domingo, 27 de novembro de 2011

Murilo Rubião (O Ex-Mágico da Taberna Minhota)


Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me;
porque eu sou desvalido e pobre.
(Salmos. LXXXV, I)

Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.

Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores.

Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude.

Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.

O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado.

Sem meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei daquele momento em diante a divertir a freguesia da casa com os meus passes mágicos.

O homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos, que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó. Considerando não ser dos melhores negócios aumentar o número de fregueses sem o conseqüente acréscimo nos lucros, apresentou-me ao empresário do Circo-Parque Andaluz, que, posto a par das minhas habilidades, propôs contratar-me. Antes, porém, aconselhou-o que se prevenisse contra os meus truques, pois ninguém estranharia se me ocorresse a idéia de distribuir ingressos graciosos para os espetáculos.

Contrariando as previsões pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento foi exemplar. As minhas apresentações em público não só empolgaram multidões como deram fabulosos lucros aos donos da companhia.

A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número, em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob o meu olhar distante.

O gerente do circo, a me espreitar de longe, danava-se com a minha indiferença pelas palmas da assistência. Notadamente se elas partiam das criancinhas que me iam aplaudir nas matinês de domingo. Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado.

Com o crescimento da popularidade a minha vida tornou-se insuportável.

Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas. Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros.

Se, distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois outra. Por fim, estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino lhes dar.

Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte alguma.

Situação cruciante.

Quase sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que estavam próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias públicas.

Não protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o propósito de não molestar ninguém.

Também, à noite, em meio a um sono tranqüilo, costumava acordar sobressaltado: era um pássaro ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido.

Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos. Não adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço. Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente um mágico enfastiado do ofício.

Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao meu desconsolo.

Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria devorado por eles. Nenhum mal me fizeram. Rodearam-me, farejaram minhas roupas, olharam a paisagem, e se foram.

Na manhã seguinte regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim.

— O que desejam, estúpidos animais?! — gritei, indignado.

Sacudiram com tristeza as jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer:

— Este mundo é tremendamente tedioso — concluíram.

Não consegui refrear a raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los. Esperava morrer, vítima de fatal indigestão.

Sofrimento dos sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.

O fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afastei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar seu ponto mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o corpo ao espaço.

Senti apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: logo me vi amparado por um pára-quedas. Com dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado, consegui regressar à cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir uma pistola.

Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.

Não veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis.

Rolei até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência.


Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos.

Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.


1930, ano amargo. Foi mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive da minha existência, ante o espelho da Taberna Minhota.

Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo.

Quando era mágico, pouco lidava com os homens -o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam.

O pior é que, sendo diminuto meu serviço, via -me na contingência de permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou -me à revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida.

O amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco das minhas inquietações.

Distração momentânea. Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas. Como me declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental!

1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar meus interesses. (Não me importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.)

Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois, tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo.

Fitou-me por algum tempo em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que estava atônito com meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar que tinha dez.

Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um papel amarrotado — fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa.

Revolvi, ansioso, todos os bolsos e nada encontrei.

Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia.

Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista.

Pensam que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.

Tenho a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro alto e fundo.

Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico.

Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a Terra de um extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas.

Fontes:
"O pirotécnico Zacarias e outros contos", Editora Companhia das Letras — São Paulo, 2006, pág. 19, organização de Humberto Werneck, postfácio de Jorge Schwartz.
Imagem = http://www.50emais.com.br/2011/04/conto-o-ex-magico-da-taberna-minhota/

Murilo Rubião (1916 – 1991)


1916 - 1º de junho - nasce Murilo Eugênio Rubião, em Silvestre Ferraz, hoje Carmo de Minas (MG), filho de Eugênio Rubião e Maria Antonieta Ferreira Rubião.

1928 - Termina o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena, em Belo Horizonte, após ter estudado em Conceição do Rio Verde e Passa-Quatro.

1935 - Conclui o Bacharelado em Humanidades, no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, tendo sido orador da turma.

1938 - Atua no Diretório dos Estudantes da Faculdade de I Direito da Universidade de Minas Gerais, como Vice-Presidente e depois como Presidente; e no Diretório Central da UMG como Tesoureiro. Funda, juntamente com um grupo de escritores-estudantes, a revista Tentativa.
1939 - É um dos fundadores e Presidente interino da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais. Torna-se redator da Folha de Minas, função que exercerá por mais de dez anos.

1940 - É redator da revista Belo Horizonte.

1942 - Forma-se em Direito pela Faculdade da UMG. É escolhido Diretor da Associação dos Jornalistas ProfIssionais de Minas Gerais.

1943 - É designado Diretor da Rádio Inconfidência de Minas Gerais. É convidado para lecionar nos Colégios Arnaldo e Sagrado Coração de Jesus.

1945 - É escolhido para chefiar a delegação de escritores mineiros ao I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, do qual foi um dos seus vice-presidentes. É eleito Presidente da Associação Brasileira de Escritores (Minas Gerais).

1946 - É nomeado Oficial de Gabinete do Interventor João Beraldo.

1947 - Publica O Ex-Mágico (contos).

1948 - É nomeado Diretor do Serviço de Radiodifusão do Estado de Minas Gerais. Recebe o Prêmio Othon Lynch Bezerra de MeIo, da Academia Mineira de Letras, com o livro O Ex-Mágíco.

1949 - Exerce as funções de Chefe do Serviço de Documentação da Comissão do Vale do São Francisco no Rio de Janeiro.
1950 - É nomeado Oficial de Gabinete do Governador Juscelino Kubitschek. É designado Diretor interino da Imprensa Oficial e da Folha de Minas.

1952 - É escolhido Superintendente da Secretaria de Saúde. É nomeado Chefe de Gabinete do Governador Juscelino Kubitschek.

1953 - Publica A Estrela Vermelha (contos).

1956 - É nomeado Chefe do Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil em Madrid.
- É indicado Adido junto à Embaixada do Brasil na Espanha. É escolhido membro da delegação brasileira ao 11 Congresso de Cooperação Intelectual, realizado em Santander, Espanha.

1960 - É condecorado pelo Governo Espanhol com a comenda Isabela, a Católica.- Regressa ao Brasil.

1961 - Reassume as suas funções de Assessor Técnico Administrativo do Estado, sendo designado para a redação do Minas Gerais.

1965 - Publica Os Dragões e Outros Contos.

1966 - É encarregado de organizar o suplemento literário do Minas Gerais, sendo o seu primeiro secretário.

1967 - É designado Diretor da Rádio Inconfidência do Estado de Minas Gerais.
- É nomeado Diretor da Escola de Belas Artes e Artes Gráficas de Belo Horizonte - Escola Guignard.

1969 - Afasta-se da direção do Suplemento Literário para assumir a Chefia do Departamento de Publicações da Imprensa Oficial. É designado Presidente da Comissão de Apreciação do Mérito das Publicações da Imprensa Oficial. É eleito Presidente da Fundação de Arte de Ouro Preto.

1971 - É eleito Presidente da Fundação Madrigal Renascentista.

1974 - Publica dois livros: O Pirotécnico Zacarias e O Convidado.

1975 - É promovido a Diretor de Publicações e Divulgação da Imprensa Oficial do Estado e aposenta-se no mesmo ano. É eleito Presidente do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais. Recebe o prêmio Luisa Cláudio de Souza, do Pen Club do Brasil, com o livro O Pirotécnico Zacarias.

1978 - Publica A Casa do Girassol Vermelho (contos).

1979 - É publicada nos Estados Unidos a tradução de O Ex-Mágico. E adaptado para o cinema, em curta-metragem, o seu conto A Armadilha (roteiro e direção de Henrique Faulhaber).

1981 - É publicada na Alemanha a tradução de O Pirotécnico Zacarias. É publicado em São Paulo, pela Editora Ática, o livro de Jorge Schwartz, Murilo Rubião: A Poética do Uroboro. É exibido no Palácio das Artes o filme Zacarias, adaptação e direção de Paulo Labome do conto O Pirotécnico Zacarias.

1982 - É publicada, na coleção Literatura Comentada, da Editora Abril, uma coletânea de contos seus, sendo a seleção de textos. notas e estudos de Jorge Schwartz.

1983 - É nomeado Diretor da Imprensa Oficial. Recebe a medalha da Ordem do Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. É condecorado com a Medalha de Honra da Inconfidência.

1984 - É lançado pela editora Avon Books, em edição de bolso, a segunda edição de O Ex-Mágico.
1986 - É publicada na Tchecoslováquia uma antologia de seus contos sob o título de A Casa do Girassol Vermelho. É homenageado do 11 Simpósio de Literatura Comparada, promovido pelo Curso de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. - Recebe o título de Personalidade Cultural do Ano, instituído pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.

1987 - Edição Especial do Suplemento Literário do Minas Gerais (nº 1060/61/62), comemorando os 40 anos da publicação de O Ex-Mágico.

1988 - Tem duas de suas obras incluídas no Programa do Concurso para o Capes de Portugais (Certificat d'Aptitude à l' Enseignement Secondaire de Portugais), destinado a selecionar professores de Português para o ensino secundário oficial, na França.

1990 - Publica O Homem do Boné Cinzento e Outras Histórias. Estréia no teatro com a encenação de três contos seus - A Lua, Bárbara e Os Três Nomes de Godofredo - sob o título geral de A Casa do Girassol Vermelho, pela Cia. Sonho e Drama, e adaptação e direção de Cida Falabella.

1991 - Falece em 16 de setembro, aos 75 anos, em Belo Horizontes e seus restos mortais são depositados no Cemitério do Bonfim em Belo Horizonte.

Seu acervo pessoal é doado por sua família ao Acervo de Escritores Mineiros. Evento inaugural do projeto Memória Viva, da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte, dedicado ao estudo e divulgação da obra de Murilo Rubião.

21 de setembro: abertura no Palácio das Artes da exposição multidisciplinar Murilo Rubião: Construtor do Absurdo, o primeiro evento do projeto Memória Viva, da Secretaria Municipal de Belo Horizonte, com curadoria de Márcio Sampaio.

1998
É publicado Contos Reunidos.

2002
O conto O bloqueio é adaptado para o cinema, num curta-metragem de animação de Cláudio de Oliveira.

2006
Com O Pirotécnico Zacarias e A Casa do Girassol Vermelho, em nova seleção, a Companhia das Letras começa a relançar a obra de Murilo Rubião.

4 de setembro: abertura, no Palácio das Artes, da exposição Muriliana 90 anos de Murilo Rubião.

Fonte:
http://www.murilorubiao.com.br/

Paula Perin dos Santos (Murilo Rubião)


Primeiro contista do gênero fantástico em nossa literatura, a obra de Murilo Rubião permaneceu desconhecida durante mais de três décadas. Foi com a reedição do livro de contos “O Pirotécnico Zacarias”, em 1974, que Murilo começou a ser lido, tornando-o praticamente um best-seller nacional.

O que causa perplexidade e fascinação nos leitores é que Murilo Rubião impõe o caso irreal como se fosse real. Mário de Andrade, em 1943, já dizia do escritor: “Ele possui o mesmo dom de um Kafka. A gente não se preocupa mais, é preso pelo conto, vai lendo e aceitando o irreal como se fosse real, sem nenhuma reação mais”.

Ele utiliza em sua obra uma linguagem simples, depurada e temas absolutamente inverossímeis. É como o crítico Benedito Nunes, da Revista Colóquio, dizia: “o traço mais relevante da narrativa muriliana é o contraste entre a particular incoerência do discurso narrativo e a particular incoerência da matéria narrada”. Ou seja, os acontecimentos fora do comum que norteiam à narrativa constituem a trama de cada história. Isso nos torna capaz de não nos surpreender com os fatos narrados, tanto é que os personagens encaram a “anormalidade com uma naturalidade fora do comum”.

Jorge Schwartz organizou alguns temas freqüentes que estruturam a obra de Murilo Rubião:

* Inversão da casualidade espaço-temporal: “Mariazinha”, “A Noiva da Casa Azul”, “Epidólia”, “O Bloqueio”.

* Tendência ao infinito: ”A Armadilha”, “Aglaia”, “A Fila”, “Os Comensais”.

* Desaparecimento dos personagens: “Elisa”.

* Metamorfose-zoomorfismo: “O Ex-Mágico, “Teleco, o Coelhinho”, “Os Dragões”.

* Contaminação homem-objetos: “A Lua”, “A Casa do Girassol Vermelho”.

* Contaminação sonho-realidade: “O Lodo”.

A hipérbole é uma técnica narrativa bastante presente nesses temas. No conto “Aglaia”, por exemplo, o casal gera filhos que nasciam com seis, três, dois meses e até dias após a fecundação, mesmo após evitar contato sexual e se esterilizarem.

Uma característica peculiar à obra de Murilo Rubião é o uso das epígrafes bíblicas e colocadas no início de cada livro e de cada conto em particular, com o intuito de apontar, de maneira simbólica, a temática a ser abordada. Isso não quer dizer que os contos tenham conteúdo cristão. Ao contrário disso, em “O Convidado”, o primeiro e último conto da edição original apresentam epígrafes do livro do Apocalipse e seus temas como zoomorfismo, a metamorfose, policromias e magias em nada se relacionam com o universo cristão.

O uso dessas técnicas e temas fantásticos funciona não só como recurso de prender o leitor numa leitura prazerosa e de distração. Mais do que isso, assume uma função crítica. Isto é, o fato sobrenatural e fantástico é um recurso da imaginação para remeter-nos aos conflitos de nossa própria existência. É assim que Murilo Rubião desvenda em seus contos os grandes dramas da natureza humana.

Os personagens da narrativa muriliana apresentam uma visão de que viver neste mundo é uma experiência sem solução: a angústia das relações artificiais presentes nas cerimônias sociais fica bem retratada em “O Convidado”; a burocracia recebe críticas severas no conto “O Ex-Mágico”: o tédio com que fazia repetidas mágicas era tanto que decidiu suicidar-se, mas de maneira lenta. Por isso empregou-se numa Secretaria de Estado.

Não há salvação ou final feliz nos contos de Rubião. Seus personagens são solitários e caracterizam-se por eternas buscas e contínuos desencontros. As mulheres em sua narrativa, como Elisa, Epidólia, A Noiva da Casa Azul, não respondem aos desejos dos amantes. Essa fatalidade vem estender-se até a própria criação artística de Rubião. Numa entrevista, o contista revela que reescreve inúmeras vezes seus contos, alterando a linguagem até a exaustão, numa busca incessante pela clareza da narrativa. Esse retorno freqüente à elaboração da narrativa representa uma analogia ao trajeto e perfil de seus personagens, perdidos numa tentativa de perpétua procura por respostas às questões nossa existência.

Fontes
RUBIÃO, Murilo. Literatura Comentada. ORG. SCHWARTZ, Jorge. São Paulo, Abril, 1981.
____________. O Convidado. 2ed. São Paulo, Edições Quíron, 1979.
Disponível em Infoescola

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 11)


FAVELA
A epopéia de Canudos, comunidade religiosa fundada em 1893, no interior da Bahia, pelo pregador Antônio Conselheiro, foi extraordinariamente narrada por Euclides da Cunha, em Os Sertões.
Logo após os combates em que derrotaram os conselheiristas, as tropas governistas se instalaram num morro da região, chamado Favela, porque lá havia em abundância um tipo de arbusto grande, com o mesmo nome (formado de fava + -ela).
Quando esses soldados retornaram ao Rio de Janeiro, solicitaram ao Ministério da Guerra permissão para fixar residência no alto do morro da Providência, situado na Gamboa, no centro da cidade. Foram eles mesmos que, como lembrança ou por semelhança, passaram a chamar esse conjunto de habitações de morro da Favela. A partir daí, o nome se propagou para designar o conjunto de habitações populares.
Antes da chegada dos soldados, esse morro já era esparsamente habitado por pessoas despejadas de uma enorme estalagem que em 1893 o prefeito Barata Ribeiro mandou demolir, em nome da higiene pública. O cortiço, que chegou a ter perto de quatro mil moradores de toda laia, ficava na Rua Barão de São Félix, perto da Estação de Ferro Central do Brasil, e era conhecido como "Cabeça de Porco", porque sua entrada era um grande portal em arcada, enfeitado com a estátua da cabeça de um porco. A expressão ganhou hifens (cabeça-de-porco) e virou sinônima de casa de habitação coletiva para gente pobre.

FILHO PRÓDIGO
Pródigo, do latim prodigu, é esbanjador, perdulário. A expressão filho pródigo, com o sentido de filho que volta para casa arrependido, se origina de uma parábola do Novo Testamento (S. Lucas, XV). Os personagens não têm nome, o enredo é que conta.
Um homem tinha dois filhos (a mãe, coitada, só entra na história como coadjuvante genética presumida).
Um dia o mais jovem pede ao pai o adiantamento de sua parte na herança, porque todo filho acha que, por educação, só deve morrer depois do pai. E aí, diz Lucas, "o pai dividiu os bens entre eles" - o que faz presumir que ou se tratava de um viúvo, ou passaram a perna na velha.
O filho jovem parte para longe e gasta sua herança todinha "numa vida devassa". Passa fome, sofre privações e, então, arrependido, resolve voltar para casa. Ao se aproximar do seu lar, passa por um novilho cevado, que, quando vê o jovem, começa a chorar copiosamente sem o jovem entender por quê. O pai acolhe o filho entusiasmado, "cobrindo-o de beijos", e ordena aos seus servos:
- "Ide depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés.
Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado!"
E assim trouxeram túnica, anel, sandálias e novilho cevado cozido. No meio da festança, aparece o filho mais velho, o filho fiel, que não havia abandonado o pai - momento de tensão, a música da festa pára, cai um silêncio arrepiante. Informado do motivo da festa, o filho, revoltado, vocifera ao pai, com voz de Barry White:
- "Há tantos anos que te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos e nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos. Contudo, veio esse teu filho, que devorou teus bens com prostitutas,* e para ele matas o novilho cevado!"

(O leitor pode concluir que está diante de uma revolta de ordem mais gastronômica que emocional. Não, leitor, não é isso, os animais são uma metáfora econômico-filial.)
* Como é que ele sabia das prostitutas? Havia um jornal da região com coluna social?

Ao que o pai responde:
- "Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu.* Mas era preciso que festejássemos e nos alegrássemos, pois esse teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado!" * *

A parábola acaba aqui, e Lucas discretamente omite a reação do filho mais velho. Asas à imaginação, leitor!

* Aqui o pai comete uma demagógica inversão de proprietários; já que o velho havia repartido toda a sua herança entre os dois filhos, o enunciado correto seria "tudo o que é teu é meu".
** Parece que originalidade não era o forte do homem. Repare que é o mesmo trecho final de sua fala aos servos.

FISCO
Do latim fiscu, que era um cesto de vime usado para espremer uvas e azeitonas. Depois ganhou o sentido de cesto para guardar dinheiro e, finalmente, o de parcela do rendimento público destinada a sustentar o chefe do estado, o tesouro público.
No português, fisco ficou apenas com o último sentido; esqueceram-se as uvas e as azeitonas e passou-se diretamente à espremeção dos contribuintes.
No latim fiscu originou fiscale e confiscare, origem de fiscal e confiscar, com os mesmos significados.

GALERA
Do catalão galera, que veio do grego bizantinogaléa, toninha (um peixe semelhante ao golfinho; toninha tem a mesma origem de atum: o latim thunnus, atum).
Uma antiga embarcação de guerra, comprida e estreita, movida principalmente por grandes remos e acessoriamente por duas velas, acabou recebendo esse mesmo nome por analogia com a movimentação veloz e ágil do peixe.
Antes que atirem pedras: calma, pessoal, é ironia crítica do autor.
Em vários idiomas, a palavra teve seu sentido ampliado. No francês, galère passou a significar uma atividade, uma condição muito penosa (une vie degalère); no inglês (galère) e no português (galera), prevaleceu a imagem dos remadores numa empreitada comum e a palavra ganhou o sentido de grupo de pessoas da mesma espécie ou classe. No Brasil, galera é popularmente sinônimo de turma, torcida.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Casamento De Narizinho – III – Os brincos do marquês


Chegou afinal o dia da partida. De manhã cedo Narizinho deu os últimos retoques no vestido novo da boneca.

Emília fez cara de pouco caso. Achou feio. Queria vestido de cauda.

— Você — disse ela — convidou-me para madrinha do casamento, lembre-se. Como, pois, posso apresentar-me na corte com este vestido de Judas no sábado de Aleluia?

— Lá arranjaremos outro, como daquela vez — respondeu a menina. Este é só para a viagem. Se faço vestido de cauda, você vai enganchando pelo fundo do mar, onde há muito pé de coral mais espinhento que carrapicho.

O Visconde de Sabugosa também ia, para servir de padrinho.

Narizinho mudou-lhe a fita da cartola e pediu a Emília que o escovasse da cabeça aos pés.

— Este senhor Visconde — acrescentou a menina – está mudando de gênio. Depois que caiu atrás da estante de vovó e lá ficou esquecido três semanas, embolorou e deu para sábio. Parece que os livros pegaram ciência nele. Fala dificílimo! É só física para aqui, química para ali...

— E Rabicó? — indagou a boneca.

— Rabicó não vai! — gritou Pedrinho que ia entrando nesse momento. — Está um marquês muito mal-educado, estragador de todas as nossas festas. Não se lembra do que fez com as cocadas no dia do seu próprio casamento?

Narizinho protestou.

— Mas não fica bem, Pedrinho! Rabicó, afinal de contas, é marido de Emília e não fica bem que Emília apareça na corte sozinha. Podem falar dela...

— Pois então vai — resolveu Pedrinho — mas o meu bodoque vai também, e se ele não se comportar muito direitinho, já sabe – é cada pelotada na orelha de sair cinza!

Pedrinho ganhara um bodoque de guatambu e agora resolvia tudo a bodocadas. Mas Narizinho não se conformou.

— Coitado de Rabicó! Não sei por que você tanto se implica com ele...

— Não é implicar, Narizinho. Rabicó é mesmo capadócio e encrenqueiro por natureza. Veja o Visconde. Não passa dum simples sabugo de milho, mas como é distinto, palaciano, todo cheio de mesuras! Quando se senta numa cadeira, fica ali horas, dias, semanas inteiras sem incomodar ninguém.

Às onze horas foram todos para a beira do ribeirão, onde já estava o coche do príncipe à espera deles no fundo da água.

— O coche já veio — disse Emília — e Rabicó ainda não está vestido. Você esqueceu-se de arrumá-lo, Narizinho.

— É verdade! Mas isso é coisa de um minuto — respondeu a menina e atou um laço de fita na caudinha encaracolada do marquês.

— Só faltam agora uns brincos — lembrou Pedrinho, tirando do bolso dois amendoins com casca. Estalou-os e prendeu-os na ponta de cada orelha do leitão. Depois disse de cara feia: “Não me vá comer os brincos, senhor marquês, senão já sabe o que acontece” – e apontou para o bodoque.

Nesse momento o doutor Caramujo saiu d’água. Trepou a uma pedra e fez com os chifrinhos gesto de que podiam tomar o coche.

As águas imediatamente se abriram, como no Mar Vermelho quando os hebreus chegaram perseguidos pelos egípcios. Tomando à frente, Narizinho desceu ao fundo, seguida de todos os mais.

Entraram no coche. Contaram-se. Faltava o marquês!

— Sempre se espera pela pior figura! — resmungou Pedrinho já meio aborrecido. — Por que será que ele não aparece?

Nisto a cabeça do doutor Caramujo surgiu à janelinha.

— O senhor marquês não quer entrar! — murmurou ele muito aflito.

— Eu não disse? — exclamou Pedrinho encolerizado. — Rabicó já começa com encrencas! Mas esperem aí... e saltou do coche, de bodoque em punho.

Emília teve um começo de faniquito, sendo preciso que Narizinho lhe esfregasse no nariz uma folha de erva-cidreira.

Segundos depois Rabicó, esfogueteado por Pedrinho, entrava para a carruagem feito uma bala, indo encorujar-se aos pés da menina. Emília olhou para ele e danou.

— Veja, Narizinho! Rabicó já perdeu o brinco da orelha direita!

E olhe como está todo amarrotado o laço de fita...

Pedrinho e o doutor Caramujo surgiram.

— Finquei-lhe uma pelotada na orelha das de arrancar faísca! — foi dizendo o menino.

— Judiação! — exclamou a menina apiedada. — Mas o pior é que acertou no brinco, que lá se foi...

— Não faz mal — resolveu Pedrinho. — Explica-se lá na corte que a moda aqui na terra é um brinco na orelha esquerda e todos acreditam.

E voltando-se para o camarão cocheiro:

— Vamos!

O chicotinho do camarão estalou e os hipocampos partiram no galope.

O caminho por onde o coche corria era uma beleza. Florestas de esponjas. Florestas de algas. Florestas de corais. Até por uma floresta de mastros de navios naufragado o coche passou.

Os viajantes espiavam pelas janelinhas e viam deslizando no seio das águas os vultos dos mais terríveis monstros do mar — tubarões enormes, espadartes, serpentes. Até um polvo viram, ondeando os seus compridos tentáculos.

Emília gostou muito do polvo.

— Sou capaz de fabricar um! — exclamou, fazendo todos se voltarem para ouvir a asneirinha que ia sair. — Pego numa porção de cobras e amarro todas as cabeças num saco de couro e solto no mar e vira polvo!...

— Você é mesmo uma danada, Emília — disse Narizinho distraída, com os olhos postos em Rabicó, muito jururu no seu canto.

— Mas era melhor que endireitasse o brinco de seu marido. Está cai não cai...

— Ele que coma o brinco duma vez — respondeu a boneca.

— Toda essa tristeza de Rabicó é vontade de comer o brinco.

Rabicó passou a língua pelos beiços, com uma olhadela para o bodoque de Pedrinho — e suspirou.

Enquanto isso Pedrinho conversava com o doutor Caramujo a respeito da serpente do mar.

— Mas há ou não há essa tal serpente? — indagava ele. – Uns dizem que há, outros dizem que não há. Qual a sua opinião, doutor Caramujo?

— Nunca a vi — respondeu o médico. — Mas o mar é tão grande que deve haver de tudo.

— Uma coisa não há — interveio Narizinho. — Sereias! Vovó diz que sereia é mentira.

Pedrinho fez um muxoxo de dúvida.

— Como vovó pode saber, se nunca devassou todos os mares?

— Essa é boa! É de primeira. Parece até que a burrice de Emília pegou em você, Pedrinho! Vovó sabe porque lê nos livros e é nos livros que está a ciência de tudo. Vovó sabe mais coisas do mar, sem nunca ter visto o mar, do que este senhor Caramujo que nele nasceu e mora. Quer ver?

E voltando-se para o ilustre doutor:

— Diga, doutor, qual é o seu nome científico?

O doutor Caramujo engasgou, com cara de quem nem sequer sabia que tinha um nome científico.

— Não sabe, não é? — continuou Narizinho vitoriosa. — Pois fique sabendo que vovó sabe — e até o senhor Visconde, só porque cheirou os livros de vovó, é capaz de saber. Vamos, Visconde! Dê um quinau aqui neste sábio da Grécia. Diga qual é o nome científico dos caramujos.

O Visconde limpou o pigarro e deitou sabedoria.

— O senhor Caramujo é um molusco gastrópode do gênero Líparis.

Entusiasmada com a ciência do Visconde, Narizinho bateu palmas.

— Está vendo, doutor? O senhor é um Líparis, Líparis! Com “L” grande! Escreva na sua casca para não esquecer. O nosso Visconde sabe o nome científico de todas as coisas, menos uma...

Aposto que não sabe o nome científico de Emília!...

O Visconde respondeu, depois de limpar outro pigarro:

— A senhora Emília é um animal artificial que não está classificado em nenhuma zoologia.

Narizinho deu uma gargalhada gostosa.

— Eu não aturava tamanho desaforo! — disse cutucando a boneca. — Chamar a você, uma ilustre marquesa, de animal!...

Emília olhou para o Visconde com um arzinho de soberano desprezo.

— Não ligo a vegetais — disse ironicamente — que antes de serem Viscondes andavam jogados no chão, perto do cocho das vacas, sujos de terra e outras coisas, sem cartola nem nada... O Visconde é muito importante, mas treme de medo cada vez que passa perto da vaca mocha...

— O senhor Visconde tem medo de vacas? — inquiriu o doutor Caramujo muito admirado, apesar de não saber o que era vaca.

— Como não? — respondeu Narizinho. — Ele é sabugo e todo sabugo assim que vê uma vaca finca o pé no mundo. Não sabe que as vacas preferem comer um sabugo a comer um bombom? A mãe do Visconde, o pai do Visconde, os irmãos, os primos, os tios, o sogro — a parentela inteira do Visconde, todos os sabugos lá do sítio de vovó foram mascados pela vaca mocha. Só escapou este, porque usa cartola e vaca tem medo de sabugo de cartola.

Nesse momento o coche entrou por uma planície de areia que não tinha fim. Pedrinho olhou para aquilo com desânimo, a coçar a cabeça. Estava com preguiça de atravessar tanta areia.

— Estou farto de fundo do mar — disse ele. — O melhor é chegarmos já, já, ao palácio do príncipe.

E sem esperar pela resposta dos outros, berrou para o camarão cocheiro:

— Chegue já, cocheiro, se não vai pelotada!... O camarão cocheiro não discutiu. Puxou as rédeas e chegou e parou bem defronte do palácio real.

Continua... A Chegada

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sábado, 26 de novembro de 2011

Trova Ecológica 52 - Wagner Marques Lopes (MG)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 407)


Uma Trova Nacional

Ao se banhar num riacho,
distraída, minha prima
lembrou da peça de baixo
quando tirava a de cima....
–RODOLPHO ABUDD/RJ–

Uma Trova Potiguar

Tem tanto calor a “Nega”,
o seu fogo é tão danado
que o seu marido onde chega,
só cheira a chifre queimado!...
–FABIANO WANDERLEY/RN–

Uma Trova Premiada

1987 - Resende/RJ
Tema: CARONA - M/H

De um motel vendo a "gatona"
sair sozinha, na rua,
parou para dar carona
e a mulher boa... Era a sua!
EDMAR JAPIASSU MAIA/RJ–

Uma Trova de Ademar

Em humor não me destaco,
mas, por pura peraltice;
mesmo não sendo macaco,
vou fazendo macaquice.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

A justiça tem cegueira
mas tem olfato apurado;
quando o dinheiro ela cheira
nem o diabo é condenado!
–NEY DAMASCENO/PR–

Estrofe do Dia

Admiro 100 formigas
um besouro carregando;
40 puxam na frente,
40 atrás empurrando;
e as 20 que vão em cima
pensam que estão ajudando.
–MANOEL XUDÚ/PB–

Soneto do Dia

No Shopping
–HAROLDO LYRA/CE–

Pequenas saias na vitrine expostas,
quanto menor tanto maior seu preço.
Blusas que valem pouco mais de um terço,
plissê na frente e nada traz às costas.

Sorvete, uma colônia, um adereço;
vendedoras alegres, bem dispostas;
a gula, a tentação à prova postas.
E em cada loja, à dama, o fino apreço.

Na bolsa da mulher, uns desalinhos:
espelho, celular, alguns tubinhos
do anúncio pague dois e leve três.

Portando seus pacotes entrançados,
traz, a mulher, encantos realçados
pelas compras que faz durante o mês.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Preservação de Livros (Parte 3)


2.3 DESMONTE DOS LIVROS

É importante a conferência de páginas. Quando necessário numerá-las a lápis, no canto inferior direito. Na falta de algumas páginas, providenciar as fotocópias para serem incluídas na recuperação e montagem do livro. Antes de começar o processo, deve-se saber como ele é formado. Muitas vezes os livros encadernados são constituídos por cadernos separados, variando o número de folhas dos cadernos e em alguns casos são formados por páginas coladas juntas uma a uma, por isso deve-se prestar muita atenção no desmonte para compreender a formação do livro.

Material necessário:

– Faca multi-uso sem corte, Estilete ou Bisturí

Procedimento: · · · · · ·

Separar completamente a capa do miolo do livro com cuidado;
Retirar cuidadosamente com a ajuda da faca ou bisturi a cola que restou no lombo;
Pegar o primeiro caderno abrindo ao meio e cortar todos os fios da costura;
Com a mão direita, manter bem firme o livro e com a esquerda destacar o caderno;
Repetir esta operação com todos os cadernos do livro
Retirar com o auxílio da faca (sem corte) ou bisturi a cola seca da lombada de cada caderno e os fiapos da linha da costura

Procedimento para desmonte de livros por páginas coladas:

Separar a capa do miolo;
Retirar com o auxílio da faca ou bisturi o excesso da cola seca da lombada;
Desmontar o livro separando folha por folha e limpando as crostas existentes individualmente;
Se o livro estiver grampeado, abrir os grampos antes de retira-los e proceder a separação de folha por folha.

2.4 CONSERTO DAS FOLHAS

O conserto pode ser de folhas soltas, rasgadas ou somente um reforço central.

Material necessário:

– 50% de cola branca Cascorex e 50% de Metil (CMC);
– Pincel;
– Peso ou prensa;
– 1 par de tábuas (tipo eucatex)
– Tiras de papel de seda

Procedimento:

Folhas soltas
· Passar a cola na tira de papel de seda;
· Recolocar a folha no lugar;
· Aderir à fita parte da folha solta e parte da folha presa;

Folha rasgada e cortada · · · · ·

Colocar a folha rasgada sobre um vidro ou folha de celulóide;
Cortar uma folha de papel de seda respectivo ao rasgo;
Passar Metil Celulose sobre a tira, sobrepondo-a sobre o rasgo cuidando para coincidir letras e desenhos quando houver.
Pressionar suavemente
Deixar secar e recortar o excesso de papel.

––––––
Continua... Costura; Colocação da Lombada

Fontes:
DIVISÃO DE PRESERVAÇÃO; Preservação e Recuperação de Material Bibliográfico. Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2001.

MILEVSKY, Robert J.; Manual de Pequenos Reparos em Livros; Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos. 2ª edição, Rio de Janeiro, 2001.

Paraná em Trovas Collection - 12- José Feldman (Maringá/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 11


UM VIOLÃO QUE CHORA

Ao Nestor Victor

I

Ao Miranda Rosa Junior

Olhos por seu gosto
Não os ponha em flor
Que lhe causam dor:
Sofre de os não pôr,
E de os haver posto...

Alma que anda cega,
Se por sossegar,
Veio a se empregar,
Nesse aventurar,
Muito mal se emprega...

Ter os seus cuidados
Todos em mulher,
Tenha-os quem puder,
Que é melhor não ter,
Que os ter enganados.

Amores são rosas,
Próprias da Ilusão,
Rosas em botão,
Que é quando elas são
Frescas e cheirosas.

Flor de maravilha,
Pérola de Ofir,
Pérola a sorrir...
... Ai de quem dormir
Sob a mancenilha!

Damas, meus senhores,
São todas iguais...
Já porque as olhais,
Nem vos olham mais,
Nem vos têm amores...
Julho – 1900

II

Dessa tão ferrenha mágoa
De querer vos esperar,
Meus olhos se encheram d’água
Salgada como a do mar.

Vós prometestes, senhora,
Voltar, um dia, porém,
Esperei, e até agora
Inda não veio ninguém...

Quando vireis? Não sei. Quando
(O destino tem suas leis)
Vierdes, aqui chegando,
Talvez que não me encontreis...

Mas se me não encontrardes,
O que é natural enfim,
Interrogai estas tardes,
Que hão de vos falar de mim.

Sobretudo este arvoredo,
Que há de vos dizer: “Eu vi,
Ele passeava, em segredo,
Todas as tardes aqui.

Passeava tristonho e mudo,
A pensar em não sei quê,
Tão distraído, que tudo
Via como quem não vê...

Andava, não sei, tão cheio
De torturas ideais...
Um dia o pobre não veio,
E afinal não veio mais...”

III

Ao Rodrigo Junior

Tantas vezes hei sofrido,
Que desta vez conheci
Que tudo ficou perdido
Nas mãos em que me feri.
E é justo que então vos diga
Que a mão que me faz sofrer,
Bem que me devia ser
Amiga, e não inimiga.

Vós me causastes tais penas,
Tão acerbas e tão cruas,
Não só uma vez nem duas,
Porém, senhora, dezenas,
Que eu jamais pude atinar
Com esse vosso querer,
Sempre causando pesar,
Em vez de causar prazer.

Feristes-me de maneira
Que me nasceu a ferida,
Por onde me corre a vida
Bem como uma cachoeira...
Entretanto, é singular
Isto que pois vou dizer:
Quase que sinto prazer
De me fazerdes penar.

Alegar o bem não há de
O coração, mas foi tal
A vossa malignidade
Que o alegar não faz mal:
Fui por vós, senhora minha,
O que não fui por ninguém;
É que à conta vos não tinha
De pagar com o mal o bem.

Eu como um cego supunha
Que fôsseis só formosura,
E não afiada unha,
Que dilacera e tortura:
Não pensei que dentro desse
Puro perfil ideal
Pudesse haver e houvesse
Tanto fel e tanto mal.

O poeta é a eterna criança,
Correndo atrás da ilusão,
Que lhe foge, e ele não cansa
De tanto correr em vão,
Nessa corrida enganosa
De quem não sabe o caminho...
Ora, crer-se que uma rosa
Deixasse de ter espinho!

Pois tal embriaguez sentia,
Prazeres tão absolutos
Quando eu vos acaso via,
Em horas que eram minutos,
Que bem só entendo agora,
Agora enfim é que eu sei
Que vós não éreis, senhora,
A flor que eu imaginei.

Também daqui por diante,
Isso a mim próprio jurei,
Por mais que o prazer me encante,
Vista jamais erguerei,
Nem para uma outra estrela,
Nem para uma outra dama;
Pois para que é que hei de erguê-la,
Se tudo que vejo é lama?

IV

Para o meu coração

Tantos bens ambicionei,
Que por mal dos meus pecados
Nunca os vi realizados
E talvez nunca os verei.
Que, ó meu passarinho verde,
Tanto quisestes e eu fiz,
Que, como por lá se diz,
Quem muito quer, muito perde...

Pensais de mim que sou cego
E que sou doido perfeito.
Mas eu também não vos nego
Ter de vós igual conceito.
Assim os dois ficaremos
Pagos do bem e do mal
Que um a outro nos fazemos,
Mas sem querer afinal.

Vós por me contrariar,
Eu por não vos entender,
Quando me dais um prazer
Logo em seguida é um pesar.
E sempre mal avisado,
Julgais que tudo sou eu,
Culpa do que sucedeu,
Quando eu sei quem é culpado...

Tudo muda a pouco e pouco,
Rochedos e vendavais,
Mas vós, cada vez mais louco,
Meu coração, não mudais.
E assim, o mal como o bem,
Que inda venha a suceder,
Só de vós pode nascer,
De vós e de mais ninguém...

Eu peco por ser sincero,
E vós por não terdes leis,
Eu já não sei o que quero,
Nem sabeis o que quereis
E não há como se esqueça,
Por maior esforço vão,
Nem vós da minha cabeça,
Nem eu do meu coração.

Não podemos ser unidos:
Vossos soluços de mágoa
Soluçam nos meus ouvidos,
Os meus olhos enchem d’água.
Separemo-nos os dois:
Por esses caminhos vou,
Já que sabeis quem eu sou,
E eu sei muito bem quem sois.

V

Lá fora, e à desora,
A lua branca gira,
Um violão suspira,
Enquanto a flauta chora...

Em vão tu te debruças
Sobre a janela, em vão...
Flauta, por quem soluças?
Por que gemes, violão?

A tua vida é morta,
Ó pobre coração,
A ti que bem te importa
Que alguém soluce ou não!

Um dia, quando já
Não existires, quem,
Quem que se lembrará
De ti? Talvez ninguém.

No vasto mar, que anseia,
Nesse profundo mar,
De um pobre grão d’areia,
Quem pode se lembrar?

Que pois a lua gire,
Que o violão soluce,
E um outro se debruce
E pálido suspire...

Tu, os ouvidos fecha,
E a tua porta; a ti
Que importa a flor que ri,
Que importa aquela queixa?

VI

Fragmentos de alguns versos, que se fizeram para os Desenganos, de regresso à terra.

Quando outro dia eu andei
Por esses mares remotos,
P’ra me escapar, e escapei,
Que grandes e ardentes votos
Eu fiz, senhora Sant’Anna,
Que és a mãe, se não me engana,
Mãe dos pobres pescadores,
Dos que vivem a pescar
Os enganos e as dores,
Por essas ondas do mar...

Foi tal a alegria minha,
Salvo nessa embarcação,
Que ergui muitas vezes a alma,
De joelho, a teus pés, rainha,
Como se fosse uma palma,
Que eu erguesse aqui do chão,
Que eu erguesse aqui do lodo,
E tão ébrio de esperança,
Que eu me ria como doido,
Chorava como criança...

Mal, porém, toquei em terra,
Vieram tamanhos danos,
Tanta tristeza e revés,
Tanta fúria, tanta guerra,
Tais foram os Desenganos,
Tantos, tantos de uma vez,
Que eu que tanto te pedi,
Sob uma estrela tão má,
Antes não viesse aqui,
Antes eu ficasse lá!

Outubro – 1906

VII

Pobre meu coração, aqui, no meu ouvido,
Conta-me tudo, vá, porém baixinho, assim,
Ó pobre Aflito, que tens subido e descido
Tantas vezes a Dor, uma montanha, enfim!

Cansado. Bem o sei. E há pouco inda perdido
Por um caminho que era trágico e ruim,
A mão furada, o pé descalço, e perseguido;
E que pena de ti, e que pena de mim!

Eu sei de tudo, sei da última e da primeira,
E de outras mais, e sei do sangue que rolou,
Tão grande que inundou quase a cidade inteira...

Mas, Voluptuoso, vê, de resto que mais queres,
Se nem plumas e nem rosas ou malmequeres,
E nem mais uma flor, e tudo se acabou?...

VIII

Vamos, meu coração, adormece de todo,
E não acordes mais, que vão te fazer mal;
Nunca, que tudo enfim é esse lodaçal,
E não é nada mais nem menos do que lodo...

Assim dormindo, olhos cerrados, desse modo,
Tua inimiga má e boa e natural,
A tristeza, não vai te perseguir, ó doido,
Nem a tristeza e nem a alegria, afinal.

É o descanso, e um bem, e a paz, enfim, e tudo,
E esse sorriso como flor, e a embriaguez,
E o leito leve, e perfumado, e de veludo...

E nada, e nada bom, como o doce abandono,
Esse letargo em que vais cair, a surdez
Desse sono animal, desse profundo sono!

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Hilário Tácito (Madame Pommery)


Madame Pommery é o único romance de Hilário Tácito, pseudônimo do engenheiro José Maria de Toledo Malta, nascido em 1885 e falecido em 1951. Homem culto, porém retraído, pouco produziu no campo da Literatura.

Conforme declara expressamente seu narrador, é apenas uma crônica, não um romance - truque quase que convencional para que se atinja a veracidade e se "convença" o leitor.

A obra é a crônica de uma prostituta bem sucedida que "faz a América", mas que na realidade serve apenas de pretexto para que o narrador trace, de forma bastante irônica e humorística, as características de uma cidade (São Paulo) no momento em que se moderniza, em que ingressa em um mundo mais civilizado, talvez cosmopolita. É a crítica bem-humorada de falsas moralidades, conservadorismos hipócritas e dos desregramentos de uma sociedade rica porém provinciana.

O romance procura narrar as aventuras da célebre cafetina Ida Pomerikowski (cognominada Madame Pommery) em São Paulo, revelando todo um processo de assimilação civilizatória que tinha como referência a cidade de Paris, na virada do século. Além disso, a obra possui uma peculiaridade nada desprezível: enquadra-se numa tendência particular da expressão literária do começo do século, justamente aquela que revelava preocupação com a problematização da realidade nacional, colocando-o ao lado dos mais eminentes representantes do que já se chamou um vez de “Brasil Real”.

Mas o fato mais saliente do livro fica por contada dívida que ele possui para com a prosa singularde Machado de Assis. Com efeito, são inúmeros os indícios que revelam em HilárioTácito um caudatário de Machado de Assis, sobretudo no que diz respeito ao estilo literário. Exemplo claro dessa relação pode ser entrevista na utilização de um recurso, pelo autor paulista, muito caro a Machado, a saber, aquela espécie tão singular de se referir ao leitor no decorrer da narração, cooptando-o e colocando-o como participante ativo do enredo ficcional. Não poucas vezes, Hilário Tácito emprega recurso semelhante, dando inclusive às passagens desse tipo o desprendimento e ironia semelhantes àqueles empregados pelo romancista celebrado.

Madame Pommery, ao lado de suas qualidades literárias, o tom parodístico, a linguagem falsamente elevada, "literária", como convém à paródia deste tipo, tem, ainda, um lado documental, como relato da vida noturna de SP/início do século, é a crônica da vida airada da cidade, com a crítica de valores e costumes da época.

Madame Pommery destaca-se no universo dos romances que, isolados, desempenharam papel de relevo nas primeiras décadas do século, como Mocidade Morta, de Gonzaga Duque, ou Exaltação, de Albertina Bertha. Além disso, é relevante o caráter documental que, vez por outra, o romance parece assumir quase que deliberadamente, dando-nos um painel entre malicioso e humorístico dos anos eufóricos que começavam a despontar no horizonte. Afirma-se, portanto, como uma obra de auxílio no trabalho de reconstituição da nossa Belle Époque; e, também, como um esboço singular do mundanismo que, desde o começo do século, tomava conta da sociedade urbana de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Os recursos técnicos, como acontece com a tradição deste tipo de romance, são bastante variados, como em um exercício de técnica literária. Destes, podem-se destacar o tipo de narrador escolhido (primeira pessoa-testemunha), os relatos narrativos, panorâmicos, rápidos, sem se deter no detalhe psicológico, sem maior esforço para pôr de pé suas personagens (na realidade, pretextos). Uma cena em estilo dramático (formada apenas por diálogos).

Além dos recursos acima, devem ser destacados aqueles em que se torna mais evidente sua filiação literária. Estão neste caso: interlocução, metalinguagem, ironia, alusões (literárias), citações em itálico, linhas pontilhadas, digressões reflexivas e estilo dramático.

A paródia, entre outras formas, aparece em frases latinas de aparência solene, para descrever o ambiente sórdido de um lupanar.

ASPECTOS IMPORTANTES

Como toda obra pré-modernista que se preze, a análise dos tipos sociais urbanos, a crítica ágil da hipócrita sociedade burguesa, numa denúncia da existência de dois Brasis, múltiplos em suas riquezas e composições é sempre o cerne de toda a narrativa.

O discurso ágil e os galicismos são típicos ao traçar a coloquialidade da fala na escrita.

ESPAÇO / TEMPO

Início do século XX. Inicia-se, apenas como relato narrativo, na Europa. Desenvolve-se, entretanto como principal espaço da narrativa, a cidade de São Paulo. Fechado: as principais cenas narrativas dão-se no recinto de Au Paradis Retrouvé.

O tempo é acelerado até o momento em que a Madame se instala em São Paulo. Daí em diante o ritmo torna-se mais lento, com cenas mais compactas.

FOCO NARRATIVO

Narrador-testemunha. Narrado em primeira pessoa sem sua participação na história.

PERSONAGENS

Madame Pommery - ou Ida Pommerikowsky, protagonista, cuja vida é posta em crônica. Artista de circo, prostituta, cafetina de luxo, mulher da alta sociedade paulistana.
Zoraida - preceptora-cigana, com quem Ida aprende os segredos da vida que finalmente levaria.
Pinto Gouveia - capitalista paulistano, amante temporário de Madame Pommery, quem lhe financia os projetos.
Muitas prostitutas (nacionais e estrangeiras), freqüentadores diversos do Au Paradis Retrouvé (Ao Paraíso Reencontrado), lupanar de Madame Pommery.

EFABULAÇÃO

Filha de um domador de feras, um judeu polonês, e de uma noviça espanhola, Ida Pomerikowsky, a futura Madame Pommery, nasceu em Córdoba ou Cracóvia. Pequena ainda, sua mãe (judia) a abandona para fugir com um toureiro espanhol. Aos quinze anos já dançava ao pandeiro e lidava com as feras de um circo. Educada no ambiente circense, não foi difícil para um velhote ricaço de Praga estuprá-la. O pai de Ida exige do estuprador nove mil coroas, que afinal de contas vão parar, por mil tramóias, nas mãos da própria Ida. Ela foge e vai correr o mundo, como prostituta.

Depois de suas experiências por vários países, quase que por acaso (contratou uma viagem com um capitão de navio) chega ao Brasil.

Instalada em São Paulo, não se conforma com o atraso da vida noturna da cidade e depois de algum tempo monta um prostíbulo de luxo, que passa a ser a referência de boêmios e homens da moda. O dinheiro que ganha com tal atividade (cafetinagem) é suficiente para pagar o empréstimo inicial (aliás, pagamento em forma de superfaturamento do consumo de quem tomara o empréstimo) e ainda lhe resta uma fortuna apreciável.

De posse do dinheiro, Madame Pommery, obrigada por razões jurídico-sociais a abandonar a profissão, resolve casar-se e escolhe, para isso, pessoa da mais alta sociedade de São Paulo, situação a que, por sua fortuna, também ascendera.

Nota: Nos anos 1920 houve um progressivo refinamento dos cafés-concerto, transformados em cabarés, onde se dançava com as cocottes, jogava-se pôquer e se consumiam drogas da moda. O chope gelado era trocado pelo champanhe francês. Na obra Madame Pommery esta nova realidade ganha forma na figura da prostituta que dá nome à obra e que administra um dos cabarés da cidade de São Paulo. O autor descreve a passagem de uma sociedade “arcaica”, que consumia produtos ultrapassados como a cerveja, para uma sociedade “civilizada” em que o champanhe era consumido corriqueiramente, entrando na vida cotidiana daqueles que queriam ser reconhecidos como parte da modernidade. Duas passagens do texto ilustram o argumento:

Vendia-se cerveja, arvorada em bebida de gente fina, a dois mil-réis a garrafa. E achavam caro! O champanha, considerado um luxo de nababos, venerava-se nos armários com cerimoniosa devoção; e apenas descia deles em datas inesquecíveis, com estrondos escandalosos, cujos ecos, dilatados pela fantasia dos sobreviventes, se repetiam por largo tempo nas imaginações e nas conversas (Tácito 1998:21).

O uso do champanha a trinta mil-réis a garrafa devia tornar-se compulsório. E a assistência profissional a ninguém seria prestada a menos de cem mil-réis. Os coronéis, em breves prazos, estariam ensinados e convictos que pagar mais barato é ignóbil, e não beber champanha uma torpeza. Então beberiam champanhadas e pagariam satisfeitos; pois esta casta de tipos não cede por nenhum preço a reputação de finos e dadivosos perante o mulherio (Tácito 1998:56).

RESUMO

O primeiro capítulo, assim com as muitas interferências do narrador, explica os motivos que o levaram a escrever a história de Madame Pommery. Afirma o narrador que se trata de uma história verdadeira e narrá-la significa uma tarefa nacionalista, já que muitos não se importam em contar as "altas e maravilhosas aventuras de Madame Pommery", quem, segundo o narrador, tem prestado serviços inestimáveis à "desbotucudização" da nossa sociedade.

Depois de afirmar que Madame Pommery existe verdadeiramente, apresenta-se o passado da protagonista. Ida Pommerikowsky, filha de um judeu domador de feras de um circo e de uma noviça de um convento espanhol, vem para o Brasil no início do século. Mas, ainda na Europa, sua vida sofreu grandes abalos.

Consuelo Sánchez, mãe de Ida, abandona o pai e a filha - que tinha então três anos -, fugindo com um toureador. A menina é criada com a ajuda de Zoraida, uma preceptora cigana, e aprende as artes do circo com o pai Ivã Pommerikowsky, de quem herda o gosto pelas finanças. Aos quinze anos, já bastante interessada nas coisas do sexo, Zoraida a inicia nas artes do amor, a pedido do próprio pai.

Os planos do pai parecem que se realizariam quando, estando em Praga, um ricaço se enamorou de Ida. Mas a menina, percebendo a intenção do pai em ficar com o dinheiro pago pela sua virgindade, foge com o cheque de 9000 coroas enquanto o ricaço roncava no leito. Zoraida a acompanha. A partir daí, Ida inaugura sua vida de prostituição, percorrendo toda a Europa. O seu "nome de guerra", Madame Pommery provavelmente vem da champanha Pommery, de que tanto gostava.

Aos trinta e quatro anos, em Marselha, já decaída, mas ainda desejável, torna-se artista de cabaré. Conhece então o marujo Mr. Defer, a quem seduz e com quem viaja para a América do Sul, fascinada com as possibilidades de rápida fortuna anunciadas por Defer. Chegou ao Brasil, no cargueiro "Bonne chance" e desembarcou em Santos. No hotel em que foi jantar com Defer, Madame Pommery encontra Zoraida, com ar de senhora respeitável, repleta de jóias, acompanhada do marido. Zoraida finge não reconhecer Pommery que, inconformada, pede ao garçon explicações sobre o casal da outra mesa. Fica sabendo que se trata de gente importante - Coronel Pacheco Isidro e Dona Zoraida -, donos de muitas fazendas e influentes na política. Madame Pommery fica extasiada; percebe as possibilidades da terra em que havia chegado e decide que o Coronel seria seu homem. Despede-se de Defer e ruma para São Paulo, no encalço de Zoraida e Pacheco Isidro. Pretendia chantagiar o casal, em troca do silêncio sobre o passado de Zoraida.

Na metrópole paulistana, Madame Pommery volta ao trabalho: no Hotel dos Estrangeiros, uma vez mais é uma prostituta e artista de cabaré. Encanta a todos, não tanto pela sua beleza física, já quase desaparecida, mas pela simpatia e comicidade. Foi alargando o círculo das amizades, dos admiradores e percebeu que todos conheciam o casal Zoraida e Pacheco Isidro e também o passado de prostituta da colega de outros tempos. Portanto, o plano de Madame Pommery de chantagiar estava anulado. Restava-lhe arrumar um sócio e fundar uma bordel, para ganhar tanto dinheiro que suplantasse a superioridade de Zoraida.

São Paulo àquela época, Madame Pommery logo percebe, é ainda provinciana, a despeito das modernizações por que passava. Especialmente a moral, os "bons costumes", o comportamento mantinham-se ainda tradicionais, conservadores e hipócritas. Coronel Pinto Gouveia, um dos enamorados de Madame Pommery, queixava-se da precariedade e insipidez da vida noturna da cidade, a repugnância do meretrício local. Pommery não desperdiçou a oportunidade e pediu um empréstimo ao Coronel, com o intuito de fundar uma casa em que bebida cara, o luxo e as tentações da carne levariam os freqüentadores a gastar o que tinham e o que não tinham. O Coronel, depois de uma noite de amor e embriaguez que o deixaram descadeirado, concede o dinheiro pedido: não os dez contos, mas apenas seis. Apesar de se sentir traída, era o início da glória de Madame Pommery, que ensinaria São Paulo a valorizar os prazeres da noite.

Com o empréstimo, Madame Pommery instalou no largo do Paissandu, próximo à rua São João o seu Paradis Retrouvé, prostíbulo que ficaria logo famoso. Madame Pommery acolhia Coronel Pinto Gouveia, mas incomodava-se com o fato de ter com ele uma dívida e queria, logo que fosse possível, safar-se do amante e sócio. Os gastos exagerados de Pinto Gouveia, manejados habilmente por Pommery, logo ultrapassaram a soma dos seis contos que o velho homem havia emprestado. Pinto Gouveia, para piorar a situação, descobre que Pommery tinha novo amante, Filipe Mangancha. Contrariado, vai-se embora do Paradis Retrouvé e manda pagar o que deve. Madame Pommery havia encerrado seus negócios com o Coronel e, agora dona exclusiva do bordel, tinha caminho livre pela frente.

Filipe Mangancha, o novo amante, mantinha no Teatro Cassino um espetáculo de variedades. O teatro era um lugar ideal para Madame Pommery e suas meninas exibirem-se em público.

Madame Pommery articulava todos os passos que dava. Como lembra o narrador, herdara da mãe a disciplina do convento, de modo que estipulou no Paradis Retrouvé normas de convívio que não admitia ver quebradas. Seu objetivo era atingir o lucro - e isso herdara do pai judeu - e garantir nobreza à profissão de cafetina. Elegância na vida devassa, coisa que aqueles paulistanos simplórios apesar de ricos não conheciam antes da chegada de Pommery à cidade. Agora, no Paradis Retrouvé tinham a chance de conhecer o melhor estilo de prostituição, mas deviam também pagar por isso: nada de preços baratinhos, nada de cerveja: champanhe da boa e taxas que pagassem a qualidade dos serviços lá prestados. Se bem que o serviço não era lá tão especial assim: suas meninas "vindas da Europa" eram, na verdade, bem brasileiras e de origem bem ordinária; a champanhe servida não era das melhores e o ambiente não era decorado no luxo que o nome poderia fazer supor. É a simpatia e o zelo de Madame Pommery e a alegria de alguns freqüentadores, entre eles Filipe Mangancha, que garantem a atmosfera exuberante do local.

Um dia Mangancha conversa com um colega, Narciso, em que o primeiro defendia e o segundo atacava a ingestão de bebidas alcoólicas. Interrompendo a conversa, Madame Pommery chega, dizendo estar passando mal. Levada para o quarto, na verdade foi encontrar-se com seu novo pretendente: Romeu das Camarinhas, moço romântico e galante. Madame Pommery já estava cansada de Filipe Mangancha e, além de tudo, a Companhia Paulista de Teatro e Passatempo já tinha decaído e não mais interessava para Pommery levar suas meninas para se exibirem no espetáculo de Mangancha. Tinha chegado, portanto, a hora de desfazer-se dele. Ela queria agora freqüentar o Bar do Municipal, para manter-se em contato com a aristocracia.

Filipe Mangancha fica irado quando sabe da traição de Pommery mas, como um cirurgião tinha de manter a boa reputação, nada fez a não ser pagar as contas atrasadas. Começava a fase mais estável e brilhante de Madame Pommery, ao lado de seu Romeu das Camarinhas.

O Paradis Retrouvé tornou-se o ponto de encontro da elite financeira. Lá se fechavam os negócios que moviam São Paulo. Passar pelo bordel de Madame Pommery era sinônimo de prestígio e de elegância. Em contrapartida, as meninas de Pommery e a própria cafetina passaram a freqüentar as sessões do cinematógrafo, novidade da fidalguia local. A cortesãs, antes confinadas, agora podiam participar da sociedade, mostrar suas caras ao público em geral, compartilhar de momentos com esposas e filhos daqueles homens que eram clientes do Paradis Retrouvé. O mundo respeitável das senhoras e senhoritas de família se punha em contato com o mundo da prostituição, que, desde a chegada de Madame Pommery já não era mais vergonhoso. As moças que iriam se casar passaram até a receber cursos no Paradis Retrouvé!

Um único acontecimento desestabiliza a tranqüilidade de Madame Pommery. Trata-se da visita de Justiniano Sacramento, funcionário público que pretende cobrar enormes somas de impostos do Paradis Retrouvé. Mas a sorte estava do lado da proprietária. O Coronel Fidêncio Pacheco Isidro, isso mesmo, o marido de Zoraida, tinha se tornado um freqüentador do prostíbulo e, por coincidência, era justamente naquela época o Ministro dos Impostos. Coronel Pacheco Isidro coloca-se a favor de Madame Pommery e, para que Justiniano não criasse mais caso, Chico Lambico, o redator do "Jornal de São Paulo", onde Justiniano também trabalhava, conta ao corretíssimo funcionário público que o próprio Ministro freqüentava o Paradis Retrouvé. Atônito, mas interessado, Justiniano empolga-se por conhecer o lugar. Maravilhou-se com a sociedade que lá encontrou, ainda que tenha ficado um pouco decepcionado com a falta de religiosidade que pôde observar nas meninas. O resultado foi melhor do que se esperava: Justiniano abaixa as taxas do Paradis Retrouvé, conforme pedido de Pacheco Isidro. Mais ainda: começa a sentir uma vontade irresistível de voltar ao bordel, onde gastou todas as suas economias. Madame Pommery fica comovida com a desgraça financeira de Justiniano e pede a Pacheco Isidro que aumente o salário do funcionário.

Só faltava uma coisa para coroar a existência de Madame Pommery. Não nos esqueçamos que tudo que fez, toda a fortuna que acumulou foi para se vingar do desprezo de Zoraida no encontro que tiveram no restaurante, quando Pommery chegara ao Brasil. Faltava uma única coisa: casar-se . Com isso, entraria de vez por todas no círculo aristocrático paulistano. Analisou vários possíveis candidatos e estrategicamente vendeu o Paradis Retrouvé, para retirar-se à vida privada. Era o primeiro passo para a regeneração. Casou-se? Não se sabe. Mas o narrador - e nós mesmos - ficamos morrendo de vontade de conhecer como acabou a vida de Madame Pommery.

Fonte:
Prof. Menalton Braff | Maurício Silva (Mestre) - Curso de Letras - Centro Universitário FMU e Centro Universitário Nove de Julho (SP) | Marcelo Gruman - pesquisador do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS) e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Disponível em Passeiweb

Hilário Tácito (1885 - 1951)

José Maria de Toledo Malta (Araraquara SP 1885 - São Paulo SP 1951). Romancista, ensaísta, tradutor, engenheiro.

Formado em engenharia civil na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo - Poli/USP, começa a trabalhar como funcionário público estadual.

Considerado um importante especialista em concreto armado, escreve três obras sobe o tema.

Em 1919, publica seu único romance, Madame Pommery, assinado com o pseudônimo Hilário Tácito. A obra faz, em seu título, uma referência inevitável à Madame Bovary, do escritor francês Gustave Flaubert (1821 - 1880), como ela, uma crítica aos costumes de uma época.

Muito embora, segundo crônica de Lima Barreto (1881 - 1922), a sátira de Tácito não imite nenhum dos valores, estilos ou modelos estabelecidos pela tradição literária que o antecede, inserindo-se no panorama da literatura brasileira no conjunto de criações que precederam o modernismo, ao lado de trabalhos dos escritores Monteiro Lobato (1882 - 1948) e Godofredo Rangel (1884 - 1951), de quem Tácito era amigo.

O romance narra a transformação de São Paulo numa metrópole cosmopolita e o aburguesamento de sua sociedade através da vida da cafetina que dá nome ao livro. Além disso, escreve o prefácio do romance Vida Ociosa, de Rangel, o artigo Primeira e Última Morada de Monteiro Lobato e duas crônicas para o jornal O Estado de S. Paulo, interrompendo essa colaboração que deveria tornar-se uma série.

Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 10)

A COBRA ESTÁ FUMANDO
Em 1943 foi constituída a FEB - Força Expedicionária Brasileira com o objetivo de lutar na Europa, ao lado dos países aliados, na Segunda Guerra Mundial. A insígnia da FEB ficou assim: sobre um fundo amarelo, o desenho de uma cobra verde fumando um cachimbo; no alto, em letras brancas sobre um fundo azul: "BRASIL".
Pronto, aí estavam as cores da bandeira nacional. Tudo isso aparecia dentro de um octaedro com bordas vermelhas - a cor representando a guerra. O desenho foi uma resposta a um repórter do Rio de Janeiro, que disse ser mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra. O réptil chegou até a ser representado pela Disney: uma cobra de capacete, soltando fumaça pelas ventas e disparando dois revólveres.
A expressão ficou, então, com o sentido de "vou botar pra quebrar", "a situação vai ficar preta".

COBRAS E LAGARTOS
Dizer cobras e lagartos de alguém é dizer coisas ofensivas a essa pessoa. Cobras aí é uma forma antiga de copias, que eram versos de escárnio para zombar de alguém. Dizer cobras era, então, satirizar, ridicularizar uma pessoa. Depois, a palavra cobras, que, com esse sentido, passou a ter a forma copias, passou a ser interpretada como o animal pelo uso popular, que acrescentou os lagartos para dar simetria à frase e também porque, desde a Bíblia, cobras e lagartos já andavam juntos. No livro dos Salmos do Antigo Testamento, aparece: "Sobre a áspide e o basilisco andarás e calcarás aos pés o leão e o dragão" (salmo XC). Áspide é uma serpente; basilisco, um lagarto. O leão e o dragão se separaram porque o segundo assinou contrato de exclusividade de imagem com São Jorge.

CONTO-DO-VIGÁRIO
Vigário veio do latim vicariu, formado de vicis, vez, mudança (daí vice). Tal como a palavra latina, vigário tem o sentido de substituto. Na terminologia eclesiástica, é o padre que substitui o pároco ou, popularmente, o próprio pároco.
Pode ser que a expressão conto-do-vigário tenha vindo daí, ou seja, é o golpe que alguém aplica fazendo-se passar por outro.
Conta-se também a história de um vigário que, em troca de dinheiro miúdo para despesas urgentes, teria confiado a uma pessoa honesta um embrulho, que, segundo ele, continha uma grande quantia em dinheiro, mas na verdade era tudo papel sem valor.
Existe ainda outra tese para a origem da expressão. Entre os nobres da corte portuguesa que vieram parar no Brasil, em 1808, havia um farsante que se anunciava herdeiro de um riquíssimo vigário de Portugal. Por conta da futura herança, o sujeitinho morava, comia e bebia à tripa forra, anunciando que tudo pagaria assim que o vigário português fosse ao encontro do Senhor. O vigarista sumiu, legando suas dívidas aos credores.
O leitor escolha aí a sua versão e eu o poupo de pelo menos outras três.

IR PRA CUCUIA
Na ilha do governador, cidade do Rio de Janeiro, fica o cemitério da Cacuia, junto à praia da Cacuia. Mas, se alguém diz que Fulano foi pra Cacuia, é mais fácil imaginar Fulano dentro de um barranco do que sob uma barraca. E que o cemitério deu nascimento à expressão ir pra cucuia ou ir pras cucuias, morrer, malograr-se.
Cucuia é uma variante popular de Cacuia. A palavra cacuia está dicionarizada como sinônima de cemitério.

DA SILVA
A expressão "da Silva" vem caindo em desuso. Significa "totalmente" e aparece depois de um adjetivo no diminutivo (doidinho da silva, branquinho da silva).
Não existe nenhuma explicação convincente para sua origem. Mas uma delas, sustentada por alguns etimólogos, é bem inventiva. Se o leitor achar que acreditar nela é mais difícil que tirar o primeiro lenço de papel da caixinha, pode esquecer.
A história da expressão teria começado com os pregões das vendedoras portuguesas de sardinhas, que assim alardeavam seu produto: "Ainda viva! Vivinha da costa!" - costa, aí, com o sentido de litoral. Como Costa e Silva, além de nomes muito comuns em Portugal, têm sentidos de certa forma opostos (litoral x selva), assim teria surgido, por contraste, a variante "vivinha da silva".

FAVAS CONTADAS
Favas contadas é uma expressão usada para designar algo fatal, inevitável. A fava é uma prima do feijão, cultivada desde os tempos pré- históricos e adorada pelos romanos.
Antigamente, as favas também eram usadas nas votações: favas brancas para o sim, favas pretas para o não. E cada votante atirava sua fava na urna. Feita a apuração com a contagem das favas, era eleito quem recebesse o maior número de favas brancas. Não adiantava mais ninguém reclamar porque já eram favas contadas. E aí era partir para o abraço e comemorar devorando os votos.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Casamento De Narizinho – II – O pedido


Logo que os peixinhos escoteiros chegaram ao sítio de dona Benta, foram tratando de erguer a concha e enroscá-la entre duas pedras na beirinha do ribeirão — bem perto do pé de ingá. E por ali ficaram, descansando e espiando.

Não demorou muito, apareceu Pedrinho de vara na mão; vinha pescar justamente ali. Chegou, pôs uma pobre senhora minhoca no anzol e já ia lançá-la ao rio, quando...

— Concha por aqui! — exclamou muito admirado. — Isto tem dente de coelho!...

Pegou a concha. Examinou-a. Sacudiu-a ao ouvido. Percebeu barulhinho de carta dentro. Abriu-a: era carta mesmo!

— Hum! Carta para Lúcia. Há de ser namoro — e voltou para casa a correr.

— Narizinho! — foi gritando logo da porta da rua. — Uma carta para você!...

A menina estava ajudando tia Nastácia a enrolar rosquinhas de polvilho. Assim que ouviu aqueles berros, largou da massa, limpou as mãos no avental da preta e disse:

— De quem será, meu Deus do céu? Rasgou o envelope e leu:

Senhora!
A felicidade do reino das Águas Claras está nas vossas mãos. Nosso príncipe perdeu-se de amores e só pode ser salvo se a menina o aceitar como esposo. Ou casa-se ou morre — diz o médico da corte.
Quererá a menina salvar este reino da desgraça, compartilhando o trono com o nosso muito amado príncipe?
(Assinado) Peixinhos do mar

— Sim, senhor! — disse Narizinho depois de lida a carta. – Estes tais peixinhos sabem escrever na perfeição. Acho que nem vovó, que é uma danada, seria capaz de escrever uma cartinha tão cheia de gramáticas...

Depois, voltando-se para Pedrinho, ordenou muito naturalmente:

— Responda que sim, que aceito. Diga que estou ajudando tia Nastácia a enrolar estas rosquinhas e logo que acabe irei casar com ele.

Dona Benta, que ia passando, ouviu o final da frase.

— Casar com quem, menina? Que história de casamento é essa?...

— Sim, vovó! Fui pedida em casamento e aceitei. Vou casar-me com o príncipe Escamado.

Tia Nastácia arregalou os olhos para dona Benta, que por sua vez tinha os olhos arregalados para a menina.

Narizinho riu-se de tanto olho arregalado e continuou :

— De que é que se espantam? Se toda a gente se casa, por que não posso casar-me também?

— Sim, minha filha — respondeu dona Benta com pachorra.

— Todos se casam, não há dúvida. Eu me casei, sua mãe se casou. Mas todos se casam com gente da mesma igualha. É muito diverso disso de casar com um peixe...

— Dobre a língua, vovó! Escamado é príncipe. Se se tratasse aí dum peixe vulgar de lagoa, vá que vovó falasse. Mas o meu noivo é um grande príncipe das águas!...

— Mas não é criatura da nossa espécie, menina.

— E que tem isso? A Emília, que é uma boneca, não se casou tão bem com Rabicó, que é leitão? Acho as suas idéias muito atrasadas, vovó...

Dona Benta volveu os olhos para tia Nastácia.

— Já não entendo estes meus netos. Fazem tais coisas que o sítio está virando livro de contos da Carochinha. Nunca sei quando falam de verdade ou de mentira. Este casamento com peixe, por exemplo, está me parecendo brincadeira, mas não me admirarei se um belo dia surgir por aqui um marido-peixe, nem que esta menina me venha dizer que sou bisavó duma sereiazinha...

A negra benzeu-se com ambas as mãos.

— Credo! Até parece bruxaria... Mas se chegar a esse tempo, sinhá, mecê que trate de arranjar outra cozinheira. Assim catacega como sou, tenho medo de escamar e fritar um bisneto de mecê pensando que é alguma traíra...

Enquanto as velhas discutiam o estranho caso, Pedrinho fez a carta de resposta. Depois dobrou-a, bem dobradinha. Depois fechou-a, bem fechadinha, dentro do mesmo envelope-concha. Depois colocou o envelope-concha no lugar onde o havia encontrado.

Imediatamente os peixinhos escoteiros se aproximaram. Cheiraram a concha, viram que havia resposta dentro e com fortes narigadas a derrubaram n’água, voltando a rolar com ela pelo fundo do rio.

Quando o príncipe leu a resposta de Narizinho, quase morreu de alegria. Apesar de ser a carta mais curta do mundo, pois se compunha apenas duma palavra — “SIM!” — o príncipe perdeu a compostura, e pôs-se a dar pinotes em cima do trono que até parecia um peixe pescado e largado no seco.

Os ministros e demais fidalgos da corte trocaram olhares de aflição. Teria enlouquecido o amado príncipe?

Escamado, afinal, caiu em si, e ficou vermelhinho como um camarão.

— Perdoem-me estas expansões, amigos! — disse ele. – São alegrias loucas dum náufrago que vê afinal o porto da salvação. Este “sim” comoveu-me até o fundo da alma. Não é um simples sim, reparem. É um sim seguido de um ponto de admiração! Quer dizer que Narizinho não se limita a aceitar a minha proposta, mas a aceita com entusiasmo! Céus! Como me sinto feliz!...

Dando em seguida ordem para prepararem o reino para a maior festa que ainda houve nos Sete Mares, dirigiu-se à sua mesinha, molhou uma pena de beija-flor na pérola furada que lhe servia de tinteiro e principiou a escrever cartas de amor. Escreveu até acabar a tinta e a pena ficar reduzida a um toco. Ia escrevendo e mandando, e tantas escreveu e mandou que o mordomo do palácio teve de organizar um serviço de correio especial, dispondo milhares de sardinhas pelo mar afora, a pouca distância uma da outra. As cartas iam passando de mão em mão, como fazem os pedreiros com os tijolos.

Narizinho lia as cartas e respondia com presentes — ora uma flor, ora um grilinho do gramado, ora uma rosada e roliça minhoca.

Mandou também uma das rosquinhas de polvilho, dizendo que fora enrolada pela suas próprias mãos.

Foi o presente de que o príncipe mais gostou. Mas em vez de comer a rosquinha, mandou que o melhor ourives do reino engastasse nela uma fileira de diamantes, de modo a transformá-la numa preciosa coroa.

— Ficará sendo a minha coroa real — e nenhuma porei na cabeça com maior orgulho! — disse o príncipe, comovido.
––––––––
Continua... Os brincos do Marquês

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Trova Ecológica 51 - Wagner Marques Lopes (MG)

Carolina Ramos (Livro de Poesias "Destino")


texto por José Feldman

Temos o destino que merecemos.
O nosso destino está de acordo com os nossos méritos.
(Albert Einstein)

Destino é o livro de poesias da “primeira dama da trova” de Santos/SP, Carolina Ramos. Além de suas magníficas trovas, seus contos que vim a conhecer em seu livro “Interlúdio”, esta guerreira nos encanta com suas poesias.

Destino é o que buscamos, cada qual a seu modo, por seu caminho, e neste livro, Carolina mostra este fado, através da Tentação, do Cântico de Fé, de Esperança, da Voz do Silêncio, da Hipocrisia, do Milagre, da Amizade. Ela nos faz enveredar por um caminho que às vezes parece árduo, mas que ao mesmo tempo nos seduz, fazendo com que desejemos continuar esta caminhada. Ela não só nos delicia com suas palavras, mas faz que vivamos os momentos de emoções, muitas vezes por nós vividos, outras por nossos sonhos, assim como os instantes de nossas desilusões.

Segundo Machado de Assis, “O destino, como os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho”, e é assim nas 227 páginas do livro. Todo momento é um novo momento, cada poesia faz parte de um emaranhado de uma teia, a teia do Destino.

O destino, sobretudo,
numa visão alongada,
é uma incerteza de tudo
ante a certeza do nada!
Eduardo A. O. Toledo (Pouso Alegre/MG)

E Carolina não pára por aí, vai criando uma teia enorme ao escrever sobre o que há a nossa volta ou sobre personagens que povoam nossa mente, como Castro Alves, José de Anchieta, ou mesmo locais como Nova Friburgo, Corumbá, Santos, etc.

Deixa que o ouro do sonho te enriqueça:
– Velho, terás um coração menino!
Vai…que o beijo das Musas tua alma aqueça…
– Poeta, vai… e cumpre o teu Destino!
(Carolina Ramos, in poesia Destino, estrofe final, p.18)

Qual será o destino? Não sabemos! Mas,

Sou tal qual um beduíno,
na vastidão do deserto,
levado pelo destino
para o meu destino incerto!
Francisco Neves de Macedo (Natal/RN)

Somos qual beduíno a percorrer a vastidão das folhas deste livro, que ora é deserto, ora é oásis, e que cada verso, cada palavra seja um momento de reflexão, aquele momento sublime entre a tempestade e a calmaria, e que este momento seja como um fio, um fio tênue e longo que una em suas pontas os desejos e os mistérios do destino, um fio de um lado nós, seres humanos, do outro, Deus.

Saiba que seu destino é traçado pelos seus próprios pensamentos,
e não por alguma força que venha de fora.
O seu pensamento é a planta concebida por um arquiteto
para construir um edifício denominado prosperidade.
Você deve tornar o seu pensamento mais elevado,
mais belo e mais próspero
(Martin Luther King)

Ou, nas palavras de Paulo Bomfim: “O destino deste livro é destinar destinos”.

Divaguemos ao sabor das ondas do Destino.

José Feldman