente na educação intelectual de um historiador. Esta confissão é apenas pessoal; outros homens haverá que não aceitariam Buckle, levados por outras considerações. Green começou a concentrar a sua atenção na história por uma mera casualidade. Sendo ainda rapaz, foi felicitado, por ter ganho um prêmio, por um velho professor-mor do colégio da Madalena, que lhe disse:

"Lembra-te que esta mão que agora apertas, já foi apertada pela mão do grande dr. Johnson".

E quantos outros homens haverá a quem uma casualidade, muitas vezes trivial em aparência, desperta faculdades dormentes? Se me for permitido citar o meu próprio caso, direi que a libertação de trabalhos escolares, a falta de ocupações suficientes e o acaso que me deparou um volume da Grécia de Grote, foram as causas determinantes que me impeliram, aos quatorze anos, para o estudo da história clássica, não obstante faltarem a Grote tanto a imaginação com eloquência tendentes a atraírem as atenções de uma criança. Todavia ambas estas qualidades existem no livro: sob a forma de uma clareza extrema, quando trate de descrições complicadas; em impressiva gravidade nas lições políticas, e em um certo tom geral digno e ponderado, que só um escritor de mérito pode atingir. Os homens variam nas suas predileções e nos seus gostos mas a história fornece uma galeria de tipos e de variedades suficientes para satisfazer todas as formas de inteligência por muito elevadas que sejam; pois acaso não é ela, segundo as eloquentes palavras de Cícero:

Testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nintia vetustatis?

Fonte:
Suplemento Literário “Portal dos Sonhos” n.4 junho de 2002 – Elaborado pela ALIUBI – Associação dos Literatos de Ubiratã – Presidente: Odair Roberto da Silva; Vice Presidente: José Feldman. Ubiratã/PR: TV Aymoré.

Ialmar Pio Schneider (Mate no Galpão)


O mate amargo passa de mão em
mão e a gente se lembra de tropeadas
do destino que leva por estradas
desconhecidas, tristes, sem ninguém.

A cuia prateada me entretém,
escutando os causos dos camaradas
que fizeram de suas gauchadas
por terras que se somem pelo além.

Ruivo fogo crepita no galpão,
nobre abrigo dos tauras soberanos
que saudosos se ajuntam no rincão

a fim de recordar passados anos.
E a cuia do gostoso chimarrão
me é tristezas, saudades, desenganos...

Jornal de Novo Hamburgoem 17.9.2010

Fonte:Soneto enviado pelo autor

Machado de Assis (O Alienista) VII – O Inesperado; VIII – As angústias do boticário


CAPÍTULO VII - O INESPERADO

Chegados os dragões em frente aos Canjicas houve um instante de estupefação. Os Canjicas não queriam crer que a força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados:

—Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.

Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando às janelas das casas ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço dos dragões,—qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram,—passou subitamente para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que lançou o desanimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e um a um foram passando para eles, de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado com alguma gente contra uma massa compacta que o ameaçava de morre. Não teve remédio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.

A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a Câmara Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao "ilustre Porfírio". Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a enrijar-lhe os quadris.

Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mês de soldo aos dragões, "cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes . Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes noticia da triste realidade. O presidente não desanimou:—Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo.—Sebastião insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre.

Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou-se e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de—"Protetor da vila em nome de Sua Majestade, e do povo".—Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas enérgica:

"Itaguaienses!

Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.

O Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo

Porfírio Caetano das Neves".

Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras e sendo um dos homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira; e a vila respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído o terrível cárcere.

O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro faz expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.

—Em todo caso, Vossa Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso.

Ao que o Padre Lopes respondeu, sem responder:

—Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?

O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.

CAPÍTULO VIII - AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO

Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo,—foi a denominação dada à casa da Câmara,—com dois ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.

Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista.—Vai prendê-lo, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: —a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples noticia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê-lo Catão , é verdade, sed victa Catoni, pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha situação é outra.

Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se na cama.

—Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai acompanhado de gente.

—Vai prendê-lo, pensou o boticário.

Uma idéia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a ele na qualidade de cúmplice. Esta idéia foi 0 melhor dos vesicatórios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e, apesar de todos os esforços e protestos da consorte, vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam com muita perspicácia o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou resolutamente ao palácio do governo e não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.

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continua… Capitulo IX – Dois lindos casos ; Capítulo X – Restauração
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Fonte:
ASSIS, Machado de. O Alienista.

Raquel Amélia dos Santos (Desejo Humano)


"Nada sabemos da alma senão da nossa;As dos outros são olhares;São gestos, são palavras..."
Fernando Pessoa


O encontro talvez seja a eterna busca humana.
No encontro pode ocorrer a afirmação do ser e a possibilidade do estar sendo.
O desejo de pertencer, de ser reconhecido e de reconhecer-se, impulsiona essa busca permanente que homens e mulheres empreendem todos os dias de forma consciente ou não.

Entre as aspirações humanas, ser acolhido é a que considero mais urgente e fundamental. O acolhimento no sentido pleno da palavra. Clarice Lispector ao falar das aspirações humanas, diz que "O que o ser humano mais aspira é tornar-se humano." Neste caso, a humanidade desejada traz consigo virtudes, limites e mazelas próprios do ser gente.

Os encontros podem ser permeados de oportunidades de acolhimento ou não.

Vivemos em um tempo em que as pessoas não sentem-se a vontade para ser elas mesmas e assumirem sua humanidade. Na maior parte do tempo, vivemos em um grande teatro, onde exibem padrões e habilidades físicas, aparência de auto-controle, uma felicidade permanente e um entusiasmo constante.É abominável e proibido mostrar fragilidade ou qualquer sinal dos limites humanos, como por exemplo, carência afetiva e querer ser amado.

O que se deseja realmente é o encontro como confluência e não a colisão.
As pessoas querem ser vistas e ouvidas. Esse ser visto e ouvido é anseio profundo da alma, que nem sempre é devidamente assumido.
As crianças demonstram claramente o desejo do encontro sem camuflagens.

Querem brincar, rir, conversar e recriar a realidade juntas. Inventam, reinventam, constroem, desconstroem. E fazem isso muito bem na interação com o outro, no encontro. São livres, verdadeiras e desejam naturalmente serem acolhidas pelo outro. Na sua autenticidade não pretendem impressionar. São apenas elas mesmas.

Nos encontros infantis, há facilidade de uma boa negociação. Vão ao encontro uma da outra, sem muitas restrições e sem medo da não aceitação.
As vezes tenho o prazer de observar tais encontros e finjo não estar prestando atenção. Um propõe a brincadeira e então fazem os combinados e estabelecem as regras.

É mais ou menos assim: _ Vamos brincar de casinha? _Vamos! Finge que eu sou a mãe. _ Eu sou o filho! _Então eu vou ser o pai._ Ah! Então vou ser o irmão! E neste diálogo começam a brincar, distribuem tarefas, organizam o espaço, estabelecem limites, atribuem funções, estabelecem direitos e deveres e assim reproduzem e reelaboram a realidade. As crianças não precisam ser velhas amigas para que haja o encontro entre elas. Agem com naturalidade. Assim ocorre em outras brincadeiras também.

Os adultos são ex crianças, formados por outros adultos. Em muitos casos, rigidamente treinados para não sorrirem, não olharem de verdade para o outro e devem ter sempre convicção e jamais abrir mão de suas verdades. Principalmente das antigas, que aparentemente dão segurança. Deixam de ser espontâneos, perdem a autenticidade e estão formatados para dizerem definitivamente sim ou não. Não sabem lidar com o talvez. Criam escudos e variadas formas de defesa.

Ser uma ex criança, não significa ter que extinguir do ser, elementos essenciais à vida, como por exemplo, flexibilidade e abertura para aprender a lidar com o novo, mobilidade de pontos de vista.

As crianças investigam, experimentam, começam, recomeçam, fazem, refazem o tempo todo.

Já o adulto, considera-se pronto e têm dificuldades de colocar-se no lugar do outro, de experimentar novas e diferentes perspectivas. Neste caso o encontro torna-se colisão.

A cada dia as pessoas estão mais solitárias e perdem-se em si mesmas. Sentem saudades de quem realmente são, sem compreenderem que o ser e o estar sendo, fazem-se com a presença do outro.

O encontro é uma forma de saber quem somos. O auto conhecimento depende também da presença do outro. Jean Paul Sartre diz que "Para saber uma verdade qualquer a meu respeito, é preciso que eu passe pelo outro." O encontro é um passar pelo outro. Isso requer flexibilidade e disposição para deslocar-se quando necessário. Não é tarefa fácil, não para os adultos.
Bem treinados, são hábeis na defesa e no ataque. Estão sempre atentos a qualquer sinal de proximidade do outro. Dominados pelo medo de mostrarem-se estão prontos para uma colisão, apesar de desejarem ardentemente a confluência.

O medo nem sempre é assumido de forma consciente, mas quase sempre está presente enquanto homens e mulheres tentar vivenciar sua humanidade.
A cantora Pitty, em uma de suas músicas, diz o seguinte: "(...) homem que nada teme é homem que nada ama". Há certa razão nesta forma de pensar.
Medrosos e Medrosas do mundo inteiro, tranquilizem-se! O medo pode ser um indício do amar! Não do amor simplesmente, mas do Amar! Lembrando que amor é substantivo e amar é verbo, e verbo é ação. Indica movimento que aconteceu, acontece e acontecerá.

O medo é normal e necessário. É um mecanismo de defesa, acionado sempre que pensamos haver algum perigo.

Ter momentos de medo, não significa encontrar-se sempre neste estado.
Sobre o medo afirma Sartre: "(...) Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal; isso nada tem a ver com coragem."
No encontro, há um processo em que o medo faz parte de uma etapa. Outras etapas vão sendo vivenciadas a seu tempo.

Mesmo sendo natural e necessário, em certa medida, acaba por limitar e dificultar as relações afetivas e amorosas entre as pessoas.
É preciso tomar as rédeas do medo e realizar o que Fernando Pessoa chama de "travessia". Ele diz assim: "É o tempo da travessia... E se não ousarmos faze-la... Teremos ficado...para sempre... À margem de nós mesmos"
Há o tempo do medo, o tempo de enfrenta-lo e domina-lo e de experimentar dar uma chance a nós mesmos.
Há três ações essenciais em um verdadeiro encontro. O falar, o escutar e o olhar. O encontro pode começar de várias formas. Mas o olhar, o ouvir e o falar são o solo onde firmam-se os fundamentos de um encontro.

No início de um encontro, as palavras tentam manifestar-se de forma tímida e meio sufocadas. Levam algum tempo para serem colocadas em liberdade.

O encontro de verdade, não é só o estar perto fisicamente. Essa é só uma forma de estar junto. O verdadeiro encontro requer palavras. As certas, as erradas, as sem sentido, as idiotas, as engraçadas, as que indagam as reveladoras e até as enigmáticas.

Normalmente em começos de relacionamentos, as palavras são bem planejadas e formais.
Com o tempo elas vão sendo usadas como brinquedos.Com esta configuração, servem para descontrair, divertir e aliviar as tensões provocadas pelo medo da não aceitação, pela vontade de impressionar ou despertar o ouvir e o olhar do outro.

E quando menos se espera a distração toma conta do encontro. Tudo fica mais natural e mais próximo da realidade.
Então, inadivertidamente as palavras fluem e acabam por atingir o desejado objetivo de encantar. Ganham força e originalidade, mesmo que o falar seja apenas a citação de um poema alheio.
Sejam elas superficiais, íntimas, eróticas, engraçadas, sérias, românticas, sinceras ou não, tornam-se instrumentos essenciais na construção de vínculos e na recriação da realidade.

As palavras vão sendo carregadas de simbolismos e significados dados pelos encontrantes, que acabam criando seu próprio vocabulário.
As vezes, as palavras estão aprisionadas dentro das pessoas e anseiam por um encontro. Desejam a liberdade que Rubem Alves diz ser o "encontrar um ouvido para repousar".

Em encontros de amor, imprevistos, ocasionais, planejados ou desejados, as palavras não são apenas palavras. São poemas que por vezes podem estar impregnados da ardente necessidade de expressar sonhos, fantasias, desejos, emoções e sentimentos que moram em algum canto esquecido da alma.
É o querer amar e ser amado. O querer ter com quem sorrir, com quem desejar, com quem realizar fantasias, com quem sonhar, com quem falar, com quem fazer amor..., o ter para quem voltar.

As palavras certas usadas na hora certa, podem despertar os sentimentos mais doces, a tranquilidade que a alma anseia, a felicidade que estava ali em algum canto do coração, os sonhos, o desejo mais ardente, uma amizade verdadeira, o amor e até a alegria de viver.

Escutar "vem do Latim Auscutare e deu origem a "Auscultar", termo técnico usado pela medicina para definir o ato de ouvir sons em órgãos internos dos pacientes e tem o sentido de ouvir com atenção, ouvir indiretamente e às escondidas.

Escutar demanda disposição e habilidade para perceber o que o outro tem a dizer de forma direta ou indireta. Ou seja, até as palavras que não foram ditas ou permaneceram "às escondidas".

Perceber o que vem do próprio interior e do interior de outra pessoa requer a compreensão de que cada um traz consigo uma história, um contexto, uma formação, uma singularidade, um ser.
Em um encontro, é preciso saber escutar.

Escutar no sentido de ouvir indiretamente, é como o "auscultar". Para auscultar os pulmões de um paciente, o médico precisa de um estetoscópio.
Escuta-se de verdade quando há uma apropriação temporária de alguns dos sentimentos e emoções do que fala. Isto se dá com ajuda do coração, da alma e a capacidade de deslocar-se para o lugar do outro.

O encontro é promovido pelo desejo de ser e de ter a fala acolhida. Gosto de pensar no que Rubem Alves diz a esse respeito. "(...) A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E na não-escuta ele termina."

O olhar é também um elemento mágico em um encontro. Mário Quintana diz que "Quem não compreende um olhar, tampouco compreenderá uma longa explicação".

Os olhos falam. E na verdade dizem mais do que muitas palavras. É fácil mentir com as palavras, mas não com o olhar.

Através do olhar puro e humano percebemos e sentimos a beleza do outro. Se olharmos firmemente nos olhos de outra pessoa, veremos a nós mesmos, a nossa imagem refletida na pupila do outro, que serve de espelho. Por isso Rubem Alves tem razão em dizer que "Uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela..."

O amor, a tristeza, a alegria, o ódio, a indiferença ou qualquer outro sentimento, refletem luz ou a falta dela através do olhar.

Sobre o olhar, a bíblia afirma o seguinte: "Teus olhos são a lâmpada do teu corpo. Se teus olhos forem bons, todo teu corpo será cheio de luz, mas se forem maus, teu corpo ficará cheio de trevas" (Lucas 11:34 e 35).

Um encontro se dá com o falar, com o escutar, com o olhar e demanda mostrar quem somos de fato. Não é possível fazer isto voluntariamente sem que haja uma relação de confiança.

Muitas pessoas vivem juntas anos seguidos e nunca se deixam conhecer.
A confiança é um espaço a ser conquistado em coração alheio.

Uma vez conquistado o espaço, começa-se uma construção cujos fundamentos devem ser estabelecidos sobre a verdade e a sinceridade.

Dentro do processo de conquista e construção da confiança, conquistador e conquistado, concedem permissão para a ocupação no coração do outro.

Diferente das estratégias usadas pelos grandes conquistadores da história. Estes, invadiam e ocupavam através da força bruta, os espaços ou o objeto da conquista.

A confiança não pode ser conquistada através da força bruta. Só acontece quando conquistador e conquistado vão se mostrando de verdade. O conquistador precisa oferecer um bom projeto que indique a implantação de bases firmes para uma edificação estável e segura. O conquistado deve deixar o espaço livre e preparado para tal edificação. Pois não se constrói sobre entulhos ou terreno instável.

As primeiras palavras começam a abrir um caminho para que a conquista seja iniciada. Pode ser o começo de uma relação de amizade ou amor.

Todas as pessoas necessitam mostrar seus poemas secretos.
No entanto, nem sempre é possível encontrar quem os queira conhecer.
A razão é importante, mas não ajuda muito no processo em que a ternura e o afeto querem instalar-se.

Em um encontro, sentimentos confusos e indefinidos podem ir tomando a forma de amor e transformarem-se em amar.

Amar e ser amado é necessidade fundamental do ser. Mas a arrogância e medo de mostrar fraqueza, faz com que homens e mulheres passem a vida mentindo para si próprios e sem coragem de assumir tal necessidade.

O desejo de encontrar amigos e um amor de verdade é próprio do ser humano.

Abandonar velhos hábitos e reelaborar as moradas do coração não é tarefa fácil, mas pode facilitar o reencontro com o que somos de verdade e assim abrir caminhos para o encontro com o outro. O que mais aspiramos mesmo, é a confluência.

É preciso sentir saudades de nós mesmos, e ir ao nosso encontro. Realizar a "travessia", o quanto antes, pois o tempo não para.

Ativar a capacidade de ouvir, de falar e de olhar pode ser uma forma de "passarmos" por nós mesmos e pelo outro. Se o fizermos, saberemos com mais segurança quem somos e assumiremos a nossa humanidade.

Com esse saber pode ser que a busca do encontro seja mais bem sucedida , plena e não " Teremos ficado...para sempre... À margem de nós mesmos".

18 de Setembro de 2011.

Fonte:
Texto enviado pela autora

sábado, 17 de setembro de 2011

A. A. de Assis (Trovas Ecológicas) - 18

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 337)


Uma Trova Nacional

Da abelha o casal tem tudo:
primeiro o mel da paixão.
Segunda fase - abelhudo;
terceira fase: - ferrão!...
–ROZA DE OLIVEIRA/PR–

Uma Trova Potiguar

Ao flagrar a companheira
com o Ricardão, no riacho.
Pra se vingar da chifreira,
foi dormir com outro macho
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Uma Trova Premiada

2007 - Bandeirantes/PR
Tema: PIRRAÇA - M/E.

Se ela insiste, por pirraça,
em fazer “greve”, olhe o enrosco:
dá-lhe ele um basta... e ameaça:
- Mamãe vem morar conosco!...
–A. A. DE ASSIS/PR–

Uma Trova de Ademar

Ladrão “frouxo” e atrapalhado
foi preso numa butique.
Bastou ver o delegado,
desmaiou... deu um chilique.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

O canário não cantava,
entretanto, o vendedor,
a quem comprou explicava:
"Não canta, é compositor..."
–CÉSAR TORRACA/RJ–

Simplesmente Poesia

MOTE:
Numa receita de Joca.

GLOSA:
Tinha malva e agrião,
João mole, bredo e facheiro,
pau de leite, marmeleiro,
erva babosa e pião,
canapum verde e limão,
tinha até borra de moca,
pra fazer a tramamoca
juntou alho com fartura;
tinha toda essa mistura
Numa receita de Joca.
–MOYSÉS SESYOM/RN–

Estrofe do Dia

Mês passado, fui à lua
pra fazer uma moagem;
fui de jegue e, na bagagem,
levei rapadura crua.
Lá, tinha uma moça nua
se aquecendo na lareira;
ao me ver, correu, ligeira
e me deu um forte abraço.
“Eu querendo também faço
igualzinho a Zé Limeira.”
–TARCÍSIO LOPES FERNANDES/DF–

Soneto do Dia

Soneto da Eletricidade
ORLANDO LOVECCHIO/SP

De tudo, ao meu computador, serei atento,
antes e com tal zelo, e sempre, e de modo tão terno
que mesmo em face de um modelo mais moderno
dele serei sempre o tiete mais sedento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
e em seu louvor hei de pagar as contas da Light
que alimenta seus megabytes
sem nenhum pesar ou descontentamento.

E assim, quando mais tarde, num outro dia,
quem sabe a assistência técnica, angústia de quem vive,
pedir pelo seu conserto uns 800 paus,

eu possa dizer do computador que tive:
Que não seja imortal, posto que é fabricado em Manaus,
mas que seja infinito enquanto dure (a garantia)

Fontes:
Textos enviados pelo Autor
Soneto obtido em Novo Milenio

Raul Pompéia (A Batalha dos Livros)


Foi um sábio, Aristóteles de Souza. Recebera na pia batismal um nome significativo, vaticínio de encomenda dos pais, sem grave ofensa à modéstia porque vinha logo atenuar, os compromissos a restrição chué do sobrenome.

Aristóteles, entretanto, ficava sendo, embora de Souza. Dominava-o a avidez de conhecer como um vício insaciável. Tinha sede de idéias, fome de páginas; havia alguma cousa de traça no seu apetite. Oh! não lhe ser dado viver entre a compressão erudita de dous capítulos de um livro fechado, tranqüilo e só, roendo, roendo as saborosas folhas

Dormia pouco, comia menos, não bebia nada, excetuando o abuso da água do pote a que se entregava periodicamente em cristalinas orgias de asceta. Não tinha afeições pessoais, porque a aplicação o distraía de ter sentimento; detestava o bulício do mundo e a preocupação dos negócios.

Pura massa de sábio: nos livros, dos livros, para os livros.

Muito rico, confiara a direção inteira dos seus interesses a um raro procurador honrado e, alto, no platô das Paineiras, sobre os rumores da cidade e sobre as intrigas dos homens, desfrutava a sensualidade espiritual dos estudos, encerrado em um grande prédio que lá mandara construir.

Com Aristóteles, morava um sobrinho, o Sancho, rapaz amável, bem apessoado de carnes, com um ventrezinho de jovialidade cativante, pouco inteligente, falador, encarregado de receber as visitas, entretê-las com a melhor hospitalidade e despachá-las atenciosamente, antes que lhes ocorresse a idéia de ir perturbar o sábio na sua sabedoria.

Aristóteles falava raramente ao sobrinho. Não se dignava. Sancho, em compensação, venerava-o, acatando profundamente essa desdenhosa reserva como o nicho do seu ídolo. Aos criados o sábio não dirigia palavra. Gesticulava os seus desejos e era compreendido às maravilhas.

Uma vez por semana dava audiência, para quem o quisesse consultar sobre elevados motivos técnicos.

Traço complementar: era fisicamente a ressurreição magra do velho Littré.

Um

LEXICON

Dos esdrúxulos portugueses seguido de um breve tratado dos adjetivos científicos derivados do grego, e vantagem do seu emprego no discurso, para o fim de dar precisão, sonoridade e prestígio às frases.

Granjeara-lhe a reputação unânime de profundo em que era tido.

Tinha publicado também uma monografia entre industrial e científica sobre as Cidades peixeiras do Brasil, ou piscicultura nacional e futuro deste ramo de aplicação da indústria humana com a continuação do tempo e o progresso da navegação. Esta segunda obra, que lhe valera um diploma de membro do Instituto Histórico, provava, jogando com as estatísticas dos mercados de peixe, que o incremento da atividade náutica fazia desaparecerem os peixes, afugentados pelo rumor das rodas e hélices dos paquetes, para regiões afastadas e mais tranqüilas do oceano.

Apesar do diploma e da nomeada, Aristóteles não estava satisfeito consigo. Aclamasse-o o mundo inteiro, posteridade inclusive, aclamasse-o sábio, com hipoteca segura sobre uma dúzia de centenários glorificadores, Aristóteles, no seu bom senso, estava a contragosto, desconfiando que não passava de uma besta. Aristóteles... ora, ora! - de Souza!...

É que, de todos os seus estudos copiosos nunca lhe fora possível fazer um organismo unificado e harmonioso: o Problema da classificação dos conhecimentos escapava-lhe ao cérebro, intangível e sutil, em meio de todo aquele tumulto de noções anarquizadas, como o espírito do Senhor no caos dos primeiros dias do mundo. O espírito onipotente da síntese, obstinava-se em recusar o fiat às trevas daquela desordem.

Que desespero! Ter consciência de que sabia, de que lhe haviam entrado de enfiada no cérebro os conhecimentos matemáticos, lingüísticos, históricos, geográficos, astronômicos, e a física, e a química, e a história natural, desde a investigação microscópica até ao reconhecimento hábil e prático dos mais difíceis espécimes dos três remos da natureza; conhecer descritivamente todas as filosofias, desde Aristóteles, o outro, até Aristóteles, ele mesmo, ter meditado, uma por uma, as crenças e as religiões de todos os tempos e lugares, sem falar de uma leitura completa impossível de todas as literaturas em original, desde os poemas da neve escandinava até os poemas do sol do Himalaia, que desespero ser erudito, erudito, erudito! e não poder ligar, na rapsódia de uma concepção cosmogônica do universo, tanto retalho precioso!

Os sistemas filosóficos eram engenhosos, lógicos, concatenados. Mas não serviam porque, sendo razoáveis, eram diversos! O que é múltiplo em opinião não é verdadeiro. A luz é uma só e indiscutível. Aristóteles tinha por falsos todos os princípios debatidos. E, como a filosofia é uma polêmica, lá ia ele atordoado por entre as escolas como um bêbado.

Mas ardia por ver em que ficavam os pensadores para então filiar-se em remorsos à escola unânime e universal dos perfeitos sábios. Quando chegaria para esta solução o Messias mestre?

Infelizmente, não dispunha da necessária força, ele, Aristóteles de Souza, para fazer a paz entre os princípios. Só havia talvez resignar-se a morrer, dolorosa contingência! sem conhecer o advento bendito da Luz indiscutível e única.

Para compensar a tristeza da decepção, Aristóteles atirava-se aos livros com redobrada fúria, tentando embriagar-se com a contemplação dos fatos isolados.

O cenáculo dos seus excessos de erudito esfaimado, era o templo.

Templo chamava Aristóteles à biblioteca, situada no centro da casa. Estava-se aí em um retiro de completo sossego. A luz penetrava verticalmente por uma clarabóia de vidros foscos, e se dispersava, silenciosa e igual, descendo pelo lombo colorido dos volumes ao soalho tapetado, onde caía maciamente, como receando perturbar a paz absoluta do interior.

A sala era hexagonal, de uma arquitetura graciosa e opulenta. Seis estantes uniformes de madeira lavrada e fosca encobriam as paredes e cercavam o local, tocando os frisos do teto com os emblemas do estudo que as adornavam, globos terrestres, teodolitos, lunetas, tinteiros, troféus de penas e réguas artisticamente arranjados, panóplias completas dos combates do espírito, sobre alfarrábios amarrotados de páginas enormes - tudo primorosamente talhado em carvalho.

Duas portas comunicavam a biblioteca com os outros aposentos da casa. Sobre as portas desabavam amplos reposteiros da cor da madeira das estantes. A cada um dos seis ângulos, formados pelo encontro das estantes, havia uma estátua.

Quatro destas pequenas, ladeando as portas.

D. Quixote, de ponto em branco, magríssimo, sentado, espada de cavaleiro à cinta, heróico, cravando, na encadernação inofensiva dos livros do lado oposto, o desafio do olhar nobre e triste de vingador de agravos.

Hamleto, de pé, um gracioso descanso sobre um quadril, em traje ligeiro de jovem fidalgo, deixando ver até à coxa as longas meias do tempo, a mão esquerda sobre a espada, a direita fechada à altura do queixo, em gesto de fervorosa contensão meditativa.

Pela colocação da estátua, o olhar do príncipe sombrio ia direito às faces cavadas e aos longos bigodes desanimados de D. Quixote.

Fausto, o pobre filósofo, preocupado simultaneamente pela decepção espiritual e pelo amor intenso à vida, simbolizada em Margarida.

Mefistófeles, ao lado de Fausto, perseguindo-o ali mesmo na ornamentação da biblioteca, inseparável mentor das trevas, com o seu vestuário de pajem, o gorro, e a petulante pena oblíqua, e a ironia satânica.

As duas outras estátuas eram colossais. Aristóteles e Shakespeare.

As quatro primeiras descansavam sobre colunas de ferro negro, as duas últimas sobre peanhas quadrangulares de madeira pintada de branco.

Todas de bronze.

A de Aristóteles envolvia-se nas dobras simples e majestosas de um manto grego. Shakespeare trajava, segundo uma gravura muito conhecida que o representa perante a corte de Inglaterra.

O cone luminoso, baixando da clarabóia, chegava em toda luz aos nomes gravados nas peanhas. O corpo das figuras desenhava-se num crepúsculo que escurecia gradualmente para o teto; a fronte delas mal se distinguia no círculo de sombra que rodeava a clarabóia.

Em meio dessa sombra, como dentro de uma nuvem, percebiam-se confusamente rostos que olhavam para baixo fixamente - retratos de homens ilustres, obra rara de arte, pintados no teto sobre medalhões apensos às volutas do estuque, frondosamente distribuído para todos os lados, em torno do foco luminoso da clarabóia.

No centro da sala achava-se uma grande mesa cercada de divãs.

Aí se entregava Aristóteles aos seus furores de aplicação.

Como lhe sabia o estudo, ai na calma do isolamento, não ouvindo, sequer, o murmúrio farfalhado das árvores da serra, na íntima convivência dos livros, aspirando o cheiro das encadernações novas, ou a sagrada emanação dos infólios, perfume dos séculos!

Como era agradável passar as horas absorto, com as suas obras prediletas, ferozmente excitado pela febre de conhecer; ou, por desenfado, reclinar-se em um divã e permutar olhares de inteligência com os rostos vivos do teto, Dante, Petrarca, Moliêre, Klopstock, Cervantes, Byron, Guttemberg, Kepler, Beethoven, Miguel Ángelo, Kant, Cesar, Sócrates, Lafontaine, Ariosto, Hegel, Descartes, Darwin, Leão X, Spencer, cem figurões do espírito, com os quais privava o nosso sábio!

Que nobre entusiasmo lhe produziam então as estátuas! Como se entendiam bem Aristóteles e aqueles homens de bronze, que representavam a imortalidade do gênio e das obras geniais! Em êxtase de vaidade, mirando as esculturas, o sábio chegava a sentir-se digno também de uma transfiguração. Encontrava mesmo em si alguma cousa que o aproximava da natureza daquelas estátuas. O destino de um sábio é acabar estátua tarde ou cedo. No meio daquelas figuras, Aristóteles sentia-se um pouco monumento, como elas. Uma dormência estranha tomava-lhe as pernas, beribéri da glória! e ele sentia-se já metade bronze, bronze até à cintura, como aquele personagem das Mil e uma noites!

De súbito caía em si. Como pensar em estátua, um pobre diabo que não chegara a consolidar em um sistema os próprios conhecimentos, o triste sábio dos retalhos, avesso à síntese?!

Assaltavam-no assim inopinadamente dolorosos momentos de desânimo, no meio das preocupações do estudo.

Ele queria escapar à obsessão... Lã estava a síntese impassível, a rir sarcasticamente no Mefistófeles de bronze, a rir para ele, o espírito da classificação, como a zombaria da própria inépcia, fechando-lhe a estrada das aspirações!

Por mais que tentasse não foi possível a Aristóteles de Souza dominar a preocupação enferma.

A grande obra estava por fazer... Ele sentiu-se arrastado a acometê-la.

Estava perdido. Galgara a Babel do saber, e a ciência, a altura incalculável dos problemas, talhados a pique como precipícios, produzia vertigens tais ao seu espírito, que lhe fora preciso cerrar os olhos ao pensamento, para escapar ao desastre.

Bem o tentou, mas não foi possível. A idéia fixa escravizou-o. A dificuldade teimosa da solução passou a acabrunhá-lo como uma desgraça.

Até que um dia as cousas mudaram.

Ultimamente, à noite trancava-se Aristóteles na biblioteca, a meditar até muito tarde.

Certa noite, como de costume, dirigiu-se ele para o seu lugar de trabalho. A biblioteca estava fechada. Aristóteles parou à porta.

O sobrinho Sancho que, desde a hora do jantar, notava modos extraordinários no tio, viu-o espiar pela fechadura como se quisesse lobrigar alguma cousa no interior da biblioteca, cousa impossível aliás, por estar a sala sem luz e o reposteiro corrido.

Convencendo-se de que nada poderia ver, o sábio colou o ouvido ao orifício da fechadura. Esta nova observação não foi infrutífera; porque Aristóteles ali ficou um tempo imenso, curvado, dobrado, com as mãos nos joelhos, imóvel naquela auscultação absurda, como na observação tenaz do mais interessante fenômeno.

Vendo que se fazia tarde, incomodado pela insistência do sábio, o sobrinho acercou-se dele e receoso de causar desagrado perguntou muito docemente:

- Não deseja descansar, meu ti.?... Já é tarde...

O velho não ouviu; Sancho repetiu o convite.

Como se lhe disparasse dentro uma mola elétrica, Aristóteles empertigou-se bruscamente contra o sobrinho; e, rijo, teso, imperioso, formidável, apontou com a mão magra para a saída da ante-sala onde se achavam, rangendo entre dentes, com a voz surda e as sílabas trincadas:

- Retira-te!

Meio amedrontado, meio compadecido, o moço afastou se. Tinha certeza de que o tio era vítima de um desarranjo cerebral. Conservou-se à distância, observando-lhe a atitude.

Quase ao romper do dia, Sancho o viu retirar-se da porta da biblioteca, passar em silêncio como um espectro e recolher-se vagarosamente ao dormitório.

No dia seguinte um respeitável médico, chamado às Paineiras por Sancho, observou a repetição do estranho fato e constatou-se a loucura do sábio.

- Tanto esforço mental... explicou o facultativo com proficiência.

E um ano passou.

A loucura de Aristóteles, traduzindo-se por uma inofensiva mania, não tornara necessária a mudança do enfermo para um hospício. Limitava-se o velho a passar os dias embrutecido em um idiotismo inerte, contristador, desenvolvendo a ação da sua vontade unicamente para impedir, por meio de uma proibição assombrosamente enérgica, que se abrissem as portas da biblioteca.

À noite, invariavelmente, postava-se junto da porta do templo e levava horas e horas imóvel, extático, manifestando, na fisionomia, o gozo de um prazer imenso.

Conformados com a desgraça, o sobrinho de Aristóteles e os amigos adotaram o estado patológico do sábio como uma simples metamorfose das esquisitices do velho; e não viram, afinal, diferença nenhuma entre a nova mania de escutar à noite o silêncio da biblioteca e a antiga avidez maníaca de ciência e literatura. Dous capítulos coerentes da história vulgar de um sábio.

Em compensação, que profundíssimo desdém lhes votava Aristóteles! Espíritos rudes e escuros, não lhes era dado se quer desconfiar em que vertiginosas alturas andavam os condores do seu pensamento. E certo não valia a pena comunicar-lhes as grandes cousas que lhe vibravam ao ouvido, nas preciosas horas contemplativas.

Aristóteles sentia-se engrandecer.

Um clarão novo convulsionava-lhe o cérebro como uma batalha de relâmpagos. Rebentava uma florescência de estrelas, na escuridão caótica das suas idéias. Venturosa primavera de irradiações! Era ele! era ele o predestinado!

Narrava a Bíblia o conflito meteórico dos átomos conflagrados, antes da gênese divina da Ordem. Aristóteles sentia fabulosas as dimensões do seu crânio. Dispersos, odiando-se mutuamente, cercados de uma escuridão compacta, flutuavam-lhes as idéias adquiridas nos longos labores do estudo, rebeldes a qualquer tentativa de harmonização filosófica. Repentinamente toda essa escuridão se crivara de astros cada vez mais numerosos e mais brilhantes. As células educadas do seu cérebro, outrora inimigas, sorriam umas as outras, com a chegada da luz. Havia um ano essa tendência simpática progredia em intensidade no seu espírito.

Devia ser ele Aristóteles de Souza o pregoeiro bendito da paz universal do pensamento! Era impossível que depois de tanta exacerbação mental não lhe saltasse da cabeça, a Minerva armada e invencível da sabedoria única e evidente.

Por isso ouvia no templo aquela epopéia de rumores, cada noite mais assombrosa e mais vasta.

Maravilha! Os livros que Aristóteles descera das estantes para os estudos preparatórios da confecção de um fabuloso dicionário dos conhecimentos humanos e dispersara em desordem, cobrindo o tapete da biblioteca, subindo dous palmos pelo pedestal das estátuas, todo esse mundo de volumes abriam as páginas como mandíbulas e vociferavam. Aristóteles escutava extasiado o concerto estupendo das vozes.

Clamavam as filosofias, clamavam os apostolados da crença, estertoravam os mártires. Cadenciando o vozear desordenado das opiniões ardentes, ouvia-se a palavra calma dos livros didáticos, a proferir preceitos. Os geógrafos narravam viagens; os astrônomos revelavam descobertas. Prestando bastante atenção percebia-se o desmoronar longínquo dos impérios; de momento a momento uma página repetia as palavras de Baltazar; ouvia-se caírem os dias e os acontecimentos como as folhas das árvores: era o rumo da História.

À primeira noite Aristóteles de Souza fora impressionado por um ligeiro barulho. Encostando o ouvido à fechadura, pareceu-lhe sentir um tropel desordenado de ratos, folgando na biblioteca em trevas. Continuando a escutar, o rumor avolumou-se como o brado crescente de um trovão nos espaços.

Cresceu e transformou-se, ganhou modulações, ramificou-se em tumultos parciais confundidos por fim em uma erupção incalculável de clamores, como se uma batalha estanha se empenhasse entre os capítulos e as doutrinas.

Aristóteles gozava, exultando, a inaudita impressão daquela sinfonia de vulcões a contorcer para todos os lados os tentáculos da lava rugidora e espantando o universo com o bramir anárquico das crateras.

Sobre o turbilhão das ciências, dos princípios, das opiniões e dos fatos, reinava a soberania das artes. Pareciam estranhas à tempestade inferior. As obras de arte exalavam harmonias arrebatadoras, dominando às vezes a peleja colossal dos fatos e das doutrinas. Inteira bonança, lá em cima. As estrofes serenas pairavam na altura, como garças sobre o oceano revolto.

Às vezes um artista descia, destacando-se da suprema placidez; então baixava como um arcanjo vingador, esgrimindo um estardalhaço de raios e reerguia-se à eminência, deixando a desolação no torvelinho das opiniões, das tiranias, ou das vergonhas.

Esta contemplação estupenda acabrunhava Aristóteles. Não era impunemente que ele fruia esta audição de assombros. Cada vez que saboreava o seu estranho deleite, uma prostração mais pesada obrigava a procurar o leito.

Mas entregava-se a acessos de furor, se alguém tentava dissuadi-lo da fatigante penitência que se impusera.

Um belo dia, a debilidade não permitiu mais que ele se fosse postar no seu observatório do costume. O velho sábio implorou com lágrimas de desespero que o carregassem até à porta do templo.

Arranjaram-lhe aí uma cadeira confortável e Aristóteles ainda uma vez pôde chegar até o seu querido posto de observação.

Entretanto o sobrinho, um médico e alguns amigos presentes não viram mais acender-se o olhar do sábio como nas noites de entusiasmo. Ele colou o ouvido à fechadura, mas uma expressão dolorida de desapontamento foi o único ritos que lhe agitou a face.

Voltou para a cama mais abatido do que nunca. Com o olhar fixo e morto, os lábios entreabertos e os membros abandonados em contristadora flacidez passou ele o dia seguinte. Embalde lhe foram proporcionados excitantes, Aristóteles parecia extinguir-se de uma vez irremissivelmente.

À noite levaram-no carregado até à porta da biblioteca. Este recurso extremo foi sem resultado. O templo, dias antes, povoado pelo rumor incrível da batalha dos livros, estava silencioso agora. Tristíssimo silêncio.

- Ah! exclamou Aristóteles em um hausto de agonia, agitando a cabeça que lhe tombava em abandono para o peito. Nada mais ouço! nada, nada mais!...

A voz fraquíssima saía como soluços.

Poucos momentos depois, ali mesmo na cadeira expirou, abraçado com o sobrinho, que o cobria de lágrimas.

Expirou, coitado! quando provavelmente ia resolver o grande problema da paz das escolas. Porque não era crível que, de tão luminosa febre cerebral, não explodisse a verdade decisiva, mediadora eficaz do conflito dos espíritos.

Quando, depois das cerimônias fúnebres, abriram-se as portas da biblioteca, que por mais de um ano jazera trancada, encontraram-se os livros em miserável estado. Uma turma diligente de ratos devastara a livraria. Meia dúzia de volumes, se tanto, haviam escapado à sanha dos roedores.

Pobre Aristóteles! Não lhe sobreviveram os queridos livros!

Lá estavam esparsos, fragmentados, pulverizados, desfeitos, os seus companheiros de cinqüenta anos de trabalho.

Lá estavam os seus problemas aos pedaços, as suas teorias, feitas poeira de papel roído!

Lá estavam aos montes, conspurcados e miserandos, os destroços do vigor cerebral dos homens e da sabedoria dos séculos.

Sobre aquela devastação erguiam-se inalteráveis as estátuas com a mesma expressão que lhes dera o escultor à face de bronze, Hamleto, tenebroso e irônico, Fausto meditativo e preocupado, D. Quixote a fitar bravamente as estantes vazias, Mefistófeles, de riso cruel, e as figuras colossais do Filósofo e do Poeta, com a fronte perdida no escuro do alto, em meio da ramagem florestal do estuque e dos retratos admiráveis de grandes homens.

Fontes:
Biblioteca Virtual
Imagem = Tá Livren Monte