terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Ano Novo n. 436)


Uma Trova Nacional

Rogo ao ano que inicia,
Paz, Luz, Amor, como embalo,
ao raiar do novo dia
ao som do cantar do galo.
–VANDA ALVES/PR–

Uma Trova Potiguar


Ano Novo, nova vida
e muita poesia nova,
desejo a elite que lida
na lapidação da Trova!
–CLARINDO BATISTA/RN–

Uma Trova de Ademar


Neste Ano Novo, eu queria
entre nós, mais união;
e que o amor pela poesia
cresça em nosso coração!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Que o Ano Novo nos dê,
à maneira que puder,
o Bem que eu quero a você
e o Bem que você me quer!
–ALCY RIBEIRO S. MAIOR/MG–

Simplesmente Poesia

A Vida Continua

–GILSON F. MAIA/RJ–

Não é o fim, meu amigo,
a jornada continua!
Terá sequência domingo
o passeio em outra rua.
Que seja alegre a viagem!
Que seja linda a paisagem!
Ame o sol, namore a lua!

Estrofe do Dia

Que o ano que se despede
Leve com ele as tristezas,
As dúvidas e incertezas
E que todo mal se arrede,
Tudo quanto nos impede
Tome outras diretrizes,
Corte os males nas raízes
Trazendo um total renovo
Para que nesse ano novo
Possamos ser mais felizes!
–CARLOS AIRES/PE–

Soneto do Dia

No Ano Novo
–THALMA TAVARES/SP–


Ano que vem quero esquecer as dores,
quero vestir a roupa colorida,
a que me faz sorrir dos dissabores,
para enfrentar com mais humor a vida.

Eu quero repensar os meus valores,
se os tenho respeitado na medida
em que suporto a dor dos sofredores
pungindo mais minha alma dolorida.

Eu quero abrir meu peito à humanidade,
mudar meu egoísmo em caridade
e transformar-me assim no Homem Novo.

E espero que o bom Deus, nosso Senhor,
transforme este meu sonho em Paz e Amor,
em trabalho e mais pão para o meu povo.

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Adélia Prado (Os Componentes da Banda)


O menino da vizinha dos fundos, trepado no muro como ele vive, deve ter investigado bem o meu quintal, porque hoje me gritou: "do-o-na, do-o-na, a mãe falou se a senhora quer vender umas panelas pra ela."

Me desgostou muito a forma de pedir, o pedido em si. Com tanto vizinho, porque Dona Alvina foi enxergar logo as minhas panelas? A distância entre a casa dela e a minha é a mesma entre a casa dela e a do Osmar Rico. É claro que percebeu minha fraqueza. Não posso esconder, está na minha cara a atração que exercem sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres, eu os farejo, pressinto, me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam no barracão é porque estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por que então não fui capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o coração exultante de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino, contrariada: as panelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em comprar, já sabendo que eu não ia vender.

Logo me arrependi, chamei o menino de volta e peguei a melhor panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a boa demais, servia pra tampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei a panela pura. Foi uma bondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não descansei enquanto não inventei um meio de visitar Dona Alvina. Com um mês só na casa velha, toda escorada, que o
dono do curtume deu para ela morar, já fez horta, jardim, os cacarecos são limpíssimos. A menina pequetita, paninho na cabeça, brinquinho de ouro na orelha desensebada. Fui com desculpa de comprar cebolinha e fiquei sabendo: ela faz faxina nas casas, o marido trabalha fora e só vem fim de semana, eles não são daqui não.

Muito bem, pois saí sem ter coragem de dizer a ela a única coisa que meu coração pedia que dissesse: olha, Dona Alvina, somos vizinhas e a senhora pode contar comigo no que precisar, estou à sua disposição. Isto falei toda emproada pra Dona Leonor, pra Dona Ester, porque no fundo sabia, são destas vizinhas que pedindo um dente de alho pagam logo com uma réstia de cebolas, enfim, me serviriam quando eu precisasse sem me dar amolação. Dona Alvina é diferente, porque é precisada mesmo. Se me pedir cinquenta cruzeiros vai demorar um ano pra pagar. Qual é o dinheiro que entra lá que seus quatro crioulinhos não consomem num átimo? E ela deve pensar assim: "Dona Violeta é rica, pode muito bem esperar." Posso mesmo. Por que então, meu Deus, não sei ajudar a Alvina? Empresto o dinheiro, passam nem duas semanas fico dizendo: ao menos satisfação eu merecia; não é por causa do dinheiro. E outras bobagens mais que todo mundo fala nestas situações. O fato é que estou chateada com a mudança deles pra cá. Antes era Dona Terezinha que, bem ou mal, eu vivia acudindo. Passou mais de ano sem morador na casa, um verdadeiro descanso. Agora envém Dona Alvina que, sem saber, é um ferrão na mão de Deus. Não chupo mais uma bala sem pagar um dízimo de tristeza. Claro que está tudo errado, qualquer sacristão bobo sabe disso, menos eu que não atino com a forma de gozar dos frutos da terra, criados por Deus para todos comerem em perfeita alegria, eu inclusive.

Demoraram um dia só para descobrir minha mangueira de cinqüenta metros: "do-o-na, a mãe falou se pode emprestar a mangueira pra nós aguar a horta?" Este batido durou um mês. Pedro até botou um trapo no muro pra não esfolar a borracha. Depois foi ficando chato. Queria lavar o carro, aguar nossa horta mais cedo, a mangueira com Dona Alvina. Bibia falava: "mãe, que povo folgado, vai ser descansado assim! Acho a senhora e o pai muito bobos." Não podia aplaudir a menina, mas por seguro matutamos: a voz das crianças é a voz de Deus.

De noite Pedro bateu na casa da Alvina para bispar a situação. Se pudesse, falou o marido, mandava ligar a água, mas onde vou arranjar dinheiro? Pedro foi na Companhia, pagou a taxa, acabou a questão da mangueira. Nem assim sosseguei: será que foi correto? Não teria sido mais edificante emprestar a mangueira com paciência até eles arranjarem modo de pagar a taxa? Vejo o marido da Alvina passar aos sábados com umas mexericas que ele arranjou pra vender e penso: nem pra dar uma satisfação, um sinal. Pedro nem se lembra mais. É diferente de mim, nunca dá meia panela. Por isso a alegria dele é inteira.

Fonte:
Adélia Prado. Os componentes da banda. Editora Rocco, 1988

Maria Zilda da Cruz (Gemido Verde)


Frondosa, a majestosa árvore oferecia mais um verde à natureza. Sua cor pertencia ao matizado de tantos outros verdes, existentes nas grandes árvores, nos pequenos arbustos nas humildes hortaliças e nas plantas quase rasteiras. Não importa o tamanho. A diversidade do verde se espalha ao infinito!

As árvores, juntas, formam o bosque quando muitas engrandecem a terra com uma floresta. A Amazônia enriquece o território brasileiro.

Mas eis que o homem, empobrecido de pensamento, sem coração, mata o verde, tira a nobre mata e deixa pobre o solo. Forma-se um vazio na terra, despida de sua maternidade de tantas dadivosas árvores.

Em cidades hospitaleiras do verde, elas crescem orgulhosas de suas sombras. Ofertam a beleza de flores, às vezes de frutos e sempre acolhem os pássaros e outros bichinhos.

Assim era aquela gigantesca árvore; um dia fora pequenina, plantada por mãos carinhosas. Hoje, ostentava a imponência herdada de séculos de ascendência. Crescia cada vez mais: na altura, desafiando chegar próxima ao céu; na largura, ara aumentar a sombra, em proteção ao sol quente, de algum verão exagerado. Até ajudava a agasalhar a desprevenida pessoa, sem guarda-chuva, de alguma chuva passageira. Em seus galhos fortes, sustentava meninos travessos, brincalhões, sentindo-se heróis em imaginárias cavalgadas, corridas velozes sem sair do lugar, confundidos na exuberante ramagem.

Aquela árvore era a presença duradoura para mais de uma geração. Enfeitava a avenida que, com muitos alargamentos, acabara por deixá-la isolada num canteiro central. Só, ela se destacava ainda mais. Os pássaros sentiam um refúgio seguro para construir seus ninhos. Até faziam o par do amor para depois, surgirem redondos ovinhos. Então, passado o tempo da natureza, novas gerações de aves cantavam a sonoridade da vida.

Olhando ao redor, a árvore se preocupava com tantas mudanças urbanas. Não entendia muito os planos de modificações do lugar. Nem sempre deixavam o local mais bonito: o cimento, o asfalto comia a terra dos canteiros e muito verde desaparecia. Então, ela escutava um nome esquisito, progresso, que lhe causava arrepios.

Um dia, o temor se transformou em medo. Homens com grossas luvas seguravam uma serra bem forte. Com decisão e audácia contra a vida, a mortífera máquina começou a trabalhar. No vai e vem dos dentes impiedosos, a serra logo sentiu o crime de seu ato. A árvore estremecia. Os pássaros voavam pedindo socorro pelos seus ninhos, pelos ovinhos, pelos filhotes indefesos. Os galhos aos poucos caiam! Dezenas de anos, lentamente florescidos, sentiam a morte decretada. Uma imensidão de verde cobria o negro asfalto da nova avenida.

Molhada pela seiva da vida perdida, que escorria em abundância, a serra tremia um pedido de desculpas pelo que fazia. Já pressentia a avalanche de futuros remorsos, fantasmas de um crime sem culpa. Somente uma criança, parada na calçada, sentia a agonia da frondosa árvore e ouvia o gemido de dor de um verde vencido.
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Maria Zilda da Cruz é Mestra e Doutora em Psicologia pela USP. Presidente da Academia Feminina de Ciências, Letras e Artes de Santos e Membro da Diretoria da Academia Santista de Letras.

Fonte:
Texto e imagem obtidas em:
Cláudio de Cápua (editor). Revista Santos: arte e cultura. Ano V, vol. 27. Maio de 2011.

Flávio Paiva (Os Guerreiros de Nilto Maciel)

Quem passa desavisado por Baturité nem imagina que aquela cidade do maciço poderia nem existir, caso no tempo em que, na ficção do escritor Nilto Maciel, 66, ela ainda era vila, tivesse sido destruída pela revolução nativista sonhada pelo anti-herói protagonista do livro "Os guerreiros de Monte-mor" (Armazém da Cultura, 2011), que será lançado hoje, às 19 horas, na Livraria Cultura, em Fortaleza. A primeira edição dessa novela alegórica cearense foi publicada em 1988, pela editora Contexto, de São Paulo.

Enlouquecido pelos efeitos da matança colonial ocorrida por estas bandas, o personagem João Cardoso decide libertar os povos nativos do Ceará, derrubando o poder da província e o império português instalado no Brasil. Com um bode de apoio e combate, que carrega nas costas uma infantaria de morcegos engaiolados e presos a caçuás, ele parte para o enfrentamento irreversível de uma derrota histórica.

O remanescente dos Jenipapo carrega em sua caricatura um coração tapuio, a pulular por Baturité, Canindé e Barbalha até encontrar-se no desvario dos sem-memória que, indignados com o destino, passam a zanzar pela geografia, pelo linguajar e pela etno-história cearense. Neste sentido, o livro de Nilto Maciel renova uma tradição iniciada por José de Alencar (1829 - 1887), em sua característica da novela psicológica, indianista, regional e histórica.

Fico contente quando encontro a nossa literatura explorando com inteligência as identificações da cearensidade. "Os guerreiros do Monte-Mor" é alegoria quixotesca saída da gema de ovo de galinha pé duro. João e seus poucos companheiros de destemida louquidão oferecem ao leitor percursos políticos e estéticos comparáveis à exaltação utópica de Antonio Conselheiro (1893 - 1897) e de seus muitos seguidores na trágica experiência de Canudos.

Em suas desesperadas tentativas para reversão do domínio colonial, os personagens transitam pelas veredas do tempo e se relacionam com figuras da nossa historiografia, como o Naturalista Feijó (1760 - 1824) e Tristão Gonçalves (1789 - 1824). Os guerreiros de Nilto Maciel fazem o papel de si mesmos em uma narrativa que floresce na sequidão do passado esquecido de um Ceará enfatizado pela sátira romanesca da sua formação, enquanto entidade política, etnológica e literária.

As batalhas dos defensores da Revolução Nativista se dão contra o abandono, contra a falsa identificação e em favor de uma rejeição que quer participar. O autor parece fazer questão de firmar, afirmar e confirmar a marginalidade histórica e cultural do Ceará profundo. Sente-se em seu texto uma preocupação quase metodológica para que isso aconteça. Embora denso nessa suposta deliberação, o livro não perde a naturalidade, nem se inclina para simplificações ou linearidade imitativa.

O intransponível está sempre presente página por página porque a saga é inglória em sua gênese e impraticável como fator de conversão. Não há como escapar daquela sina, traçada em determinismos do passado dos exterminados, com todas as vertentes históricas e culturais e seus diversos enredos seculares. Os esforços dos guerreiros do Monte-Mor, no impetuoso enfrentamento das falsas consciências impostas pelas circunstâncias, recaem em justiça estética da maioria que se tornou minoria e que desapareceu na história oficial, ressurgindo na recriação literária como uma ideia de sociedade.

Da geografia humana cearense Nilto Maciel extrai especificidades em lembranças que até achamos que temos, mesmo que seja simplesmente convergência de ilusões. O livro se desenrola nesse vácuo, evidenciando passos e compassos perdidos de um Ceará que conhece pouco o Siará e por isso acha que do seu litoral para dentro tudo é desolação e do seu interior para fora sobeja insolação.

A novela, aparentemente sem eira nem beira de Nilto Maciel, presencia o que não existe e acaba pintando cenários de um tempo em perspectiva curva, como em um cinema 180 graus, fazendo circular inquietações esquecidas. A luta febril dos guerreiros ingênuos por uma liberdade qualquer, reescreve o que não foi sequer escrito e dá contornos abstratos ao que foi desfigurado por toda sorte de ignorância.

Em face da compreensão alterada e tosca da realidade, por parte de seu protagonista, o livro se desenrola onde tudo acontece e nada se passa; onde quase ninguém lembra e todos são profusamente convidados a ficar para trás. Essa diversão alienante é uma das curiosidades do livro "Os guerreiros do Monte-Mor". São trabalhos literários assim que contribuem para um lugar voltar a si mesmo, desatando aspectos inconscientes de uma guerra silenciosa contra algo que nem sabemos que somos.

Rubem Alves me contou por e-mail, no sábado passado que o escritor franco-marroquino Daniel Pennac diz que a literatura nos "aliena" para, em seguida, nos trazer de volta. Ao ler "Os guerreiros de Monte-Mor" fiquei com essa sensação. Óbvio que por conta disso não quero cobrar de uma ficção o preenchimento de lacunas historiográficas, mas bem que a leitura do livro de Nilto Maciel me levou a recordar de algumas expressões e cacoetes culturais da cearensidade que gostei de reencontrar: no lugar de "triste" ele coloca "capiongo"; onde seria "desajeitado", ele escreve "marmotoso"; e se alguém está montado a cavalo, ele diz que vai "escanchado".

A despeito de o livro ter um glossário, o ritmo de leitura pode ser lento para quem não conhece os códigos do palavreado e do jeito atoleimado de se expressar dos guerreiros e do autor. Sabe-se que as histórias que ouvimos quando criança praticamente determinam a imagem que fazemos de nós e do mundo. Isso, de certo modo, torna-se um desafio aos que chegam ao Monte-Mor sem saber muito bem como aproveitar o papel não historiográfico das metáforas.

Quem guarda consigo conteúdos da cearensidade pode beber sorvendo essa narrativa bem humorada, mas quem não estiver familiarizado com isso precisa estar com sede para ingeri-la. Ler trabalhos como o dos guerreiros de Nilto Maciel requer o esforço de quem cava cacimba em leito de rio seco, com a paciência de esperar a revência pingar a água infiltrada nas raízes, pela paisagem subterrânea dessa literatura com cheiro de Lunário Perpétuo. O bom é que nela, não há subentendidos, tudo pode ser desperdiçado, que a prosa não vai embora, fica com o leitor pela força monogênica do texto.

Os revolucionários João, José e Xocó estão mais vivos do que nunca. Na tentativa de fazer uma primavera tapuia, eles podem ser associados às transformações que estão sendo processadas na atualidade pelo conflito entre as crenças no darwinianismo cultural e o realce das diferenças. Na condição de agitadores marginais, poderão até sair vitoriosos fora do livro, se a inclinação dos desfechos das lutas cidadãs tenderem para a perda da hegemonia das narrativas colocadas a serviço da replicação das estruturas sociais, ideologias e doutrinações dominantes.

A literatura tem a liberdade de dizer que nem tudo o que está posto sempre foi ou será desse ou daquele jeito. Em "Os guerreiros de Monte-Mor", Nilto Maciel captura do passado um espírito impetuoso plural e aberto ao discurso crítico, reflexivo, cômico e divertido. É uma guerra que se dá no âmbito da inquietação delirante, mas seus guerreiros, mesmo não conseguindo o que talvez quisessem, conquistaram o direito de procurar por um poder, qualquer que seja, desde que melhor do que o desencanto e o abandono.

Fonte:
caderno3@diariodonordeste.com.br Diário do Nordeste, Fortaleza, 1º/dez/2011. Disponível em http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2011/12/os-guerreiros-de-nilto-maciel-flavio.html

Nilto Maciel (Os Guerreiros de Monte-Mor: Construtor de Igrejas)

João levava muito a sério a questão da raça, apesar de em suas veias correr sangue português. Sua mãe havia nascido de uma relação entre o sesmeiro Domingos Carneiro e uma índia jenipapo. Compreendia, no entanto, a impossibilidade de uma nova guerra, como desde menino ouvia seu pai pregar, e cedo se apaixonou pelos ideais dos inconfidentes mineiros, sentimento que lhe valeu bordoadas da guarda imperial.

Mal curou‑se dos ferimentos, desceu a serra e, sem dar um pio, foi direto à matriz, onde orou, ajoelhado diante da imagem de Nossa Senhora da Palma, durante um dia inteiro. Ao retirar‑se, o povo, doido para ver de perto o filho de Antônio Cardoso, enchia a praça, tal como no dia da inauguração da vila.

Antes mesmo da viração da tarde, já uma pequena multidão se postava à frente da igreja, curiosa, bisbilhoteira, zombadora.

– É o inconfidente.

Pelo pender do sol, havia subido a serra o primeiro pregoeiro a anunciar novidades em Monte‑Mor: João da Silva Cardoso, o contador de lorotas, preparava‑se para subir aos céus. Com pouco, a praça virava feira: o cruzeiro enchia‑se de pencas de banana; no obelisco, penduradas em paus, cacarejavam dezenas de galinhas.

Finda a prolongada reza, João escapuliu pela sacristia e, tomando o rumo do mato, apressado e tonto, deixou a multidão apalermada.

– Ele voou para o céu.

Os mais incrédulos acreditavam ter ele se escondido dentro do sacrário. Mas, antes de o sol se pôr, dava João boas‑noites ao pai de Maria do Amparo. Mal recebido de início, pouco a pouco aman­sou o velho. Ia se dedicar a trabalho rendoso – o de construtor. Quis blasonar, mordeu a língua, cutucado pela voz do pai dentro das oiças.

Conversa vai, conversa vem, entraram no assunto principal – a mão da donzela. O dono da casa fez promessas, João dizia sim senhor. Não tocaram no caso da surra, nem em negócios de metal. Só no finzinho do entendimento, o rapaz fez resumo de um romance que falava da conversão de um príncipe à Santa Madre Igreja. E se despediram como velhos compadres.

Daí em diante, João virou frequentador de igrejas e da casa do futuro sogro. Não dizia para ninguém, mas conduzia sempre um terço pendurado ao pescoço e, quando não conversava lorotas, rezava feito um penitente. Jurava a si mesmo que ia ser santo e ter altar só seu na matriz.

Virou e mexeu, noivou. Deixou os romances de lado e vivia ora na casa do sogro, ora aos pés dos santos.

Na primeira conversa mantida com o padre, falou da necessidade de mais igrejas e capelas na vila. O apóstolo concordou com suas opiniões e aproveitou‑se delas para relatar o estado de pobreza da freguesia. A matriz precisava de reformas, vinho e hóstia. Aparecessem pedreiros e pintores, bem que Deus agradecia.

Ao beijar a mão do padre, João reafirmou sua fé e boa vontade. Podia o outro arranjar os trabalhadores e o material, e deixasse o resto com ele.

– Vou mostrar como se remodela uma igreja pai‑d’égua como essa.

O reverendo levou o crucifixo aos lábios e olhou para o céu, sem palavras.

Fonte:
Nilto Maciel. Os Guerreiros de Monte-Mor. 2.ed. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2011.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Ano Novo n. 435)

 Uma Trova Nacional

Que 2012 seja
tempo de amor e harmonia...
e que você, onde esteja,
viva com Deus, todo dia!
VANDA FAGUNDES QUEIROZ/PR

 Uma Trova Potiguar

Na minha “sonhocultura”,
vou cultivar para o povo,
leirões de literatura
para enfeitar o Ano Novo.
FRANCISCO MACEDO/RN

 Uma Trova Premiada

2000 - Petrópolis/RJ
Tema: Ano 2000 - 13º Lugar

Que os anos 2000 nos falem
de novos feitos de luz,
mas que seus ecos não calem
a voz que bradou na cruz!
DOROTHY JANSSON MORETTI/SP

 Uma Trova de Ademar

Eu desejo aos Trovadores,
Convicto e cheio de pose:
Muita Paz...Muitos amores
e um feliz “2012” !!!
ADEMAR MACEDO/RN

 ...E Suas Trovas Ficaram

Deus com seu saber profundo,
para nos trazer a paz,
mandou o seu filho ao mundo
há dois mil anos atrás
MIGUEL RUSSOWSKY/SC

 Simplesmente Poesia

Um Mundo Menos Aflito
 HÉLIO ALEXANDRE/RN

Que o novo ano sorria,
que o amor não se desgaste,
toda tristeza se afaste
e se aproxime alegria;
espero que a fantasia
se torne realidade
para que a fraternidade
substitua o conflito,
e um mundo menos aflito
encontre a felicidade.

 Estrofe do Dia

Ano novo, vida nova,
assim diz velho refrão,
mas a vida ensina e prova
que em qualquer situação,
só o amor constrói o bem,
tornando feliz quem tem
afeto no coração.
VITOR RONALDO COSTA/DF

  Soneto do Dia

Dois Mil e Doze
RAYMUNDO DE SALLES BRASIL/BA

Dois mil e doze vai se aproximando,
receoso, talvez, do que lhe espera,
dar fim a tanta droga! Ah, quem lhe dera!
E prender de uma vez quem está roubando.

Tarefa ingente sob o seu comando,
tempo tão curto para tanta espera,
enorme corrupção que prepondera,
e essa pobreza ínfima grassando.

Reveste-te, ANO NOVO, de poder!
De onde quer que tu venhas, venhas rei,
trazendo um velho lema contundente

que clama: ser, é bem melhor que ter,
e todos são iguais perante a lei,
e merecem viver honradamente!

Fonte:
Textos enviados pelo autor

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Cara De Coruja –VII - A coroinha

Depois que Narizinho e as princesas se enjoaram de ver aquela maravilha, resolveram dançar. A boneca imediatamente saiu para arranjar pares. Foi ao terreiro e trouxe de lá o príncipe Ahmed, o príncipe Codadad e outros. Narizinho agarrou Codadad antes que alguma princesa o fizesse, e saiu dançando com ele como se fosse uma princesa oriental. Branca de Neve dançou com o príncipe Ahmed. Rosa Vermelha foi tirada por Ali Babá, e Rosa Branca, pelo Gato de Botas. Só Cinderela não dançou para não estragar os seus sapatinhos de camurça. Nisto o Visconde, que ainda estava à janela, gritou:

— Estou vendo uma poeirinha lá longe... Todos pararam de dançar, murmurando: “Quem poderá ser?” Logo depois duma batidinha na porta, Rabicó introduziu a menina da Capinha Vermelha.

— Capinha! — exclamaram todas alegríssimas, porque todas queriam muito bem a essa gentil criança. Viva Capinha!...

A menina entrou, muito corada por ter vindo a pé, e disse:

— Boa tarde para todos os presentes, ausentes e parentes !

Em seguida deu um beijo em Narizinho e outro na boneca.

— Antes de mais nada — foi dizendo Emília — quero saber o seu verdadeiro nome, porque uns dizem Capinha Vermelha e outros, Capuzinho Vermelho. Qual é o certo?

— Meu verdadeiro nome é Capinha Vermelha, porque depois que vovó me fez esta capinha todos que me viam ir para a casa dela diziam: “Lá vai indo a menina da capinha vermelha!” Mas, como vocês podem ver, esta capinha tem um capuz, que eu às vezes uso. De modo que tanto podem chamar-me Capinha, como Capuzinho, ou mesmo Chapeuzinho Vermelho.

— Coitada de sua avó! — exclamou Emília. — Você não imagina como ficamos tristes com o que lhe aconteceu! Diga-me: sua avó era muito magra?

Capinha estranhou a pergunta — mas respondeu que sim.

— Muito magra ou meio magra?

— Bem magra.

— Então não entendo aquele lobo — disse Emília – porque uma velha muito magra não é alimento. Só osso...

Todos riram-se da boneca, e Narizinho explicou que Emília, coitada, era asnática de nascença. Nisto o relógio bateu cinco horas.

— As senhoras princesas e os senhores príncipes – disse Narizinho — estão convidados para um café. E voltando-se para a cozinha:

— Tia Nastácia! Traga um café bem gostoso para estes ilustres amigos.

Quando tia Nastácia entrou na sala com a bandeja de café, seus olhos se arregalaram de espanto.

— Credo! — exclamou. — Não sei onde Narizinho descobre tanta gente importante e tanta princesa tão linda! A sala está que até parece um céu aberto...

— Quem é ela? — perguntou Branca de Neve ao ouvido da boneca enquanto a negra servia o café.

— Pois não sabe? — respondeu Emília com carinha malandra.

— Nastácia é uma princesa núbia que certa fada virou em cozinheira. Quando aparecer um certo anel, que está na barriga dum certo peixe, virara princesa outra vez. Quem vai danar com isso é dona Benta, que nunca achará melhor cozinheira.

Quando tia Nastácia veio servir Narizinho, a menina notou qualquer coisa enganchada em sua saia.

— Que é isso, Nastácia? Tem jeito de uma coroinha.

A negra abaixou-se.

— Credo! — exclamou. — Até parece feitiço. Uma coroinha de rei, sim... É que fui ao quintal buscar um pau de lenha e quase nem pude andar de tanto rei e fada e princesa que vi por lá. Com certeza esbarrei nalgum reizinho e a coroa enganchou na minha saia. Mas não foi por querer, não. Credo!...

— Estou conhecendo essa coroa! — exclamou Rosa Vermelha.

— É do meu sogro, o poderoso rei que mora atrás do meu castelo. Com certeza viu passar o bando da Xerazade e correu atrás e na carreira deixou cair a coroa.

E guardou-a no bolso para restituí-la ao seu dono. Todos tomaram café, menos Cinderela.

— Só tomo leite — explicou a linda princesa. — Tenho medo de que o café me deixe morena.

— Faz muito bem — disse Emília. — Foi de tanto tomar café que tia Nastácia ficou preta assim...
–––––––
Continua... Cara de Coruja– VIII – A Varinha de condão

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Blog com Nova Roupagem

O Blog está com nova cara.


Carolina Ramos (Árvore)

Verde bandeira desfraldada ao vento,
árvore amiga, o olhar que te procura
busca repouso e vai achar alento
na sombra que lhe estendes, lá da altura!

A sede abrasa! E o fruto sumarento
entregas, com requintes de ternura,
a quem poda a raiz que é teu sustento
ao extrair do solo a seiva pura!

Ramos erguidos, abraçando o espaço,
tua ânsia de dar não tem cansaço!
Tua benção de amor não tem medida!

E embora tanto dês e nada colhas,
com o verde pincel de tuas folhas
vais colorindo de esperança a vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. SP: EditorAção, 2011.

António Botto (A Rolinha Nervosa)

     Certa manhã, Nica zangou-se com Mica e Tica. Estas três rolas bravias não se davam muito bem.

     Nica afastou-se para um canto e ali ficou de olhos cerrados. Zangada, nem queria fixar as irmãs. E detestava a natureza inteira: os arvoredos, a lua, o sol, as estrelas, as nuvens, os caminhos, as fontes, - tudo, tudo a aborrecia ou enervava, dizia.

     Nisto, um passarinho amarelo pôs-se a cantar empoleirado num galho de marmeleiro...

     - Tu não vês aquele pássaro, Mica, a fazer troça de ti?

     - Não pode ser, disse a Mica; a esta hora, os passarinhos têm mais em que pensar.

     Nica, então, distraiu-se, passeou, compôs o ninho, e quando nas águas de um charco molhou o bico e lavou as penas do peito, o mesmo passarinho amarelo ainda gorjeava alegremente.

     - Que passarinho tão amável!, exclamou ela. A cantar e a chamar-me linda! Não é o mesmo que à pouco se pôs a troçar de mim, certamente.

     - É o mesmo, responde Tica; e diz o que à pouco dizia. Tu é que não és a mesma.

Fonte:
Os Contos de Antonio Botto. RJ: Livraria Bertrand.

Marly de Oliveira (Antologia Poética)

CERCO DA PRIMAVERA

5.


Molhava os cabelos negros
nas águas da noite, quando
cheio de sombra acendeste
uns olhos cor de limão,
iluminando o silêncio
com o simples tocar de mão.

Um rumor de vinho claro,
de bocas e mãos unidas
e um cheiro de mel e flor,
rasparam, ai, como espada,
meu corpo cheio de noite
e o teu, perdido de amor.

Por certo que não queria,
mas tinha a cintura e jeito
ao teu abraço achegados,
e na sombra relumbrava
a água verde dos teus olhos
nos meus cabelos molhados.

Tremores de vento e lua
encabritavam-me o sangue,
e penas de sal e fogo
talavam o silêncio escuro,
ferindo nossas cadeiras
e amarfanhando o chão duro.

Em frio e fogo de amor
apenas luz se alongaram
curvados talhes desnudos.
E nas sombras o silêncio
agitava como franjas
seus longos braços agudos.

RETRATO

Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece
essa é a face necessária.

Escuto quando me falam,
de alma longe e rosto liso,
e os lábios vão sustentando
indiferente sorriso.

A força heróica do sonho
me empurra a distantes mares,
e estou sempre navegando
por caminhos singulares.

Inquiri o mundo, as nuvens
o que existe e não existe,
mas, por detrás das mudanças,
permaneço a mesma, e triste.

               De Cerco da Primavera (1958)

EXPLICAÇÃO DE NARCISO

1.

A carne é boa, é preciso louvá-la.
A carne é boa, não é triste ou fraca.
O que a atinge é a fraqueza que há num homem,
a tristeza, maior que um homem, mata-a.
A carne nada tem, salvo o seu sono,
barro tranqüilo de harmoniosa forma,
corpo que distraídos animamos,
fonte real de toda a nossa glória.
A carne é o instrumento do princípio,
é por ela que eu vivo, que vivemos,
e se revela o amor como é preciso;
o que está fora se une ao que está dentro,
alma e corpo no corpo confundidos,
e a sensação completa de estar vendo.

18.

Num tempo alheio ao tempo, a sós comigo
mais uma vez diante de mim, me escuto:
o meu rebanho ficou longe, longe,
e sou pastor apenas do meu luto.
Mana de mim como um silêncio o amor,
e uma angústia, uma estrela em que me escudo
extremamente para não morrer,
de meus próprios recursos inseguro.
Que saudade de mim me vem agora
quando revejo a fonte com seu brilho
onde meu rosto urgia um tempo-outrora!
Permanência do amor ou desafio
ao tempo, no âmago de mim se vota
um sol eterno e cada vez mais frio.

               De Explicação de Narciso (1960)

A SUAVE PANTERA

1.

Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
Ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
— em silêncio e lisura —
a força do seu mal,
e a doçura, a doçura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera.

11.

Como no fundo da ostra a pérola
ela se deita veludosa,
mas anda com patas rebeldes
seu coração com uma glória.
Tem um ritmo de silêncio
a força com que ele desprega
as patas a cada momento,
numa espécie de ânsia secreta.
Violento é o sono do seu corpo,
mas sem aspereza nenhuma,
igual à queda de uma coifa
brusca e silente na verdura,
sem direção, igual à paina
mas uma paina concentrada,
mas uma paina vigorosa,
seu sono cego, cheio de asas.

               De A Suave Pantera (1962)

O SANGUE NA VEIA
25.

Escrevo; logo, sinto, logo, vivo,
e tiro-lhe ao viver a indisciplina
que o espraiaria, que o dispersaria,
e dou-lhe a minha forma comedida,
a que tem o tamanho de um amor
que eu guardo, que não gasto, não disperso;
amor que se concentra em dura pérola,
não pétala, não isto que é um excesso,
pois que pode voar; o que me fica
de tudo o que acontece e não se altera,
de tudo o que acontece e me escraviza,
e do que escravizando me liberta.
Escrevo; logo, sou quem se domina,
e quem avança numa descoberta.

               De O Sangue na Veia (1967)

XVI

                              À Mônica (aos três anos)

Um súbito silêncio enfreia a mágica
aventura de estar entre os objetos
que apenas reconhece. Ela adormece
a meus pés como um gato, um bicho quieto,
com doçura felina, suave e intensa,
recolhida em si mesma contra o frio
da noite. Ela me é, me dorme no seu sono,
desdobrada de mim, além de mim,
que a recebi sem entender, atenta
ao milagre de vida de que fui
receptáculo apenas, serva mansa,
e em tudo obediente à natureza.
Dorme a meus pés, e meu amor reinventa-se
vendo-a tão calma assim, tão sem defesa.

               De Contato (1975)

Clarice

XVIII.

Revejo seu rosto nos vários retratos:
cada um capta algo, nenhum a totalidade
do que ela foi, do que é ainda,
a cada instante outra/renovada.
Eu sei que ela tocou no escuro o Proibido
e conheceu a Paixão
com todas as suas quedas.
Quem esteve a seu lado sabe
o que é fulguração de abismo
e piscar de estrela na treva.

               De Aliança (1979)

Alguns poemas

11. 
Um dia vou ser apenas uma biografia.
Nem isso, talvez, uma inscrição
numa pedra qualquer,
no pó que o vento leva,
na memória inconstante dos que amei
de forma certa.

29. Ser poeta não é ambição minha,
diz Pessoa,
é a minha maneira de estar sozinho.
É também a maneira de esquivar-me
à ação, eu acrescento,
subjugada por forças poderosas,
enquanto o pensamento
cava fundo
no abismo.

30. A função do poema: conhecer,
A função do teorema: desafio
que leva à abstração, à conjetura.
A função da esperança: convencer
que o poema, o teorema, a ciência, a invenção,
o semáforo, a história, a explosão
de Hiroshima; Picasso e sua glória;
o decalque, a estrutura, a rachadura,
a ruptura, a eternidade, a desmemoria;
a ignorância, a pobreza, a riqueza,
a insuficiência, a morte têm sentido.

INSCRIÇÃO

Eu. E diante da vida,
com meu azul intacto,
Um esbatido de pássaros.
Alto no vento. Grato.

A sensação de ser
só, uno, um, completo.
No redondo das horas,
pleno, lúcido, cego.

O que de mim salvando
se vai a cada instante,
nesse morrer diário
e sucessivo: um canto.

TRÊS POEMAS DE OUTUBRO

1. 
Lume, teu rosto,
agudo e novo
como um descobrimento,
E tuas mãos silêncio,
como noturno fruto
pendido sobre mim.
Eu em ti,
com meus arroubos de ave,
mas sem querer partir.

2. 
Quando às vezes te assalto
com meu querer noturno,
ébrio de mãos e beijos,
não é alguém que busca
o limiar de um lábio
ou vinho, para a mesa.
Alguém de copo em mão,
no umbral da tua porta,
o infinito suposto
quer, para além do umbral
e para além da porta.

3. 
No céu inteiro penso,
amplo de vôos límpidos
e bicos musicais,
torso desnudo e azul
como o de um pombo triste,
nuvens como asas doces,
de um corpo altivo e elástico.
No espaço em que naufrago,
onde as horas não querem
portais ou tetos, penso,
quando te chamo pássaro.

MORTE

E lutarás comigo,
fresca ainda de vento,
presa às luzes do dia
pelos cabelos últimos.
Quebrantarás meus olhos,
sei.
Apagarás as mãos
para a ternura,
para o amor,
também sei.
E alçarás a distância
entre mim e quem amo,
imperdoável.
E me terás por fim.
Mas se entrega, dura.
Mais que difícil,
fria.

ELEGIA
 
Teu rosto é o íntimo da hora
mais solitária e perdida,
que surge como o afastar-se
de ramos, brando, na noite.
Não choro tua partida.

Não choro tua viagem
imprevista e sem aviso.
Mas o ter chegado tarde
para o fechar-se da flor
noturna do teu sorriso.

O não saber que paisagens
enchem teus olhos de agora,
e este intervalo na vida,
esta tua larga, triste,
definitiva demora.
Fontes:
Carlos Machado. Poesia.net – numero 272 – ano 10. www.algumapoesia.cdm.br
http://marlydeoliveira.blogspot.com/search/label/CERCO%20DA%20PRIMAVERA

Lima Barreto (Anúncios…anúncios)

Quando bati à porta do gabinete de trabalho do meu amigo, ele estava estirado num divã improvisado com tábuas, caixões e um delgado colchão, lendo um jornal. Não levantou os olhos do quotidiano, e disse-me, naturalmente:

- Entra.

Entrei e sentei-me a uma cadeira de balanço, à espera de que ele acabasse a leitura, para darmos começo a um dedo de palestra. Ele, porém, não tirava os olhos do jornal que lia, com a atenção de quem está estudando coisas transcendentes. Impaciente, tirei um cigarro da algibeira, acendi-o e pus-me a fumá-lo sofregamente. Afinal, perdendo a paciência, fiz abruptamente:

- Que diabo tu lês aí, que não me dás nenhuma atenção?

- Anúncios, meu caro; anúncios...

- É o recurso dos humoristas à cata de assuntos, ler anúncios.

- Não sou humorista e, se leio os anúncios, é para estudar a vida e a sociedade. Os anúncios são uma manifestação delas: e às vezes, tão brutalmente as manifestam que a gente fica pasmo com a brutalidade deles. Vê tu os termos deste: "Aluga-se a gente branca, casal sem filhos, ou moço do comércio, um bom quarto de frente por 60$ mensais, adiantados, na Rua D., etc., etc." Penso que nenhum miliardário falaria tão rudemente aos pretendentes a uma qualquer de suas inúmeras casas; entretanto, o modesto proprietário de um cômodo de sessenta mil-réis não tem circunlóquios.

- Que concluis daí?

- O que todos concluem. Mais vale depender dos grandes e dos poderosos do que dos pequenos que tenham, porventura, uma acidental distinção pessoal. O doutor burro é mais pedante que o doutor inteligente e ilustrado.

- Estás a fazer uma filosofia de anúncios?

- Não. Verifico nos anúncios velhos conceitos e preconceitos. Queres um outro? Ouve: "Senhora distinta, residindo em casa confortável, aceita uma menina para criar e educar com carinhos de mãe. Preço razoável.Cartas para este escritório, a Mme., etc., etc."

Que te parece este anúncio, meu caro Jarbas?

- Não lhe enxergo nada de notável.

- Pois possui.

- Não vejo em quê.

- Nisto: essa senhora distinta quer criar e educar com carinhos de mãe, uma menina; mas pede paga, preço razoável - lá está. É como se ela cobrasse os carinhos que distribuísse aos filhos e filhas. Percebeste?

- Percebo.

- Outra coisa que me surpreende, na leitura da seção de anúncios dos jornais, é a quantidade de cartomantes, feiticeiros, adivinhos, charlatães de toda a sorte que proclamam, sem nenhuma cerimônia, sem incômodos com a polícia, as suas virtudes sobre-humanas, os seus poderes ocultos, a sua capacidade milagrosa. Neste jornal, hoje, há mais de dez neste sentido. Vou ler este, que é o maior e o mais pitoresco. Escuta: "Cartomante - Dona Maria Sabida, consagrada pelo povo como a mais perita e a última palavra da cartomancia, e a última palavra em ciências ocultas; às excelentíssimas famílias do interior e fora da cidade, consultas por carta, sem a presença das pessoas, única neste gênero - máxima seriedade e rigoroso sigilo: residência à rua Visconde de xxx, perto das barcas, em Niterói, e caixa postal número x, Rio de Janeiro. Nota: - Maria Sabida é a cartomante mais popular em todo o Brasil". Não há dúvida alguma que essa gente tem clientela; mas o que julgo inadmissível é que se permita que "cavadoras" e "cavadores" venham a público, pela imprensa, aumentar o número de papalvos que acreditam neles. É tolerância demais.

- Mas, Raimundo, donde te veio essa mania de ler anúncios e fazer considerações sobre eles?

- Eu te conto, com algum vagar.

- Pois conta lá!

Eu me dava, há mais de um decênio, com um rapaz, cuja família paterna conheci. - Um belo dia, ele me apareceu casado. Não julguei a coisa acertada, porque, ainda muito moço, estouvado de natureza e desregrado de temperamento, um casamento prematuro desses seria fatalmente um desastre. Não me enganei. Ele era gastador e ela não lhe ficava atrás. Os vencimentos do seu pequeno emprego não davam para os caprichos de ambos, de forma que a desarmonia surgiu logo entre eles. Vieram filhos, moléstias, e as condições pecuniárias do ménage foram ficando atrozes e mais atrozes as relações entre os cônjuges. O marido, muito orgulhoso, não queria aceitar os socorros dos sogros. Não por estes, que eram bons e suasórios; mas pela fatuidade dos outros parentes da mulher, que não cessavam de lançar na cara desta os favores que recebia dos pais e decuplicar os defeitos do seu marido. Freqüentemente brigavam, e todos nós, amigos do marido, que éramos também envolvidos no desprezo liliputiano dos parentes da mulher, intervínhamos e conseguíamos apaziguar as coisas por algum tempo. Mas a tempestade voltava, e era um eterno recomeçar. Por vezes, desanimávamos; mas não nos era possível deixá-los entregues a eles mesmos, pois ambos pareciam ter pouco juízo e não saber afrontar dificuldades materiais com resignação.

Um belo dia, isto foi há bem quatro anos, depois de uma disputa infernal, a mulher deixa o lar conjugal e procura hospedagem na casa de uma pessoa amiga, nos subúrbios. Todos nós, os amigos do marido, sabíamos disso; mas fazíamos constar que ela estava fora com os filhos. Em determinada manhã, aqui mesmo, recebo uma carta com letra de mulher. Não estava habituado a semelhantes visitas e abri a carta com medo. Que seria? Fiz uma porção de conjecturas; e, embora com os olhos turvos, consegui ler o bilhete. Nele, a mulher do meu amigo pedia-me que a fosse ver, à rua tal, número tanto, estação xxx, para se aconselhar comigo. Fui de coração leve, porque a minha intenção era perfeitamente honesta. Em lá chegando, ela me contou toda a sua desdita, passou dez descomposturas no marido e disse-me que não queria saber mais dele, sendo a sua tenção ir para o interior trabalhar. Perguntei-lhe com o que contava. Na sua ingenuidade de menina pobre, criada com fumaças de riqueza, ela me mostrou um anúncio.

- Então, é daí?

- É daí, sim.

- Que dizia o anúncio?

- Que, em Rio Claro ou São Carlos, não sei, numa localidade do interior de São Paulo, precisavam-se moças para trabalhar em costuras, pagando-se bem. Ela me perguntou se devia responder, oferecendo-se. Disse-lhe que não e expliquei-lhe a razão. Tão ingênua era ela, que ainda não tinha atinado com a malandragem do anunciante... Despedi-me convencido de que seguiria o meu conselho leal; mas, estava tão fascinada e amargurada, que não me atendeu. Respondeu.

- Como soubeste?

- Por ela mesma. Ela me mandou chamar novamente e mostrou-me a resposta do meliante. Era uma cartinha melosa, com pretensões de amorosa, em que ele, o desconhecido correspondente, insinuava que coisa melhor do que costuras ela iria encontrar em Rio Claro ou São Carlos, junto dele. Pedia-lhe o retrato e, logo que fosse recebido, se agradasse, viria buscá-la. Era rico, podia fazer.

- Que disseste?

- O que devia dizer e já tinha dito, pois já previa que o tal anúncio fosse uma cilada, e cilada das mais completas. Que dizes agora do meu pendor pelas leituras de anúncios?

- Tem o que se aprender.

- É isto, meu caro: há anúncios e... anúncios...

Efigênia Coutinho (Flor do Pecado)

Nesta dança ardente em chamas alma desperta
E serpenteia todo o meu corpo em sedução,
Como num jogo, incendeia a pele em descoberta
Propenso a exalar o incenso da louca paixão...

O ardor em mim instalado vira um braseiro
De rubro sentir, que toda pele se inflama
E a entranha ardente, deste fogo é o picadeiro,
De onde se devora ao leito desejos,de toda trama.

E em cada beijo sedutor todo o nosso sonho,
Acalenta audaz o desejo dessa entrega total...
E na vontade de ser possuída componho,
Ao corpo a chama deste sentir seqüencial.

Agiganta-se dentro de mim o teu ser agrilhoado,
E no meu íntimo a chama ardente em sinfonia,
Exala de todo o ser o aroma da flor do pecado,
Em desejos ardentes numa eloqüente sincronia!

Fonte:
Poema enviado pela autora

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Natal n. 434)

 Uma Trova Nacional

Se queres ter a certeza
de fazer um gesto nobre,
que a sobra da tua mesa,
vá para mesa do pobre!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Uma Trova Potiguar


Peço a “Noel”, com leveza,
que ao chegar do polo norte,
bote ao menos pão na mesa
dos que nasceram sem sorte.
–MANOEL CAVALCANTE/RN–

Uma Trova Premiada


2002 - Garibaldi/RS
Tema: Natal - M/H


Meu Natal, hoje, é melhor,
pelo conforto e os bons tratos,
mas o sonho era maior,
quando eu não tinha sapatos!
–JOSÉ MESSIAS BRAZ/MG–

Uma Trova de Ademar


Para a ceia que traduz
Um grande significado,
quero que seja Jesus
meu principal convidado.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


É Natal! A casa cheia
e a família reunida
no amor de Deus faz a ceia,
dividindo o pão da vida!
–VERA MARIA BASTOS/MG–

Simplesmente Poesia

Amigo Ademar!
                         –NEMÉSIO PRATA/CE–


Vejo que és grande em bondade
para com este aprendiz;
só pode ser caridade:
pois nada de mais eu fiz!

"Grande Poeta" não sou,
oh menestrel das salinas;
mas meu coração amou
as mensagens natalinas!

Estrofe do Dia 

No Natal compre presentes
compre flores e perus,
encha a árvore de bolinhas
enfeite com muita luz;
prepare um belo jantar
e não deixe de convidar
o nosso amado Jesus.
–JOSÉ ACACI/RN–
         
 Soneto do Dia

Natal dos Meus Sonhos
                      –JOSÉ ANTONIO JACOB/MG–


Se não houver partilha de bondade
Não há Natal na vida que amenize
A dor profunda da desigualdade
Entre os irmãos de casa e de marquise.

Que a ceia repartida simbolize
O pão sagrado da fraternidade
E que consagre a paz e realize
Esse Natal de fato e de verdade.

De não ter criança pobre numa esquina
A olhar brinquedos dentro da vitrina,
Onde “Papai Noel” sorri contente...

Natal é muito mais, e mais seria,
Se a gente retribuísse o dia a dia
Que a vida nos concede de presente.
Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Graciliano Ramos (A Última Noite de Natal)

Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala,sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. 0 exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura.

Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; .os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.

Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois  ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam . e apagavam. Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a fumaça  luminosa dos repuxos.

(20 de dezembro de 1941).

Fonte:
Linhas Tortas. RJ: Editora Record, 1983.