terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Júlia Cortines Laxe (Poesias Escolhidas)


COLOMBINA

Mascarada mulher o rabecão trouxera.
Morrera em pleno baile a frágil Colombina
E, no egrégio salão de culto à Medicina,


O professor leciona, em voz veemente e austera:
-"Rapazes, contemplai! É rameira e menina.
Tombou ébria novicio e com certeza era
Devassa meretriz, mistura de anjo e fera,
Flor de lama e prazer, Vênus e Messalina.”.

Em seguida, a cortar, rompe a seda sem custo,
Desnuda-lhe, solene, a alva pele do busto,
Afasta, indiferente, as flores de rendilha...

No entanto, ao descobrir-lhe a face triste e bela,
O mestre cambaleia e chora junto dela...
Encontrara na morta a sua própria filha.

INTERROGAÇÃO

Contemplo a noite: a cúpula estrelada
do firmamento sobre mim palpita;
meu olhar, que a interroga, embalde fita
o olhar dos astros, que não veem nada:

“Nessa amplitude lôbrega e infinita
que inteligência ou força inominada
numa elipse traçou a vossa estrada,
estrelas de ouro, que o mistério habita?

Dizei-me se, transpondo a imensidade,
alguma cousa a vós minha alma prende,
um vínculo de amor ou de verdade.

Dizei-me, o fim da nossa vida agora:
para que serve a luz que em vós resplende,
e a oculta mágoa que em meu seio mora?...”

O LAGO

Um pouco d'água só e, ao fundo, areia ou lama,
Um pouco d'água em que, no entanto, se retrata
O pássaro que o voo aos ares arrebata,
E o rubro e infindo céu do crepúsculo em chama.

Água que se transmuda em reluzente prata
Quando do bosque em flor, que as brisas embalsama,
A lua, como uma áurea e finíssima trama,
Pelos ombros da noite a sua luz desata.

Poeta, como esse lago adormecido e mudo
Onde não há, sequer, um frêmito de vida,
Onde tudo é ilusório, e passageiro é tudo,

Existem, sobre um fundo, ou de lama ou de areia,
Almas em que tu vês, apenas, refletida
A tua alma, onde o sonho astros de ouro semeia!

ÚLTIMA PÁGINA

Antes de mergulhar no silêncio da morte,
Ou da idade sentir a fraqueza e o torpor,
Eu quisera lançar, num supremo transporte,
Meu grito de revolta e meu grito de horror.

Mas sei que por mais forre e por mais estridente
Que ela corra através do infinito, até vós,
Ó céus, que além brilhais numa paz inclemente,
Nem qual brando rumor chegará minha voz!

Mas sei que não há dor que a natureza vença,
E que nunca a fará de leve estremecer
Na sua eternidade e sua indiferença
O lamento que vem dum transitório ser.

Mas sei que sobre a face execrável da terra,
Onde cada alma sente, em torno, a solidão,
Esse grito, que a dor duma existência encerra,
Não irá ressoar em nenhum coração.

Contudo, num clamor de suprema energia,
Eu quisera lançar minha voz! Mas a quem
Enviar esse brado imenso de agonia,
Se para o compreender não existe ninguém?!

FRACOS

Fracos, odeio a inércia e detesto a fraqueza.
Prefiro a mão que esmaga ou que vibra o punhal
À doce e inconsciente e nefasta moleza,
Que é para a alma do forte um veneno mortal.

Como de encontro à costa, em ondas remansadas
Chora o mar, ou se atira em bravos vagalhões,
Assim de encontro a vós, almas adormentadas,
Fremem de ódio e de amor os nossos corações.

Almas fracas, fugindo à aspereza das lides,
Sem um esforço para às correntes opor,
Pelo rio do tempo arrebatadas ides,
Desta ou daquela vaga a boiar ao sabor.

Que vos importa a vós a agonia da luta,
A ânsia de possuir, o infinito aspirar?
Que vos importa a vós a decepção que enluta,
Se não sabeis querer, nem sabeis adorar?!

A VINGANÇA DE CAMBISES

Disseram — diz o rei a Prexaspes — que o vinho
Sobe presto à cabeça em denso torvelinho
De vapores, e a febre, o delírio produz,
Que irradiam no olhar uma sinistra luz.

Ou, pouco a pouco, pelo organismo se entorna,
Qual onda de torpor, voluptuosa e morna?
Disseram; e tu tens a ousadia de vir
Em face de teu rei palavras repetir
De estultos, e afirmar que o vinho afrouxa braços
Que fazem, como os meus, os reinos em pedaços?
Ao contrário; verás; (e bêbado entesou
No arco a flecha) porém é preciso que aponte

Um alvo; — o coração de teu filho.
E atirou,
Da criança, que nele o doce olhar fitava,
— Olhar que o etéreo azul do infinito espelhava, —
Varando lado a lado o peito e o coração.

E o pai disse, curvando humildemente a fronte:
— "Nem de Apolo é mais firme e mais certeira a mão.”

Fontes:
Frâncisco Cândido Xavier. Antologia dos Imortais.
http://literaturaemvida2.blogspot.com/2010/11/julia-cortines-laxe-poeta-e-mulher.html
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/julia_cortines.html

Júlia Cortines Laxe (1868-1948)


Júlia Cortines Laxe nasceu em Rio Bonito, Província do Rio de Janeiro, no dia 12 de dezembro de 1868, e faleceu no Rio de Janeiro (então Capital Federal), no dia 19 de março de 1948. Apesar de sua longevidade (viveu quase oitenta anos), pouco se sabe de sua vida, supondo-se que haja sido professora

Não reconhecida devido ao preconceito de então, visto que o crítico literário, José Veríssimo, após a publicação de seu segundo livro, em 1905, tenha declarado que "Os poemas de Júlia Cortines distanciam-se magnificamente da poesia de água-de-cheiro e de pó-de-arroz da musa feminina brasileira, e revelam em Júlia, mais que uma mulher que sabe sentir, alguém que sente com alma e coração e de forma que disputa primazias com nossos melhores poetas contemporâneos.”

Sua poesia é carregada e vibrante, como se pode ver no poema “Fracos”.

Poeta parnasiana, como Francisca Júlia, Júlia Laxe também colaborou em revistas como A semana e A Mensageira, da paulista Presciliana Duarte de Almeida, lançada em 19 de outubro de 1897, que se tornou um dos principais espaços da mulher escritora do final de século XIX/início de XX e onde também escreveram a citada Narcisa Amália, Anália Franco, Júlia Lopes de Almeida, Francisca Júlia (link para minha postagem), Auta de Souza (confira a postagem), nomes igualmente de peso na época. (Informação in Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922)) de Ana Luiza Martins – Fapesp – Edusp – pág. 374-375)

Obras

Versos (1894) e Vibrações (1905), a respeito do qual, José Veríssimo fez os elogios.

“Júlia Cortines” – diz Péricles Eugênio da Silva Ramos (Pan.III, pág.246) – “é uma das poetisas selecionadas por Valentim Magalhães para figurarem na parte antológica de A Literatura Brasileira (1870 -1895). Sua poesia afigura-se realmente parnasiana, de um comedimento e boleio de frases semelhantes ao de Francisca Júlia.” É ela, segundo afirma o poeta e ensaísta Darcy Damasceno (in A Lit. no Brasil, III. T.1, pág.376). quem “abre o desfile dos epígonos parnasianos”.

Sentimento, emoção, cuidado da forma, beleza expressional e correção étrica caracterizam-lhe os poemas, levando José Veríssimo a compará-la a celebre poetisa italiana Ada Negri (Apud E. Werneck, Ant. Brasileira pág. 507. (Rio Bonito, Estado do Rio, 12 de Dezembro de 1868 – Desencarnou em 19 de março de 1948.)

Fontes:
Frâncisco Cândido Xavier. Antologia dos Imortais.
http://literaturaemvida2.blogspot.com/2010/11/julia-cortines-laxe-poeta-e-mulher.html
http://www.globaleditora.com.br/NEWSITE2/Gaia/Loader.aspx?ucontrol=ZmljaGFBdXRvcg==&autorID=3482

Adélia Prado (Cacos para um Vitral)


No caderno de Glória: um romance é feito das sobras. A poesia é núcleo. Mas é preciso paciência com os retalhos, com os cacos. Pessoas hábeis fazem com eles cestas, enfeites, vitrais, que por sua vez configuram novos núcleos. Será este pensamento vaidoso? Por certo. Quero ser um poeta extraordinário e desejo poder escrever um teatro muito engraçado pra todo mundo rir até ficar irmão.

Glória decifrou o garrancho na nota de um cruzeiro: "Ontem fiz quinze anos e fui a primeira vez na Figueirinha. Dei Cr$ 50,00 pra mulher ela ainda me deu troco. Não tava ruim nem bom."

Juca entrou esfregando as mãos: — Tá um frio de matar velho! — Se quer capote, na segunda prateleira da cozinha tem. Juca bebeu e saiu. Tivesse ou não, brigado com a Naná, a cada dia ele bebia mais. Estará certo, pensou Glória, facilitar desse modo a cachaça do Juca? Estarei sendo leviana? Estava.

Ritinha: — Mãe, se eu morrer cê chora? Glória: — Ih! Choro até secar.

Glória ouviu de relance os peões almoçando na obra: — Rico tinha que nascer tudo morfético. — Tem rico legal, sô! — Tem não.

Ritinha chegando da escola: — Mãe, eu laía e a Fostina envinha. Ela envinha aqui?

— Que é isso? Existe o verbo lair e envir?

— A senhora também fala assim.

— Falo mesmo.

— Então...

— Então nada. É porque eu gosto muito da minha filhinha e quando a gente gosta, chateia um pouquinho.

Anselmo Vargas beijava Sônia Margot na novela das sete. O menininho de Matilde pediu: mãe, muda o programa. Meu pintinho fica ruim.

— Dona Glória, eu fiquei incurvida.

— O quê?

— É, sobrou pra mim a obrigação de catar neste quarteirão as esmolas pro Natal dos pobres.

— Ah! — O apostolado, cuja eu sou membra é que me incurviu.

— Entra, Fostina.

— Não, se eu delatar, atrasa pra mim.

A placa indicava na estradinha de chão: Sítio do AU PURO. Alguém tinha consertado: Sítio do AR PURO. Gabriel parou o carro e escreveu em baixo, sítio do AL PURO. No lugar voava sem pressa uma linda borboleta amarela e preta.

Copiado por Gabriel, do sanitário da rodoviária: PEDE NÃO HORINAR NO VÁS.

Remexendo papéis, Glória achou uma notação com sua letra: "retalho de poesia dá excelente prosa." Não se lembrava mais por que escrevera aquilo. "Retalho de poesia dá excelente prosa, como retalho de hóstia dá excelente sopa", descobriu escrito mais embaixo. Ainda: "Privada pública" é uma impropriedade. Empregada chama as amigas invariavelmente de colegas. Deus é fiel, no entanto vacilo, amo com reservas, deixo que pequenas nódoas confundam minha alegria. Quando serei evangelicamente generosa, confiante como um menino para quem o Reino está preparado?"

Fonte:
"Cacos Para Um Vitral", Editora Rocco, 1989.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Natal n. 429)


Uma Trova Nacional

Seria o Natal agora
de valor mais consistente,
se a luz que brilha por fora
brilhasse dentro da gente!
–ARLINDO TADEU HAGEN/MG–

Uma Trova Potiguar

Neste Natal Reluzente
de uma ternura sem fim,
não peço a Deus um presente,
peço Deus presente em mim!
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Uma Trova Premiada

2002 - Garibaldi/RS
Tema: NATAL - 1º Lugar

Papai Noel, por favor,
no Natal, afasta os medos,
e coloca mais amor
no meio dos teus brinquedos!
–DELCY CANALES/RS–

Uma Trova de Ademar

Peço a Noel que ele faça
com toda bondade sua,
um grande Natal na praça
para as crianças de rua.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

É Natal... Com humildade
faço um pedido, em segredo:
- que eu ganhe a felicidade
nem que seja de brinquedo!
–J. G. DE ARAÚJO JORGE/AC–

Simplesmente Poesia

Sempre Natal.
–VANDA FAGUNDES QUEIROZ/PR–

Pelas voltas do tempo, houve mudança
nos festejos da data do Natal,
mas não me esqueço quando era criança,
e tudo era mais simples afinal.

Papai montava caixas, lá no canto
da sala tão modesta e pequenina.
Mamãe armava o presépio. E que encanto
fascinava minha alma de menina!

Os três magos, em fila, meio sérios,
olhavam Jesuzinho no seu berço.
À luz da vela eu via mil mistérios,
e então a minha mãe puxava o terço.

Papai partiu. Depois, mamãe também.
Hoje, tudo se fez modernidade.
Mas eu conservo o amor, a luz e o bem
do Natal do meu lar, que hoje é saudade.

Se o mundo ao meu redor parece novo,
persiste o verdadeiro, o essencial.
Seja quando e onde for... na alma do povo
nasce Jesus! Natal sempre é Natal.

Estrofe do Dia

No barraco da favela,
não existe luz acesa;
lá na noite de Natal,
falta luz, sobra pobreza;
Natal, lá, é o mesmo drama,
falta presente na cama,
e pão em cima da mesa.
–LUIZ DUTRA/RN–

Soneto do Dia

Novo Natal
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Eu fiz um soneto falando da dor,
de pobres crianças, em mais um Natal.
Carentes de tudo, de pão e de amor,
um sonho maior, que se fez sazonal.

Eu quero dizer ao Noel, ”parcial”:
lembrai cada filho do trabalhador,
querendo somente um olhar paternal,
recebe uma noite, sem luz e sem cor!

Você, Pai Noel, sem amor pelos pobres,
desfila o trenó pelos bairros mais nobres,
esquece, no morro, a criança infeliz.

Em nome dos pobres, eu tenho uma queixa:
você, velho ingrato, retorna e não deixa,
sequer um brinquedo, que um rico não quis.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Cara De Coruja – IV - O Pequeno Polegar


O Visconde gritou mais uma vez:

— Vem vindo uma poeirinha tão pequenininha que até parece poeira de camundongo!...

— Quem poderá ser? — exclamaram as princesas, interrompendo a conversa.

Logo depois ouviu-se um tic, tic, tic, na porta, e Rabicó anunciou:

— Um senhor pingo de gente com umas botas maiores do que ele!

— O Pequeno Polegar! — gritaram as princesas — e acertaram.

Esquecidas de que eram famosas princesas, foram correndo receber o pequenino herói.

Era ele o chefe da conspiração dos heróis maravilhosos para fugirem dos embolorados livros de dona Carocha e virem viver novas aventuras no sítio de dona Benta. Polegar já havia fugido uma vez, e apesar de capturado estava preparando nova fuga — dele e de vários outros. Emília ficou num assanhamento jamais visto. Agarrou o heroizinho e o não largou mais. Botou-o no colo, fê-lo contar toda a sua vidinha.

Depois levou-o ao seu quarto de boneca para mostrar-lhe a porção de brinquedos que tinha.

— Antes de mais nada, tire as botas. Nem sei como o senhor tem coragem de andar com tamanho peso nos pés...

— É que sem elas não valho nada. Sou pequenino demais e fraco, mas com estas botas não tenho medo nem de gigante.

— E de elefante?

— Nem de elefante, nem de hipopótamo, nem de rinoceronte, nem de girafa, nem de anão mau, nem de serpente...

— E de jacarepaguá? — perguntou ainda a boneca, para quem jacarepaguá devia ser o monstro dos monstros.

— Nem de jacarepaguá, nem de nada. Cada passo desta bota anda sete léguas. Acha que um jacarepaguá , pode me pegar?

— Que beleza! — exclamou Emília extasiada. — Eu, se fosse o senhor, deixava-as aqui no sítio por uma semana. Que bom! Poderíamos brincar o dia inteiro de estar aqui e estar lá no mesmo instante...

Das botas passou aos seus brinquedos. Mostrou-lhe uma coleção de feijões pintadinhos que tia Nastácia lhe dera, o pincel de goma-arábica que lhe servia de vassoura e mil coisas. Polegar gostou de tudo, principalmente dum pito velho que tinha sido de tia Nastácia — um pito sem canudo. Gostou tanto que a boneca lhe disse:

— Pois se gosta, leve, que arranjo outro. Mas, com perdão da curiosidade, para que é que o senhor quer esse pito?

— Para brincar de esconder — respondeu o pingo de gente dando um pulo para dentro do pito e ficando tão bem escondidinho que ninguém seria capaz de o descobrir.

Emília era muito interesseira. Gostava de receber presentes, mas não de dar. O único presente que deu em toda a sua vida foi aquele pito. Mesmo assim, mais tarde, quando se lembrava do pito vinha-lhe um suspiro.

Estavam naquilo quando rompeu um grande rumor na sala. A boneca foi correndo ver o que era. Encontrou Branca de Neve muito assustada dizendo a Rabicó:

— Não abra! É o malvado que matou seis mulheres!...
–––––––
Continua... Cara de Coruja– V – Barba Azul

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

José Carlos Dutra do Carmo (Manual de Técnicas de Redação) Parte XVIII


SINAIS.

Faça o til e o cedilha com nitidez, e não simples rabiscos ou traços confusos e inexpressivos.

SINESTESIA.

É uma espécie de metáfora que consiste na união de impressões sensoriais diferentes.

Use-a, se puder, para, através de duas sensações, indicar mais vivamente um objeto ou ser.

Um grito áspero, palavras douradas, cheiro quente.

O cheiro doce e verde do capim trazia recordações da fazenda...

A presença inesperada do sumo pontífice no encontro comoveu a todos. O toque de mão suave, o semblante sereno, o leve odor de rosas que emanava de sua presença provocou em todos uma sensação de paz.

SOLECISMOS.

Ocorre quando há desvios de sintaxe quanto à concordância, regência ou colocação.

Obedeça o chefe.

Quem fez isso foi eu.

Faltou muitos alunos no dia do jogo da Seleção do Brasil.

Que fique bem claro uma coisa: as frases acima estão gramaticalmente incorretas.

SUBSTANTIVO, VERBO.

Abuse do uso de substantivos e verbos. Seja sovina com adjetivos e advérbios. Eles são os inimigos do estilo enxuto.

Matar ou matar. De quebra, morrer. No campo de batalha o soldado pouca chances tem de escolhas diferentes dessas.

A tarde cai. O céu escurece rapidamente, como convém à estação outonal. O silêncio vai se instalando na pequena vila onde, a partir de agora, só o luar iluminará as ruas.

SUJEITO.

A menos que queira enfatizar muito o sujeito, ou precise evitar confusão na interpretação sobre quem está falando, omita o pronome sujeito, ou não abuse de seu emprego.

Ao longe, avistaram um velho abatido vindo ao encontro deles. Decidiram parar. “Credo! Isso é coisa do demo!”, falou o terceiro se benzendo. É... e eles tinham razão.

Pedro resolveu omitir seu nome. Na verdade, ninguém precisaria saber que era filho de empresário famoso; nada lhe acrescentaria de bom e, ao contrário, poderia tornar-se alvo de bandidos naquela região perigosa do Rio.

SUPERLATIVOS.

Cuidado com “superlativos criativos” do tipo “mesmamente”, “apenasmente”, etc.

SUSPENSE.

Quando quiser criar suspense, acumule dados, ação inesperada, apresente conseqüências, deixando a causa para o final.

Todos estavam apreensivos, esperando o anúncio do vencedor do concurso. O mestre-de-cerimômias abre a solenidade com uma longa lista de agradecimentos. A cada nome, a ovação da platéia interrompe o correr da solenidade. Começa agora a leitura dos nomes dos vencedores. Juliano está com o coração na mão. O envelope vai ser aberto. Mas tudo escurece subitamente. Não é que falta luz no exato momento em que os nomes seriam anunciados! Juliano não agüenta a ansiedade.

TAMANHO DAS LETRAS.

Escreva com letras médias (nem muito grandes, nem muito pequenas). Letras muito pequenas vão dificultar a correção do texto e letras muito grandes vão proporcionar poucas palavras em cada linha e, conseqüentemente, uma abordagem superficial do assunto.

TELEGRAMA.

É utilizado para comunicação urgente. Deve-se suprimir do pequeno texto qualquer palavra dispensável, como artigos, preposições, conjunções e sinais de pontuação. Ponto será grafado com PT e vírgula com VG.

TEMA.

Leia o tema que vai desenvolver com atenção, analisando com profundidade as idéias nele contidas.

Fácil ou difícil, agradável ou não, o tema terá que ser enfrentado. A melhor atitude será recebê-lo com simpatia, disposição e otimismo.

Redija usando argumentos fortes e consistentes. O floreio e o enche lingüiça nada acrescentam à qualidade do texto de uma redação.

O tema é o assunto sobre o qual se escreve, ou seja, a idéia que será defendida ao longo da dissertação. Deve tê-lo como um elemento abstrato. Nunca se refira a ele como parte do texto.

Não fuja do tema proposto, nem invente títulos, escolhendo outro argumento com o qual tenha maior afinidade. O distanciamento do assunto pode custar pontos importantes na avaliação da redação.

Não fugir do tema significa abordá-lo da maneira como foi proposto, isto é, nem restringindo demais a abordagem nem extrapolando para assuntos que não tenham relação direta com ele.

Se o seu objetivo é ser favorável à privatização das estradas, use argumentos sólidos que justifiquem o porquê de sua posição. Tente convencer o leitor e mantenha clara a sua opção.

Se o tema for “O clima do Brasil”, não adiantará fazer uma obra-prima versando sobre “O clima de Minas Gerais”, porquanto o seu trabalho resultará inútil. Os corretores vão considerar que houve fuga ao tema proposto. Sabe qual a nota que terá nesse caso? ZERO!

Quais os temas que podem cair nas provas de Redação? A tendência das bancas examinadoras tem sido solicitar dois tipos de temas: objetivos, os relacionados aos problemas atuais, presentes na mídia (sociais, tecnológicos, econômicos, etc.); subjetivos, os que envolvem o comportamento e o sentimento das pessoas.

TEMPO.

Não acelere o ritmo para acabar logo a redação nem demore demais para não perder tempo.

TEMPOS VERBAIS.

Procure tirar proveito da mudança dos tempos verbais, usando-os, por exemplo, para fazer generalizações.

O larápio não deixou de roubar após ter passado um bom tempo na prisão. Ora, por esse caso podemos ver que nem sempre a prisão recupera os criminosos.

TEORIA.

Se precisar provar a alguém, ou a você mesmo, uma teoria, use o raciocínio lógico e, se for o caso, hipotético.

Democracia verdadeira não existe sem educação. O indivíduo sem estudo é presa fácil do engodo, da retórica vazia, das promessas irrealizáveis. Imagine alguém que mal sabe escrever o nome ouvindo o discurso embolado de um de nossos políticos. Poderá julgar com clareza o que estão lhe dizendo, avaliando a proposta que melhor satisfaz aos seus interesses?

TERCEIROS.

Não utilize exemplos contando fatos ocorridos com terceiros, que não sejam de domínio público.

TEXTO.

O fato que contou, em seu texto, é interessante?
Gostaria de ouvi-lo de outra pessoa?
Tenha sempre senso crítico.

Não utilize os termos “eu acho”, “penso”, “para mim”, etc. O texto já é sua opinião pessoal, não precisa enfatizar, ser repetitivo. Em vez de escrever “Eu acho a internet legal”, escreva: “A internet é legal”.

Não use expressões como “vou ir” e “de leve”, mas, sim, “irei” e “levemente”.

TÍTULO.

Evite o uso das aspas no título.

Pule uma ou duas linhas entre o título e o início do texto.

Evite iniciar a redação com as mesmas palavras do título.

Os títulos devem ser escritos de forma abreviada (resumida).

Não há pontuação após o título, a não ser que seja frase ou citação.

Coloque o título centralizado (no centro da folha), antes do início da redação.

É uma expressão, geralmente curta e sem verbo, colocada antes da dissertação.

Em títulos de redação, por questão de ênfase, usam-se iniciais maiúsculas:

Minhas Férias de Julho, Nossa Visita ao Frisuba.

Não coloque a palavra título antes do TÍTULO nem o termo FIM ao terminar a redação. O óbvio não precisa ser explicado.

“TRANSPIRAÇÃO”.

É a hora da montagem do texto, a escolha do que deve ficar e do que deve sair.

Após a seleção das idéias que serão usadas, ordene as frases, percebendo a diferença entre o principal e o secundário, hierarquizando a seqüência de parágrafos de modo a tornar claro o seu texto.

TRAVESSÃO.

Na redação, o travessão tem a função dos parênteses ou das vírgulas usadas em dupla, sendo empregado para separar expressões intercaladas.

Pelé — o maior jogador de futebol de todos os tempos — hoje é um empresário bem-sucedido.

A sociedade precisa lutar por conquistas sociais - tão prometidas pelos governos, mas nunca concretizadas - a fim de ver reduzidas as diferenças entre pobres e ricos.

U, V.

Faça-os com clareza e nitidez porque, caso contrário, o U ficará parecendo o V.

ÚLTIMO.

Evite escrever “último”, no sentido de “mais recente”.

UNIDADE

A redação deve ter unidade, por mais longa que seja. Trace uma linha coerente do começo ao final do texto. Não pode perder de vista essa trajetória. Muita atenção no que escreve para não fugir do assunto.

VERBO.

Evite o emprego de verbos auxiliares.

Faça a concordância correta dos tempos verbais.

Evite o uso de verbos genéricos, como “dar”, “fazer”, “ser” e “ter”.

Flexione corretamente os verbos quando for usar o gerúndio ou o particípio.

O verbo “fazer”, no sentido de tempo, não é usado no plural. É errado escrever: “Fazem alguns anos que não leio um livro”. O certo é: “Faz alguns anos que não leio um livro”.

Os verbos defectivos não possuem todas as pessoas conjugadas. O presente indicativo do verbo “adequar” só apresenta as formas de primeira e segunda pessoas do plural (adequamos, adequais). As outras simplesmente não existem, não adianta inventar. Logo, nada de sair por aí dizendo (ou escrevendo) coisas como: “Eles não se adequam ao meu sistema de trabalho” ou: “Eu não me adequo ao seu modo de pensar”. No caso, use o verbo equivalente: “adaptar”.

VÍRGULA.

Vêm, geralmente, entre vírgulas: isto é, ou seja, a saber, etc.

Coloque-a bem próxima da última letra da palavra (e não distante).

Leia os bons autores e faça como eles: trate a vírgula com bons modos e carinho.

Nunca coloque vírgula entre o sujeito e o verbo, nem entre o verbo e o seu complemento.

Só com a leitura intensiva se aprende a usar vírgulas corretamente. As regras sobre o assunto são insuficientes.

É o sinal de pontuação mais importante e que tem maior variedade de uso. Por essa razão, é o que também oferece mais oportunidade de erro.

Coloque a vírgula com clareza, a saber, um pontinho com uma perninha levemente voltada para a esquerda, e não um tracinho ou um risquinho qualquer.

As vírgulas, quando bem empregadas, contribuem para dar clareza, precisão e elegância às frases. Em excesso, provocam confusão e cansaço. Frase cheia de vírgulas está pedindo um ponto.

VOCABULÁRIO SIMPLES.

Algo fantástico para enriquecer o seu vocabulário? Palavras cruzadas.

A limitação do vocabulário não impede um raciocínio inteligente e incisivo.

Use uma linguagem simples, empregando, somente, as palavras cujo sentido você conhece bem. Não fique inventando, querendo usar vocábulos difíceis, cujos significados nada têm a ver com o que está escrevendo.

VOZ ALTA.

Após fazer uma redação, leia o texto em voz alta, várias vezes. É uma boa técnica para descobrir seus erros.

VOZ ATIVA.

Opte pela voz ativa. Ela deixa o texto esperto, vigoroso e conciso. A passiva, ao contrário, deixa-o desmaiado, flácido, sem graça.

Em vez de: A redação foi feita pelos alunos da 4ª série, prefira: Os alunos da 4ª série fizeram a redação.

VOZ PASSIVA.

Use a voz passiva quando quiser realçar o paciente da ação, transformando-o em sujeito (embora não aja).

A porta foi aberta com violência.

VULGAR.

Não seja vulgar nem use termos considerados chulos e obscenos (palavrões). Gírias e expressões populares, só entre aspas. Os assuntos devem ser trabalhados com certa distinção e delicadeza.

ZEUGMA.

É a omissão de um termo anteriormente expresso, ainda que em flexão diferente.

Eu jogo futebol; ela, basquete.

Foi saqueada a vila, e assassinados os partidários de Sadan.

Fonte:
http://www.sitenotadez.net

sábado, 17 de dezembro de 2011

Paraná em Trovas Collection - 31 - Mauricio Fernandes Leonardo (Ibiporã/PR)

Jorge Luis Borges (A Escrita de Deus)


O cárcere profundo e de pedra; sua forma de um hemisfério quase perfeito, embora o piso (também de pedra) seja algo menor que um círculo máximo, fato que de algum modo agrava os sentimentos de opressão e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de altíssimo, não toca a parte superior da abóbada; de um lado estou eu, Tzinacan, mago da pirâmide Qaholom, que Pedro de Alvarado incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Ao nível do chão, uma ampla janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia) abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que os anos foram apagando manobra uma roldana de ferro, e nos baixa, na ponta de um cordel, cântaros de água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; neste instante posso ver o jaguar.

Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar nesta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que os deuses me destinam. Com a longa faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó.

Na véspera do incêndio da Pirâmide, os homens que desceram de altos cavalos me castigaram com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, a imagem de Deus, mas este não me abandonou e me mantive silencioso entre os tormentos. Feriram-me, quebraram-me, deformaram-me e depois despertei neste cárcere, que não mais deixarei nesta vida mortal.

Premido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de alguma forma o tempo, quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia. Gastei noites inteiras lembrando a ordem e o número de algumas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Assim fui vencendo os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite, senti que me aproximava de uma lembrança precisa; antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança; era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da Criação uma sentença mágica, capaz de conjurar esses males. Escreveu-a de maneira que chegasse às mais distantes gerações e que não tocasse o azar. Ninguém sabe em que ponto a escreveu nem com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que um eleito a lerá. Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que meu destino de último sacerdote de Deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escritura. O fato de que uma prisão me cercasse não me vedava esta esperança; talvez eu tivesse visto milhares de vezes a inscrição de Qaholom e só me faltasse entendê-la.

Esta reflexão me animou e logo me intuiu uma espécie de vertigem. No âmbito da terra existem formas antigas, formas incorruptíveis e eternas; qualquer uma delas podia ser o símbolo buscado. Uma montanha podia ser a palavra de Deus, ou um rio ou o império ou a configuração dos astros. Mas no curso dos séculos as montanhas se aplainam e o caminho de um rio costuma desviar-se e os impérios conhecem mutações e estragos e a figura dos astros varia. No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos caducam. Busquei algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensei nas gerações do cereais, dos pastos, dos pássaros, dos homens. talvez em minha face estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o fim de minha busca. Estava nesse afã quando recordei que o jaguar era um dos atributos do deus.

Então minha alma se encheu de piedade. Imaginei a primeira manhã do tempo, imaginei meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se gerariam eternamente, em cavernas, em canaviais, em ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, dando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar; em sua proximidade percebi uma confirmação de minha conjectura e um secreto favor.

Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada me concedia um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que riscavam o pêlo amarelo. Algumas incluíam pontos; outras formavam raias transversais na face inferior das pernas; outras, anulares, se repetiam. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham bordas vermelhas.

Não falarei das fadigas de meu labor. Mais de uma vez gritei à abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava me inquietou menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um Deus. Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que mesmo nas linguagens humanas não existe proposição que não envolva um universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi a mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um Deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfematória. Um Deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhum som articulado por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros desse som, que eqüivale a uma linguagem e a quanto pode significar um linguagem, são as ambiciosas e pobres vozes humanas, tudo, mundo, universo.

Um dia ou uma noite – entre meus dias e minhas noites que diferença existe? – sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir, sonhei que os grãos de areia eram três. Foram, assim, multiplicando-se até encher o cárcere e eu morria sob este hemisfério de areia. Compreendi que estava sonhando; com um enorme esforço, despertei. O despertar foi inútil: a inumerável areia me sufocava. Alguém me disse: "Não despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim até o infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás que desandar é interminável e morrerás antes de haver despertado realmente".

Senti-me perdido. A areia me enchia a boca, mas grite: "Nenhuma areia sonhada pode matar-me nem existem sonhos dentro de sonhos". Um resplendor me despertou. Na treva superior abria-se um círculo de luz. Via a face e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros.

Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei à dura prisão como à minha casa. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre, bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra.

Então ocorreu o que não posso esquecer nem comunicar. Ocorreu a união com a divindade, com o universo (não sei se estas palavras diferem). O êxtase não repete seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor, há quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante de meus olhos, nem atrás, nem nos lados, mas em todas as partes, a um só tempo. Essa Roda estava feita de água, mas era também de fogo, e era (embora visse a borda) infinita. Entretecidas, formavam-na todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era um dos fios dessa trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali estavam as causas e os efeitos e me bastava ver essa roda para entender tudo, interminavelmente. Oh, felicidade de entender, maior que a de imaginar ou a de sentir! Vi o Universo e vi os íntimos desígnios do universo. Vi as origens narradas pelo Livro do Comum. Vi as montanhas que surgiram na água, vi os primeiros homens com seu bordão, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os cães que lhes desfizeram os rostos. Vi o deus sem face que há por trás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma só felicidade e, entendendo tudo, consegui também entender a escrita do tigre.

É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destruísse Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhóis, para reconstruir a pirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, quatorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi estas palavras, porque eu não me lembro de Tzinacan.

Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém? Por isto não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão.

Fontes:
Pequena Antologia para se ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Larissa Fadel (Teia de Poesias)


RASGANDO O VERSO

Solto a palavra
me faço
abraço
de mim

Abro o verso
visto o reverso
contorno sem nexo
de mim

Canto o poema
me sinto serena
humana
de mim

Revolto olhares
concebo
alimento
de mim

Abro minha boca
e na fúria louca
grito a verdade
de mim

Danço e sorrio
construo e procrio
o melhor
de mim

Quem não entender
a porta é aberta
vou esquecer
vou aceitar
porque sei
de mim

Mas nunca mais deixo
não me permito
no ar ou escrito
o que há
o que pulsa
o que vive
EM MIM!

ROUBEI SIM

Roubei de ti o coração
e não tente tomá-lo de volta
porque ele está atravancado
no mais profundo recanto do meu ser
tal como a árvore imensa enraizada
por milênios existenciais da natureza...

Eu o roubei...
naquele instante em que me deste teu sorriso
naquele instante em que me estendeste as mãos
naquele instante em que eu já era a poesia por te querer
e num chamado eterno para seguirmos juntos
as estradas da vida... já éramos nós...

Eu o roubei...
roubei o teu coração e te digo:
não hás de tê-lo de volta
porque em troca
dei-te o meu coração repleto de amor
a minha alma iluminada por teus carinhos
a minha vida inteira
para amparar-te...
para aquecer-te...
para amar-te...
amar-te... e amar-te...
eternamente...

CUIDA-ME

Quero tirar a poeira do tempo
quero varrer as folhas do vento
limpar a casa
e caminhar

Procuro não olhar pra trás
já vivi o passado
não vou por lá mais passar

Não me culpe por olhar pra frente
sou assim, as vezes bem diferente
intrigante
talvez incoerente

Não me deixe voltar
cuida-me
deixa-me cuidar
se a felicidade é urgente
eu tenho pressa no caminhar

Não vou remoer minh’alma
quero serenidade e calma
quero esse louco desejar

Não tenho pretensão demasiada
quero a calma acelerada
amo
e quero ser amada!

Tenho fome de vida
tenho pressa de criança
e...sinceramente
o medo também me invade
feroz
atroz
covarde? ...não!
Só temperamental

Minhas horas já foram longas
agora quero devagarzinho
só o meu lugar
agora quero bem de mansinho
sorrir
estar
ficar

Tento...
Um dia quem sabe aprendo
um dia quem sabe vou acertar

Enquanto isso
cuida-me
mais uma vez
enquanto isso
deixa-me cuidar

Quero o livre passarinho
o rouxinol na árvore
a prata da lua
o ouro do sol
e quando eu estiver triste
cuida-me
e quando vc estiver triste
permita-me cuidar

Minha voz reside na minha alma
assim como minha alma se reflete em meus olhos
em minha boca
em meu corpo
me calo!
E num contraste fascinante
grito!

Sem culpa
não volto
sigo
tiro a poeira do tempo
planto novas flores
rego tons e sabores
e me precipito
quem sabe...

Por isso...urgentemente...
Cuida-me
e deixe-me cuidar!

MISTURA DO AMOR

*Essa foi uma das minhas primeiras linhas. Acho que essa poesia tem sabor. Gosto do gosto dela!

Relaxe o corpo
A mente, o coração.
Deixe as emoções cavalgarem
Pelos espaços verdejantes

Viaje...
Sinta a brisa leve da manhã
Tocar seus cabelos despenteados
Ande descalço

Prove a sensação do barro nos seus pés.
Abra os braços para abraçar o cheiro
De menta da manhã.
Deite na aurora que anuncia a vida

Cheire as rosas da imaginação
Tome o mel, deguste o hortelã
Sinta na pele o toque suave da maçã.
Beba água do riacho

Ouça o canto das águas
O sussuro das árvores
A linguagem do céu azul
Banhe-se na energia dourada do sol

Role na grama, espreguice, morra de rir.
Perca-se na magia de uma fruta madura
Magia de uva, pera, laranja, limão.
Favo de mel, eucalípto, tentação
Atalho para a cereja do coração.

Viva! Se entregue à imaginação
Sonhe com paixão
Corra sem destino entre as árvores
Viaje no sabor!
Sinta a ternura de beijar a flor.

Deixe que o sabor fresco invada sua língua
Fruta molhada, sorvete, flocos de neve
Suave beijo de licor
Boca doce, gelada, refrescante
Essa é a mistura do amor!

SOLO DE AMOR

Cala a terra arada no pó
Espera a chuva no seu lugar
Quimera que fica na solidão
Ao relento dois destinos
E um só coração.

Harmonia que tira a guerra
Gira no amarelo do girassol
Planta semente e alento
Deixa vestígios na memória do vento

Antes que o sol acorde
Lembra a saudade da noite fria
Sinta brotar o pranto
Que rega a planta de calmaria

Inunda a terra de verde
com os olhos teus
pinta de vermelho as flores
com os desejos meus

Faz solo fértil com a boca tua
Semeia o ventre e a canção
Descansa no orvalho da terra crua
Colha minha doçura com tua mão

Canta vontades antes temidas
Que eu canto a imensidão

Faz poema que risca o céu
Contorne meu corpo com pincel
Traço de bem querer
Deitada na terra nua
Só tua eu quero ser!

A ARTE DE MORRER

Essência da vida.
Alma eterna.
Mistério definitivo,
Inexprimível,
Indefinível.

Respostas rejeitadas, colapso
Pergunta irrespondível
Milagre da mente
A arquitetar perguntas que desaparecem
E no saber, a experiência existencial

A semente cresce
Botão de rosa que sabe como abrir
E o conhecimento divaga
Nas raízes da mente

Na sabedoria
Você não é mais
Dentro do inexplorado
Interior da Existência

Viável à mente
Somente o silêncio
Nenhuma pergunta,
Nenhuma resposta,
Íntima sensação sem palavras
Só o incomunicável

Espada para cortar pensamentos
E todas as respostas
Escutar de corpo e alma
Os dois infinitos

Sonata de Beethoven
O coração em nostalgia
Mesmo com rota definida
Ninguém sabe onde está

Na Auto estrada da multidão
Todos estão na mesma posição
Indo a lugar nenhum
Mas na mesma direção

E então você fica só
Sua solidão total
É necessário morrer,
Cair pra renascer

Nas fontes infinitas de vida
É a arte de morrer

Cair para o coração...
Onde não há marcos de referência
Cair num abismo
Caída de amor
Uma queda

Mas caminho sólido não há
O coração não está cartografado.
O coração treme de medo

Quebrar paredes de pedra,
Libertar-se do rochoso pensamento;
Dogmas, preconceitos.
Libertar-se da prisão

Ter uma certa descontinuidade
Olhar pra trás
E Morrer...
Sentir que foi como um sonho
Uma história que jamais fora sua
E Nascer!

TEU VERBO

Singelos gestos
perfuram a grade do meu ser
Vibrantes beijos
encarceram o que sempre fingi não querer

Invadem e transformam
mutantes sentimentos
desprezam lamentos
me faz tempestade

Corro pra dentro de mim
mas esconder não consigo
deito nas corredeiras das palavras
implorando por um abrigo

Contemplo o céu de noite quente
calo com os dedos teu beijo ardente
deixo as pegadas da minha mão
na lembrança de afeto que te dei
Atravesso a calçada da vida
na procura do que ainda não sei

Navego o ritmo dos teus olhos
transpiro teu suor
Desisto de correr

Deixo-me a ti
respiro o teu ar
E morro no instante de conjugar
o verbo incessante
na rima vibrante
desse seu jeito de amar !

Fonte:
http://www.novaordemdapoesia.com/search/label/Larissa%20Fadel

J.B.Xavier (Aconteceu no Natal)


Você conhece alguém mais, além d’Ele, capaz de escrever certo por linhas tortas? Não? Eu também não conheço. Mas confesso que por muito tempo duvidei disso! Duvidei, de tanto ver a injustiça, a dor e o sofrimento espalharem-se como um câncer. Onde estaria a justiça divina?

Hoje é noite de Natal. Estamos numa grande festa que sempre dou nessa ocasião. É hora de abrirmos os presentes. É o momento mais esperado da noite. Meu filho mais velho, recém casado, chegou da viagem de núpcias especialmente para a festa, juntamente com seus sogros. Meu filho caçula e minha filha estão um pouco chocados, devido aos acontecimentos que lhes vou narrar. Mas estão ansiosos, como todos nós, pelas surpresas que receberemos de presente.

Sou médico. Trato de pessoas, mas aos poucos passei a acreditar mais na medicina do que em qualquer coisa que não possa ser explicada à luz da ciência.

Por conta dessa falta de fé, fui contaminando, sem perceber, toda a minha família, e devido a essa “contaminação”, meus filhos – dois rapazes e uma moça - foram crescendo acreditando que não valia a pena fazer esforços pessoais para melhorar as coisas.

Ela, principalmente, era a mais intolerante com as camadas sociais menos favorecidas. Enviei-a ao Canadá, num intercâmbio cultural, onde ela viveu por um ano. Depois disso, por livre vontade, ela permaneceu no país por mais quatro.

Quando enfim, ela regressou, percebi que nada havia mudado em seu comportamento, ao contrário, o contato com uma cultura mais evoluída acabou por deixa-la ainda mais irascível. Mesmo eu, que nunca fui um sujeito engajado em questões sociais, achava que ela exacerbava de vez em quando em suas opiniões de apoio a certas formas de racismo e à exclusão social. Não vale a pena comentar aqui seus argumentos – todos técnicos e lógicos – com os quais defendia suas idéias.

A verdade é que comecei a me preocupar seriamente com o desenvolvimento de sua personalidade, e no fundo de meu coração, comecei a desejar que algo a fizesse mudar sua visão do mundo. Mas eu sabia também, que nada a faria mudar suas idéias.

Uma das coisas que estava tornando difícil nossa convivência com ela, era a hostilidade que ela demonstrava em relação a uma empregada doméstica que tínhamos. Era uma moça de uns vinte e cinco anos, portanto, cinco apenas, mais velha que minha filha.

Desde que regressara do Canadá, ela já me pedira várias vezes que dispensasse a moça, mas eu jamais faria isso, porque ela estava conosco há um bom tempo e era de inteira confiança.

- Em negros não dá para confiar – repetia ela constantemente – mais cedo ou mais tarde, ela vai aprontar com vocês!

Então, há uma semana do Natal, quando o clima em minha casa era todo de expectativa pela festa que daríamos para toda a família, aconteceu o inevitável: Minha filha desentendeu-se com a empregada. Era por volta de umas oito horas da noite. Estávamos eu, minha esposa e meu filho caçula na sala, tratando dos últimos detalhes da festa natalina, quando ouvimos gritos vindos do quarto dela, no andar superior.

- Eu não sou ladrona! Eu não sou ladrona! Eu não sou ladrona! – gritava a doméstica, chorando, enquanto minha filha a mandava calar a boca em altos brados.

Corremos todos escada acima, e encontramos a moça descendo a escadaria, correndo e chorando. Subimos até o quarto e vimos nossa filha atirando os travesseiros contra a parede, enraivecida, enquanto gritava.

- Ladra, sua burra! É ladra! Nem falar direito você sabe! Você-é-uma-ladra! – gritou ela frisando cada palavra!

Minha esposa tentou acalmá-la, mas ela livrou-se do abraço da mãe e saiu porta afora, ainda gritando.

- Aquela safada roubou meu brinco de brilhantes que ganhei na formatura, no Canadá! Eu o guardava no estojo dentro de meu guarda roupas, e nem o estojo está lá! Já revirei o quarto inteiro! Há uma semana ainda mexi nele. Eu falei para o Zilo que eu usaria os brincos na festa de Natal! Droga! – Xingou ela, enquanto saía batendo violentamente a porta.

“Zilo” é o apelido de meu filho mais velho. Ele é artesão e possui uma pequena loja onde fabrica jóias personalizadas. Ele se casara recentemente e estava viajando. Só voltaria no dia 23 à noite, para a festa.

- Não acredito que isto esteja acontecendo! – disse minha esposa – e na véspera do Natal!

- Duvido que a Zilda tenha feito isso – disse o caçula – nunca sumiu nada aqui de casa...

- Sempre há uma primeira vez – disse eu – demonstrando claramente onde estava a origem do comportamento de minha filha.

O resultado de toda essa confusão foi que ficamos sem doméstica justamente quando mais precisávamos dela. A moça foi embora sem nem mesmo se despedir. Sequer o saldo de seu salário ela reclamou, o que nos induziu a pensar que talvez nossa filha tivesse razão, afinal de contas. Com um par de brincos de diamante para vender nas “bocas”, quem precisa do resto de um mísero salário?

Três dias se passaram depois desse incidente, durante os quais todos nós reviramos a casa inteira à procura dos brincos, sem resultado. Tive que admitir que eles não estavam na casa, e meio a contra gosto, fui forçado a acompanhar minha filha à uma delegacia de polícia, para dar queixa do roubo, já que se tratava de uma peça bastante valiosa.

Eu estava particularmente irritado. Afinal, era dia 23 de dezembro! Eu estava irritado não pelo ódio à empregada que minha filha demonstrava, que aliás, eu considerava um pouco exagerado, especialmente às vésperas do Natal, mas pela perda do “clima” natalino, que se fora de minha casa. Chegamos a considerar o cancelamento da festa, mas decidimos mantê-la para não piorar ainda mais o baixo-astral.

Então, fomos, ela, o caçula e eu à delegacia, para registrar um B. O .

- Ainda não acredito que a Zilda tenha feito isso!

- Você é um ingênuo. Acredita demais nas pessoas. Você não sabe nada ainda da vida – disse minha filha ao irmão – como se seus vinte anos de idade fossem já uma larga experiência de vida. Mas logo, logo, eu saberia que mesmo meus cinqüenta anos de idade – ou se setenta eu tivesse - nada contam como experiência de vida, se passarmos a existência repetindo as mesmas idéias dos vinte anos.

O caminho para o qüinquagésimo DP nos forçava a passar pela Estrada das Lágrimas, e, por conseguinte, praticamente por dentro de Heliópolis, a maior favela paulistana e a maior também da América Latina.

- Detesto esse caminho – disse minha filha – É pobreza por todo lado! Ô, país miserável, esse! Um bando de safados ricos no poder, e o povo morando em tocas, como bichos! Acho que uns duzentos anos de desenvolvimento separam o Brasil do Canadá. E os dois países foram descobertos ao mesmo tempo!

Não comentei nada para não criar polêmica e também porque no fundo eu concordava com tudo! Mas meu filho estava irredutível.

- A Zilda não faria isso!

- Vamos levar a polícia à casa dela – disse minha filha – e aí você vai ver aquela negrinha pilantra entregar o jogo!

Eu ia dizer qualquer coisa, mas o semáforo fechou e tive que parar. À minha frente havia uns cinco carros.

- Lá vem aquele bando de moleques encher o saco, tentando limpar o pára-brisas – disse minha filha.

Mas os moleques ficaram nos carros à nossa frente. Então, um menino negro, de uns oito anos aproximadamente, diferente de todos os outros, saiu de baixo de uma marquise, e, com passos vacilantes, veio até à janela do nosso carro, onde ficou a olhar-me intensamente, em silêncio.

- Não temos dinheiro! - Disse minha filha – Vá embora!

Levantei a mão pedindo a ela que parasse de falar. Algo no garoto me chamara a atenção. Ele não se vestia de andrajos, como os outros meninos. Seus cabelos não estavam sujos, e seus dentes eram bem cuidados e limpos.

- Pai! Não dê trela para essa gente! Ele deve estar nos distraindo, ou talvez marcando nosso carro com chiclete para que outros nos assaltem mais adiante.

O menino continuava a me olhar intensamente, de maneira perturbadora, e de repente, duas lágrimas escorreram de seus olhos.

- O que você quer? – perguntei, enquanto olhava em volta para ver se não haveria assaltantes.

O menino então baixou aquele olhar que me queimava a alma, e entre soluços, disse:

- Eu não sei pedir esmolas. Minha mãe nunca me deixou fazer isso...

- E por que você está fazendo? – Perguntei.

- Por que ela me pediu...ela está doente...não consegue caminhar...e não temos dinheiro nenhum...

Voltei a analisar o garoto. Ele calçava sapatinhos e meias limpas. Sua camiseta trazia uma foto da seleção brasileira de futebol. Essas camisetas não eram baratas, como não era barata, também, a bermuda com grandes bolsos, que ele usava. Sua mãe cuidava bem dele, sem dúvida. Não deviam ser assim tão pobres. Mas a menção à doença despertara meu instinto médico, e este falou mais alto.

O semáforo abriu. Intrigado, eu fiz então uma coisa inexplicável, e disse, sem pensar direito em minhas palavras.

- Entre no carro!

- Pai! Você ficou louco?

- Fique quieta, por favor. Esse garotinho não é um mendigo! Entre! Vamos ver sua mãe!

O garoto enxugou as lágrimas e entrou no carro, sentando-se no banco de trás, ao lado de meu filho.

- Onde você mora? – perguntei.

- Naquela rua – apontou.

- Pai! Isso é um golpe! Vão nos assaltar! – gritou minha filha em pânico.

Por via das dúvidas, passei direto pela rua que o garoto apontou e dei uma longa volta, de várias quadras, chegando ao local onde ele morava pelo outro lado da rua. Sei lá que estranha força me obrigava a correr esse risco desnecessário!

Desembarcamos, eu e meu filho, e seguimos o garotinho rua acima. Minha filha decidira ficar no carro, mas o medo de ficar sozinha foi maior e logo ela estava a caminhar resmungando, ao nosso lado.

O garotinho nos levou por uma servidão, um estreito caminho, que margeando um muro antigo, ligava a rua aos fundos de uma casa velha. Chegamos então a um pequenino átrio sem nenhum atrativo, mas bem cuidado. No canto do terreno, havia uma meia-água feita de tijolos sem argamassa. Uma cozinha e um quartinho, separados por uma cortina de plástico vermelho, era tudo no que consistia a casa. Havia louça suja numa pequenina pia, mas no geral as coisas estavam relativamente em ordem. Eu estava surpreso com a pobreza do local, mas também com o cuidado e a ordem em que as coisas na casa estavam.

- Onde está sua mãe? – perguntei.

Sem responder, o garotinho afastou a cortina e apontou para uma cama, onde dormia uma pessoa, coberta com um grosso cobertor, apesar do calor.

Com o instinto médico à flor da pele, percebi que a coisa era séria. Entrei no quarto acompanhado de minha filha, porque pedi que o caçula ficasse do lado de fora, cuidando do garotinho.

A mulher estava deitada de lado, de costas para nós, e respirava pausadamente, com o rosto iluminado pela luz que vinha da pequenina janela.

Ajudado por minha filha, virei-a sobre a cama. Então minha filha deu um grito e recuou como se tivesse visto um fantasma. A mulher sobre a cama era Zilda, nossa ex-empregada doméstica. Em sua mão direita ainda tinha a gilete com a qual cortara o pulso esquerdo. Arranquei o cobertor de cima dela e vimos a grande mancha de sangue que empapava os lençóis.

- Baixe o banco do carro! - Gritei instantaneamente para meu garoto que esperava fora da casa. – É uma emergência! Ela cortou os pulsos!

Enquanto o caçula disparava para o carro, rasguei em tiras a cortina de plástico, e improvisei um torniquete no braço de Zilda. Ela havia perdido muito sangue e estava pálida. Seu corpo estava flácido e mais frio do que deveria. Essa hipotermia muito me preocupou, pois talvez tivéssemos chegado tarde demais. Tomei-a nos braços e saí correndo da casa, enquanto gritava para minha filha, que estava em choque.

- Faça alguma coisa! Traga o garoto! Vamos para o hospital de São Caetano! É o mais próximo daqui!

Usei minha autoridade médica e meu nome bem conhecido para que ocorresse o pronto atendimento, sem muitas formalidades, e internei Zilda, por minha conta, na UTI do hospital, onde ainda se encontra, graças a Deus, já fora de risco de vida. Quanto ao garotinho, eu o levei para a casa de uma de suas tias, depois de dar, a ele e aos seus primos, muitos presentes.

Minha filha ficou chocada por saber que Zilda atentara contra a própria vida. Na verdade todos nós ficamos chocados ao saber que ela mantinha um filhinho de oito anos! Ela nunca nos dissera nada sobre o assunto, provavelmente por medo de ser demitida. Pobre gente, que, como disse Chico Buarque em sua música, “vai em frente, sem nem ter com quem contar”.

Comovi-me ao ver o esmero com que ela cuidava daquele filho, com os bons princípios que ela lhe transmitia e com o esforço que devia fazer para mantê-lo no caminho correto, mesmo vivendo num gueto de uma favela que é o berçário de futuros delinqüentes.

Minha filha, entretanto, mesmo chocada, não perdoara Zilda pelo roubo. Tentando parecer durona, ela frizou:

- Uma coisa não tem nada a ver com outra. Ladra é ladra e quem tenta se matar mostra que não tem nem moral nem coragem para encarar as conseqüências de seus atos. Vou denunciá-la mesmo assim, porque quero meu brinco de volta!”

O brinco! Nessa confusão até havia me esquecido dele! Nem tentei dissuadi-la de denunciar Zilda, porque eu também tinha dúvidas se isso deveria ser feito ou não.

Em todo caso, concordamos em nada dizer ao Zilo, na noite de Natal, para não estragar mais ainda o “clima” da ocasião e sua felicidade de recém casado. Além disso, eu achei que minha boa ação do Natal já estava feita. Mas sabe-se lá quão poderosos são os mecanismos que entram em funcionamento para ensinar-nos as grandes lições!

Então fui ao piano e comecei a tocar Noite Feliz – uma das duas únicas músicas que sei tocar, a outra é Parabéns a Você – e todo mundo começou a trocar presentes e se abraçar.

Meu caçula foi para o centro da sala e abriu seu presente: A última palavra em vídeo game que eu lhe comprara no exterior. Fez uma festa ao ver o presente.

Na vez de minha filha, ela ergueu o braço, tendo um pequeno embrulho na mão.

- Para os recém casados! - Disse ela.

A esposa de Zilo abriu o presente. Era um lindo camafeu de madrepérola e marfim feito por uma tribo de índios do Canadá. Meu filhão fez a maior festa, e disse, dirigindo-se à irmã:

- Rebusquei minha loja, mas o que se pode dar a uma “jóia” como você? Fiz o que foi possível. Veja se gosta.

Isto dizendo, ele lhe entregou uma linda caixa de onde minha filha retirou uma pulseira lindíssima, uma gargantilha com três pequenos brilhantes e...os brincos desaparecidos! Todas as peças formavam um belíssimo conjunto, umas com as outras.

- Desculpe por ter levado seus brincos emprestados por alguns dias e por não ter conseguido recoloca-los no lugar a tempo. Tinha que ser uma surpresa, por isso não lhe disse nada. Eu precisava deles para fazer as outras peças......Espero que você não tenha ficado chateada por isso…

Fonte:
http://www.jbxavier.com.br/visualizar.php?idt=7466

Cecília Meireles (Compras de Natal)


A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades. Enche-se de brilhos e cores; sinos que não tocam, balões que não sobem, anjos e santos que não se movem, estrelas que jamais estiveram no céu. As lojas querem ser diferentes, fugir à realidade do ano inteiro: enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro, fios de ouro e prata, cetins, luzes, todas as coisas que possam representar beleza e excelência. Tudo isso para celebrar um Meninozinho envolto em pobres panos, deitado numas palhas, há cerca de dois mil anos, num abrigo de animais, em Belém.

Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes, grandes e pequenos, e gastaremos, nessa dedicação sublime, até o último centavo, o que hoje em dia quer dizer a última nota de cem cruzeiros, pois, na loucura do regozijo unânime, nem um prendedor de roupa na corda pode custar menos do que isso.

Grandes e pequenos, parentes e amigos são todos de gosto bizarro e extremamente suscetíveis. Também eles conhecem todas as lojas e seus preços — e, nestes dias, a arte de comprar se reveste de exigências particularmente difíceis. Não poderemos adquirir a primeira coisa que se ofereça à nossa vista: seria uma vulgaridade. Teremos de descobrir o imprevisto, o incognoscível, o transcendente. Não devemos também oferecer nada de essencialmente necessário ou útil, pois a graça destes presentes parece consistir na sua desnecessidade e inutilidade. Ninguém oferecerá, por exemplo, um quilo (ou mesmo um saco) de arroz ou feijão para a insidiosa fome que se alastra por estes nossos campos de batalha; ninguém ousará comprar uma boa caixa de sabonetes desodorantes para o suor da testa com que — especialmente neste verão — teremos de conquistar o pão de cada dia. Não: presente é presente, isto é, um objeto extremamente raro e caro, que não sirva a bem dizer para coisa alguma.

Por isso é que os lojistas, num louvável esforço de imaginação, organizam suas sugestões para os compradores, valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão. Numa grande caixa de plástico transparente (que não serve para nada), repleta de fitas de papel celofane (que para nada servem), coloca-se um sabonete em forma de flor (que nem se possa guardar como flor nem usar como sabonete), e cobra-se pelo adorável conjunto o preço de uma cesta de rosas. Todos ficamos extremamente felizes!

São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias.

Durável — apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.

Fonte:
Quatro Vozes. RJ: Editora Record, 1998.

Trova Ecológica 61 - Wagner Marques Lopes (MG)

William Shakespeare (A Comédia dos Erros)


A Comédia dos Erros, a mais curta das peças de William Shakespeare, é inspirada no comediógrafo romano Plauto e gira em torno das confusões causadas por dois pares de gêmeos. É considerada pelos pesquisadores como a primeira peça de Shakespeare, com sua estréia nos palcos tendo ocorrido provavelmente em 1594.

Os erros a que se refere o título são enganos provocados pelas pessoas que conversam alternadamente com um gêmeo e o outro, sendo um residente de Éfeso, onde se passa a ação, e o outro, estrangeiro. Os gêmeos são idênticos e têm ambos o mesmo nome: Antífolo. As confusões multiplicam-se, assim como a comicidade da trama, porque há mais um par de gêmeos idênticos em cena, os irmãos que atende pelo nome de Drômio.

Entretanto, A Comédia dos Erros não deve ser confundida com uma comédia leve. Muito ao gosto de Shakespeare, ainda que em sua estréia como dramaturgo, os diálogos introduzem considerações sobre a condição feminina e sobre a condição servil; há credores e devedores e a honra de cada um; discute-se o lugar do ciúme no casamento; existe uma autoridade política que procura administrar justiça com compaixão; mais importante ainda, há a moderna busca pela identidade própria.

Tudo acontece quando dois irmãos gêmeos são seprados na infância e por ironia passam a ter o mesmo nome: Menecmo.

A ação se passa anos mais tarde, em Epidamno, cidade da Ilíria (hoje Albânia), aonde chega um dos Menecmos à procura de seu irmão, o outro Menecmo, que mora na cidade. Enquanto um, que acaba de chegar, é sucessivamente confundido pela amante do outro (que o explora), por Vassourinha, um vagabundo, que o delata a esposa do outro e ao sogro. Mas quem sucessivamente sofre punições pelo o que não fez é o outro Menecmo.

E assim, de engano em engano, a peça caminha para o seu final feliz, quando os irmãos se encontram e se reconhecem.
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Sinopse

Em Éfeso, um comerciante de Siracusa, chamado Egeu, é condenado à morte por ter cruzado a fronteira entre as duas cidades rivais. Próximo da hora da execução, Egeu conta a sua história a Solino, o duque de Éfeso. Vinte cinco anos antes Egeu e a sua família - a sua mulher, os dois filhos gêmeos e ainda dois escravos também gêmeos - tinham-se separado em consequência de um naufrágio. Um dos filhos e um dos escravos tinham permanecido com Egeu, mas tinham perdido o rasto dos outros e Egeu deslocara-se a Éfeso na esperança de os encontrar.

Comovido, o duque substitui a pena de morte por um resgate de mil marcos. Sem que Egeu saiba, também o filho e o escravo (Antífolo de Siracusa e Drômio), que sempre viveram com ele, se encontram na cidade com o mesmo objetivo o que vai provocar uma série de mal-entendidos.

Adriana, casada com Antífolo de Éfeso, confunde-o com o irmão de Siracusa e arrasta-o para casa. Pouco depois Antífolo de Éfeso vê-se impedido de entrar na sua própria casa. Entretanto Antífolo de Siracusa apaixona-se pela irmã de Adriana, Luciana, que fica chocada com o comportamento daquele que ela julga ser o seu cunhado.

Para complicar ainda mais a situação Antífolo de Éfeso é preso por se recusar a pagar uma corrente de ouro que comprara, mas que nunca chegara a receber por ela ter sido entregue, por engano, ao seu irmão.

Estranhando o comportamento do marido, Adriana pensa que ele enlouqueceu e recorre a um exorcista, o professor Pinch. Quanto a Antífolo de Siracusa e ao seu escravo, julgando que a cidade está enfeitiçada tentam fugir mas, ao sentirem-se ameaçados, refugiam-se numa abadia.

Quem acaba por resolver toda esta confusão é a abadessa, Emília, que é, nem mais nem menos, que a esposa desaparecida de Egeu. No final tudo acaba bem. Adriana reconcilia-se com o marido, o duque perdoa Egeu que se reúne com a esposa e Antífolo de Siracusa tenta a sua sorte com Luciana.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/a_comedia_dos_erros
http://pt.shvoong.com/books/1620628-comédia-dos-erros/

Cecy Barbosa Campos (Inter-Relação Cômico-Trágica em A Comédia dos Erros e Os Dois Menecmos)


Dificuldades na distinção entre comédia e tragédia. Conceitos de valorização de ambas. As teorias de Moelwyn Merchant sobre a presença de elementos cômicos e trágicos numa mesma obra, agindo como mecanismo de equilíbrio da tensão. A inter- relação cômico-trágica em A comédia dos erros, de Shakespeare e em Os dois Menecmos, de Plauto.

1. INTRODUÇÃO

Pretendemos neste estudo fazer uma abordagem da peça A comédia dos erros, de William Shakespeare, considerando a inter-relação cômico-trágica nela presente. Segundo Moelwyn Merchant, tanto o humor é indispensável ao alívio da tensão trágica, levando a novos índices de elevação de intensidade da dor, como momentos trágicos ajudam a arrefecer na comédia, os espasmos de riso que serão suscitados novamente, em manifestações de alegria indispensáveis à comédia..

Modernamente, o Teatro do Absurdo apresenta a característica de lidar com o cômico e o trágico ao mesmo tempo. A falta de objetivos na vida e a dificuldade de comunicação entre os seres humanos, aparecem simultaneamente a momentos cômicos, como acontece em Waiting for Godot, de Samuel Beckett.

Shakespeare, examinando de maneira sensível as relações humanas, as virtudes e os defeitos comuns ao homem, é capaz de apresentar um personagem cômico dentro de uma atmosfera sombria e de tratar a angústia humana com comicidade, pelas situações improváveis que é capaz de criar e através de personagens que levam o espectador ao riso, especialmente por suas falas irônicas, satíricas ou imbuídas de sarcasmo. Entretanto o riso que daí surge, não é um ríctus vazio, mas uma reação consciente e reflexiva, que conduz à análise dos graves problemas que atingem a humanidade.

2. TRAGÉDIA E COMÉDIA

É muito difícil fazer distinções precisas ou estabelecer o momento exato em que o trágico se transforma em cômico e vice-versa. É próprio da dualidade do ser humano que ele apresente características boas e más, tendências por vezes liberais e em outras conservadoras, momentos de alegria em que se veja acometido pela tristeza. Da mesma forma é difícil estabelecer uma distinção nítida entre Tragédia e Comédia. Tomando duas peças de Shakespeare, Hamlet e Sonho de uma noite de verão, não teremos dúvidas em enquadrá-las como tragédia e comédia, respectivamente, reforçando a afirmação de Byron, citada por Merchant, de que "Todas as tragédias terminam com morte/ Todas as comédias terminam com um casamento"(1) Entretanto, somos forçados a reconhecer que nem todas as tragédias e comédias terminam da mesma forma.

Uma das mais claras distinções entre a tragédia e a comédia, parece ser a falta, na segunda, daquela dimensão metafísica que é de principal importância na primeira. Também o fato de que o herói trágico, se não perde a vida no final, tem implicações trágicas e catastróficas em sua luta com o destino. Isto fica sem lugar na comédia: aqui o destino é substituído por uma oportunidade mais trivial, ou mais impessoal; e se, ao personagem cômico é permitido fazer reflexões filosóficas, estas são feitas como comentários sobre o que a vida nos reserva e são muito diferentes do que se refere ao destino trágico.

Outra maneira de distinguir tragédia e comédia, está sintetizada no aforismo de Horace Walpole, também citado por Merchant :"O mundo é uma comédia para aqueles que pensam, uma tragédia para aqueles que sentem"(2).

Uma conseqüência desta distinção entre comédia e tragédia, entre pensar e sentir, reside no fato de que o enredo cômico é, às vezes, mais intrincado que o enredo trágico e menos plausível. Muitas vezes arbitrário, subordina-se aos trabalhos do acaso ou da sorte, fazendo com que o espectador se delicie com cada incidente inesperado ou que pareça impossível. O enredo cômico lança os personagens em situações inusitadas que lhes permitam mostrar sua loucura ou confusão. Isto acontece com freqüência em A comédia dos erros, de Shakespeare, onde a existência de dois irmãos gêmeos e de seus dois criados, também gêmeos, criam momentos bem pouco verossímeis. As confusões que surgem a partir do encontro dos quatro, são justamente resultantes do inverossímil da situação.

Na comédia muitas vezes há, não somente acontecimentos improváveis, mas também mudança de caráter ou de nível social - uma pessoa pouco inteligente torna-se repentinamente brilhante, o mau se degenera e o pobre transforma-se em dono de vultosa fortuna, culminando estas reviravoltas do destino com uma festa de casamento ou celebração final. É um recomeço, o surgimento de uma nova sociedade, a abertura de possibilidades, o início de uma outra vida com diferentes perspectivas.

Apresentando uma visão de mundo diversa daquela apresentada pela tragédia e mostrando variados estados psicológicos, a comédia tem a função de provocar o riso e chamar atenção para as incongruências e alegrias da vida, desenvolvendo o senso de humor.

3. O DRAMA CÔMICO

Originando-se dos festejos dionisíacos, nos quais os participantes cantavam, dançavam e faziam brincadeiras zombeteiras enquanto levavam a imagem de Dionísio, a comoedia associou-se logo à idéia de uma forma teatral que apresentava o homem numa perspectiva diferente, com seus defeitos e culpas.

Os dramaturgos romanos Plauto e Terêncio foram os agentes multiplicadores desta concepção mas o impulso criador veio de Atenas, com a Comédia Antiga, da qual Aristófanes foi o representante principal. Embora a questão da influência grega em ambos seja muito discutida, é inegável que, cada um a seu modo, apresenta características próprias que permitem à comédia latina ser reconhecida e respeitada.

De Plauto, possivelmente nascido em 254 AC, sabe-se que foi primeiramente ator, talvez escravo de um grupo de teatro ambulante, tendo passado a autor com extrema sensibilidade para saber o que agradaria a audiência. Quanto a Terêncio, nascido em 185 AC, como escravo, teve sua inteligência reconhecida e recebeu alforria, tornando-se um autor de linguagem refinada, banindo da comédia aquilo que considerava grosseiro e vulgar. Tanto Plauto quando Terêncio apresentam semelhanças em relação ao uso de convenções do teatro greco-romano, complementando a ação pelo uso de solilóquios, comentários simultâneos, saídas e entradas oportunas. Por outro lado, eles se diferenciam pelo uso que fazem do possível e do improvável. Terêncio atém-se muito mais que Plauto àquilo que se subordina à razão e à probabilidade.

É interessante que, justamente pela ênfase dada ao improvável, a comédia plautina vai se colocar lado a lado com a comédia shakespeariana. A presença de Plauto, através das peças Anfitrião e Os dois Menecmos faz-se sentir em A comédia dos erros de Shakespeare.

4. OS DOIS MENECMOS E A COMÉDIA DOS ERROS

A comédia de Plauto trata de confusão de identidades e tem o aspecto visual e a ação física como pontos básicos para a encenação. Há uma complicada estória de gêmeos que se separam aos sete anos, em virtude de um naufrágio. Vivendo em lugares distantes, sem notícias um do outro, aquele que permanece em companhia do pai assume, estranhamente, o nome do irmão desaparecido: Antífolo. Este fato vai complicar mais o enredo a partir do momento em que, já adultos, os dois se encontram na mesma cidade. Sendo absolutamente idênticos, a confusão é completa, pois nem mesmo a mulher e a amante de um deles, são capazes de distingui-los. Criados e outros personagens também não notam a diferença entre os indivíduos que respondem pelo mesmo nome. O “nonsense” da situação estende-se por toda a peça e o clímax da comicidade é atingido no momento em que a irascível esposa de um dos Menecmos é envolvida. A discórdia conjugal é aguçada pela intromissão do parasita Peniculos que denuncia as infidelidades daquele a quem explora. Parecendo ser um personagem importante para a ação, desaparece logo após dar esta contribuição para o estabelecimento do conflito. Neste momento, a confusão estabelecida já é tão grande e os mal entendidos tão numerosos, que ninguém sente falta de sua presença.

Toda esta mistura de confrontos físicos com a negação da razão culmina numa luta final em que todos se envolvem e que coloca a peça numa posição mais próxima da farsa do que da comédia.

Pertencente à fase de iniciação literária de Shakespeare, A comédia dos erros tem como enredo a triste estória do naufrágio de Egeu, que no acidente perde mulher e filho. O humor resulta de equívocos e trocadilhos duplicados pela existência de dois criados gêmeos que servem aos dois Antífolos, de Éfeso e de Siracusa. Assim como os patrões, os criados gêmeos também têm o mesmo nome, atendendo ambos por Drômio. Shakespeare coloca ainda duas mulheres em contraste significativo. Adriana, a esposa ciumenta e independente que reage contra a submissão feminina e Luciana, que considera os homens seres superiores. .

O enredo se expande e os intrincados conjuntos de relacionamentos pessoais tornam-se parte essencial da concepção cômica de Shakespeare. Entretanto, preocupado com a elaboração de um enredo de intriga, o dramaturgo inglês buscava um efeito mais complexo, qual seja o estabelecimento da ação cômica num quadro que se forma a partir de uma atmosfera notadamente séria.

A peça começa com Egeu, mercador de Siracusa, explicando o motivo de sua presença em Éfeso: a busca de mulher e filho há longos anos desaparecidos . Sua figura trágica e solitária leva o Duque a manifestar compaixão sem, entretanto, revogar a pena de morte a que Egeu fora condenado. Paralelamente à figura patética do velho mercador que sem amigos e sem dinheiro está condenado a morrer ao final do dia, os problemas de troca de identidades e o desenvolvimento das relações pessoais e comerciais instauram o cômico. Há, assim uma união perfeita de elementos aparentemente disparatados. A vida é representada não em situação normal, mas no absurdo de situações que são às vezes tristes e alegres simultaneamente.

Em momentos de grande lirismo já é possível entrever a genialidade do autor que começa a despontar. Apesar de alguns críticos reclamarem da irrealidade do tema, é por outro lado necessário admitir que a aceitação de um conjunto de circunstâncias absurdas é essencial à farsa e que este foi o tipo de entretenimento pretendido por Shakespeare.

5. A COMÉDIA SEGUNDO MERCHANT

Merchant analisa a mistura de gêneros e afirma que, para ser possível estudar profundamente a comédia, é necessário, primeiramente explorar suas incursões dentro da tragédia, começando com o teatro grego. Verifica que também no teatro shakespeariano o cômico acha-se presente, com muita freqüência, nas peças trágicas, servindo de alívio à tensão apresentada.

Merchant, ao falar do efeito que a intromissão do cômico exerce como intensificador do momento trágico, sugere que se use a intromissão trágica para diminuir a intensidade do cômico e depois incrementá-la novamente. É o que acontece em A comédia dos erros e em outras peças de Shakespeare. Algumas vezes, a seriedade de assuntos enfocados na comédia leva à insegurança quanto ao modo de classificá-las. Este fato é resultante da grande dificuldade de demarcaçao dos limites entre o trágico e o cômico, pois

Há momentos em que o espírito cômico invade um trabalho de predominante visão trágica, ou, inversamente, um lampejo de tragédia obscurece um trabalho de predominante comicidade; é aí que a demarcação entre tragédia e comédia não parece fácil de se definir; é quando [...] a comédia parece alcançar sua maior estatura não em independência mas em associação com as visões mais sombrias da tragédia. (3)

Desta forma, muitas das comédias shakespearianas, assim denominadas devido a um enquadramento feito a partir da resolução dos conflitos e das cenas finais, deixam o espectador/leitor, em dúvida a respeito da adequabiliade desta denominação, tão perto ficam da tragédia e da comédia ao mesmo tempo.

6. CONCLUSÕES

À primeira vista, lendo ou assistindo A comédia dos erros, temos a sensação de que Shakespeare graceja, faz brincadeiras tolas e que seu único objetivo através das confusões absurdas entre personagens que se duplicam é fazer rir, mas a modificação das fontes que serviram de inspiração para a peça dá-lhe um novo tom. Shakespeare chama a atenção para um problema sério que é a perda ou troca de identidades e as consequências daí advindas, como a desintegração familiar e social. Ao final, redescobrindo o seu próprio “eu” os personagens reassumem seu lugar no mundo, a ordem é restaurada e a violência é substituída pela delicadeza do amor. A ação cômica em toda sua vitalidade conduz a uma espécie de ressurreição, de renascimento, de restauração.

Os paradoxos da irracionalidade estão presentes nos incidentes que se nos apresentam e mesmo numa peça considerada menos importante na gloriosa carreira de Shakespeare, podemos observar a perspicácia do autor na análise do ser humano.

A comédia dos erros não se limita a propiciar uma descarga de energia psíquica liberada através do riso aliviando o espectador das tensões e inibições do mundo em que vive. Ela também induz à simpatia e a sentimentos de compaixão e solidariedade para com os problemas que nos cercam, levando-nos a compreender a importância da paciência e da abnegação para que a ordem possa se impor à desordem e para que o amor e a harmonia nas relações humanas possam ser restaurados no final.

Transcendendo à farsa, Shakespeare demonstrou com A comédia dos erros, que uma grande alegria é melhor sentida pela sua contraposição ao sofrimento, definindo um caminho para as comédias que viria a escrever posteriorrmente.

7. BIBLIOGRAFIA

1- BENDER, Ivo C. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre, Editora
UFRGS/PURS. 1996.
2- CANOVA, Marie-Claude. La comédie. Paris, Hachette. 1993.
3- HOWARTH, W.D. (ed.). Comic drama. London, Methuen. 1978.
4- MERCHANT, Moelwyn. Comedy. London, Methuen. 1972.
5- NOGUEIRA, Goulart. História breve do teatro. (I) Lisboa, Editorial Verbo. 1962.
6- PLAUTO. Os dois Menecmos. Versão de Carlos Alberto L. Fonseca. Coimbra, Instituto
Nacional de Investigação Científica. 1983.
7- PLAUTO e TERÊNCIO. A comédia latina. Trad. Agostinho da Silva. Rio de Janeiro,
Ed. Tecnoprint (Ediouro). s.d.
8- SHAKESPEARE, William. The comedy of errors. New York, Washington Square
Press. 1963.
9- TRAVERSI, Derek. An approach to Shakespeare (I). London, Hollis and Carter. 1968.

8- NOTAS

As citações foram traduzidas pela autora deste trabalho, de acordo com a edição mencionada na bibliografia.
1-BYRON, APUD MERCHANT(1972:1)
2-WALPOLE, APUD MERCHANT (1972:2)
3-MERCHANT(1972:48)

Fonte:
Texto enviado pela autora.