terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 424)


Uma Trova Nacional

Natal... o bater do sino...
Invoca-me algo risonho,
o sorriso do menino
na paisagem do meu sonho.
–FERNANDO CÂNCIO/CE–

Uma Trova Potiguar

Mangedoura, os Reis Magos,
em nome da humanidade,
trazem presentes e afagos
pra saudar a divindade.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Uma Trova Premiada

2001 - Petróplis/RJ
Tema: “JESUS” - 19º Lugar.

Meus filhos, não lastimeis
se a sorte às vezes vos falha...
Lembrai: Jesus, Rei dos Reis,
nasceu em berço de palha!...
–ERCY MARIA M. DE FARIA/SP–

Uma Trova de Ademar

Que na noite de Natal
vivamos apenas isto:
um momento fraternal
e uma louvação a Cristo!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Natal... repicam os sinos...
banha-se o mundo de luz...
Há nos lábios dos meninos
o sorriso de Jesus!
–COLBERT R. COELHO/MG–

Simplesmente Poesia

“Trovadoresco” é Natal!
–RENATO ALVES/RJ–

O grande Ademar Macedo
manda um brinde especial
que leio agora bem cedo...
"Trovadoresco" é Natal"

Meu muito obrigado, amigo!
É bom saber, afinal,
que posso contar contigo
pra espantar o baixo-astral!

Estrofe do Dia

Mais um Natal se aproxima
e um desejo me consome:
poder ver Jesus de perto
e pedir a ele em meu nome
que tire um pouco dos nobres,
ponha na mesa dos pobres
para amenizar a fome.
–ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Natal Cristão.
–AMILTON MONTEIRO/SP–

Natal cristão é impróprio à comilança
e, de igual modo, à zorra e à bebedeira.
É festa dedicada a uma criança
terna e divinamente alvissareira!

É o aniversário alegre da esperança
que Deus mandou à nossa terra inteira.
É aleluia! É bem-aventurança!
Fraternidade pura e verdadeira!

Natal é dia de abraçar o irmão
de qualquer raça, cor ou devoção...
Já que nós temos sempre o mesmo Pai!

É desejar-lhe paz, saúde e amor,
em casa, no trabalho, onde for...
Enquanto a breve vida não se esvai!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

José Carlos Dutra do Carmo (Manual de Técnicas de Redação) Parte XIII


ORDENAÇÃO.

A falta de ordenação das idéias é um erro comum e indica, segundo os organizadores de vestibulares, que o candidato não tem o hábito de escrever. O texto fica sem encadeamento e, às vezes, incompreensível, partindo de uma idéia para outra sem critério, sem ligação.

ORGANIZAÇÃO.

É avaliada a capacidade do aluno de organizar os argumentos que fundamentarão a conclusão do texto.

Seu texto está bem organizado? Apresenta introdução, desenvolvimento e conclusão?

Tem frases curtas e claras, ausência de termos repetidos, seqüência dos fatos e criatividade?

ORIGINALIDADE.

Seja o mais original possível, porque a transcrição de frases implica perda de pontos preciosos quando da correção da redação.

Ser original não é criar algo novo para a literatura, é sermos nós mesmos. Escreva à sua maneira, imprima sua marca pessoal ao SEU estilo, evitando os lugares-comuns e os chavões.

Como ser original ao se fazer uma redação? É simples, ouse. Se você se limita a repetir o que todo mundo diz, como um papagaio, com medo de errar, provavelmente cairá no lugar-comum e na mediocridade. Tenha a preocupação de inovar, com coragem. Seja atrevido. A segurança virá aos poucos e com a satisfação de perceber que fez algo seu, com seu próprio padrão de qualidade.

O uso excessivo de certas figuras de linguagem ou de alguns provérbios acarreta o empobrecimento da redação. Como tudo que existe, as palavras também se desgastam. É preciso criar novas figuras para expor suas idéias. Escrever que a namorada é uma flor, ou que filho de peixe, peixinho é, não realça a redação de ninguém. Use a imaginação para não precisar desses chavões antigos e pobres.

PALAVRAS.

Use as palavras certas nos lugares certos.

Não exagere no uso de palavras do tipo: problema, coisa, negócio, principalmente, etc.

Entre duas palavras, escolha, sempre, a mais simples; entre duas palavras simples, escolha a mais curta.

Quando for revisar sua redação, corte vocábulos desnecessários, use sinônimos ou, se for o caso, mude a frase.

NO LUGAR DE___________ESCREVA
Empreender______________Fazer
Regressar ou retornar _______Voltar
Pleito__________________Eleição
Usuário_________________Passageiro
Óbito__________________Morte
Matrimônio_____________Casamento

PALAVRAS ADEQUADAS.

Use palavras que estejam em perfeita concordância com o que está escrevendo.

ERRADO
O gosto do dinheiro.
…grande sono, por causa das noites sem dormir.
Tomei banho de piscina.
A canoa quase virou e, por isso, tomei um grande choque.

CERTO
O gosto pelo dinheiro.
…muito sono, por causa das noites sem dormir.
Tomei banho na piscina. (Pode-se tomar banho de água, não de piscina).
A canoa quase virou e, por isso, tomei um grande susto. (Tomar choque é receber uma descarga elétrica. O mais correto, no caso, é tomar um susto.)

PALAVRAS CURTAS.

Prefira palavras curtas e simples. Os vocábulos longos e pomposos criam uma barreira entre leitor e autor. Fuja deles. Seja simples. Entre duas palavras, prefira a mais curta. Entre duas curtas, a mais expressiva.

Casa, residência ou domicílio? Casa, é claro!

PALAVRAS ESTRANGEIRAS.

Evite usar palavras estrangeiras. Quando empregá-las, coloque-as entre aspas.

PALAVRAS OU EXPRESSÕES GASTAS.

Evite escrever palavras ou expressões que, depois de entrarem na moda, tornam-se gastas, como:

desmistificar, contexto, sofisticado, inacreditável, principalmente, devido a, através de, em nível de, tendo em vista, etc.

...é aos dezoito anos que se começa a procurar o caminho do amanhã e encontrar as perspectivas que nos acompanharão para sempre na estrada da vida.

Não se utilize de expressões parecidas com as grifadas no texto, porque são consideradas gastas e vulgarizadas pelo uso contínuo e irão comprometer a boa qualidade do texto.

PALAVRAS REPETIDAS.

Evite as repetições de palavras. Troque-as por sinônimos. Se já usou linda, por exemplo, use bela (ou bonita), a depender da ênfase que queira dar à frase. Após ter usado professor, use educador ou docente. Para não repetir o adjetivo doente, use enfermo.

Portanto, nunca repita várias vezes a mesma palavra. Um dos erros que mais prejudica a expressão adequada de suas idéias é a insistente repetição de um mesmo vocábulo. Isso causa uma impressão desagradável a quem lê ou corrige sua redação, além de sugerir pobreza de vocabulário.

FRASE COM PALAVAS REPETIDAS
Ela estava que era uma vaidade só, exibia seus vaidosos colares, sua vaidosa fala, seu vaidoso jeito de andar.

MELHOR
Ela estava muito vaidosa aquele dia, exibia colares caros, fala pedante, andava com pompa.

Fonte:
http://www.sitenotadez.net

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Gato Felix – II – A história da Emília

Na manhã seguinte tia Nastácia apareceu dizendo que do galinheiro havia sumido um pinto. Eram doze e só encontrara onze.

— Que será? — murmurou dona Benta.

— Deve ser alguma raposa que anda rondando por aqui ou algum gato vagabundo. E que pena, sinhá! Sumiu justamente o mais bonito, um carijozinho...

Logo que os meninos souberam do caso, Pedrinho disse:

— Vamos armar uma ratoeira, mas o melhor é consultarmos o Visconde. Depois que foi embrulhado naquele folheto das Aventuras de Sherloque Holmes, ficou tão esperto que é capaz de descobrir o ladrão.

Foram falar com o Visconde, ao qual contaram, tudo. O Visconde deu uma risadinha de detetive e disse:

— Deixem o negócio por minha conta. Irei examinar o local do crime para tomar as minhas providências.

E foi. Foi ao galinheiro onde passou o dia a examinar a poeira do chão, a catar os pelinhos que havia nele, a conversar com os pais da vítima — um lindo galo carijó e uma galinha sura. Enquanto isso Emília pensou, pensou e inventou a historinha que ia contar de noite.

Quando chegou a noite e tia Nastácia acendeu o lampião e disse “É hora!”, a boneca entrou na sala, muito esticadinha para trás, toda cheia de si.

— Era uma vez... — foi dizendo.

— Espere, Emília! — advertiu Narizinho. — Não vê que o Visconde e o gato Félix ainda não vieram?

Nisto chegou o gato e sentou-se no colo de dona Benta. Depois apareceu o Visconde, que entrou para dentro da lata.

Emília começou de novo:

— Era uma vez um rei...

— Eu já sabia que vinha história de rei – interrompeu Narizinho. — Emília vive com a cabeça entupida de reis, príncipes e fadas...

A boneca não fez caso e continuou:

— Era uma vez um “rei”, um “príncipe” e uma “fada”, que moravam juntos num lindo palácio de cristal, na beira do lago mais azul de todos. Uma beleza esse palácio, todo cheio de fios de ouro, que quando dava o vento iam para lá e vinham para cá. E quando dava o sol, os cristais e os ouros brilhavam tanto que quem olhava sentia logo uma tontura e precisava agarrar-se a qualquer coisa para não cair. E o príncipe foi e disse:

— Meu pai: quero casar-me, mas as moças daqui não são bonitas, nem boas de coração. Vou procurar uma pastora bem pobrezinha, mas que tenha um coração de ouro.

— Vai, meu filho — disse o rei — mas leva contigo a fada do palácio. Sozinho, não te deixarei ir.

O príncipe chamou a fada, virou a fada numa bengalinha e virou-se a si mesmo numa formiguinha.

— Eu já sabia que vinha história de virar — disse a menina. — Sem reis e sem “viradas” Emília não passa...

— Virou uma formiguinha — prosseguiu Emília — e saiu andando por uma estrada muito comprida, com aquela bengalinha na mão. Andou, andou, andou até que encontrou uma velha.

— Você caçoou de tantos velhos que havia na história do gato Félix mais vai pelo mesmo caminho — disse tia Nastácia.

— Não me atrapalhe! A minha história só tem esta velha. Encontrou uma velha e disse:

— Velha dugudéia, diga-me, se for capaz, se há por aqui uma pastora assim, assim, e de bom coração.

— Há muitas pastoras por aqui. — respondeu a velha — Mas se têm bom coração não sei. Só experimentando.

— E como se experimenta o coração de uma pastora?

— Virando num pobre bem pobre e indo pedir-lhe esmola.

A formiguinha virou logo num pobre bem pobre e foi pedir esmola às pastoras. Chegou-se à primeira, que estava fiando na roca enquanto o seu rebanho pastava, e disse:

— Gentil pastora, uma esmolinha pelo amor de Deus! Há três anos que não como nem durmo, e se não me dás um pão, morro de fome já neste instante.

A pastora deu-lhe uma pedra, dizendo:

— Aqui tens um pão muito gostoso.

O pobre pegou a pedra, olhou, olhou, olhou e disse:

— Que todos os pães que comas sejam gostosos como este! — e foi andando o seu caminho.

Dali a pouco a pastora sentiu fome; foi comer o pão que trazia no bolso e viu que tinha virado pedra, e quebrou todos os dentes e morreu... Mais adiante o pobre encontrou outra pastora e pediu outra esmolinha. A pastora deu-lhe um osso, dizendo:

— Leva este pão, que é muito gostoso.

— Obrigado — respondeu o pobre — e que todos os pães que comas sejam gostosos como este!

E foi andando. A pastora logo depois sentiu fome e foi comer o pão que estava na cesta e viu que tinha virado osso. Essa pastora não morreu de fome, como a primeira, mas teve de passar a vida roendo ossos feito cachorro. O pobre foi andando, andando, andando, até que encontrou uma terceira pastora. A coitadinha parecia ainda mais pobre do que ele e estava chorando.

— Por que choras, ó gentil pastora? — perguntou o pobre.

— Choro porque minha madrasta, que é muito má, me bate todos os dias. Põe-me neste lugar, guardando estes porcos imundos, e não me dá comida a não ser este pão bolorento e tão azedo que até preciso tapar o nariz quando o como.

— Pois se eu pilhasse esse pão — disse o pobre — dava um pulo de alegria, porque estou morrendo de fome e só encontrei pedras e ossos neste país de pastoras.

A triste pastorinha olhou bem para ele e disse:

— Pois não morrerás de fome. Repartirei contigo o meu pão bolorento.

E partiu o pão bolorento em dois pedaços e deu o maior ao pobre. O pobre agradeceu e foi andando, e a pastorinha começou a comer o seu pedaço de pão bolorento. Tapou o nariz e deu a primeira dentada. Mas viu logo que o pão tinha virado no doce mais gostoso do mundo! Comeu, comeu quanto quis; e quanto mais comia mais sobrava. E voltou para casa pulando de contentamento e palitando os dentes. Sua madrasta percebeu a felicidade da pastorinha e disse:

— Ahn! Estou vendo que você comeu alguma coisa muito gostosa!

— Não comi nada! — respondeu a coitadinha tremendo de medo. — Só comi o pão que a senhora me deu.

A madrasta agarrou-a e cheirou-lhe a boca e ficou furiosa e disse:

— Sua boca está cheirando ao doce mais gostoso do mundo, e como me enganou, vou matá-la.

E foi buscar a faca da cozinha, que era deste tamanho!

A pastorinha, sabendo que ia morrer, pôs-se a rezar lá no fundo do coração:

— Pobre encantado, que transformaste o pão bolorento em doce, socorra-me!

Nem bem acabou de o dizer, a porta abriu-se e o pobre entrou.

— Esconde-te — disse a pastorinha — que ela vem vindo com uma faca deste tamanho.

O pobre escondeu-se atrás dum armário e logo depois a madrasta entrou com o facão. Entrou e disse à menina:

— Reze depressa, que vai morrer.

— Não me mate! — gemeu a pastorinha, tremendo como geléia. — Não me mate, porque estou inocente!

Mas a má madrasta não quis saber de nada e avançou para a coitadinha com a faca no ar. E a faca foi descendo sobre o peito da vítima e a ponta já ia encostando nas suas carnes, quando o pobre veio por trás da madrasta e agarrou-a pelo pulso.

— Miserável! — exclamou. — Quem merecia morrer eras tu, mas vou virar-te num horrendo sapo de cidade.

Nesse ponto Narizinho interrompeu-a.

— Por que sapo de cidade, Emília? Que diferença há entre sapo do mato e sapo da cidade?

A boneca explicou:

— É que nas cidades há muitos moleques que gostam de judiar dos sapos, de modo que sapo de cidade padece mais.

Narizinho voltou-se para dona Benta.

— Já reparou, vovó, como Emília está ficando inteligente? Não é mais aquela burrinha de antes, não...

Emília continuou:

— E imediatamente a madrasta virou no sapo mais feio do mundo e saiu pulando, pulando, pulando e foi para uma cidade onde havia mais de cem moleques nas ruas. Então o pobre disse à gentil pastorinha...

— Adeus, gentil pastora! Vou-me embora para longes terras.

— Que pena! — exclamou ela. — Por que não ficas morando aqui comigo? Como és pobre, trabalharei para ti e comprar-te-ei uma roupa nova e uma cartola.

— Interesseira é que ela era! — observou tia Nastácia. – Sabia que o pobre era dos tais que viram pão bolorento no doce mais gostoso do mundo. Eu se fosse o pobre desconfiava...

— Pois o pobre não desconfiou — disse Emília. — Ele não tinha maldade nenhuma no coração; em vez de desconfiar, beijou a mão da pastorinha e disse:

— Pois aceito — mas com uma condição!...

— Dize qual é — ordenou a pastora.

— É casares comigo!

A pastorinha não vacilou um só instante e aceitou a proposta. E no outro dia veio o padre e casou-a.

— Agora — disse o pobre — vamos sair os dois pelo mundo para tirar esmolas.

E saíram. E foram andando, andando, andando, até que chegaram ao palácio do rei. Bateram na porta e entraram e foram falar com Sua Majestade. O rei estava de coroa na cabeça, sentado no seu trono de ouro e marfim, muito triste porque não tinha notícias do amado filho.

— Que é que queres, senhor pobre? — perguntou o rei.

— Quero dar a Vossa Majestade uma boa notícia.

O rei arregalou os olhos, cheio de esperança, e disse:

— Pois fala, e se a notícia for mesmo boa dar-te-ei os mais ricos presentes.

Então o pobre contou que havia encontrado o príncipe e que ele já tinha casado com a moça de melhor coração do mundo inteiro.

— Bravos! — exclamou o rei. — E quando esse amado filho me aparece por cá?

— Ei-lo! — exclamou o pobre, virando-se outra vez em príncipe. — E eis minha amada esposa. — disse batendo com a bengalinha no ombro da pastora e virando-a na mais linda princesa de todas que existiram, existem e existirão.

O rei ficou alegríssimo e beijou a princesa na testa e disse para o príncipe:

— Muito bem! Só resta agora que fiques rei. Adianta-te, meu filho, e vem sentar-te neste trono, ao lado de tão formosa princesa.

Deste momento em diante o rei és tu, e ela a rainha. Já estou cansado e até enjoado de ser rei. Amém.

Assim terminou Emília a sua historinha, inventada por ela mesma, sem ajutório de ninguém, nem tirada de nenhum livro. Todos bateram palmas e dona Benta cochichou para a negra:

— Boa razão tem você de dizer que o mundo está perdido! Pois não é que essa boneca aprendeu a contar história que nem uma gente grande?

— Mas eu não gostei! — disse o gato Félix, que andava a implicar se com a boneca. — Histórias de virar são muito fáceis. Assim que aparece uma dificuldade, isto vira naquilo e pronto!

— Não acredite, Emília! — gritou Narizinho. — A história que você contou está muito boa e merece grau dez. Para uma boneca de pano, e feita aqui na roça, não podia ser melhor.

Emília, toda ganjenta com o elogio, botou a língua para o gato Félix. Nisto o relógio da sala bateu dez horas.

— Vamos dormir, criançada — disse dona Benta — e amanhã quem vai contar uma história é o Visconde.

No dia seguinte tia Nastácia veio dizer que havia desaparecido outro pinto. Dona Benta ficou muito aborrecida; viu que naquele andar lá se ia a ninhada inteira.

— E Pedrinho? — indagou. — Que é que Pedrinho diz a isto?

— Ele e o Visconde andam lidando, lidando, lá no galinheiro, mas até agora não descobriram nada.

Pedrinho estava naquele momento em conversa com o Visconde no quintal.

— Na minha opinião — dizia ele — isto é alguma raposa que vem visitar o galinheiro de noite.

— Pois eu acho que não é raposa nenhuma — afirmou o novo Sherlock Holmes. — Examinei tudo muito bem examinado, e encontrei um pêlo de animal que não é raposa nem gambá, nem ratazana.

— Que é então?

— Ainda não sei. Tenho que examinar esse pêlo ao microscópio e preciso que você me faça um microscopinho.

— Vovó tem um binóculo. Quem sabe se serve?...

— Há de servir. Vá buscá-lo. Pedrinho foi e trouxe o binóculo de dona Benta. O Sherlock pôs o pelinho em frente do binóculo e examinou-o atentamente. Depois disse:

— Acho que estou na pista do ladrão...

— Quem é?

— Não posso dizer ainda, mas é um bicho de quatro pernas da família dos felinos. Vá brincar e deixe-me só por aqui. Preciso “deduzir” e pode ser que de noite já esteja com o problema resolvido.

Pedrinho foi brincar, deixando o Visconde mergulhado em profunda meditação. Estava um dia muito lindo, de sol quente. Dona Benta sentou-se na sua cadeira de pernas serradas a fim de acabar um vestido de Narizinho e a menina ficou ao seu lado para enfiar a agulha e virar a máquina. E Emília? Emília, na varanda, balançava-se numa pequena rede especialmente armada para ela num canto. A boneca estava pensando na vida, e com idéia de virar escritora de histórias. Nisto o gato Félix, que ia passando, resolveu parar. Sentou-se sobre as patas traseiras e cravou os olhos na boneca, enquanto sua cauda ia desenhando um preguiçoso “S” no ar.

— Que tanto olha para mim? — disse de repente Emília. – Nunca me viu?

O gato fez um riso de ironia e miou:

— Tão importante assim, nunca! Parece que está mesmo convencida de que é uma grande contadeira de histórias.

Emília deu um balanço na rede e murmurou:

— A inveja matou Caim!...

O gato mordeu os lábios e replicou com ar de desprezo :

— Era só o que faltava, o célebre gato Félix ter inveja duma boneca de pano feita por uma negra velha...

— A inveja matou Caim! — repetiu a boneca. — Você está mas é danado com o grande sucesso da minha historinha.

— História mais feia e sem graça nunca vi...

— Mas todos gostaram, até Narizinho, que sabe todas as histórias dos livros.

— Gostaram de dó de você. Se não gostassem, você punha-se a chorar que não acabava mais.

— Mentiroso! Eu nunca chorei nem hei de chorar, e muito menos por causa de uma simples brincadeira. Você é um grandessíssimo mentiroso, sabe?

— Por quê?

— Porque é! Você não é americano, nem nasceu em nenhum arranha-céu, nem é parente do Gato de Botas, nem foi engolido por tubarão nenhum. Tudo isso não passa de potoca. Eu sei conhecer muito bem quando uma pessoa está mentindo ou falando a verdade...

O gato ficou furioso e quis arranhar Emília. A boneca deu um berro e chamou Narizinho.

— Que é, Emília? — indagou a menina aparecendo. – Que aconteceu que está tão danadinha?

Emília ergueu-se da rede, colérica, e apontou para o gato.

— É esse cara de coruja que está querendo me arranhar! Já se viu que desaforo?

— E por quê? Por que é que vocês brigaram?

Emília empertigou-se toda.

— Ele está morrendo de inveja da minha história e veio aqui me procurar. E como eu disse que ele não é americano, nem parente do Gato de Botas, nem foi engolido por tubarão nenhum, o burrão quis arranhar-me. Esse hipopótamo!...

O gato virou-se para Narizinho:

— Veja bem quem é que está insultando. Se eu sou hipopótamo, que é ela? Uma macaca!...

Aquilo era demais. Emília perdeu a cabeça, avançou para o gato Félix, agarrou-lhe a barba e deu tal puxão que arrancou um fio. A menina apartou os briguentos; pôs o gato para fora e deixou Emília sozinha na varanda. Emília ficou falando consigo mesma, pensando num meio de vingar-se do gato Félix. Nisto apareceu o Visconde.

— Senhor Visconde, venha ouvir a história da minha briga com o gato Félix.

O Visconde sentou-se na rede junto dela e ouviu a história inteira. Quando chegou no ponto do fio da barba que Emília havia arrancado ao focinho do gato, indagou :

— E onde está o fio? Como ando fazendo um estudo sobre pelos de animais, teria muito gosto em examinar esse.

Emília abriu uma caixinha, tirou de dentro o fio de barba e deu-o ao Visconde, dizendo:

— Leve, mas depois traga-o outra vez. Quero guardar esse fio como prova da esfrega que dei naquele cara de coruja...

O Visconde tomou o fio e foi examiná-lo com o binóculo de dona Benta.
––––––––
Continua... O Gato Felix – III – A história do Visconde

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Manoel Barros (Poemas Rupestres) Parte VI


Terceira Parte

CARNAVAL



ENUNCIADO

Agora não posso mais priscar na areia quente
que nem os lambaris que escaparam do anzol.
Não posso mais correr nas chuvas na moda que
os bezerros correm.
Nem posso mais dar saltos-mortais nos ventos.
Agora
Eu passo as minhas horas a brincar com palavras.
Brinco de carnaval.
Hoje amarrei no rosto das palavras minha máscara.
Faço o que posso.

Neste poema, aparecem os indícios da idade ou das circunstâncias em que se encontra o poeta. Não mais se sente livre para realizar o enunciado proposto no poema. Para ele somente o enunciado é possível para a vida, propriamente quanto se exige a agilidade de um infante.

Porém não deixa de ‘brincar'; mais precisamente ‘brinca' com as palavras. O “priscar dos lambaris, a corrida alegre dos bezerros na chuva e os saltos-mortais nos ventos” existiram sempre como as brincadeiras mais inocentes, apropriadas e eternas com que os infantes inventam a vida.

Ao se declarar nas ‘brincadeiras' de hoje, escolhe como objeto de suas peraltices as palavras e se proclama um ‘folião' no carnaval das palavras. Esse horizonte assumido pelo poeta indica a trajetória de sua ludicidade e inventividade da vida mediante as palavras.

Palavras e Carnaval

Palavras levadas a sério em seu extremo poder de significar tornam-se o meio e a possibilidade de interconexão capaz de puxar e constranger o poeta em seu afazer. Delas ele depende, mas delas também ele se torna um servo que se posiciona perante a vida a partir delas. Praticamente, sem as palavras ele não subsiste enquanto tal. Substitui a vida de imersão na natureza pelas relações lúdicas com as palavras. Então ele proclama:

- “Brinco de carnaval” – assim a festa se organiza e qualquer palavra pode assumir o personagem da máscara. Nesse mundo de ‘faz de conta' o processo carnavalesco procede com seriedade. As máscaras exigem seriedade e competência para não cair no grotesco. Parece uma nova relação com as palavras.

- Neste processo – e aí se insere o título do poema ENUNCIADO – aparece uma nova relação do poeta com as palavras; não mais está alucinado pela alma da palavra, por sua raiz ou por sua fonte original capaz de significar. Ao contrário neste carnaval coloca máscaras nas palavras para que elas assumam novos significados. É um outro processo. Meio pesaroso confessa:

- “Faço o que posso” – De fato, parece que a luta para se atingir o âmago das palavras exige sempre muita energia e dedicação por parte do poeta; agora ele prefere colocar máscaras...

Dessa forma é que se entende esse título: ENUNCIADO. Uma tentativa de poema que proclama as palavras que significam nos versos. Há um pesar ao admitir essa nova postura no poeta. Porém, o poema está em consonância com o título da terceira parte do livro: "CARNAVAL". No carnaval o que vale são as máscaras embora seja tudo muito efêmero.


O MURO

O menino contou que o muro da casa dele era
da altura de duas andorinhas.
(Havia um pomar do outro lado do muro.)
Mas o que intrigava mais a nossa atenção
principal
Era a altura do muro
Que seria de duas andorinhas.
Depois o garoto explicou:
Se o muro tivesse dois metros de altura
qualquer ladrão pulava
Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão
pulava.
Isso era.

O poeta brinca com as palavras em estado de infância.

A afirmação central do poema que dá suporte para todos os versos é: “O muro da casa dele era da altura de duas andorinhas.”

A maior lucidez do menino atrai as palavras mais simples para inaugurar um mundo diferente e original da criança. Os argumentos de criança são concernentes com a fantasia. O fantástico se imiscui com o real no mundo do infante. Assim a unidade de medida “uma ou duas andorinhas” é o suporte fantástico para explicar a preocupação da criança: “Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão pulava.”

O poema condiz com o conjunto dos outros poemas. Nesse poema, o poeta brinca, na pessoa do infante, como se faz no carnaval. Apesar de ser efêmero é consistente no mundo do infante, ou com ‘um muro com a medida de duas andorinhas' não seria tão fácil para qualquer ladrão pulá-lo para chegar até o pomar de seu quintal. Fantástico, mas consistente.

LÍNGUA

A seca foi braba naquele ano.
O pai falou: Lá evém uma língua de fogo
do lado da Bolívia
e vai lamber todo o pasto.
O menino assustou: Língua de fogo?
O pai explicou ao menino que se tratava
de imagem.
Língua de fogo é apenas uma imagem.
Mas, pela dúvida, o menino retirou seu
cachorro da imagem.

O poema se mostra jocoso ao brincar com a imagem e expressão “Língua de Fogo”. Também incluiu neste lúdico jogo de interpretação a ação crível e precavida do menino que retira o seu querido cão da imagem depois de saber de seu pai que a ‘língua de fogo que vinha da Bolívia iria destruir todo o pasto.'

Moral da história: sempre é bom tirar o cachorro da imagem quando o amor é muito e o conhecimento insuficiente.

Ou de como se faz um poema a partir de uma imagem ou de uma palavra.

Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Paraná em Trovas Collection - 27 - Áureo Baika (Campo Largo/PR)

Roseana Murray (A Bailarina e Outros Poemas)


O LAMBE-LAMBE

O lambe-lambe lambe o tempo
(como se o tempo fosse
uma bala, um doce)
e vai pregando seus retratos.

No canto da praça
um velho, um menino,
lado a lado
o mesmo desbotado sorriso.

Atrás do pano preto
o lambe-lambe
e seus misteriosos pensamentos:
onde foi parar a moça
que ele fotografou um dia?
A moça rasgou seu coração
como uma velha fotografia
e partiu junto com o vento.

Num canto da praça
o lambe-lambe
e sua estranha galeria.

O MÉDICO

Para o médico, o corpo
não tem segredos:
é como uma fábrica,
uma orquestra,
uma casa com os móveis
todos no lugar.

O sangue corre nas veias
como um disciplinado rio.
O pulso bate com precisão,
afiado relógio marcando a vida.

Se alguma coisa se move
erradamente,
se alguma coisa se quebra,
o médico bota o corpo de castigo,
e vai escrevendo receitas
como cartas que o corpo entendesse.

A RENDEIRA

A rendeira... seu ofício de aranha
tecendo beleza
me ajuda a tecer meus poemas.

Tem mãos de maga,
a rendeira,
tem mãos de espuma.

Não assina seu trabalho
com um nome,
mas com magia,
como um vôo de pássaro
assina o céu.

O VENDEDOR DE COCADA

Lá vai o vendedor de cocada
com seu tabuleiro,
pano branco na cabeça.

Lá vai o vendedor de cocada
vendendo um mundo de coco:
cocada branca ou queimada
pra vida ficar mais gostosa.

Lá vai o vendedor,
tabuleiro na cabeça,
adoçando a calçada.

A ARQUITETA

A arquiteta gostaria
de projetar mil casas
por dia,
aéreas, subterrâneas,
casas de vidro e de paina,
redondas, de esvoaçantes
telhados.

Em frente à prancheta
a arquiteta sonha
o justo sonho
de todo mundo ter
onde morar.

OS CATADORES DE PAPEL

Pela cidade afora,
noite ou dia,
a qualquer hora,
os catadores de papel
são triste paisagem.

Vão juntando papel e pobreza,
moram assim,
nas praças, nos vãos,
em casa feita de nada.

Tenho tanta pena
dos catadores de papel,
agora moram aqui,
no meu poema.

OS MÚSICOS

Na casa dos músicos
as paredes são sonoras,
no teto moram acordes,
e nos vãos sustenidos se escondem.

Os pensamentos dos músicos
não são como os pensamentos comuns,
moram em outras altíssimas esferas.

Para nós, os outros,
eles constroem algodoados
caminhos de sons.

Para que nossa vida
fique mais leve,
fique mais bela.

A ATRIZ

No camarim a atriz
cola uma outra alma
na sua,
um outro rosto
no seu,
e vão pro palco
assim tão grudados,
que é como um rio
navegando em outro
rio.

O palco suspenso
por um fio de magia
é a casa da atriz.

A BAILARINA

A bailarina,
como frágil lamparina,
como pequeno colar,
faz do ar sua casa,
sua estrada pontilhada
de água.

Entre uma estrela e outra
a bailarina descansa.
Ali onde os humanos
não podem ir,
só os loucos, os loucos
e os que sabem
que com um desejo
se constrói um planeta.

O PESCADOR

Os sonhos do pescador
são feitos de espuma, de sal,
de muitos milhares de peixes,
como feixes de girassol.

Na rede do pescador
pedaços de luz e de prata,
seus sonhos materializados.

Em terra firme o pescador
é habitante provisório,
anda meio de lado,
cheio de silêncios marinhos,
suas mãos de alga.

AS FEITICEIRAS

Não sei se existe ainda
o ofício de feiticeira,
isso é coisa medieval.
Naqueles tempos
elas eram lenha de fogueira
com seus ardentes pensamentos.

Queria hoje ser uma delas,
virar tudo pelo avesso,
trocar as almas e os corações.

Fazer por um segundo
deste triste planeta
um outro mundo.

OS CARTEIROS

Abrir uma carta,
o coração batendo,
é precioso ritual.
O que terá dentro?
Um convite, um aviso,
uma palavra de amor
que atravessou oceanos
para sussurrar em meu ouvido?

São como conchas as cartas,
guardam o barulho do mar,
o ar das montanhas.
Para mim os carteiros
são quase sagrados,
unicórnios ou magos
no meio dessa vida barulhenta.

O POETA

O poeta vai tirando da vida
os seus poemas
como pássaros desobedientes
e amestrados.

A palavra é o seu castelo,
sua árvore encantada,
abracadabra construindo o universo.

RECEITA CONTRA DOR DE AMOR

Chore um mar inteiro
com todos os seus barcos a vela
chore o céu e suas estrelas
os seus mistérios o seu silêncio
chore um equilibrista caminhando
sobre a face de um poema
chore o sol e a lua
a chuva e o vento

para que uma nova semente
entre pela janela a dentro

RECEITA DE ACORDAR PALAVRAS

Palavras são como estrelas
facas ou flores
elas têm raízes pétalas espinhos
são lisas ásperas leves ou densas
para acordá-las basta um sopro
em sua alma
e como pássaros
vão encontrar seu caminho

RECEITA DE INVENTAR PRESENTES

Colher braçadas de flores
bambus folhas e ventos
e as sete cores do arco-íris
quando pousam no horizonte
juntar tudo por um instante
num caldeirão de magia
e então inventar um pássaro louco
um novo passo de dança
uma caixa de poesia

RECEITA DE PÃO

É coisa muito antiga
o ofício do pão
primeiro misture o fermento
com água morna e açúcar
e deixe crescer ao sol

depois numa vasilha
derrame a farinha e o sal
óleo de girassol manjericão

adicionado o fermento
vá dando o ponto com calma
água morna e farinha

mas o pão tem seus mistérios
na sua feitura há que entrar
um pouco da alma do que é etéreo

então estique a massa
enrole numa trança
e deixe que descanse
que o tempo faça a sua dança

asse em forno forte
até que o perfume do pão
se espalhe pela casa e pela vida

RECEITA DE TOCAR O OUTRO

Porteira aberta
para o universo cada
um é único
lugar sagrado
onde árvores antigas
e estrelas cantam

tocar o outro
em sua alma
como se fosse
uma flauta

RECEITA DE OLHAR O FOGO

Pula o fogo e dança
nos olhos
uma dança muito antiga

de rios caçadas cavernas
estrelas entrelaçadas

no fogo os pensamentos
se derramam
e os sonhos como poeira mágica

RECEITA DE ESPANTAR A TRISTEZA

Faça uma careta
e mande a tristeza
pra longe pro outro lado
do mar ou da lua

vá para o meio da rua
e plante bananeira
faça alguma besteira

depois estique os braços
apanhe a primeira estrela
e procure o melhor amigo
para um longo e apertado abraço

RECEITA DE OLHAR

Nas primeiras horas da manhã
desamarre o olhar
deixe que se derrame
sobre todas as coisas belas
o mundo é sempre novo
e a terra dança e acorda
em acordes de sol

faça do seu olhar imensa caravela

AMOR NÃO É SÓ

Amor não é só de homem
por uma mulher
ou de mulher por um homem
amor é amor por tudo
que é justo e livre
amor é horror a tudo
que o ser inventa
para humilhar outro ser

AMOR À PRIMEIRA VISTA

Amor à primeira vista
é alma trocando de corpo
feito pássaro de ninho
é sede repentina
sede da água do outro

PEQUENOS LUXOS

Amor tem seus pequenos luxos
um pôr-de-sol caprichado
luar derramando água
uma flor recém-colhida
um verso equilibrado
na ponta dos dedos
amor tem seus pequenos luxos
de planta nascendo ontem
pedindo terra adubada

FOLHA SECA

Amor não correspondido
vai virando tudo em deserto
vai calando a voz do mundo
vai tirando da água a sua nascente
amor não correspondido
vai tornando em folha seca
tudo o que toca com os dedos
até perder seus espinhos
e se deixar morrer nos vãos
de uma tarde qualquer

FRUTA NO PONTO

Às vezes dá vontade
de agarrar a vida
com uma duas
dez mãos
e levar à boca
e trincar nos dentes
como uma fruta
no ponto

BANHO-MARIA

Amor não deve ser mantido
em banho-maria
pois seus poderes
de luz e encantamento
se esvaem neste lento
cozinhar
amor pede fogo alto
grossas chamas
sol intenso
e muita pimenta
amor pede tempero forte
pede tudo em exagero
mel de se lambuzar

O PRIMEIRO BEIJO

O primeiro beijo
inaugura a casa
inaugura o corpo
talha a primeira pedra
do caminho

pode e deve ser doce
abelha inventando mel
pode e deve ser louco
doce vôo louco
no corpo do outro

RECADO

Ao vento da noite
sussurro sete segredos:
tudo que tenho por fora
tudo que tenho por dentro
que o vento vá levando
minha sede de amor
pule cercas pule sebes
abra porteiras no mar
derramando meu recado
nos quatro cantos do ar

Fonte:
Murray, Roseana. A bailarina e outros poemas. 1. ed. - São Paulo : FTD, 2001. (Coleção literatura em minha casa ; v. 1)

Roseana Murray (1950)


Roseana Murray (Rio de Janeiro, 27 de junho de 1950) é uma poetisa e escritora de obras infanto-juvenis brasileira.

Quando criança, Roseana gostava muito de ler, "tudo o que tinha disponível", segundo a própria autora. Gostava muito do Sítio do Pica-Pau Amarelo, Tesouro da Juventude, Contos de Fadas, entre outros.

Roseana é formada em Lingua e Literatura Francesa, pela Aliança Francesa, Universidade de Nancy. Mora em Saquarema, cidade de que é cidadã honorária. É casada com Juan Arias, jornalista e escritor espanhol, correspondente, no Brasil, do jornal El País, de Madrid. Tem dois filhos: André e Gustavo.

Começou a escrever poesia para crianças em 1980, com o livro Fardo de Carinho, influência direta de Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles.

A autora publicou mais de cinqüenta livros , entre eles Classificados Poéticos (Ed. Miguilim, 1984), Falando de Pássaros e Gatos (Edições Paulus, 1987) e Receitas de Olhar (Ed. F.T.D, 1992).

Recebeu por três vezes o Prêmio de Melhor de Poesia pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, o Prêmio APCA, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor livro infantil e faz parte da Lista de Honra do I.B.B.Y

Trabalha em Saquarema com o Projeto Uma Onda de Leitura junto com a Secretaria de Educação. Roseana, procura em suas obras mostrar maneiras de viver melhor, ela expressa seu dia a dia.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Roseana_Murray

Antonio Barbosa Bacelar (Poemas Avulsos)


À MORTE DE UMA DAMA

Sombras de um claro sol que me abrasava,
Cinzas de um doce fogo aonde ardia,
Ruínas de uma boca em que vivia,
Cadáver de uma vida que adorava,

Quem te trocou, senhora? O tempo estava
A teus pés, em teu rosto o sol nascia,
De tua vista se compunha o dia,
De tua ausência a noite se formava.

Pois como pôde o tempo pressuroso,
O dia breve, a noite fugitiva
Mudar um corpo e rosto tão fermoso?

Mas tanto sol e luz, tão excessiva
Ardendo de contínuo, era forçoso
Trocar-se em cinza morta a flama viva.

A UMAS SAUDADES

Saudades de meu bem, que noite e dia
A alma atormentais, se é vosso intento
Acabardes-me a vida com tormento,
Mais lisonja será que tirania.

Mas, quando me matar vossa porfia,
De morrer tenho tal contentamento,
Que em me matando vosso sentimento,
Me há-de ressuscitar minha alegria.

Porém matai-me embora, que pretendo
Satisfazer com mortes repetidas
O que à beleza sua estou devendo.

Vidas me dai para tirar-me vidas,
Que ao grande gosto com que as for perdendo
Serão todas as mortes bem devidas.

A UMA AUSÊNCIA

Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta;
O mal, que me consome, me sustenta;
O bem, que me entretém, me dá cuidado.

Ando sem me mover, falo calado;
O que mais perto vejo, se me ausenta,
E o que estou sem ver, mais me atormenta;
Alegro-me de ver-me atormentado.

Choro no mesmo ponto em que me rio;
No mor risco me anima á confiança;
Do que menos se espera estou mais certo.

Mas se de confiado desconfio,
É porque, entre os receios da mudança,
Ando perdido em mim como em deserto.

À VARIEDADE DO MUNDO

Este nasce, outro morre, acolá soa
Um ribeiro que corre, aqui suave,
Um rouxinol se queixa brando e grave,
Um leão c'o rugido o monte atroa.

Aqui corre uma fera, acolá voa
C'o grãozinho na boca ao ninho üa ave,
Um demba o edifício, outro ergue a trave,
Um caça, outro pesca, outro enferoa.

Um nas armas se alista, outro as pendura
An soberbo Ministro aquele adora,
Outro segue do Paço a sombra amada,

Este muda de amor, aquele atura.
Do bem, de que um se alegra, o outro chora...
Oh mundo, oh sombra, oh zombaria, oh nada!

A UMA DAMA

(Romance)

Por fazer lisonja às flores
De flores touca o cabelo
Nise, a gala do donaire,
Nise, a glória dos desejos.
Invejosas as estrelas
Murmuraram tanto emprego,
Se as não contentara Nise
Com tê-las nos olhos negros.
De garbo, postura e talhe
Vai luzida em tanto extremo,
Que nas vidas que cativa
Tem muita parte o asseio.
Quanto pisa e quanto fala,
Vai brotando e florescendo
Uma rosa em cada passo,
Um jasmim em cada alento.
Caçadora ufana e dextra,
Quem viu caçadora Vénus?
Pede as armas emprestadas
Dizem que a um menino cego.
Galharda o arco exercita,
E, com movimento dextro,
De quantas setas lhe fia,
Nenhuma lhe leva o vento.
Guarde-se todo o alvedrio,
Que não dão as frechas erro,
Pois para acertar as vidas
Tomam nos olhos preceitos.
Despejada comunica
Ao monte seus raios belos,
Que nem sempre o majestoso
Há-de afectar o encoberto.
E, com deixar-se admirar,
Nada lhe perde o respeito;
Mas tais amas traz consigo...
Pastores, diga-o Fileno.

Fonte:
alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/bacelar.htm

António Barbosa Bacelar (1610-1663)

Nasceu em Lisboa, Portugal de uma família remediada, frequentando o Colégio de Santo Antão e indo depois estudar Direito para Coimbra.

Tendo-se dedicado à magistratura, foi corregedor em Castelo Branco, provedor em Évora, desembargador no Porto e magistrado na Casa da Suplicação em Lisboa.

A par do trabalho no âmbito da justiça, dedicou-se à escrita, nomeadamente à historiografia e à poesia.

Dentro da historiografia, escreveu a Relação Diária do Sítio e Tomada da Forte Praça do Recife, publicada em Lisboa em 1654, a Relação da Vitória que Alcançaram as Armas do Muito Alto e Poderoso Rei D. Afonso VI, em 14 de Janeiro de 1609, Uma e Outra Fortuna do Marquês de Montalvor, D. João de Mascarenhas e a Vida de D. Francisco de Almeida.

A sua obra poética está essencialmente publicada na Fénix Renascida.

Fonte:
Projeto Vercial

Ialmar Pio Schneider (Soneto de um Solitário)


Por que a solidão me faz tremer
no escuro desta noite, sem ninguém?
Oh! quem sabe, eu nasci para sofrer
e tu que lês meus cânticos, também !...

Minha mágoa não posso descrever;
é uma vontade de possuir alguém
e ao mesmo tempo a ela pertencer
com toda força que minhalma tem.

Eu sei que a madrugada chegará
e o galo vai cantar; é o mensageiro
a prenunciar o dia que amanhece.

Maior tristeza que a minha não há:
mas se fores feliz, sem desespero,
não guardes estes versos e me esquece

Fontes:
Soneto enviado pelo autor
Imagem = www.suzetterizzo.com.br

Guerra Junqueiro: Contos para a Infância (Doçura e Bondade)


Há entre vós, meus filhos, índoles violentas, que não sabem dominar-se, e que se deixam arrastar pelas primeiras impressões. É um grande defeito, e urge emendá-lo: conduz a desavenças e à prática de ações, cujo arrependimento chega tarde. Citar-vos-ei dois casos, de que fui testemunha.

Um rapaz, sacudido violentamente na rua por um homem que vinha diante dele, volta-se e dá-lhe uma bofetada.

– Oh! senhor! exclamou o outro, mal sabe o remorso que vai ter! bateu num cego!

Um homem ainda novo montado num burro, atravessava uma aldeia, e uns camponeses grosseiros começaram a apupá-lo e a bater no burro, para o fazer correr. O homem apeou-se, foi direito a eles, e mostrando-lhes a sua perna aleijada, disse-lhes:

– Se soubésseis que eu era coxo, não teríeis sido tão covardes.

Os camponeses, envergonhados, coraram, afastando-se sem pronunciar uma palavra.

Que vos parece estas duas lições? Estou convencido que aproveitaram a quem as recebeu.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Manoel de Barros (Poemas Rupestres) Parte V


O QUE O POETA TIRA DAS PALAVRAS:

- Palavra sem alamares = sem fios dourados ou enfeites. Adereço para vestes cerimoniais ou de cargos importantes. A finalidade desse enfeite é produzir solenidade, no caso à palavra.

- sem chatilenas – originariamente “châtelaines” eram correntes metálicas usadas à cintura, com função decorativa e utilitária, na qual se dependuravam chaves e instrumentos de costura; também são ademanes de origem árabe para enrolar e conferir envolturas, meandros e curvaturas como um meneio de dança árabe, sempre enfeitada por véus de seda e com muita insinuação sensual.

- sem suspensórios = alças que sustentam a calça ou veste da palavra. Usados normalmente por pessoas de distinção quando querem embutir no traje a solenidade da pessoa ou do cargo; também suspensórios, antigamente, eram usados para sustentar as calças curtas dos meninos. Porém, os suspensórios não deixam de ser adereços que se acrescentam. O poeta não quer palavras que sejam sustentadas por algo, ele as quer íntegras, puras, sem o auxílio de algo para indicar a sua força de significar. Quer delas um sentido que brote de seu interior.

- sem talabartes – ou talim – também, um adereço de farda ou de roupagem solene. O poeta não quer palavras enguirlandadas por qualquer enfeite, mesmo que estes possam indicar a força militar de uma palavra, ou poder de pólvora, de fogo como as fardas podem indicar.

- sem paramentos = paramentos tomados como vestes usadas em cerimoniais religiosos estão em contraposição aos talabartes das fardas. Nem o poder do exército ou o poder religioso, nem a raiz de um ou de outro valem para o sentido da palavra; se não valem os enfeites externos, também o poeta rejeita que se agregue às palavras poderes mais profundos como o foram o das armas ou o numinoso.

- sem diademas – coroas ou símbolos de vitórias, de conquistas ou de belezas celebradas. Nada disso vale ao poeta, pois uma palavra caracterizada assim já expôs ao público o seu potencial de significar. Somente poderá mostrar ou ostentar aquele diadema que significa tal coisa, denotativamente. Ao passo que o poeta não quer nada que se finalizou ou foi conquistado, ele quer atingir a raiz funda e obscura, não pesquisada da palavra. Diadema de conquista de algo não lhe serve em relação a qualquer palavra. Uma palavra que se lhe apresentar com um diadema, será afastada, pois mostra um sentido adquirido.

- sem ademanes – também não vai agradar ao poeta uma palavra rica de meneios ou de várias máscaras que lhe configuram sentidos provisórios, que não lhe mostram consistência da fonte, da raiz. Nada de disfarce ou de tentativas de oferta, ou de tentativas insinuantes vai apetecer ao poeta. Uma palavra cheia de volteios ou meneios já se configurou em seu sentido, o poeta nada poderá fazer por ela.

- sem colarinho – como a história das vestes se mostrou farta no uso desse adereço... Mas colarinho em palavra indica muito um cargo provisório, um poder que não é original, enraizado, mas funcional, que em geral impressiona pela destreza do poder que maneja. Para o poeta esse poder não o seduz. Foge do poder efêmero de tudo, ele quer inaugurar algo perante o qual o dinheiro não pode nada, nem comprar, nem mostrar poder, nem manipular.

QUER A PALAVRA HUMILDE

- limpa de soberba – rude e capaz de se deixar inaugurar para um sentido inesperado, que indique uma novidade de vida ou para a vida. Soberba não combina com criatividade, com relação de beleza, de generosidade ou de oferta e, sobretudo de simplicidade. Soberba combina com poder, poeta vive de humildade, de entrega e de dedicação sem retorno. Soberba combina com público, poeta combina com solidão, com consistência da descoberta, com o escondido...

- limpa de melenas – sem cabelos longos de enfeite. Os cabelos longos conferem solenidade, o poeta prefere a palavra empobrecida até de uma crina que pode indicar a solenidade de um cavalo de raça ou a palavra ‘careca', de cabelos curtos como acontece com o prisioneiros, com os deserdados da sociedade ou até doentes. Nada é agradável ao poeta que na palavra traduza ordem, elegância, estirpe engalanada. Quer a palavra em estado de indigência, de pobreza e obscuridade.

COMO O POETA SE VÊ EM RELAÇÃO DE LUTA COM AS PALAVRAS – O HORIZONTE DE SEU DESEJO

- ‘Eu queria ficar mais porcaria com as palavras' . Não somente as palavras devem estar empobrecidas em relação a qualquer enfeite, mas o próprio poeta julga necessário se “emporcalhar” com o lixo da palavra empobrecida. ‘Porcaria', é a expressão do poeta; vem de porco e porco gosta da lama, de dejeto, sente-se bem no lamaçal tão evitado pelas pessoas. Ao passo que o poeta deseja um contato íntimo com a deterioração do sentido das palavras, tornar-se escória com a palavra, logicamente para fazê-la significar novamente, inaugurar algo jamais antevisto. Na ‘porcaria' o poeta perde-se com a palavra para todos os sentidos, dissolve-se em um magma rico de potencialidades que a escória ou o lamaçal lhe oferece, aí, nesta morte para o já adquirido, para o significado conhecido, no mergulho junto com a palavra a seu universo profundo, luta para que a palavra agregue outros valores novos. Do lixo, do lamaçal, da deterioração surge o belo, a leveza e o novo significado grudado na palavra que, por sua vez inaugura o poeta.

- ‘Eu não queria colher nenhum pendão com elas' – Somente ele quer, mesmo quando brotou o novo sentido para as palavras, permanecer na humildade e no escondimento. Não tem propensão para deixar-se levar pela sedução da glória; prefere a sedução do lamaçal que é mais criativo, apesar de doloroso e muito trabalhoso. Prefere o trabalho escondido ao passageiro e saboroso gozo da glória. Não quer que as palavras se iludam com os ‘pendões' da glória. Prefere ser oferta, gratuita e jubilosa.

- Queria ser apenas relativo de águas

Queria ser admirado pelos pássaros.' Por sua vez o poeta que inaugura as palavras também se inaugura porque percorreu a trajetória de mergulhar com as palavras para as fontes ou raízes potenciais de onde a novidade pode brotar. Ao fim do poema proclama sonoramente o resultado de seu estado inaugural e tem que afirmar que ele será poeta se voltar ao seu ‘terreno', ao seu manancial inesgotável: sua relação primeva com as águas. Segundo o livro do Gênesis, antes de tudo as águas eram o elemento primordial. Depois Deus foi mostrando a beleza da criação na distinção de tantas novidades inaugurais, deixando para Adão a tarefa de nomeá-las. O poeta quer apenas acessar suas águas primordiais e as palavras em estado de abandono ou de deterioração auxiliam-no a ir para esse manancial primeiro.

Elege, no outro verso, os pássaros como receptáculos ou capazes de maravilharem-se com as suas inaugurações. Talvez porque o percurso de um pássaro nunca será o mesmo ou ainda por sua natural humildade em suas grandezas e em sua natural, deslumbrante beleza de plumas e pelas notas de seus trinados. A humildade dos pássaros é proclamar a novidade que os constitui sempre. Pássaros não são afeitos à soberba ou a glórias efêmeras. São o que são, mesmo gloriosos e grandiosos, por humildade.

- ‘Eu queria sempre a palavra no áspero dela' – Devolve a palavra ao seu natural depois de ter percorrido o trajeto do poema resvalando pela aspereza de todas as palavras que compuseram a estação do percurso. A declaração do poeta ao final chancela o percurso como inaugural; mediante a palavra áspero ele percorreu sua trajetória iniciando-a com a supressão do ‘e' e encurtando-lhe uma sílaba. Esse procedimento foi obtido pela uso popular da palavra áspero que para os mais simples dos simples, em geral, seguindo a regra, tornam-se palavras simplificadas; assim ‘córrego' torna-se ‘corgo', ‘pássaro-preto' torna-se ‘passu-preto' e assim por diante.

Dessa forma o poema se torna consistente em sua inauguração dupla, do poema e do poeta. Ambas descobertas revelam as novidades originárias das latências potenciais de cada um, do poeta e da palavra. Unidos, impulsionados pelo Eros vital da palavra e da entrega do poeta, coroou-se o percurso em que o poema construiu-se no desvelamento do ser e da beleza contida.

O ser se explicitou pelas suas potencialidades e o poema se explicitará em tantas outras leituras quanto os leitores se deixarem conduzir pela trajetória que ele oferece. Em outras palavras, quem se permitir ler o poema deixando-se levar pelas afirmações e novidades dos versos, ao final estará inaugurando uma leitura nova de si mesmo. Também se pode afirmar que este poema cria o seu leitor na pessoa que o permitir, inaugura nova dimensão do ser, do ser do leitor. Conforme a inauguração do belo, original, firmou-se como obra de arte capaz de criar outros horizontes a partir da entrega ao percurso dos leitores. Essa é a força ou potencial intrínseco do belo acessado pelo poeta e pela palavra ao mais íntimo do Eros vital, capaz de ser também portador de novas inaugurações.

Em outra linguagem, o poema é portador da propriedade de mostrar a novidade do ser porque encontrou a fonte do desvelamento. O leitor que entender o poema acessará ao mais íntimo do seu ser e se compreenderá de uma forma que ainda não antevira a respeito de si mesmo. Desvela-se como ser capaz de aprofundamento.

12.

O LÁPIS

É por demais de grande a natureza de Deus.
Eu queria fazer para mim uma naturezinha
particular.
Tão pequena que coubesse na ponta do meu
lápis.
Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do
meu quintal.
No quintal ia nascer um pé de tamarino apenas
para uso dos passarinhos.
E que as manhãs elaborassem outras aves para
compor o azul do céu.
E se não fosse pedir demais eu queria que no
fundo corresse um rio.
Na verdade na verdade a coisa mais importante
que eu desejava era o rio.
No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo
dia jogar cangapé nas águas correntes.
Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha
particular:
Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.

De forma semelhante ao poema anterior, o poeta inaugura este poema a partir do ínfimo, da ponta do lápis.

O LÁPIS EM SI E SUA NATUREZA

O ponto de partida é paradoxo entre o infinito e o ínfimo; entre o ponto de apoio ou consistência do ser: a natureza que o especifica e lhe determina o ser.

Define-se o Lápis, ou melhor, a ponta do Lápis como coisa minúscula. Porém, acontece uma circunstância particular, trata-se da “ponta do meu lápis”. Recentemente o poeta declarou em entrevista para o Jornal Correio do Estado que sempre trabalha, escreve a lápis, depois passa à máquina e jamais usa o computador em seu trabalho de compor poemas. Essa circunstância torna o lápis um ponto relacional com seu trabalho de produzir poemas. Da ponta do lápis é que saem as palavras, os versos e os poemas; de uma forma ou de outra a relação criadora do poeta integra o lápis como participante que determina o registro do pensado. Neste cenário, o lápis concede ao poeta a segurança necessária para o registro bem como lhe oferece a oportunidade de descartar qualquer parte do registrado. Sem o lápis o poeta estaria cego ou impossibilitado de prosseguir após qualquer ponto de chegada. Percebe-se que o lápis é muito importante nesse processo de criar e trabalhar as palavras. O lápis consigna visibilidade ao poema e não angustia o poeta. Mas sendo determinante, está com toda a sua natureza à disposição do poeta para prosseguir. É um pressuposto mesmo hoje, quase indispensável.

A natureza do lápis é a simplicidade de auxiliar a qualquer um registrar algo que julgou necessário. Sabe registrar e tornar visível. Para o poeta, ele insinua que a ponta do lápis resume tudo o que ele é; mas é bom acrescentar que o comprimento do lápis pode ou não auxiliar. No mínimo dará consistência ao processo de escrever, de registrar. Registra o nome, o verso, o poema e este será em definitivo. O que não se registrou teve uma existência efêmera e perdeu a capacidade de ser visto, lido, lembrado, decorado ou recitado até. Essa á a natureza funcional do lápis, não a material que é grafite e madeira.

O LÁPIS COMO PONTO PARADOXAL PARA O POETA

Perante ‘a natureza por demais de grande de Deus', o poeta declara seu desejo, ‘uma naturezinha particular' para ele. Sem dúvida que perante a natureza infinita de Deus, qualquer ‘naturezinha' criativa, participante do poder criador de Deus, seria muito poder, muita coisa para um poeta. O lápis é o referencial criador que ele possui diante de si o tempo todo; outorga-lhe muito poder, pois viu sempre seus poemas registrados a lápis ganharem vida e consistência. Perante esse fato muito concreto, parece que o poeta sente uma ponta de inveja do poder registrador do lápis e pede a Deus uma ‘naturezinha particular' para ele poder criar e inventar à vontade.

O poeta anseia ser criador e participar do poder infinito de Deus – poder deixar algo muito significativo e duradouro, como o lápis deixa. Um poder para criar, mas que seja pequeno, mas cuja obra perdure e seja visível, mesmo pequena e de pouca aparência.

COMO SERIA SUA “NATUREZINHA PARTICULAR”

Inicia uma série de situações, lugares e recordações da infância que ele presume sejam resultados ou possibilidades de se registrar ou inaugurar um tempo ou situação muito definitiva. Sempre o poeta julgou a infância o lugar privilegiado para se ‘brincar de Deus', para inverter a ordem das coisas e tornar o mundo independente da lógica que a racionalidade lhe imprimiu.

- ‘ Fosse ela (a naturezinha) só do tamanho do meu quintal... e ia nascer um pé de tamarino apenas para uso dos passarinhos.' O quintal para muitos poetas é o arquétipo das travessuras inocentes e das percepções extra-temporais; aí inaugura-se um mundo independente do tempo – e de sua inexorabilidade – e da lógica racional bem como de outras necessidades, por exemplo de trabalhar. Lá tudo é total e preenchente, não há espaços ociosos para elucubrações e nem lugar para fixação das coisas em suas especificidade. Lá no arquétipo do quintal tudo pode mudar e se transformar em sua natureza e nas relações; tudo depende da criatividade e da fantasia imaginante. O mundo lá, fantástico, não é irreal, mera fantasia. O sentido e o significado da vida, das descobertas mudam as pessoas e suas vidas.

Nesse quintal, o pé de tamarino não segue a ordem e finalidade que o homem lhe deu, somente vai ser para o deleite dos pássaros que se irmanam às pessoas para inaugurar a vida a todo instante como seus vôos inauguram rotas, continuamente. Passarinhos tornam-se mestres na invenção da vida, assim esse quintal seria muito poderoso e fértil.

- ‘E que as manhãs elaborassem outras aves para compor o azul do céu' - Dessa forma o universo se interliga na criação. Mesmo as aves deveriam tornar-se outras, inauguradas pelas manhãs. Nesse quintal arquetípico o céu seria sempre azul, prenunciando o tempo bom e afugentando toda e qualquer nuvem, tempestade ou raio.

- ‘E se não fosse pedir demais eu queria que no fundo corresse um rio'- O rio completa a extensão da vida. Somente o rio já é um arquétipo fortíssimo da vida que se renova a todo instante. Até para os filósofos gregos, ultra-racionais, o rio se tornou o símbolo da mutação constante. Nele a vida se renova e por sua presença a natureza ganha segurança da fertilidade da vida de que é portadora. O rio é também o caminho, o percurso que apenas percorrido se desfaz na expectativa de alguém para inaugurar outro percurso. O rio não registra percursos particulares, possibilita-os. Ele é a própria possibilidade da transformação constante da vida. O rio também aglomera o universo. Logo o poeta declara que ‘ a nossa turma iria todo dia jogar cangapé nas águas...'

- ‘No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo dia jogar cangapé nas águas correntes' – impossível a vida lúdica sem a turma que sabe proclamar a vida sem tempo nem utilidade, a não ser para brincar e reinventar a vida. Esse jogo, o do cangapé condiz com tudo o que o poeta afirmou, pois trata-se de um jogo em cujo centro está sempre a surpresa de onde brotará um garoto do fundo rio para derriçar uma pernada certeira para ver se acerta o colega. Nesse jogo aparecem as características necessárias para uma reinvenção contínua do traçado do viver. Vive-se intensamente para fugir e para surpreender; todas as habilidades e aptidões são colocadas à prova; valores como a camaradagem, astúcia, esperteza, medo de levar uma pezada no lombo, tudo aguça a atenção e exige esperteza, leveza, e agradabilidade também, pois não se passa de uma brincadeira muito séria, em cujo processo o “eu” de cada um dos meninos se constrói e se inaugura para a vida.

- “Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha particular: / Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.” A conclusão do poeta deposita na despropositada pequenez da ponta do lápis a grandeza de sua naturezinha criadora, capaz de reinventar constantemente a vida. Cabe à gloriosa ‘ponta do meu lápis', em sua insignificância – tão a gosto do poeta – conferir a grandeza de suas invenções ou inaugurações. A beleza do contraste passa pela pequenez necessária da ponta do lápis para se atingir a expressividade artística dos versos e do poema; a ponta do lápis, como o pensar do poeta, se consomem no gasto do nascimento/registro das palavras e dos versos, como um instante glorioso que se esvai e não será reconhecido, mas meramente suposto somente por quem, e muito poucos, se dedicar a examinar o poema além das palavras. Ou ainda ver o poema em seu processo de criação e registro. A sensibilidade do poeta integra a ponta do lápis como parceira de seu percurso e seu trabalho exaustivo em criar, em labutar e esfregar as palavras até chegar ao bom verso que, então se torna imortal; mas, com o auxílio da ponta do lápis.

Gloriosamente o poeta celebra a nobreza da ponta de seu lápis, parceira de suas lutas e registros.

Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Gato Felix – I – A história do gato

Narizinho não teve o gosto de salvar o príncipe. Quando chegou ao ribeirão do pomar, já nada viu por ali. Certa de que ele se havia salvado a si próprio voltou correndo para casa, ansiosa por conhecer as aventuras do gato Félix. Chegou, botou o gato no colo e disse:

— Você tem que me contar a sua vida inteirinha, sabe?

— Pois não — respondeu o gato. — Mas só sei contar histórias de noite. De dia perdem a graça.

— Neste caso, vá dar um passeio e quando for de noite esteja aqui.

O gato saiu, passeou pelo sítio inteiro, caçou três ratos e de noite voltou. Tia Nastácia acendeu o lampião da sala. Depois disse:

— “É hora, gente!” Todos vieram postar-se em redor do ilustre personagem; dona Benta sentou-se na sua cadeirinha de pernas serradas; Narizinho e Pedrinho sentaram-se na rede; Emília foi para o colo da menina. Até o Visconde de Sabugosa quis ouvir as histórias. Narizinho teve dó do coitado; espanou-lhe o bolor e botou-o num canto da sala, dentro duma lata — para que não sujasse o chão com aquele pó verde. Logo que todos se acomodaram, Emília disse:

— Comece, seu Félix! E o gato Félix começou.

— Houve na França um gato muitíssimo ilustre, que era escudeiro do marquês de Carabás — tão ilustre que não há no mundo inteiro criança que o não conheça.

— Até eu! — gritou Emília. — Era o tal Gato de Botas!...

— Justamente, menina. Esse famoso gato era o escudeiro do marquês de Carabás. Fez coisas do arco-da-velha, como se sabe, até que se casou com uma linda gata amarela e teve muitos filhos. Esses filhos tiveram outros filhos. Estes outros filhos tiveram novos filhos, e veio vindo aquela gafaria que não acabava mais até que nasci eu.

— Que bom! — exclamou Narizinho. — Então você é bisneto ou tataraneto do Gato de Botas?

— Sou cinqüentaneto dele — disse o gato Félix — Mas não nasci na Europa. Meu avô veio para a América no navio de Cristóvão Colombo e naturalizou-se americano. Eu ainda alcancei meu avô. Era um velhinho muito velho, que gostava de contar histórias da sua viagem.

Emília bateu palmas.

— Conte, conte! Conte as histórias que ele contava. Conte como foi que o tal Colombo descobriu a América. O gato Félix tossiu e contou.

— Meu avô veio justamente no navio de Cristóvão Colombo, que se chamava “Santa Maria”. Veio no porão e durante toda a viagem não viu coisa nenhuma senão ratos. Havia mais ratos no “Santa Maria” do que pulgas num cachorro pulguento, e enquanto lá em cima os marinheiros lutavam com as tempestades, meu avô lá embaixo lutava com a rataria. Caçou mais de mil. Chegou a enfarar-se de rato a ponto de não poder ver nem um pelinho de camundongo. Afinal o navio parou e ele saiu do porão e foi lá para cima e viu um lindo sol e um lindo mar e bem na frente uma terra cheia de palmeiras.

— Então era o Brasil! — disse Emília. — Aqui é que é a terra das palmeiras com sabiá na ponta!...

— Viu a terra cheia de palmeiras, e na praia uma porção de índios nus, armados de arcos e flechas, a olharem para o navio como se estivessem vendo coisa do outro mundo. Era a primeira vez que um navio aparecia por ali.

— Imaginem se eles vissem o trem de ferro!... – observou Emília.

— Colombo, então — continuou o gato — resolveu desembarcar e saber que terra era aquela, porque estava na dúvida se seria realmente a América ou outra. Entrou num bote e foi para a praia. Pulou do bote e chamou os índios.

Os índios não se mexeram do lugar, mas o cacique deles criou coragem e adiantou-se e chegou perto de Colombo.

— Meus cumprimentos — disse Colombo, com toda a gentileza, fazendo uma cortesia com o chapéu de plumas.

— Bem-vindo seja! — respondeu o índio, sem tirar o chapéu, porque não usava chapéu. Colombo então perguntou:

— Poderá o cavalheiro dizer-me se isto por aqui é a tal América que eu ando procurando?

— Perfeitamente!” — respondeu o índio. Isto por aqui é a tal América que o senhor anda procurando. E o senhor já sei quem é. O senhor é o tal Cristóvão Colombo, não?

— Realmente, sou o tal. Mas como adivinhou?

— Pelo jeito! — respondeu o índio. — Assim que o senhor botou o pé na praia, senti uma batida na pacuera e disse cá comigo: É o senhor Cristóvão que está chegando, até aposto!

Colombo adiantou-se para apertar a mão do índio. Em seguida o índio virou-se para os companheiros lá longe e gritou:

— Estamos descobertos, rapaziada! Este é o tal Cristóvão Colombo que vem tomar conta das nossas terras. O tempo antigo lá se foi. Daqui por diante é vida nova — e vai ser um turumbamba danado...”

Nesse ponto da história o Visconde botou a cabeça fora da lata e disse:

— Não acreditem! A descoberta da América não foi assim, foi muito diferente. Eu li toda a história de Colombo num livro de dona Benta. Posso afirmar que o gato Félix está inventando.

— Não está inventando nada! — berrou Emília. — Foi assim mesmo. O livro não esteve lá e não pode saber mais do que o avô de seu Félix, que esteve presente e viu tudo.

— Mas essa história é absurda! — berrou o sábio Visconde. – Isso é um disparate!...

— Disparate é o seu nariz — berrou Emília. E voltando-se para a menina:

— Narizinho, por que é que você não tampa o Visconde?

Narizinho achou boa a idéia; foi lá e tampou a lata com o Visconde dentro.

Terminado o incidente, o gato Félix continuou:

— Depois disso houve muitas coisas, e mais coisas, e outras coisas, até que meu avô se casou e nasceu meu pai, e meu pai se casou e nasci eu.

— E onde nasceu? — perguntou Pedrinho.

— Nasci nos Estados Unidos, na cidade de Nova York. As casas lá são tão altas que se chamam arranha-céus. Eu nasci no quadragésimo terceiro andar do arranha-céu mais alto de todos.

— Quadragésimo! — murmurou Emília. — Que bonito nome! Eu, se fosse dona Benta, batizava a vaca mocha de Quadragésima...

— Não atrapalhe, Emília, deixe o gato falar – advertiu Narizinho. E, voltando-se para o gato Félix: — Mas essas casas arranham mesmo o céu ou é um modo de dizer?

— Arranham, sim — confirmou o gato — e às vezes até o furam. O céu de lá é todo furadinho.

— Quem deve ficar furioso é São Pedro — disse a boneca. — Eu, se fosse ele, suspendia o céu um pouco mais para cima.

Narizinho tapou-lhe com a mão a boca.

— Nasci num arranha-céu — continuou o gato — e criei-me na rua. Fui o gatinho mais travesso da América, o mais atropelador dos camundongos. Depois que cresci, atirei-me para cima das ratazanas com tamanha fúria que quase todas se mudaram da cidade. Um dia me deu na cabeça viajar. Fui ao porto, onde vi uma porção de navios, uns mais novos, outros mais velhos. Escolhi o mais velho, calculando que nele devia haver mais ratos. Entrei sem pagar passagem e dirigi me ao porão. Assim que entrei, a rataria disparou. Só pude apanhar quatro.

No dia seguinte peguei dez. No terceiro dia peguei vinte. No quarto....

— Pegou quarenta! — disse Emília.

— Não, trinta e nove só — corrigiu o gato. — E assim durante quinze dias. Ao fim desse tempo, gordo que nem um porquinho, deixei a rataria em paz. Foi nessa ocasião que aconteceu o desastre.

— Que desastre?

— Espere. Estava eu comendo o último rato que comi no navio, quando rompeu lá em cima um berreiro. Subi ao tombadilho para ver o que era e encontrei o capitão dizendo que o navio tinha batido numa pedra e ia afundar.

— Credo! — exclamou tia Nastácia, que estava cochilando e acordara nesse ponto. — Devia ser um quadro muito triste...

— Sim, ia afundar — continuou o gato. — Como houvesse arrebentado a proa, estava bebendo água que nem uma esponja. Os marinheiros corriam de um lado para outro, qual doidos. Uns tomavam os escaleres, outros amarravam à cintura os salva-vidas, outros lançavam-se à água. Eu disse comigo: “E agora, Félix, que vai ser de ti?” Pensei, pensei e por fim tive uma idéia. A única salvação seria fazer-me engolir vivo por algum dos tubarões que rodeavam o navio com as bocas abertas e aquelas dentuças que mais pareciam serrotes.

— Credo! — exclamou outra vez tia Nastácia fazendo o sinal da cruz. — É por essas e outras que nunca hei de sair do meu cantinho...

— Tive essa idéia — continuou o gato — e tratei de pô-la em prática. Escolhi o tubarão maior de todos e quando ele passou perto de mim, dei um pulo e caí, como pílula, bem no fundo da garganta dele!

— E não se arranhou? — disse Emília. — Não esbarrou nalgum dente?

— Nada! Caí na campainha do tubarão e nela me agarrei e fui entrando por aquele corredor vermelho afora até chegar ao estômago.

— Era grande?

— Tinha o tamanho desta sala — respondeu o gato com o maior caradurismo.

Nesse ponto o Visconde empurrou a tampa da lata, botou a cabeça de fora e gritou:

— Não acreditem! É mentira! Nem baleia tem estômago desse tamanho. Além disso, é impossível a um gato permanecer vivo num estômago de tubarão.

— Impossível por que, seu Embolorado? — disse Emília. – Não se lembra da história que dona Benta contou do profeta Jonas, que “permaneceu” uma porção de tempo dentro da barriga de um peixe?

— Sim — concordou o Visconde. — Mas Jonas era profeta.

— Jonas era profeta e seu Félix é quadragésimo. Dá na mesma.

Todos acharam que Emília tinha razão.

— Fiquei lá muito sossegado da minha vida — continuou o gato — mas vi logo que não podia morar ali por muito tempo. Não havia ratos — e gato não sabe viver onde não há ratos. Tinha que sair, mas como? Sair era cair n’água e morrer afogado. De que modo resolver o problema?

— Muito simples — disse Emília. — Era só fazer uma canoinha e entrar nela e ir remando...

— Cale essa boca, não seja tão sapeca! — interveio Narizinho.

— Quem está contando a história é o gato Félix, não é você.

O gato continuou: .

— O caso era dificílimo, e eu estava a pensar nele quando vi entrar no estômago da fera uma enorme isca com anzol dentro. Mais que depressa fisguei o anzol, bem fisgado, na pacuera do monstro.

Assim que ele sentiu a dor da fisgada, pôs-se a corcovear como burro bravo com domador em cima. Corcoveou, corcoveou, corcoveou até que não pôde mais e foi morrendo. Passaram-se algumas horas sem acontecer nada. O tubarão estava bem morto. Nisto vi uma réstia de luz e uma ponta de faca aparecendo. Encolhi-me bem encolhido para me livrar da faca e compreendi que estavam abrindo a barriga do peixe. Não esperei por mais. Dei um pulo para fora e caí no meio dum grupo de marinheiros, bem dentro dum navio!... Os marinheiros ficaram assombradíssimos de ver sair um gato vivo da barriga de um peixe e só sossegaram quando lhes contei toda a minha história. O capitão olhou para mim, alisou as barbas e disse:

— Para onde pretende ir? Meu navio está de rumo à Inglaterra, onde poderei desembarcar você?

— Muito obrigado” — respondi. — O país que eu procuro não é esse.

— Será a França?

— Não!

— Será a Alemanha? a Suécia? a Turquia? a Arábia? A Patagônia?

— Nada disso. A terra que eu procuro é aquela onde o demo perdeu as botas. Quero encontrar essas botas.

O capitão julgou que eu estivesse a mangar com ele e pregou me tamanho pontapé que fui parar no porão.

Todos deram gostosas risadas e tia Nastácia observou:

— Isso é invenção de gente sem serviço. Esse lugar nunca existiu.

— Como nunca existiu, se foi lá que o demo perdeu as botas? — replicou Emília. — Eu acho que seu Félix tem toda a razão e mais vale descobrir esse lugar do que descobrir a América. Continue, seu Félix.

O gato continuou:

— Fiquei no porão até que o navio entrou num porto. Desembarquei e fui andando por um caminho muito comprido. De repente apareceu uma velha, muito velha e coroca, de porretinho na mão.

— Vai ver que era uma fada — cochichou Emília ao ouvido de Narizinho.

— Cheguei-me para a velha e perguntei: “A senhora poderá dizer-me onde fica o lugar onde o demo perdeu as botas?

A velha admirou-se da pergunta; arregalou os olhos, abriu uma boca de bagre sem um só dente nas gengivas e respondeu:

— Não sei, gatinho. Mas se você for andando, andando, andando sem parar, aposto que um dia chega a essa terra.

Aceitei o conselho da velha e fui andando, andando, andando até que encontrei...

— Uma coruja! — interrompeu Emília.

— Não — disse o gato — encontrei um sábio muito velho, de grandes barbas brancas. Cheguei-me a ele e perguntei:

— Senhor velho, poderá dizer-me onde é o lugar em que o demo perdeu as botas?

— Posso, sim — respondeu o velho. — Fica pertinho dos confins do Judas.

Vi que o velho estava caçoando comigo e fui-me embora.

Andei, andei, andei...

— Pare de andar. Seu Félix. Chegue logo, que já está caceteando — disse Emília.

O gato desapontou um bocadinho, mas continuou:

— Andei, andei, andei, até que encontrei...

— Uma coruja! — interrompeu de novo Emília.

— Não amole mais com essa coruja, Emília! – disse Narizinho. — Ele não encontrou coruja nenhuma. Cara de coruja tem você. Continue, gato Félix.

— Encontrei outra velha, mais velha ainda e mais coroca do que a primeira.

Emília deu uma risada gostosa.

— Que terra esquisita!... Só velho para cá, velha para lá... Com certeza foi no país de Matusalém...

O gato Félix desapontou mais um bocadinho, mas continuou:

— Encontrei uma velha, muito velha e perguntei: “A senhora...”

— Etc. etc. — disse Emília. — E que é que ela respondeu?

O gato Félix, ainda mais desapontado, continuou:

— Ela respondeu:

— Esse lugar não existe, gatinho. O demo nunca teve botas. Você não sabe que o que ele tem são cascos?

— E aí? — indagou Emília, que estava achando aquela história muito sem jeito.

— Aí eu... eu... parei de procurar a tal terra e fui cuidar de outra coisa.

Dessa vez o desapontamento foi geral. Dona Benta olhou para Narizinho, tia Nastácia olhou para dona Benta, Pedrinho olhou para o forro. Só Emília teve coragem de olhar para o gato. Arrebitou o nariz de retrós, fez um muxoxo de pouco caso e disse:

— Não valeu a pena vir de tão longe para contar uma história tão sem pé nem cabeça. Eu, que nunca saí daqui, sou capaz de contar coisa muito mais bonita.

— Pois então vamos dormir — disse dona Benta levantando-se — e quem conta a história de amanhã vai ser a Emília.
––––––––
Continua... O Gato Felix – II – A história da Emília

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Campinas recebe Caravana da Leitura 15 a 17 de Dezembro


Nos dias 15 a 17 de dezembro/2011, o projeto literário Caravana da Leitura estará em Campinas pela segunda vez neste ano e disponibilizará livros para crianças, jovens e adultos pelo valor simbólico de R$2,00.

O objetivo do trabalho é incentivar o hábito da leitura e estimular a criação de novos agentes multiplicadores em defesa do livro e literatura. A iniciativa conta com a parceria da Secretaria de Educação e Cultura dos municípios envolvidos, apoio do Ministério da Cultura e patrocínio da ZF do Brasil.
Justificar
O evento, em parceria com Secretaria de Cultura de Campinas, acontecerá na Praça Rui Barbosa, próximo à Catedral, das 9h30 às 17h.

O projeto reúne uma grande variedade de obras literárias do escritor Laé de Souza, que apresenta histórias do cotidiano, em uma linguagem bem-humorada e pontuada por reflexões, dirigidas ao público infantil, juvenil e adulto.

Para Laé de Souza, coordenador do projeto, a leitura tem um papel decisivo na formação de cidadãos. “A fim de implementar e difundir o hábito de leitura de forma dinâmica, nós temos levado livros a várias regiões do país. A Caravana da Leitura atua fortemente no processo de formação de leitores, além de promover democratização da leitura para população, pelo fato de oferecer obras a preços simbólicos, facilitando o acesso”, destaca o autor.

Aplicado desde 2004, neste ano a Caravana da Leitura passará por 42 cidades com previsão de distribuição de cerca de 120 mil livros.

Interessados podem conhecer outros projetos de incentivo à leitura, de Laé de Souza e o roteiro da Caravana da Leitura, em "Agenda", no site www.projetosdeleitura.com.br

Fonte:
Laé de Souza