domingo, 16 de outubro de 2011

Julio Daio Borges (A Epopéia de Gilgamesh)


Qual é a história mais antiga do mundo? Para quem tem formação judaico-cristã, a Bíblia. Para quem cultiva o helenismo, os versos de Homero ou a Teogonia de Hesíodo. Mas, desde o século passado, sabemos que existe uma ainda mais antiga. Estamos falando da Epopeia de Gilgamesh, que a WMF Martins Fontes acaba de reeditar em formato pocket. Na introdução de N.K. Sandars (que estabeleceu a versão inglesa, a mesma que serve de base para a brasileira), ficamos sabendo que os primeiros autores da Bíblia deviam estar bastante “familiarizados com a história” de Gilgamesh e que esta, inclusive, “precede as epopeias homéricas em pelo menos mil e quinhentos anos”.

Como diria Nietzsche, Gilgamesh é uma história humana, demasiadamente humana, onde estão presentes “a busca pelo conhecimento, a mortalidade e a tentativa de escapar do destino do homem comum”. A epopeia se passa da Mesopotâmia, foi escrita pelos sumérios (que chegaram lá em 3000 A.C.) e está registrada nas mais antigas tábuas de Nippur. Historicamente, Gilgamesh surge como “o quinto monarca de dinastia pós-diluviana de Uruk”. Sim, há um dilúvio. Talvez o mesmo dilúvio bíblico. Pois, cronologicamente falando, a epopeia de Gilgamesh se situa no período entre Noé e Abraão, cujo único registro conhecido era o Livro do Gênesis.

Historicamente, mais uma vez, Gilgamesh foi “um rei que provavelmente comandou uma bem-sucedida expedição para trazer madeira das florestas do norte e que certamente foi um grande construtor”. Já na mitologia, Gilgamesh é dois terços deus e um terço homem, assim como Aquiles, cuja mãe era igualmente uma deusa. Aliás, os gregos já advertiam: “Aquele que se deita com uma deusa imortal perde para sempre a força e o vigor”. Qualquer semelhança com Adão e Eva, a maçã, a descoberta do pecado e a expulsão do paraíso não é mera coincidência. E, mesmo sem Guerras Mundiais como as nossas, reis como Gilgamesh já temiam que “os poderes do caos e da destruição escapassem ao seu controle”. O homem não comandava a natureza como hoje, e ela poderia se voltar contra a humanidade a qualquer instante, extinguindo o Homo sapiens.

Em termos de mitologia, mais uma vez, Gilgamesh habita “um mundo em que deuses e semideuses se confraternizam com os homens num pequeno universo de terra conhecida, cercado pelas águas desconhecidas do Oceano e do Abismo”. (Ruy Castro poderia chamar isso de Ipanema. E é bem por aí.) O texto em si é agradavelmente legível e muito melhor escrito que o de muitos autores da nossa própria época. Como tantos heróis conhecidos nossos, Gilgamesh “parte numa jornada”, “cansa-se”, “exaure-se em trabalhos”, “retorna”, “descansa” e “grava na pedra toda a sua história”. Gilgamesh é rei, e esse é seu destino. Mas Gilgamesh não viverá eternamente, e esse, também, é seu destino. Pois lhe é advertido: “Enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois isto também é o destino do homem”. “Não existe permanência”, antecipando Heráclito, a história registra. E antecipando, desta vez, o conceito grego de nêmesis e húbris: “Os heróis e os sábios, como a lua nova, têm seus períodos de ascensão e declínio”. Se a Bíblia, em suas múltiplas versões, serve de base para judeus, cristãos e muçulmanos, podemos dizer que Gilgamesh serve de base para toda a humanidade, assim como os gregos e os romanos transcenderam o chamado paganismo, pois escreveram a história ocidental, que é inescapavelmente a nossa História.

A Epopeia de Gilgamesh, assim como a Bíblia, os gregos e os romanos de nossa preferência, pode ser um livro de cabeceira, sim, pois, como Montaigne, que costumava se servir da filosofia, estamos sempre aprendendo a viver, e a morrer.
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Notas:
TEOGONIA =Teogonia (em grego, Θεογονία [theos, deus + genea, origem] - THEOGONIA, na transliteração), também conhecida por Genealogia dos Deuses, é um poema mitológico em 1022 versos hexâmetros escrito por Hesíodo no séc. VIII a.C., no qual o narrador é o próprio poeta.
O poema se constitui no mito cosmogônico (descrição da origem do mundo) dos gregos, que se desenvolve com geração sucessiva dos deuses, e na parte final, com o envolvimento destes com os homens originando assim os heróis.
Nesse mito, as deidades representam fenômenos ou aspectos básicos da natureza humana, expressando assim as idéias dos primeiros gregos sobre a constituição do universo.

NIPPUR =Nippur (sumério Nibru, acádio Niburu, "lugar de passagem") era uma importante cidade dos Sumérios onde estava o templo do seu deus principal, Enlil. Era abastecida com as águas do rio Eufrates através de um canal de irrigação conhecido como Quebar.

Segundo a mitologia, Enlil escolheu este "Local de Passagem" para a sua residencia quando foi expulso da sua primeira residência - O Edim - após ter cometido uma trangressão às ordens do deus Anu.

URUK
=Uruk era rodeada por uma muralha de aproximadamente 9km de extensão.(em sumério, Unug; o Erech bíblico; e o árabe Warka) foi uma cidade antiga da Suméria – posterior Babilônia – situada a leste do Eufrates, na linha do antigo canal Nil, numa região pantanosa, a cerca de 225 quilômetros sul-sudeste de Bagdá. O próprio nome moderno Iraque é derivado de Uruk.

Uruk foi uma das mais antigas e importantes cidades da Babilônia. Dizia-se que suas muralhas haviam sido construídas por ordem de Gilgamesh, que, diz-se, também mandou erguer o famoso templo de Eana, dedicado à Inana, ou Ishtar. Os extensos registros sobreviventes do templo, pertencentes ao período Neo-Babilônico, documentam a função social do templo como um centro de redistribuição social. Em tempos de fome, famílias podiam enviar crianças ao templo como oblato.
Uruk possuía um papel importante na história política do país desde tempos remotos, exercendo um poder hegemônico na Babilônia num período anterior a Sargão, o Acádio. Mais tarde desempenhou uma função de liderança nas batalhas nacionais dos babilônios contra o império Elamita até 2.000 a.C., quando sofreu severamente. A Epopéia de Gilgamesh apresenta relatos do conflito, sempre de forma literária e nobre.

NÊMESIS E HÚBRIS – A húbris ou hybris (em grego ὕϐρις, "hýbris") é um conceito grego que pode ser traduzido como "tudo que passa da medida; descomedimento" e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência (originalmente contra os deuses), que com frequência termina sendo punida. Na Antiga Grécia, aludia a um desprezo temerário pelo espaço pessoal alheio, unido à falta de controlo sobre os próprios impulsos, sendo um sentimento violento inspirado pelas paixões exageradas, consideradas doenças pelo seu caráter irracional e desequilibrado, e concretamente por Até (a fúria ou o orgulho). A húbris é relacionada ao conceito de moira, que em grego significa 'destino', 'parte', 'lote' e 'porção' simultaneamente. O destino é o lote, a parte de felicidade ou desgraça, de fortuna ou desgraça, de vida ou morte, que corresponde a cada um em função da sua posição social e da sua relação com os deuses e os homens. Contudo, o homem que comete húbris é culpável de desejar mais daquilo que lhe foi concedido pelo destino. O castigo dos deuses para a húbris é a nêmesis, que tem como efeito fazer o indivíduo retornar aos limites que transgrediu.

Fontes:
Digestivo Cultural n. 482 – Quarta-feira, 14/9/2011
Wikipedia

Clarice Pacheco (Os Professores da Minha Escola)


A professora de Matemática,
com suas contas complicadas,
falando em equações,
no Teorema de Pitágoras.

A professora de Português,
com seu modo indicativo,
falando em advérbios,
interjeições, substantivos.

A professora de Geografia,
com seus complexos regionais,
falando em sítios urbanos,
em pontos cardeais.

A professora de Ciências,
com seus ensinamentos ecológicos,
falando em evolução,
em estudos biológicos.

A professora de História,
com seus povos bizantinos,
falando na Idade Média,
no Imperador Constantino.

A professora de Inglês,
com seus don't, do e does,
falando em personal pronouns,
na diferença entre go e goes.

A professora de Artes,
com suas obras e seus artistas,
falando em artes ópticas,
em pintores surrealistas.

O professor de Educação Física,
com suas regras de voleibol,
falando sobre basquete,
em times de futebol.

Os professores da minha escola,
com suas matérias que às vezes não entendemos,
falando em todas as coisas,
que aos poucos vamos aprendendo.

Fonte:
O Pensador
Imagem = Portal Carangola

Ivan Carlo (Manual de Redação Jornalística) Parte 8


CAPÍTULO 7
A RETÓRICA DO JORNALISMO

O objetivo do jornalismo não é só informar, mas também criar uma empatia do leitor com a matéria. A matéria jornalística precisa, também seduzir.

Exemplos:

Matérias sobre olimpianos - habitantes do olimpo da indústria cultural. Pelé, papa, lady Di.

Notícias sobre personagens que correspondem a estereótipos ou arquétipos sociais: o malandro que engana a todos, o vingador destemido, o ladrão Robin Hood, o herói revolucionário ou destemido.

Notícias sobre dramas humanos. Todos os pais se identificam com o pai de uma criança sequestrada. Todas a mulheres solteironas se identificam com o drama da mulher que não consegue arranjar marido.

Todo motorista se identifica com o drama do motorista que não consegue tirar carteira. Toda pessoa honesta se identifica e se comove com o caso do comerciante que foi preso por ter sido confundido com perigoso bandido.

Notícias sobre personagens que representam as aspirações coletivas, àquilo que as pessoas gostariam de ser: mais felizes, mais realizadas, mais saudáveis. Um sub-item dessa categoria é o daquelas pessoas que conseguiram vencer os obstáculos, chegando mais próximo daquilo que são as aspirações coletivas. São notícias sobre pessoas que conseguiram vencer os problemas e deram a volta por cima. Exemplos de matérias que exploram esse aspecto: eu venci o câncer, eu venci a morte, eu venci o preconceito racial, eu venci a pobreza.
––––-
continua…

Fonte:
Virtualbooks

Júlia Lopes de Almeida (A Mulher Brasileira)


O europeu tem a respeito da mulher brasileira uma noção falsíssima. Para ele nós só nascemos para o amor e a idolatria dos homens, sendo para tudo mais o protótipo da nulidade.

Dir-se-ia que a existência para nós desliza como um rio de rosas sem espinhos e que recebemos do céu o dom escultural da formosura, que impõe a adoração... Nem uma nem outra coisa. Nem a mulher brasileira é bonita, se não nos curtos anos da primeira mocidade, nem tão pouco a sociedade lhe alcatifa a vida de facilidades. Ela é exatamente digna de observação elogiosa pelo seu caráter independente, pela presteza com que se submete aos sacrifícios, a bem dos seus, e pela sua virtude. A brasileira não se contenta com o ser amada: ama; não se resigna a ser inútil: age, vibrando à felicidade ou à dor, sem ofender os tristes com a sua alegria e sabendo subjugar o sofrimento. Parecerá por isso indiferente ou sossegada, a quem não a conhecer senão pelas exterioridades. Mas não tivesse ela capacidade para a luta e ainda as portas das academias não se lhe teriam aberto, nem teria conseguido lecionar em colégios superiores. A esses lugares de responsabilidade ninguém vai por fantasia nem chega sem sacrifícios e coragem. Apesar da antipatia do homem pela mulher intelectual, que ele agride e ridiculariza, a brasileira de hoje procura enriquecer a sua inteligência freqüentando cursos que lhe ilustrem o espírito e lhe proporcionem um escudo para a vida, tão sujeita a mutabilidades....

Se o seu temperamento é cálido e voluptuoso, a sua índole é honesta e ativa e o seu pensamento despido de preconceitos.

Se uma mulher brasileira, (se há excepções? há-as de certo!) cai de uma posição ornamental em outra humilde, é de rosto descoberto que dia procura trabalho então vai ser costureira, mestra, tipógrafa, telegrafista, aia, qualquer coisa, conforme a educação recebida, ou o ambiente em que vive...

Nessas ações, não há simplicidade, — há estoicismo e uma compreensão perfeita da vida moderna: que é a guerra das competências. A brasileira vive ociosa; é uma frase injusta e que anda a correr mundo, infelizmente sem protesto. Porque?

Toda a gente sabe que no Brasil só não amamenta os filhos a mulher doente, aquela que não tem leite ou que o sabe prejudicial em vez de benéfico!

Ricas ou pobres, as mães só tem uma aspiração: — aleitar, criar os seus filhos! Este exemplo devia ser citado, porque, à proporção que esta virtude se acentua entre nós, parece que nos países mais civilizados vai se tornando escassa!

A mulher brasileira ama com mais intensidade, talvez; dedica-se toda, sem medo de estragar a sua beleza, às comoções da vida. Aí vemos as pobres mulheres dos soldados, seguindo-os à guerra, acompanhando-os nas batalhas, matando quem os fere, ferindo quem os ameaça, erguendo-lhes das mãos moribundas a espingarda com que os vingam!

Estas energias não são filhas do acaso, vêm-nos da mistura de sangues com que fomos geradas, vêm-nos desta natureza portentosa e que por toda a parte nos ensina que a vida é uma grande fonte que não deve secar inutilmente!

Nos países tropicais a precocidade é tamanha que a existência da menina passa como um sopro e começam bem cedo as responsabilidades da mulher. Por vezes o assalto é tão repentino que não há tempo de preparar na criança o espírito da donzela. Namorada de si mesma, no deslumbramento da mocidade, ela afigurasse-nos então frívola e perigosa. Receia a gente pelo futuro da pobre criança, estonteada pela vida como uma mariposa pela luz. Quanto mais melindrosa é essa quadra, quanto mais vagares tem a imaginação, alvoroçada pelos sentidos, de arquitetar castelos mentirosos! Felizes as donzelas pobres, obrigadas pelas circunstâncias apertadas da vida a empregar a sua inteligência e a sua atividade no trabalho e no estudo! São as mocinhas que, para irem às aulas que freqüentam, engomam as suas saias ou cosem as suas blusas, as mais habilitadas para a resistência das paixões ruins. Decididamente, o trabalho é o melhor saneador de almas! E nós precisamos da nossa muito sã, porque só a virtude da mulher pode salvar os homens, seus filhos e seus irmãos, no descalabro das sociedades arruinadas ou em deliqüescência... A nossa força está na nossa bondade e no nosso critério, coisas que, quando não são naturais, fazem-se pela vontade.

Nós, as brasileiras, perdemo-nos pelo excesso de sentimento. Ainda não aprendemos a dominar o nosso coração, que se dá em demasia, sem colher por isso grandes resultados...

O europeu, tratado com rigor pela mãe, não tem por ela menos respeito (talvez tenha mais!) nem menos carinhos que os nossos filhos têm por nós... que nos desfazemos por eles em sacrifícios e ternuras! Parece que a blandície perene enfraquece a alma do indivíduo, tornando-o um pouco indiferente...

Há muito quem afirme que no Brasil a mulher domina como soberana; e já um escritor português disse dela, relatando as suas observações em um livro de viagem:

"... A mulher deve ser, entre esta raça, superior a todas as coisas. Vê-la passar na rua e compreender a comoção que ela causa é ter reconhecido todo o alcance do seu prestígio. Inspira devoção, tem um culto. Não é mulher companheira do homem, sua irmã de trabalhos e de penas; é a mulher ídolo, a mulher sacrário. Mãe, filha, esposa ou cortesã, ela será neste país e para este povo a suprema instigadora, e a sua vontade, como o seu capricho, terão o cunho autêntico de leis, assim no lar como nas alcovas. Será ela quem predomine e da sua boa ou má influência dependerá, talvez, o destino histórico desta nacionalidade."

É possível que assim seja de futuro, visto que a brasileira de hoje tem mais ampla noção da vida; a lição passada, porém, desgraçadamente, é outra.

A verdade, que deve aparecer aqui, é que nos acontecimentos culminantes da nossa história, aqueles que nos fatos da nacionalidade brasileira iniciam períodos de renovação e de progresso — a independência, a abolição, a república — a intervenção da mulher, direta ou indiretamente considerada, quando não foi nula foi hostil.

Entretanto, estes fatos, para só falar dos príncipes, tiveram todos longa, persistente, tenacíssima propaganda, e realizaram-se sem a mulher ou... Apesar da mulher!

A sinceridade deste livro, exige este desabafo doloroso.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).
Imagem = Anacrônico

Marcelo Spalding (A Revista Veredas e os Mil Minicontos)


Os leitores que me acompanham há tantos anos aqui no Digestivo sabem que não gosto de falar de mim, de meus livros, etc, mas me permitam nesta coluna contar a história da Revista Veredas, um site hoje dedicado ao miniconto que surgiu no longínquo ano de 1998 e dura até hoje, sendo uma referência no gênero.

O surgimento remonta ao tempo em que eu ainda estava na escola, Ensino Médio, e ao lado de um amigo, Rodrigo Link, resolvemos editar uma revista de literatura para publicar os textos de nossos colegas de escola. O primeiro texto inédito, feito a quatro mãos, se chamava "100 coisas para fazer antes que o mundo acabe", ironizando aquela histeria do fim do mundo na virada 99/2000. Bem, aquelas primeiras edições eram feitas em HTML no Bloco de Notas, depois em Front Page com seus inconfundíveis frames, hoje tão grosseiros.

Daí em diante, terminamos a escola, eu fui fazer Jornalismo, ele seguiu para a Física, mantive a newsletter primeiro semanal, depois mensal (um pouco inspirado no sucesso do Cardoso Online), e quando entrei no mestrado e comecei a estudar o miniconto resolvi mudar a cara da revista, convidando a querida Ana Mello para ser editora.

Certo, e por que lembrar disso agora? Acontece que nesse mês de agosto aconteceram dois fatos marcantes para a Veredas e para nós: primeiro, chegamos a 1000 minicontos publicados, textos dos mais variados autores, das mais variadas cidades, do Brasil e de Portugal. Todos os textos são enviados pelos próprios autores e, na grande maioria, são inéditos. Segundo: a revista Veredas foi parar nas páginas de um livro didático como referência de minicontos. Sim, foi no "Viva Português", de Elizabeth Campos, Paula Marques Cardoso e Sílvia Letícia de Andrade, da Editora Ática.

Episódios como esse são interessante porque evidenciam como, aos poucos, aquela geração que conheceu fascinada a internet discada e montou os primeiros sites de cada assunto vai se tornando parte da história (são pessoas que navegavam no Netscape e faziam buscas no Altavista, participavam de chats no ZAZ e trocavam mensagem com amigos no ICQ). E como aqueles sites, antes marginalizados num sistema de comunicação de massa, têm se institucionalizado.

Voltemos ao Veredas de hoje e seus mil minicontos. O miniconto, como se sabe, é um gênero que encontrou grande aceitação na internet, onde tudo é muito rápido e as pessoas não têm tempo (ou paciência) para ler textos longos. Muitos perguntam qual o limite de tamanho do miniconto, mas prefiro não falar em limites, e sim pensar na necessidade do texto: se um texto pode ser completo e ainda causar um efeito no leitor com dez linhas, duas linhas, duas palavras, ótimo! Senão, sem problemas, vá adiante e faça um conto, o importante é não forçar, cortar, espremer uma história em determinado número de linhas apenas por questões formais.

Entre os mínis do Veredas há alguns bem curtos, como um dos destacados pelo livro:

NÃO FICAREI SOZINHA, de Eduardo Oliveira Freire
A boneca escondeu-se na mala onde estava guardado o enxoval de casamento da amiga.

CLIMA, de Tamara Rosa
Ela chuva, ele sol.

Este último, aliás, foi produzido por uma aluna da escola Ruben Darío, de Sapucaia do Sul, o que nos deixa muito satisfeito, pois além de editar a Revista, a Ana Mello e eu (além da Laís Chaffe) participamos de diversas oficinas de minicontos, inclusive uma inesquecível no SESC Copacabana (Rio de Janeiro) de onde saiu essa pérola:

DEPOIS, de Fábia Schnoor
Gostava que mexessem em seus cabelos.
Lembrava que estava vivo e de como a infância e o câncer tinham ficado para trás.

Gosto muito desses mínis curtos, certeiros. Cortázar dizia que enquanto o romance vence por pontos, o conto vence por nocaute. Pois o miniconto deve vencer por nocaute no primeiro soco do primeiro round.

CONSOLO, de Valesca de Assis
Às vezes a mãe fica nervosa e me põe de castigo e me chama de menino malvado. Então, antes de chorar, tiro do bolso um papelzinho onde ela limpou o batom e beijo o beijo dela.

ALÍVIO, de Marli Fiorentin
Ana acordou num sobressalto de madrugada. Ainda meio adormecida, custou a entender, em meio a vozes alteradas e choros: "Pedro morreu". Escorregou devagar para baixo das cobertas. Imóvel, respiração presa, temia ouvir que tinha sido engano. Era bom demais para ser verdade.

Esse primeiro soco pode demorar um pouco mais, exigir alguma atenção para fisgar o leitor, até porque fazer rir é mais fácil do que emocionar. Vejamos esse exemplo de Leonardo Brasiliense, um premiado minicontista e frequente colaborar da Veredas:

SOLIDARIEDADE, de Leonardo Brasiliense
Numa esquina da avenida mais movimentada, às sete da noite, o sinal fica verde, entretanto a carroça do papeleiro não se mexe. Os motoristas começam a buzinar. O papeleiro agita as rédeas, faz um som esquisito com a boca, e nada adianta. O cavalo empacou. Os motoristas, já numa fila de incontáveis faróis e buzinas, com o que lhes resta de forças depois de mais um dia cansativo e estressante em seus escritórios e repartições, gritam, xingam, amaldiçoam. O papeleiro, por sua vez, com o que lhe resta de fôlego depois de mais um dia de sol pelas ruas da cidade, os braços fracos de abrir lixeiras desde as seis da manhã, desce da carroça empunhando um cabo de vassoura e grita, bate, espanca. E o cavalo, com o que lhe resta de si depois de mais um dia que ele nem sabe que passou, com a fome de hoje somada à de ontem e anteontem que o deixam lerdo e confuso, ajoelha-se, de olhos fechados, como quem reza para morrer.

Ou este, de Wilson Gorj, outro contumaz escritor de minicontos, colaborador do Veredas e autor de diversos livros:

INFLÁVEL, de Wilson Gorj
Só transava com prostitutas. Na milésima transa, algo espantoso aconteceu. De repente, sentiu o corpo esfriar, mas de tal maneira que sua parceira acreditou tê-lo matado de prazer. O homem não se mexia mais: boca e olhos abertos para o nada.
Acabara de sofrer uma transmutação. Sua pele mudara de textura. Parecia borracha.
No lugar de músculos, apenas ar.

A relação com a poesia também está sempre presente, seja pela forma, seja pela subjetividade. Mas o miniconto, diferente do poema curto, requer uma narrativa, uma sucessividade e, acima de tudo, deve causar um efeito no leitor.

OLHAR ANIMAL, de Luiz Eduardo Amaro
Observou-a com olhos de lobo.
Aproximou-se com olhos de lince.
Atacou-a com olhos de águia.
Suplicou-lhe com olhos de poodle.
Retirou-se com olhos de burro.
Ela nunca assistia ao Animal Planet.

Evidentemente nem todos os mil e tantos minicontos da Veredas figurariam numa edição em livro, digamos assim, da própria revista. Mas talvez esse seja outro mérito da internet, a diversidade: há estilos, formas e conteúdos dos mais variados. O editor de uma revista web não é como o editor de um livro: o editor de um livro seleciona poucos entre muitos, enquanto o editor web filtra muitos entre muitos, ampliando e incentivando a participação do leitor, mas garantindo credibilidade para a revista que edita.

Enfim, escrevo este texto e repito aqui o endereço da Veredas não para pedir mais leitores, mas para pedir que você envie seu texto para nós e ajude a formar esse mosaico minimalista e plural: www.veredas.art.br.

Fonte:
Digestivo Cultural . 23/09/2011

Cronica (Origem, definição, tipos)


O que é uma Crônica?
O cotidiano é feito, em sua maior parte, de banalidades, mesquinharias e irritações, esteja você em Paris ou em Barbacena. Observá-las, chamar atenção para elas por meio de linguagem escrita, transformando-as em breves momentos poéticos, é tarefa que requer distanciamento, capacidade de abstração, certa maturidade vivencial — trabalho de cronista, enfim, que resulta, como definem os teóricos, entre o conto e a poesia. (Bernardo Ajzenberg)

1. A origem da crônica

Já nas mais antigas civilizações conhecidas (Egito, Suméria, Assíria) aparece uma curiosa figura: o escriba. Sua função? Escrever, é evidente. Escrever o que e para quem? Estava a serviço do rei, faraó, ou pessoa de grande destaque na hierarquia dirigente. Fazia o registro de operações de compra e venda, uma contabilidade rudimentar, preparava dados biográficos de nobres e aristocratas, mas, principalmente, acompanhava seus chefes nas campanhas guerreiras, fazendo relatos de cada etapa, vitória, derrota ou conquista. Tais registros seriam lidos, ao retorno das andanças bélicas, pelos sacerdotes, para encantamento da população que mandara seus filhos ao sacrifício pela glória do supremo dirigente.

O que se pode deduzir de tais registros é que não passavam de uma espécie de “diário de campanha”, cuja fidelidade aos fatos era bastante duvidosa, já que se destinavam a elogiar e enaltecer o chefe. Essa tendência de muitos escritores se mantém até os dias atuais, refletindo o que diz esta antiga máxima: “Aos reis, como às crianças, é preciso enganá-los, para seu próprio bem”. Sintomaticamente, José de Alencar colocou esse provérbio na introdução de seu livro Crônica dos Tempos Coloniais, debaixo de um subtítulo: Advertência.

Aí está, com todos os seus vícios de origem, a primeira manifestação de um gênero que, depois, derivou para a crônica, ou para o diário e até para a autobiografia.

O que mais se aproxima, hoje, da atividade dos antigos escribas é, certamente, o noticiarista, encarregado de relatar os fatos do dia-a-dia, para jornais, rádios e televisões, sem acrescentar-lhes comentários.

O cronista de si mesmo

Outro tipo de cronista é o que dispensa o escriba e passa a relatar seus próprios feitos gloriosos. Exemplo típico foi Júlio César que, no livro De Beilo Galico (sobre a Guerra nas Gálias), contou sua saga para a posteridade. Foi bastante imitado, tanto assim que relatos desse tipo, assinados por grandes personalidades históricas, como o marechal Montgomery, o general von Rommell e outros, são freqüentes.

Se, por um lado, isso pode levar a distorções quanto à veracidade dos fatos, por outro, o receio de parecer ridículo, exagerado ou. até mentiroso deve ter contido, em muitos desses relatos autobiográficos, os impulsos de auto-exaltação. Pelo menos uma constatação tem sido feita: os historiadores não encontraram muitos fatos a contestar em tais crônicas de campanha.

O cronista a distância

O cronista pode também manter-se a distância dos fatos. É bem antiga essa forma de relatar. Já a encontramos em Homero que, com certeza, não esteve presente nos episódios que relatou. Mas sua forma de dizê-lo, embora em versos, é típica da crônica:

Fomos aí ter a magnífico porto, cercado ele todo de pedras íngremes, que nuas se erguem por ambos os lados.
Dois promontórios, em frente postados um ao outro, se encontram logo na entrada, salientes...

A linguagem é a mesma do cronista “testemunha ocular da História”, mas, evidentemente, muito de imaginação e de visão poética entrou na composição da Odisséia e da Ilíada.

Porém, um fato bem posterior e até recente comprova que, mesmo a distância, Homero procurava a fidelidade histórica. Tanto assim, que foi pela sua obra que se localizou o sítio onde outrora existiu a cidade de Tróia.

Cronista a distância também foi Fernão Lopes, o mais importante dos relatores portugueses da passagem da época medieval para a renascentista, pois ele escreveu e recompôs, com base em documentos pesquisados, a vida e os feitos de diversos reis de Portugal.

O fato de fazerem crônicas a distância aproxima-os muito do historiador, pois o fato histórico e sua análise se mantêm, perpetuando seus protagonistas.

É ainda José de Alencar quem nos conta como concebeu o livro Guerra dos Mascates:

Tornando ao gabinete, depois de uma manhã perdida, deu-me a curiosidade de examinar as antigualhas do embrulho (que lá fora deixado por um sacristão...) antes de mandá-las para o lixo. (...) Era o manuscrito de uma crônica inédita sobre a Guerra dos Mascates.

E assim nasceu o livro de Alencar, a partir de antigos alfarrábios deixados por algum cronista anônimo...

A crônica moderna

Na verdade, a crônica que chamaremos de moderna não é tão moderna e talvez não seja tão crônica...

Por exemplo: a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, relatando a descoberta do Brasil, não é uma carta. E uma crônica, no melhor dos estilos de “testemunha ocular da História”. Respeitou todas as técnicas da cronologia, com datas e até horários, descrevendo passo a passo os acontecimentos. Por outro lado, o autor faz comentários, aconselha, sugere, critica, tudo ao mesmo tempo.

Ora, essa miscelânea, quer de assuntos, quer de posições assumidas pelo cronista, é bem típica de uma vertente da crônica atual. Ela começa com pequenos tópicos, baseados em acontecimentos do dia e analisados ora jocosa, ora hurnoristicamente. Quase sempre mordaz, de vez em quando é poética, intimista, porque vai à intimidade do autor, geralmente personalidade famosa do mundo das letras, sobre quem o leitor quer sempre saber mais alguma coisa, de preferência íntima, particular, secreta. Um exemplo bem marcante é a crônica “Meu filho”, em que Vargas Llosa revela pormenores de sua vida familiar, de roldão com sua atividade mundana como integrante de júris cinematográficos.

Cronistas modernos

No Brasil, tal tipo de miscelânea teve grandes figuras: Viriato Correia, Humberto de Campos e seu Conselheiro XX, Álvaro Moreyra, João do Rio e, bem mais modernamente, Rubem Braga, Fernando Sabino, Rachei de Queiroz, Paulo Francis, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro, Luís Fernando Veríssimo.

Mas há também tipos de crônica que se especializaram: a crônica política, como a que faz Carlos Heitor Cony e Alexandre Garcia; a esportiva, como a que fazia João Saldanha; a humorística, de Luís Fernando Veríssimo; a social, de Jacinto de Thormes; a gastronômica, de Sylvio Lancellotti; a econômica, de Joelmir Betting; e tantas outras.

A crônica, hoje, é abrangente, envolvente: abarca memória e profecia, presente e passado, literatura e polêmica, exaltação e condenação. Está livre dos senhores e mecenas, cada vez mais personalizada, refletindo muito mais o subjetivismo do autor do que o objetivismo dos fatos. E o cronista transforma-se em testemunha ocular de si mesmo.

2. Tipos de crônica

Como classificar uma modalidade tão maleável como a crônica? O que os textos geralmente têm em comum é a brevidade, a abordagem reflexiva e subjetiva do autor. Apenas a crônica narrativa pode não apresentar um posicionamento impressionista do narrador, atendo-se tão-somente aos fatos, à história criada.

Por isso, na classificação que ora apresentamos, as crônicas foram divididas considerando-se o procedimento textual predominante — o comentário, a narração, o lirismo e outros —, o que não elimina a mescla de procedimentos nem a impressão subjetiva exteriorizada pelo autor.

3. Crônica descritiva

Quando uma crônica explora a caracterização de seres animados e inanimados num espaço, viva como uma pintura, precisa como uma fotografia ou dinâmica como um filme, temos uma crônica descritiva. A captação impressionista, particularizada e conotativa dos elementos define a descrição subjetiva; a captação referencial, impessoal e denotativa define a descrição objetiva. O descritivismo é sempre veículo para reflexões numa crônica centrada na descrição.

O mato

Veio o vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva que passou toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade entardeceu em brumas. Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. O capim cheio de água molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vagalumes nem grilos.
Pôs a mão no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na cara as gotas de água como se fosse uma bênção. Ali perto mesmo a cidade murmurava, estalava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar impaciente de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores, um canto de mato, uma pedra escura. Ali perto, dentro de uma casa fechada, um telefone batia, silenciava, batia outra vez, interminável, paciente, melancólico. Alguém com certeza já sem esperança, insistia em querer falar com alguém.
Por um instante, o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele telefone tocando em vão era um dos milhões de atos falhados da vida urbana. Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no jogo de ambições e vaidades, na procura de amor e de importância, na caça ao dinheiro e aos prazeres. Ainda bem que de todas as grandes cidades do mundo o Rio é a única a permitir a evasão fácil para o mar e a floresta. Ele estava ali num desses limites entre a cidade dos homens e a natureza pura; ainda pensava em seus problemas urbanos — mas um camaleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e úmida das árvores, e à pedra escura, com sua pele de musgo e seu misterioso coração mineral.
E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num grande sossego, farto de terra e de água; ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angústia nem amo,; sem desejo nem tristeza, fone, quieto, imóvel, feliz.
(Rubem Braga)

Essa crônica descritiva constrói-se através da caracterização de seres e objetos, num cenário que vai da cidade à natureza. O texto apresenta o efeito estético do universo urbano definido sobretudo pela enumeração da cidade, com o recurso de assíndetos e polissíndetos reproduzindo os ritmos da cidade grande e da natureza. A linguagem do autor é impressionista: sua visão subjetiva dos elementos marca-se por inesperadas sinestesias (“telefone impaciente e melancólico”, “vida silenciosa e úmida das árvores”, “pedra escura com seu misterioso coração animal”).

4. Crônica narrativa

Menor que um conto e maior que uma piada, a crônica narrativa conta um episódio cativante cuja trama é leve e digestiva, envolvendo muita ação, poucas personagens e uma conclusão inusitada. O humor anedótico ou a crítica mordaz são os traços mais comuns da crônica narrativa. Geralmente, não há intromissão do narrador (digressões, comentários, apontamentos dissertativos).

Choro, veia e cachaça

Enterro de pobre sempre tem cachaça. É para ajudar a velar pelo falecido. Sabem como é; pobre só tem amigo pobre e, portanto, é preciso haver um incentivo qualquer para a turma subnutrida poder agüentar a noite inteira com o ar compungido que o extinto merece.
Enfim, a cachacinha é inevitável, seja numa favela carioca, seja num bairro pobre da cidade do interior; Foi o que aconteceu agora em Ubá (MG), terra do grande Ari Barroso. Morreu lá um tal de 56 Nicolino, numa indigência que eu vou te contar; Segundo telegrama vindo de Ubá, alguns amigos de 58 Nicolino compraram um caixão e algumas garrafas de cangibrina, levando tudo para o velório. Passaram a noite velando o morto e entornando a cachaça. De manhã, na hora do enterro, fecharam o caixão e foram para o cemitério, num cortejo meio ziguezagueando e num compasso mais de rancho que de féretro. Mas — bem ou mal — lá chegaram, lá abri rata a cova e lá enterraram o caixão.
Depois voltaram até a casa do mono, na esperança de ter sobrado alguma cachacinha no fundo da garrafa. Levaram, então, a maior espinafração da vizinha do pranteado 56 Nicolino. E que os bêbados fecharam o caixão, foram lá enterra,; mas esqueceram o falecido em cima da mesa.
(Stanislaw Ponte Preta)

A crônica de Stanislaw Ponte Preta é narrativa, pois conta uma breve história em tom humorístico, numa linguagem cotidiana, coloquial e intimista, com sabor tipicamente brasileiro.

5. Crônica narrativo-descritiva

Quando um texto alterna momentos narrativos com flagrantes descritivos, temos uma abordagem narrativo- descritiva. Dessa forma, as ações detêm-se para que o leitor visualize, mentalmente, as imagens que a sensibilidade do autor registra com palavras. O que se observa no texto assim qualificado é a predominância da sucessão de ações sobre as inserções descritivas.

Observe essas características na brevidade da crônica abaixo.

Brinquedos

Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar se incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d’água. A eles não interessava nada, peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e os palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas.
Brinquedos que jamais teriam possuído, sonho apenas da infância, amor platônico.
O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um famoso galpão de cinzas.
Felizmente, ninguém tinha morrido — diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? —pensavam as crianças. Tinha morrido um mundo, e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados.
E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos, sem socorro, nós, brinquedos que somos, talvez, de anjos distantes!
(Cecília Meireles)

Nessa crônica de Cecília Meireles, alternam-se a narração — “Ora, uma noite correu a notícia de que o bazar se incendiara” —, a descrição — “O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas (...)“

— e a reflexão — “Até que um dia desaparecêssemos, sem socorro, nós, brinquedos que somos (...)“. O desenvolvimento narrativo-descritivo configura-se, pois, como um veículo para a reflexão. Submetido à linguagem poética, nesse hibridismo textual, o patético torna-se lírico.

Nudez

A filha tentava convencer a mãe a ir à praia e a velha resistia:
estava muito idosa e gorda para vestir maiô.
— Mas, mamãe, eu já vi de maiô, na praia, muitas senhoras mais velhas e mais gordas do que você!
E a velha suavemente:
— Eu também já vi. Por isso é que não vou.
Para mim, o critério dessa velha é o critério certo em matéria de nudez, O que é feio se esconde. Um moço, uma moça, no esplendor da juventude, seus belos corpos podem se mostrar praticamente desnudos, de biquíni, de sunga, de cavado: assim tão enxutos, rijos, tostados, chegam a ser castos. Predomina a impressão de beleza e saúde sobre a sugestão erótica. E, depois, sabe-se que aquela floração é tão transitória! Deixem que os jovens fruam o instante passageiro, que usem e mostrem os corpos na sua hora de flor antes que chegue a hora da semente e do declínio.
Afirmam os nudistas, com perfeita lógica, que, todo o mundo andando nu, a nudez acostuma e deixa de escandalizar: sim, acredito que num campo de nudistas se acabe vivendo com a mesma naturalidade que numa sala de famz7ia. Aliás, quem convive com índios sabe disso: o hábito torna a nudez invisível O que eu tenho contra os nudistas é a exibição obrigatória da feiúra humana, o seu despojamento total, a miséria fisiológica sem um véu que a disfarce. O ridículo, a falta de dignidade de todo o mundo nu.
Certa amiga minha, que, numa praia da Noruega, de repente se viu dentro de um grande bando de gente nua, diz que o seu choque primeiro não foi o da vergonha, foi o do grotesco. As pelancas, os babados, os rins flácidos, os joelhos grossos. A velhota magra com seus ossinhos de frango assado, a quarentona de busto murchinho, o senhor ruivo de barriga redonda, braços e canelas tão finos e peludos que, se tivesse mais duas pernas, seria igual a uma aranha. A matrona obesa e o seu esposo idem e o par de jovens rechonchudos, de mãos dadas como dois porquinhos enamorados. A seca donzela machona de coxas de cavalete, e a falsa Vênus de cintura grossa, com o falso atleta de torso enorme e pernas curtas. Da tribo toda, praticamente só se salvaram os adolescentes e as crianças.
A humanidade nua é feia, não há dúvida. E por isso mesmo a gente se oculta debaixo da roupa. Talvez mais do que para o defender do frio, a roupa se inventou para encobrir o corpo e lhe dar dignidade. O que é bonito se mostra, o que é feio se esconde, é a lei de todas as culturas humanas. Nada mais triste do que a deterioração do que foi belo. Ninguém usa no dedo um anel sem a pedra, ninguém bota na sala um ramo de flores murchas.
(Rachel de Queiroz)

Alternam-se nessa crônica diferentes processos textuais: a narração (com o recurso do discurso direto), a reflexão (através de digressões que formam um comentário sobre o assunto) e- a descrição (uma captação fotográfica da situação exposta). Enquanto a subjetividade opinativa assinala os comentários reflexivos, o humor pleno de sinestesias marca a irreverência descritiva.

6. Crônica lírica

Quando a nostalgia, a saudade e a emoção predominam, tentando traduzir poeticamente a linguagem dos sentimentos, a crônica é lírica.

Apelo
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite pela primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada.
Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença a todas as aflições do dia, como a última luz na varanda.
E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero na salada o meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? As suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa, calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor
(Dalton Trevisan)

No contexto da crônica, a ausente figura feminina presentifica-se por meio do impressionismo do autor. No lirismo nostálgico, está o predomínio das funções poética e emotiva da linguagem. A função conativa (o vocativo “Senhora”) reitera o título “Apelo”, sugere o destinatário, mas não o identifica, O texto ganha expressividade nessa indefinida mulher: o leitor é instado a supor a identidade da senhora ausente com a mesma intensidade com que supõe o motivo da ausência, e, dessa forma, identifica-se com as emoções do narrador.

7. Crônica reflexiva

Se a interioridade do autor projeta-se sobre a realidade que o cerca, interpretando-a e registrando-a através de conjecturas, inferências e associações de idéias, temos a crônica reflexiva.

Vitória nossa
O que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia?
Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos ser tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos, nem aos outros. Não temos nenhuma alegria que tenha sido catalogada. Temos construído catedrais e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e talvez sem consolo. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor diga: teu medo. Temos organizado associações de pavor sorridente, onde se serve a bebida com soda. Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de amor e de ódio. Temos mantido em segredo a nossa morte. Temos feito arte por não sabermos como é a outra coisa. Temos disfarçado com amor nossa indiferença, disfarçado nossa indjferença com a angústia, disfarçando com o pequeno medo o grande medo maior. Não temos adorado, por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fiui tolo”, e assim não chorarmos antes de apagar a luz. Temos tido a certeza de que eu também e vocês todos também, e por isso todos sem saber se amam. Temos sorrido em público do que não sorrimos quando ficamos sozinhos. Temas chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso temos considerado a vitória nossa de cada dia...
(Clarice Lispector)

Introspecção, reflexão e subjetividade são as marcas discursivas de dance Lispector. Seu texto é uma revelação dos questionamentos, anseios e comedimentos do homem. Sua linguagem rastreia as regiões abissais do inconsciente, onde estão os arquétipos do comportamento humano, as fobias e desejos, trazidos à tona por uma visão metafórica que traduz estados de alma.

8. Crônica metalingüística

Na crônica metalingüística, o autor volta-se para o ato de escrever, sob a forma de uma reflexão despretensiosa, de uma retrospectiva das primeiras experiências com as letras, de uma análise da palavra.

Crônica tem esta vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata de editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem afaz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou o comentário precisos que cobramos dos outros, O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial, e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadia ção de espírito. Claro que ele deve ser um cara confidvei, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isto seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.
(Car)os Drummond de Andrade)

Nesse texto, identificamos a função metalingüística na interpretação do autor sobre o conceito de crônica e sobre os alcances da imaginação de um cronista ao cercar-se de episódios prosaicos. A fluidez de sua linguagem leva a uma precisa definição de crônica, resultando num texto leve e cativante, típico de uma crônica sem pretensões jornalísticas ou literárias.

9. Crônica-comentário

Cercando-se de impressões críticas, com ironia, sarcasmo ou humor, a crônica-comentário resulta num texto cujo ponto forte são as interpretações do autor sobre um determinado assunto, numa visão quase jornalística.

De como não ler um poema

Há tempos me perguntaram umas menininhas, numa dessas pesquisas, quantos diminutivos eu empregara no meu livro A rua dos Cataventos. Espantadíssimo, disse-lhes que não sabia. Nem tentaria saber, porque poderiam escapar-me alguns na contagem. Que essas estatísticas, aliás, só poderiam ser feitas eficientemente com o auxilio de robôs1. Não sei se as menenininhas sabiam ao certo o que era um robô. Mas a professora delas, que mandara fazer as perguntas, devia ser um deles.
E mal sabia eu, então, que estava dando um testemunho sobre o estruturalismo o qual só depois vim a conhecer pelos seus produtos em jornais e revistas. Mas continuo achando que um poema (um verdadeiro poema, quero dizer), sendo algo dramaticamente emocional não deveria ser entregue à consideração de robôs, que, como todos sabem, são inumanos1. Um robô, quando muito, poderá fazer uma meticulosa autópsia — caso fosse possível autopsiar uma coisa tão viva como é a poesia.
Em todo caso, os estruturalistas não deixam de ter o seu quê de humano.. -
Nas suas pacientes, afanosas, exaustivas furungaçôes, são exatamente como certas crianças que acabam estripando um boneco para ver onde está a musiquinha.
(Mário Quintana)

O sarcasmo e a ironia revestem o texto de Mário Quintana. A opinião sarcástica fica por conta das apreciações irreverentes e irônicas e até pelo uso pejorativo do diminutivo “menininhas”. A visão crítica do poeta estende-se a considerações igualmente ferinas sobre as propostas estruturalistas.

1 lrreverência e ironia.

Fonte:
http://www.coladaweb.com/redacao/cronica

Casimiro de Abreu (As Primaveras) Parte 5


QUANDO TU CHORAS

Quando tu choras, meu amor, teu rosto
Brilha formoso com mais doce encanto,
E as leves sombras de infantil desgosto
Tornam mais belo o cristalino pranto.
Oh! nessa idade da paixão lasciva,
Como o prazer, é o chorar preciso:
Mas breve passa - qual a chuva estiva -
E quase ao pranto se mistura o riso.
É doce o pranto de gentil donzela,
É sempre belo quando a virgem chora:
- Semelha a rosa pudibunda e bela
Toda banhada do orvalhar da aurora.
Da noite o pranto, que tão pouco dura,
Brilha nas folhas como um rir celeste,
E a mesma gota transparente e pura
Treme na relva que a campina veste.
Depois o sol, como sultão brilhante,
De luz inunda o seu gentil serralho,
E às flores todas - tão feliz amante! -
Cioso sorve o matutino orvalho.
Assim, se choras, inda és mais formosa,
Brilha teu rosto com mais doce encanto:
- Serei o sol e tu serás a rosa...
Chora, meu anjo, - beberei teu pranto!
Rio - 1858

CANTO DE AMOR - A M***

Eu vi-a a minha alma antes a vê-la
Sonhara-a linda como agora a vi;
Nos puros olhos e na face bela,
Dos meus sonhos a virgem conheci.
Era a mesma expressão, o mesmo rosto,
Os mesmos olhos só nadando em luz,
Em uns doces longes, como dum desgosto,
Toldando a fronte que de amor seduz!
E seu talhe era o mesmo, esbelto, airoso
Como a palmeira que se ergue ao ar,
Como a tulipa ao por-do-sol ! saudoso,
Mole vergando à variação do mar.
Era a mesma visão que eu dantes via,
Quando a minha alma transbordava em fé;
E nesta eu creio como na outra cria,
Porque é a mesma visão, bem sei que é!
No silencio da noite a virgem minha
Soltas as tranças junto a mim dormir;
E era bela, meu Deus, assim sozinha
No seu sono d’infante inda a sorrir!...
Via-a e não via-a! Foi num só segundo,
Tal como a brisa ao perpassar na flor,
Mas nesse instante resumi um mundo
De sonhos de ouro e de encantado amor.
O seu olhar não me cobriu d’afago,
E minha imagem nem sequer guardou,
Qual se reflete sobre a flor dum lago
A branca nuvem que no céu passou.
A sua vista espairecendo vaga,
Quase indolente, não me viu, ai, não!
Mas eu que sinto tão profunda chaga
Ainda a vejo como a vi então.
Que rosto d’anjo, qual estátua antiga
No altar erguida, já caído o véu!
Que olhar de fogo, que a paixão instiga!
Que níveo colo prometendo um céu!

Vi-a e amei-a, que minha alma ardente
Em longos sonhos a sonhara assim;
O ideal sublime, que eu criei na mente,
Que em vão busca e que encontrei por fim!
P’ra ti, formosa, o meu sonhar de louco
E o dom fatal, que desde o berço é meu;
Mas se os cantos da lira achares pouco,
Pede-me a vida, porque tudo é teu.
Se queres culto - como um crente adoro,
Se preito queres - eu te caio aos pés,
Se rires - rio, se chorares - choro,
E bebo o pranto que banhar-te a tez.
Dá-me em teus lábios, um sorrir fagueiro,
E desses olhos um volver, um só,
E verás que meu estro, hoje rasteiro,
Cantando amores s’erguerá do pó!
Vem reclinar-te, como a flor pendida,
Sobre este peito cuja voz calei:
Pede-me um beijo... e tu terás, querida,
Toda paixão que para ti guardei.
Do morto peito vem turbar a calma,
Virgem, terás o que ninguém te dá;
Em delírios d’amor dou-te minha alma,
Na terra, a vida, a eternidade - lá!
Se tu, oh linda, em chama igual te abrasas,
Oh! não me tardes, não me tardes, - vem!
Da fantasia nas douradas asas
Nós viveremos noutro mundo - além!
De belos sonhos nosso amor povôo,
Vida bebendo nos olhares teus;
E como a garça que levanta o vôo,
Minha alma em hinos falará com Deus!
Juntas, unidas num estreito abraço,
As nossas almas uma só serão;
E a fronte enferma sobre o teu regaço
Criará poemas d’imortal paixão!
Oh ! vem, formosa, meu amor é santo,
É grande e belo como é grande o mar,
É doce e triste como d’harpa um canto
Na corda extrema que já vai quebrar!
Oh! vem depressa, minha vida foge...
Sou como o lírio que já murcho cai!
Ampara o lírio que inda é tempo hoje!
Orvalha o lírio que morrendo vai!...
Rio - 1858

VIOLETA

Sempre teu lábio severo
Me chama de borboleta!
- Se eu deixo as rosas do prado
É só por ti - violeta!
Tu és formosa e modesta,
As outras são tão vaidosas!
Embora vivas na sombra
Amo-te mais do que as rosas.
A borboleta travessa
Vive de sol e de flores...
- Eu quero os sol de teus olhos,
O néctar de teus amores.
Cativo do teu perfume
Não mais serei borboleta;
- Deixa eu dormir no teu seio,
Dá-me teu mel - violeta!
4 de abril

O QUÊ ?

Em que cismas, poeta? Que saudades
Te adormecem na mágica fragância
Das rosas do passado já pendidas?
Nos sonhos d’alma que te lembras?
- A infância!
Que sombra, que fantasma vem banhado
No doce aflúvio dessa quadra linda?
E a mente a folhar os dias idos
Que nome te recorda agora?
- Arinda!
Mas se passa essa quadra, fugitiva,
Qual no horizonte solitária vela,
Por que cismar na vida e no passado?
E de quem são essas saudades?
- Dela!
E se a virgem viesse agora mesmo
Surgindo bela qual visão de amores,
Tu, p’ra saudá-la bem do imo d’alma,
Diz-me, poeta - o que escolhias?
- Flores.
E se ela, farta dos aromas doces
Que tem achado nos jardins divinos,
Tão caprichosa machucasse as rosas...
Diz-me, meu louco, o que mais tinhas?
- Hinos!
E se, teimosa, rejeitando a lira,

a fronte virgem para ti pendida,
Dum beijo a paga te pedisse altiva...
O que lhe davas, meu poeta?
- A vida!
Rio - 1858

SONHOS DE VIRGEM A M.***

Que sonhas, virgem, nos sonhos
Que à mente te vêm risonhos
Na primavera inda em flor?
No celeste devaneio,
No doce bater do seio,
Que sonhas, virgem? - amor?
Que céus, que jardins, que flores,
Que longos cantos de amores
Nos lindos sonhos te vêm?
E quando a mente delira,
E quando o peito suspira - por quem?
Sonhando mesmo acordada,
Pendida a fronte adorada
Num cismar vago e sem fim;
Do olhar o fogo tão vivo,
A voz, o riso lascivo,
O pensamento é - por mim?
Quando tu dormes tranqüila,
Cerrada a negra tulipa
E o lábio doce a sorrir;
Então o sonho dourado
Nas dobras do cortinado
Vem esmaltar o teu dormir!
Oh! sonha! - Feliz idade
Das rosas da virgindade,
Dos sonhos do coração!
- Puro vergel de açucenas
Ou lago d’águas serenas
Que estremece a viração
Feliz! Feliz quem pudera
Colher-te na primavera
De galas rica louçã!
Feliz, oh! flor dos amores,
Quem te beber os odores
Nos orvalhos da manhã!
Rio - 1858

ASSIM! A M.***

Viste o lírio da campina?
Lá s’inclina

E murcho no hastil pendeu!
- Viste o lírio da campina?
Pois, divina,
Como o lírio assim sou eu!
Nunca ouviste a voz da flauta,
A dor do nauta
Suspirando no alto mar?
- Nunca ouviste a voz da flauta?
Como o nauta
É tão triste o meu cantar!
Não viste a rola sem ninho
No caminho
Gemendo, se a noite vêm?
- Não viste a rola sem ninho?
Pois, anjinho
Assim eu gemo, também!
Não viste a barca perdida,
Sacudida
Nas asas dalgum tufão?
Não viste a barca fendida?
Pois, querida,
Assim vai meu coração!
Rio - 1858

QUANDO?!...

Não era belo, Maria,
Aquele tempo de amores,
Quando o mundo nos sorria,
Quando a terra era só flores
Da vida na primavera?
- Era
Não tinha o prado mais rosas,
O sabiá mais gorjeios,
O céu mais nuvens formosas,
E mais puros devaneios
A tua alma inocentinha?
- Tinha!
E como achavas, Maria,
Aqueles doces instantes
De poética harmonia
Em que as brisas doudejantes
Folgavam nos teus cabelos?
- Belos!
Como tremias, ho! Vida,
Se em mim os olhos fitavas!
Como eras linda, querida,
Quando d’amor suspiravas
Naquela encantadora aurora!
- Ora!

E diz-me: não te recordas
- Debaixo do cajueiro -
Lá da lagoa nas bordas
Aquele beijo primeiro?
Ia o dia já findando...
- Quando?!...
Rio - 1858

SEMPRE SONHOS!...

Se eu tivesse, meu Deus, santos amores,
Eu m’erguera cantando essa paixão,
E atirara p’ra longe - sem saudade
Este véu que me cobre a mocidade
De tanta escuridão!
Eu que sou como o cardo do rochedo
Quase morto dos ventos ao rigor,
Encontrara de novo a minha vida,
O sol da primavera e a luz perdida,
Nos braços desse amor!
Minha fronte, que pende sofredora,
Acharia, meu Deus, inspirações.
E o fogo que queimou Gilbert e Dante
Correria mais puro e mais constante
Na lira das canções!
No mundo tão gentil dos devaneios
Minh’alma mais feliz saudara a luz,
E apagara, Senhor, num beijo puro
A dor imensa da perda do futuro
Que a morte me conduz.
Por ela eu deixaria a voz das turbas
E esta ânsia infeliz de glória vã;
Na vida que nos corre tão sombria
Eu seria, meu Deus, seu doce guia,
E ela - minha irmã!
Eu velara, Senhor, pelos seus dias,
Como a mãe vela o filho que dormiu:
Se um dia ela soltasse um só gemido,
Eu iria saber porque ferido
Seu seio assim buliu!
Como à sombra das árvores da pátria
S’embala a doce filha dos tupis,
À sombra da aventura e da esperança
Embalara, meu Deus, essa criança
Nos cantos juvenis!
Como o nauta olha o céu de primavera,
Eu, sentado a seus pés, ébrio de amor,
Espreitara tremendo no seu rosto

A sombra fugitiva dum desgosto,
A nuvem duma dor!
Eu lhe iria mostrar nos hinos d’alma
Outro mundo, outro céu, outros vergéis;
Nossa vida seria um doce afago,
Nós - dois cisnes vogando em manso lago,
- Amor - nossos batéis!
Se eu tivesse, meu Deus, santos amores,
Eu deixaria este amor da glória vã;
Nesse mundo de luz, doce e risonho,
A pudibunda virgem do meu sonho
Seria minha irmã!
1858

Fonte:
ABREU, Casimiro de. As Primaveras. São Paulo: Livraria Editora Martins S/A co-edição Instituto Nacional do Livro, 1972. Texto-base digitalizado por Raquel Sallaberry Brião.

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XVII – A Adesão das Elvinistas


CAPITULO XVII
A Adesão das Elvinistas

Arregalei os olhos de surpresa. Nem por sombras eu havia imaginado aquela hipótese e confessei-o a miss Jane.

— A surpresa não foi unicamente sua, senhor Ayrton. Alguns minutos passados depois do gesto decisivo do formidável Jim Roy, e cinquenta milhões de eleitores negros recebiam a imprevista senha como se rece¬bessem violenta pancada no crânio. A sensação de atordoamento foi geral. Pelo cérebro dos despigmentados passara tudo, menos aquilo. Nem um negro sequer imaginara tal hipótese. Mas a perturbação foi se desfazendo, e á medida que se ia desfazendo iam se iluminando as caras com um sorriso novo no mundo. Um sorriso sem significação, puramente reflexo. O sor¬riso do grilheta que nasceu de algemas ao pulso e de súbito as vê se esvaírem em névoa ao contacto de mágico talismã.

— "Livre, apenas? Não! Também senhor, agora..." O sigilo das comunicações radiadas era perfeito.

Onda que partisse com recado para fulano jamais errava de porta ou se deixava transviar pelo caminho. Mesmo assim miss Astor, cujo maquiavelismo de espírito não extremava a rubra ideologia elvinista dum maravilhoso senso das realidades, conseguira feliz êxito na caçada que armou á onda portadora da senha de Jim Roy. Não corromperia a onda, de si incorruptível, mas cor¬romperia um dos seus destinatários — talvez o único agente infiel de quantos tivesse Jim a seu serviço. Logo que recebeu a senha, esse espião chamou miss Astor ao aparelho das comunicações reservadas.

Estava ela a postos, na sede do partido, rodeada do seu ardente estado maior. Mal soou o chamado, dei¬xou as companheiras e literalmente atirou-se ao fone adivinhando do que se tratava. A viva expressão de curiosidade do Seu rosto, porém, demudou-se em derro¬cada. Seus olhos arregalaram-se e seus lábios, subita¬mente brancos, tremeram.

Vendo o transtorno de feições da chefa suprema, o estado-maior elvinista acudiu inquieto.

— "Que ha? indagou miss Elvin, agarrando-a pelos ombros. Resolveu Jim votar com Kerlog?"

Miss Astor quis responder mas não pôde. Sentiu uma nuvem turvar-lhe a vista, uma zoeira nos ouvidos, um turbilhão no cerebro. E descaiu para trás, des¬maiada.

— Como as de hoje... murmurei contente com aquele desmaio.

Miss Jane prosseguiu.

— O pânico apossou-se incontinenti do estado-maior elvinista e transformou a sala num rodamoinho de lin¬das baratas tontas. As sabinas entraram a correr de um lado para outro trefegamente a agarrar-se entre si, a gritar. Mas a voz aguda de miss Elvin se fez ouvir e as conteve:

— "Se Evelyn desmaiou, é que recebeu uma terrível noticia, e a única noticia terrível que Evelyn poderia receber é a da adesão de Jim a Kerlog. Logo, estamos derrotadas..."

E os olhos da sabina despediram uma terrível faísca de ódio — não político, não sexual apenas, mas especial, sentimento inédito do mundo e de pura criação elvinista. Miss Elvin cerrou o punho e ergueu-o na direção do Capitólio, ao mesmo tempo em que uivava qual loba ferida:

- "Não importa, Kerlog! Recorreremos aos grandes meios — á sabotagem, á boicotagem do gorila!"

- "Bravos! gritaram as elvinistas, recompostas da momentânea desorientação. Viva o boicote!"

Miss Elvin rangia os dentes.

- "Os infames monstros jamais poderão prever o plano infernal de sabotagem que contra eles organizei! Parecem ignorar, esses orgulhosos gorilas, que a natu¬reza os criou de uma carne toda ela calcanhares de Aquiles. Convido as sabinas presentes para uma reunião amanhã em minha casa a fim de estudarmos a apli¬cação imediata do plano diabólico. Ás oito horas lá todas!"

- "Bravos! Bravos! Sabotemos o gorila!"

A grita fez efeito de sais nos nervos da chefa des¬maiada. Miss Astor entreabriu os olhos, passou as mãos pelo rosto como a afastar as ultimas sombras e, reen¬trando na posse dos seus sentidos, ergueu-se de pé. Circunvagou pelo ambiente o olhar ainda trocado e em tom de mistério exclamou por fim, como se estivesse a falar consigo própria:

— "É indispensável um entendimento com Kerlog. Tudo mudou..."

O espanto das elvinistas atingiu o auge. Estarre¬ceram todas, de olhos arregalados e bocas entreabertas. Não compreendiam nada.

Miss Astor prosseguiu:

- "Temos de nos aliar de novo ao homem..."

- "Nunca! rugiu miss Elvin, escarlate de furor. Transigir, nunca!..."

O relógio da sala interrompeu o tumulto com o pingar das onze — a hora eleitoral.

— "Sim, declarou pausadamente miss Astor. Sim, porque já não se trata de um mero choque político entre as duas facções da raça branca. Trata-se da luva que nos vem de lançar ao rosto a raça negra. Jim Roy neste momento já deve estar eleito Presidente da Republica..."

Se uma granada de gás estupefaciente houvera explodido na sala, outro não seria o aspecto daquelas sabinas apalermadas pelo inaudito da surpresa. Trans¬formaram-se em verdadeiras mulheres de Lot, mudas e imóveis, com os olhos cravados na líder feminina.

Miss Astor continuou:

— "Não me enganavam os meus pressentimentos! Eu senti que Jim traíra. Ide ver na fachada do Capitólio o seu nome vitorioso..."

As elvinistas precipitaram-se para a janela e leram no frontão do monumento o nome de Jim Roy! Depois de 87 presidentes brancos surgia o primeiro negro, eleito por 54 milhões de votos. Miss Astor obtivera 50 milhões e meio e Kerlog 50 milhões e pico. Apesar de disporem de um eleitorado quase duplo do contra¬rio, os brancos perdiam a presidência graças á cisão entre os dois sexos provocada pelo elvinismo...

Foi instantânea e radical a mudança que se operou nas mulheres. Apreenderam num relance todas as conseqüências possíveis do golpe negro e tomaram-se de furiosa crise de sentimentalismo amoroso pelo homem branco, ser mau, opressivo, injusto, não havia duvida, mas afinal de contas o marido milenar da mulher. Mal com ele, pior sem ele. Estava tão longe o hipotético sabino...

Miss Astor tomou a palavra e fez-se a interprete do pensamento dominante.

- "Mulheres! Eis as conseqüências da nossa lou¬cura! Divorciamo-nos do nosso velho companheiro sexual e..."

- "Companheiro ilegítimo!" aparteou miss Elvin.

- "Seja, mas nem por isso menos companheiro. Di¬vorciamo-nos dele, declaramos-lhe guerra, difamamo-lo, e a paixão nos cegou a ponto de não vermos o polvo que espiava a brecha a fim de envolver o Capitólio nos seus tentáculos! Ah, Kerlog, que injusta fui contigo
recusando a fusão partidária que me propunhas! E como fui cruel respondendo ás tuas leais palavras com anfigurís em linguagem sabina! Vejo bem claro agora o nosso erro e, embora reconhecendo as queixas que a mulher tem do macho, também reconheço que sem o concurso dele nada valeríamos no mundo. Bastou um momento de divorcio para que a raça branca se visse nesta horrível situação: apeada do domínio e á mercê de uma raça de pitecos que, essa sim, tem contas terríveis a justar conosco..."

Palmas e bravos estrepitaram. Só miss Elvin, irredu¬tível no seu sonho, conservara-se de pé atrás.

— "E as minhas teorias? uivou ela. Que importa um momentâneo incidente eleitoral em face do fulgor das minhas idéias? Voto contra a aproximação com Kerlog e protesto contra o movimento de fraqueza, essa crise amorosa que vejo nas palavras de Evelyn! Propo¬nho o prosseguimento da luta com redobrado ardor.
Submissão de novo, nunca!..."

Mas nem uma só voz se ergueu para apoiá-la. Suas palavras tiveram como resposta um silencio de cemitério. Estava morto o elvinismo e de cinzas varridas todos aqueles cérebros e corações. Diante do silencio da assembléia ainda mais se exaltou miss Elvin, rompendo em apostrofes violentíssimas contra o "gorila pelado" e o "sentimentalismo ovelhum" das suas companheiras.

Dessa vez não foi o silencio de cemitério que aco¬lheu sua arenga. Foi a assuada.

- "Fora! Abaixo o sabino! Viva o Homo! Viva o macho forte que suplantou o macho fraco!..."

- "Sim, perorou miss Astor, viva o homem! Macho natural ou não, neto do gorila ou não, é ele o nosso marido pela milenar consagração dos fatos. Sempre vivemos ao seu lado, ora escravas, ora deusas, mas como irmãs de peregrinação nesta vida. Peludas que eramos ainda, e lá no fundo das idades já o ajudávamos a afiar o machado de sílex com que nos amparou das agressões do Urso speleus. Comemos juntos bifes crus de megatérios. Juntos nos derramamos por todos os recantos do globo e conseguimos a dominação hoje absoluta. Juntos subimos aos tronos e juntos fomos lançados ás feras do circo. De mãos dadas compusemos á sublime epopéia do amor — poema que principiou com a Vida e só com ela terá fim... O sabino, ainda que existisse, seria um fraco. O raptor valia muito mais do que esse hipotético bicho marinho, só existente, talvez, na ima¬ginação exaltada da nossa querida miss Elvin..."

- "Era o peixe-boi, o pesado animalão que os ho¬mens arpoam no Amazonas..." aparteou miss Dorothy Glynor.

- "O homem é o gorila, o gorila, o gorila..." urrava miss Elvin possessa.

- "Pois viva então o gorila! concluiu miss Astor e os aplausos foram delirantes. Fique miss Elvin com o boi do mar que nós ficaremos com o nosso velho e tradicional gorila. Á Casa Branca!..."

E numa verdadeira revoada precipitou-se para a Casa Branca o bando das ondeantes mamíferas com miss Astor á frente. Só ficou no recinto a sabina teimosa, a bater o pé e uivar para as cadeiras vazias:

— "Gorila, gorila, gorila, gorila..."

Nesse ponto miss Jane parou para tomar fôlego, enquanto eu dizia:

- Toma! Como tenho muita honra de ser neto do meu avô gorila, exulto com a derrota dessa renegada. Mas... e Kerlog, miss Jane? Como recebeu ele a no¬ticia da vitoria do negro?

- O presidente Kerlog recebeu o resultado do pleito com um assombro igual ao das mulheres, embora muito diferente na sua exteriorização. Convicto do apoio de Jim Roy a um dos partidos brancos, chegara a admitir por hipótese o triunfo de miss Astor; mas lá no intimo contava com o seu. De modo que quando na fachada do Capitólio surgiu o nome de Jim Roy, a sen¬sação que o empolgou foi de pesadelo. Kerlog apal¬pou-se e beliscou as carnes a ver se dormia. Não era pesadelo, não. Era coisa pior — fato. E como a hipótese da eleição de um negro nem por sombra lhe houvesse passado pela idéia, o seu desnorteamento fez-se absoluto.

Kerlog reclinou-se sobre a secretária e permaneceu durante alguns instantes imóvel, com a cabeça apoiada nas mãos. Dava tempo a que a idéia nova da eleição de um presidente negro penetrasse em seu cerebro, criando lá pelas circunvoluções um quadro inexistente. Custou a aboletar-se essa idéia. Não cabia em quadro nenhum e punha arrepios em todos perto dos quais passava...

Mas o 87.° Presidente possuía uma solida organiza¬ção mental; reagiu contra o golpe e logo reentrou no controle dos seus espíritos. Tomou um gole d'água e dirigiu a palavra aos atônitos ministros presentes.

— "Chegou afinal a crise prevista ha séculos e de maneira surpreendente. A hipótese que acaba de reali¬zar-se creio que jamais passou pelo espírito de nenhum americano, branco ou preto. É obra exclusiva de Jim Roy e explica a paciência com que vem ele automatizando a massa negra. Mas o fato está consumado. É um desafio, uma luva lançada ao rosto da raça branca, á qual nos cumpre dar troco. Não apresento nenhuma idéia porque não a tenho — ainda não houve tempo de se formarem idéias em meu cerebro. Creio que o mes¬mo se dará com todos os presentes..."

Um movimento geral de cabeças apoiou suas pala¬vras. Todos os ministros se achavam na mesma situa¬ção de espírito.

Kerlog prosseguiu. Fez ver a que terrível impasse a loucura das mulheres arrastara o país, situação insolúvel caso elas persistissem em se "desgorilarem" de sua ascendência.

— "E dado o modo de pensar é falar da líder femi¬nina, disse ele, não prejulgo o que esteja agora se pas¬sando pelo cerebro de miss Evelyn Astor. Mas é indispensável a todo o transe um entendimento com ela. É indispensável promovermos a harmonia dos partidos
brancos, porque só a união da raça branca nos salvará."

O ministro da Paz tomou a palavra (as guerras haviam cessado no mundo depois que aos ministros da Guerra se substituíram os ministros da Paz) e disse:

— "Acho inútil qualquer debate neste momento. A situação é obscura e..."

Não pôde acabar. Um tropel reboou nos corredo¬res. Era o bando elvinista que penetrava, com miss Astor á frente.

Kerlog empalideceu. Os extremismos daquela fac¬ção eram tantos que ele previu qualquer coisa seme¬lhante aos assaltos histéricos das antigas sufragistas britânicas. E apertou o botão da campainha de alarma, chamando a postos os guardas.

Miss Astor avançou para ele. Num instintivo gesto de defesa, Kerlog recuou em sua poltrona, vendo claramente definida a agressão iminente. Os ministros lan¬çaram-se das suas cadeiras em socorro do chefe su¬premo.

Era tarde, Miss Astor agarrara o presidente Kerlog pelo pescoço...

Agarrara-o não para estrangulá-lo, mas para beijá-lo entre lagrimas e soluços de comoção.

— "Kerlog, querido Kerlog! Venho em nome de todas as mulheres pedir perdão ao Homo, em ti repre¬sentado, da loucura a que miss Elvin nos arrastou. Diante dos supremos interesses da raça ofendida, cessa o divorcio sexual. Volta a mulher de novo aos braços do seu velho companheiro de peregrinação pelo mun¬do..."

Mal vindo do espanto, tonto ainda, o presidente Kerlog apenas murmurou:

- "A que horas, miss Astor! A que horas vem falar-me língua compreensível!..."

- "Perdoa, Kerlog! Foi uma nuvem que passou."

- "Mas lá estão as terríveis conseqüências impres¬sas na fachada do Capitólio."

- "Que importa? O que a mão do negro escreveu a tua apagará."

- "Fácil de dizer, miss Evelyn. Dentro da criatu¬ra civilizada dorme um troglodita. Receio que a exas¬peração desperte esse monstro."

- "Temos tudo por nós, o numero e a superiorida¬de mental."

- "Mas temos contra nós o momento, o impulso, a cólera, a vingança — as velhas inferioridades adormecidas mas não mortas. Receio que a America se inunde de sangue...

Miss Astor emudeceu por um momento, com os seios ofegantes. Depois disse:

— "E agora? Que vamos fazer?"

Kerlog respondeu com finura:

— "Vamos vencer. O perigo existia enquanto a pa¬lavra vamos só representava metade da raça branca. Se miss Astor me traz o concurso da metade rebelde, tudo muda ..."

A ex-sabina desprendeu-se do pescoço presidencial e gritou, voltada para as suas companheiras:

— "Cerremos fileiras em torno de Kerlog! É ele o nosso líder supremo — líder da raça, e acaba de traçar o incoercível programa branco: "Vencer!" Viva Kerlog!"

Uma burra delirante saudou as suas palavras.

— "Viva Kerlog! Viva o Homo!"

O ministro da Educação Social interveio malicioso:

- "Alia-se de novo então ao "gorila pelado", miss Astor?

- "Sim, respondeu ela, mais formosa do que nunca, tanto a sua fisionomia irradiava de entusiasmo. Aca¬bamos de fazer uma grande descoberta: o sabino de miss Elvin não passa de um estúpido boi de mar. Viva, portanto, o velho gorila!"

- "Viva! Viva!..."

E a onda feminina derramou-se barulhentamente pelos corredores afora, até despejar-se pelas escadarias.. .

Aliviado de um grande peso Kerlog voltou-se para os ministros e repetiu risonho o verso de Shakespeare:

— "She is false as water,..

- "Mas de muita força catalítica, rosnou o minis¬tro da Equidade. Cura pela ação da presença ..."

O ponto e vírgula com torradas veio interromper naquele dia as revelações de miss Jane. Retirei-me mais interessado do que nunca no desfecho da crise americana do século 23.
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continua… XVIII – O Orgulho da Raça

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

4a. Expo Literária de Sorocaba (Programação)


A Biblioteca Municipal "Jorge Guilherme Senger" sediará, entre os dias 19 e 22 de outubro, a 4ª edição da Expo Literária. Neste ano, o evento homenageará o escritor Monteiro Lobato e terá suas tendas batizadas com os nomes de diversos personagens do artista.

Muitas atrações, incluindo palestras com os escritores André Vianco, Emílio Braz, o cordelista César Obeid e a dupla Palavra Cantada, serão oferecidas gratuitamente ao público. Além disso, escritores de Sorocaba e região também participarão de atividades e apresentarão suas obras.

Segundo o secretário da Cultura e Lazer, a Expo Literária deste ano será focada no público infanto-juvenil com uma programação que aposta bastante no talento dos escritores sorocabanos e na contação de histórias.

Para isso, também participarão do evento, por exemplo, o ator e contador de histórias Zé Bocca, os escritores Débora Benga, Paulo Ravagnani, Melissa Branco, Oswaldo Biancardi Sobrinho, Gepeto, com seu teatro de bonecos, e a Cia. Tempo de Brincar, com muitas músicas e histórias já bem conhecidas e apreciadas pelo público infantil de Sorocaba.

PROGRAMAÇÃO

Dia 19 de Outubro – Abertura Prêmio Anual de Literatura

19h
Auditório da Biblioteca Municipal
Abertura Oficial
Palestra: Armando Oliveira Lima
“Homenagem a Lobato”
Prêmio Anual Sorocaba de Literatura
Fábio Gouveia “Quarteto Musical”

Dia 20 de Outubro - quinta-feira

9h
AUDITÓRIO
Claudia Bernadete Veiga de Almeida - “Literatura Africana”
Público: jovens e adultos

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
Cia. Tempo de Brincar - “Coisas de Saci”
Público: infantil

TENDA O SACI
Laé de Souza - “A Literatura como Prazer”
Público: infanto-juvenil

TENDA MEMÓRIAS DE EMÍLIA
Paulo Ravagnani - “A Necessidade da Filosofia no Mundo Atual”
Público: jovens e adultos

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Débora Brenga - “Contação de Histórias”
Público: infantil

10h
TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Osnival José Búfalo - “Mimica: Proibido Mascar Chicletes”
Público: livre

10h15

AUDITÓRIO
Júlio Emilio Braz - “As Interrelações Literárias e Sociais dentro da Moderna Literatura Infanto-Juvenil”
Público: infanto-juvenil

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
Maria do Carmo/Marcello Marra/Elisete Martins - “O Mundo Mágico de Monteiro Lobato”
Público: infantil

TENDA O SACI
Laé de Souza “A Literatura como Prazer”
Público: infanto-juvenil

TENDA MEMÓRIAS DE EMÍLIA
Zé Bocca - “Os Manducas de Fiuza”
Público: infanto-juvenil

10h30

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Nelson Malheiro - “Saga do Povo Hebreu”
Público: livre

14h

AUDITÓRIO
Júlio Emilio Braz - “As Interrelações Literárias e Sociais dentro da Moderna Literatura Infanto-Juvenil”
Público: infanto-juvenil

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
Cia. Tempo de Brincar - “Coisas de Saci”
Público: infantil

TENDA O SACI
Laé de Souza - “A Literatura como Prazer”
Público: infanto-juvenil

TENDA MEMÓRIAS DE EMÍLIA
César Obeid - “Contação de História e Bate Papo”
Público: infanto-juvenil

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Ricardo Reis - “Palestra Motivacional”
Público: livre

14h30

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Douglas Santos Junior - “Declaração de Poesias”
Público: livre

15h

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Oswaldo Biancardi Sobrinho - “Apresentação Musical”
Público: livre
15h15

AUDITÓRIO
Teatro de Bonecos do Gepeto - “Pipocando com Pinóquio”
Público: infantil

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
Melissa Branco - “Apresentação Musical Semeando Em Cantos”
Público: infantil

TENDA O SACI
Laé de Souza - “A Literatura como Prazer”
Público: infanto-juvenil

TENDA MEMÓRIAS DE EMÍLIA
César Obeid - “Contação de História e Bate Papo
Público: infanto-juvenil

19h30

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
Palavra Cantada

Dia 21 de Outubro - sexta-feira

9h

AUDITÓRIO
Kiara Terra - “A menina dos pais crianças”
Público: infantil

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
Sérgio Vaz - Palestra
Público: infanto-juvenil

TENDA O SACI
Zé Bocca - “Histórias para ouvidos pequenos”
Público: infantil

TENDA MEMÓRIAS DE EMÍLIA
Monisa Maciel e Suzana Brunhara - “Nascimento da boneca Emília”
Público: infantil

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Jairo Valio - “Aquecimento Global”
Público: livre

10h

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Hélio Moura Filho - “Poeta de Bar”
Público: livre

10h15

AUDITÓRIO
Marcia Kupstas - “A aventura de ler e a disciplina dos sentimentos”
Público: infanto-juvenil

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
Monisa Maciel e Suzana Brunhara - “Histórias Folclóricas”
Público: infantil

TENDA O SACI
Maria do Carmo/Marcello Marra/Elisete Martins - “O Mundo Mágico de Monteiro Lobato”
Público: infantil

TENDA MEMÓRIAS DE EMÍLIA
Paula Knoll - “Contos Encantados”
Público: infantil

14h

AUDITÓRIO
Marcia Kupstas - “A aventura de ler e a disciplina dos sentimentos”
Público: infanto-juvenil

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
Monisa Maciel e Suzana Brunhara - “Contos Populares”
Público: infantil

TENDA O SACI
Teatro de Bonecos do Gepeto - “Pipocando com Pinóquio”
Público: infantil

TENDA MEMÓRIAS DE EMÍLIA
Paula Knoll - “Contos Encantados”
Público: infantil

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Débora Brenga - “Contação de Histórias”
Público: infantil

15h

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Nicanor Filadelfo Pereira - “A arte poética no contexto da vida”
Público: livre

15h15

AUDITÓRIO
Maria do Carmo/Marcello Marra/Elisete Martins - “O Mundo Mágico de Monteiro Lobato”
Público: infantil

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
Zé Bocca - “Histórias para ouvidos pequenos”
Público: infantil

TENDA O SACI
Teatro de Bonecos do Gepeto - “Pipocando com Pinóquio”
Público: infantil

TENDA MEMÓRIAS DE EMÍLIA
Melissa Branco - “Apresentação Musical Semeando Em Cantos”
Público: infantil

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Oswaldo Biancardi Sobrinho - “Declamação Poética”
Público: livre

16h

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
João Batista Alvarenga - “Declamação com performance teatralizada”
Público: livre

17h

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Florentina de Lourdes R. Blagitz e Edival de Moraes Blagitz - “Bate-papo com leitor”
Público: livre

19h30

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
André Vianco - “Palestra e bate papo”
Público: jovens e adultos

Dia 22 de Outubro – sábado

13h30

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Nelson Porfirio Rodrigues - “Interpretação Musical”
Público: livre

14h

AUDITÓRIO
Zé Bocca - “Os Manducas de Fiuza - Debate com Escola da Família"
Público: infanto-juvenil

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Nathalia Cristina G. De Rosa - “Interpretação Musical”
Público: livre

14h30

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Beatriz Biancardi - “Interpretação e Musicalização”
Público: livre

15h

TENDA CAÇADAS DE PEDRINHO
SESC - “Conto de Fadas”
Público: infantil

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Alessandra Jovelina Duarte - “Declamação de Poesia”
Público: livre

15h30

TENDA O SACI
SESC - “Cia. Circo de Bonecos”
Público: infantil

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Ana Maria Duarte - “Declamação de Poesia”
Público: livre

16h

AUDITÓRIO
Laé de Souza - “Publiquei meu Livro! E agora?”
Público: infanto-juvenil

TENDA MEMÓRIAS DE EMÍLIA
Melissa Branco - “Apresentação Musical Semeando Em Cantos”
Público: infantil

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Rafael Granado Brossi - “Declaração de Poesia”
Público: livre

16h30

TENDA O SACI
Conservatório Musical Rogério Koury – "Apresentação dos Alunos de Canto"
Público: livre

TENDA REINAÇÕES DE NARIZINHO – AUTORES SOROCABANOS
Francisco Vieira Ribeiro – "Declamação de Poesia”
Público: livre

ESPECIAL

Intervenções com "KIKA", do Mundo Encantado do "Sítio do Pica-Pau Amarelo", durante toda a programação Exposição da 4ª Expo Literária
Exposição “EMÍLIA A BONECA DE LOBATO”
Local: Biblioteca Municipal de Sorocaba “Jorge Guilherme Senger”
Horário: 9 às 20h

25 a 31 de Outubro
“Semana Literária da Academia Sorocabana de Letras”
Local: Casa 52 / Jardim Maylasky – Centro
Horário: 9h às 21h
Gratuito

Fonte:
Jornal Ipanema