sábado, 17 de dezembro de 2011

William Shakespeare (A Comédia dos Erros)


A Comédia dos Erros, a mais curta das peças de William Shakespeare, é inspirada no comediógrafo romano Plauto e gira em torno das confusões causadas por dois pares de gêmeos. É considerada pelos pesquisadores como a primeira peça de Shakespeare, com sua estréia nos palcos tendo ocorrido provavelmente em 1594.

Os erros a que se refere o título são enganos provocados pelas pessoas que conversam alternadamente com um gêmeo e o outro, sendo um residente de Éfeso, onde se passa a ação, e o outro, estrangeiro. Os gêmeos são idênticos e têm ambos o mesmo nome: Antífolo. As confusões multiplicam-se, assim como a comicidade da trama, porque há mais um par de gêmeos idênticos em cena, os irmãos que atende pelo nome de Drômio.

Entretanto, A Comédia dos Erros não deve ser confundida com uma comédia leve. Muito ao gosto de Shakespeare, ainda que em sua estréia como dramaturgo, os diálogos introduzem considerações sobre a condição feminina e sobre a condição servil; há credores e devedores e a honra de cada um; discute-se o lugar do ciúme no casamento; existe uma autoridade política que procura administrar justiça com compaixão; mais importante ainda, há a moderna busca pela identidade própria.

Tudo acontece quando dois irmãos gêmeos são seprados na infância e por ironia passam a ter o mesmo nome: Menecmo.

A ação se passa anos mais tarde, em Epidamno, cidade da Ilíria (hoje Albânia), aonde chega um dos Menecmos à procura de seu irmão, o outro Menecmo, que mora na cidade. Enquanto um, que acaba de chegar, é sucessivamente confundido pela amante do outro (que o explora), por Vassourinha, um vagabundo, que o delata a esposa do outro e ao sogro. Mas quem sucessivamente sofre punições pelo o que não fez é o outro Menecmo.

E assim, de engano em engano, a peça caminha para o seu final feliz, quando os irmãos se encontram e se reconhecem.
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Sinopse

Em Éfeso, um comerciante de Siracusa, chamado Egeu, é condenado à morte por ter cruzado a fronteira entre as duas cidades rivais. Próximo da hora da execução, Egeu conta a sua história a Solino, o duque de Éfeso. Vinte cinco anos antes Egeu e a sua família - a sua mulher, os dois filhos gêmeos e ainda dois escravos também gêmeos - tinham-se separado em consequência de um naufrágio. Um dos filhos e um dos escravos tinham permanecido com Egeu, mas tinham perdido o rasto dos outros e Egeu deslocara-se a Éfeso na esperança de os encontrar.

Comovido, o duque substitui a pena de morte por um resgate de mil marcos. Sem que Egeu saiba, também o filho e o escravo (Antífolo de Siracusa e Drômio), que sempre viveram com ele, se encontram na cidade com o mesmo objetivo o que vai provocar uma série de mal-entendidos.

Adriana, casada com Antífolo de Éfeso, confunde-o com o irmão de Siracusa e arrasta-o para casa. Pouco depois Antífolo de Éfeso vê-se impedido de entrar na sua própria casa. Entretanto Antífolo de Siracusa apaixona-se pela irmã de Adriana, Luciana, que fica chocada com o comportamento daquele que ela julga ser o seu cunhado.

Para complicar ainda mais a situação Antífolo de Éfeso é preso por se recusar a pagar uma corrente de ouro que comprara, mas que nunca chegara a receber por ela ter sido entregue, por engano, ao seu irmão.

Estranhando o comportamento do marido, Adriana pensa que ele enlouqueceu e recorre a um exorcista, o professor Pinch. Quanto a Antífolo de Siracusa e ao seu escravo, julgando que a cidade está enfeitiçada tentam fugir mas, ao sentirem-se ameaçados, refugiam-se numa abadia.

Quem acaba por resolver toda esta confusão é a abadessa, Emília, que é, nem mais nem menos, que a esposa desaparecida de Egeu. No final tudo acaba bem. Adriana reconcilia-se com o marido, o duque perdoa Egeu que se reúne com a esposa e Antífolo de Siracusa tenta a sua sorte com Luciana.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/a_comedia_dos_erros
http://pt.shvoong.com/books/1620628-comédia-dos-erros/

Cecy Barbosa Campos (Inter-Relação Cômico-Trágica em A Comédia dos Erros e Os Dois Menecmos)


Dificuldades na distinção entre comédia e tragédia. Conceitos de valorização de ambas. As teorias de Moelwyn Merchant sobre a presença de elementos cômicos e trágicos numa mesma obra, agindo como mecanismo de equilíbrio da tensão. A inter- relação cômico-trágica em A comédia dos erros, de Shakespeare e em Os dois Menecmos, de Plauto.

1. INTRODUÇÃO

Pretendemos neste estudo fazer uma abordagem da peça A comédia dos erros, de William Shakespeare, considerando a inter-relação cômico-trágica nela presente. Segundo Moelwyn Merchant, tanto o humor é indispensável ao alívio da tensão trágica, levando a novos índices de elevação de intensidade da dor, como momentos trágicos ajudam a arrefecer na comédia, os espasmos de riso que serão suscitados novamente, em manifestações de alegria indispensáveis à comédia..

Modernamente, o Teatro do Absurdo apresenta a característica de lidar com o cômico e o trágico ao mesmo tempo. A falta de objetivos na vida e a dificuldade de comunicação entre os seres humanos, aparecem simultaneamente a momentos cômicos, como acontece em Waiting for Godot, de Samuel Beckett.

Shakespeare, examinando de maneira sensível as relações humanas, as virtudes e os defeitos comuns ao homem, é capaz de apresentar um personagem cômico dentro de uma atmosfera sombria e de tratar a angústia humana com comicidade, pelas situações improváveis que é capaz de criar e através de personagens que levam o espectador ao riso, especialmente por suas falas irônicas, satíricas ou imbuídas de sarcasmo. Entretanto o riso que daí surge, não é um ríctus vazio, mas uma reação consciente e reflexiva, que conduz à análise dos graves problemas que atingem a humanidade.

2. TRAGÉDIA E COMÉDIA

É muito difícil fazer distinções precisas ou estabelecer o momento exato em que o trágico se transforma em cômico e vice-versa. É próprio da dualidade do ser humano que ele apresente características boas e más, tendências por vezes liberais e em outras conservadoras, momentos de alegria em que se veja acometido pela tristeza. Da mesma forma é difícil estabelecer uma distinção nítida entre Tragédia e Comédia. Tomando duas peças de Shakespeare, Hamlet e Sonho de uma noite de verão, não teremos dúvidas em enquadrá-las como tragédia e comédia, respectivamente, reforçando a afirmação de Byron, citada por Merchant, de que "Todas as tragédias terminam com morte/ Todas as comédias terminam com um casamento"(1) Entretanto, somos forçados a reconhecer que nem todas as tragédias e comédias terminam da mesma forma.

Uma das mais claras distinções entre a tragédia e a comédia, parece ser a falta, na segunda, daquela dimensão metafísica que é de principal importância na primeira. Também o fato de que o herói trágico, se não perde a vida no final, tem implicações trágicas e catastróficas em sua luta com o destino. Isto fica sem lugar na comédia: aqui o destino é substituído por uma oportunidade mais trivial, ou mais impessoal; e se, ao personagem cômico é permitido fazer reflexões filosóficas, estas são feitas como comentários sobre o que a vida nos reserva e são muito diferentes do que se refere ao destino trágico.

Outra maneira de distinguir tragédia e comédia, está sintetizada no aforismo de Horace Walpole, também citado por Merchant :"O mundo é uma comédia para aqueles que pensam, uma tragédia para aqueles que sentem"(2).

Uma conseqüência desta distinção entre comédia e tragédia, entre pensar e sentir, reside no fato de que o enredo cômico é, às vezes, mais intrincado que o enredo trágico e menos plausível. Muitas vezes arbitrário, subordina-se aos trabalhos do acaso ou da sorte, fazendo com que o espectador se delicie com cada incidente inesperado ou que pareça impossível. O enredo cômico lança os personagens em situações inusitadas que lhes permitam mostrar sua loucura ou confusão. Isto acontece com freqüência em A comédia dos erros, de Shakespeare, onde a existência de dois irmãos gêmeos e de seus dois criados, também gêmeos, criam momentos bem pouco verossímeis. As confusões que surgem a partir do encontro dos quatro, são justamente resultantes do inverossímil da situação.

Na comédia muitas vezes há, não somente acontecimentos improváveis, mas também mudança de caráter ou de nível social - uma pessoa pouco inteligente torna-se repentinamente brilhante, o mau se degenera e o pobre transforma-se em dono de vultosa fortuna, culminando estas reviravoltas do destino com uma festa de casamento ou celebração final. É um recomeço, o surgimento de uma nova sociedade, a abertura de possibilidades, o início de uma outra vida com diferentes perspectivas.

Apresentando uma visão de mundo diversa daquela apresentada pela tragédia e mostrando variados estados psicológicos, a comédia tem a função de provocar o riso e chamar atenção para as incongruências e alegrias da vida, desenvolvendo o senso de humor.

3. O DRAMA CÔMICO

Originando-se dos festejos dionisíacos, nos quais os participantes cantavam, dançavam e faziam brincadeiras zombeteiras enquanto levavam a imagem de Dionísio, a comoedia associou-se logo à idéia de uma forma teatral que apresentava o homem numa perspectiva diferente, com seus defeitos e culpas.

Os dramaturgos romanos Plauto e Terêncio foram os agentes multiplicadores desta concepção mas o impulso criador veio de Atenas, com a Comédia Antiga, da qual Aristófanes foi o representante principal. Embora a questão da influência grega em ambos seja muito discutida, é inegável que, cada um a seu modo, apresenta características próprias que permitem à comédia latina ser reconhecida e respeitada.

De Plauto, possivelmente nascido em 254 AC, sabe-se que foi primeiramente ator, talvez escravo de um grupo de teatro ambulante, tendo passado a autor com extrema sensibilidade para saber o que agradaria a audiência. Quanto a Terêncio, nascido em 185 AC, como escravo, teve sua inteligência reconhecida e recebeu alforria, tornando-se um autor de linguagem refinada, banindo da comédia aquilo que considerava grosseiro e vulgar. Tanto Plauto quando Terêncio apresentam semelhanças em relação ao uso de convenções do teatro greco-romano, complementando a ação pelo uso de solilóquios, comentários simultâneos, saídas e entradas oportunas. Por outro lado, eles se diferenciam pelo uso que fazem do possível e do improvável. Terêncio atém-se muito mais que Plauto àquilo que se subordina à razão e à probabilidade.

É interessante que, justamente pela ênfase dada ao improvável, a comédia plautina vai se colocar lado a lado com a comédia shakespeariana. A presença de Plauto, através das peças Anfitrião e Os dois Menecmos faz-se sentir em A comédia dos erros de Shakespeare.

4. OS DOIS MENECMOS E A COMÉDIA DOS ERROS

A comédia de Plauto trata de confusão de identidades e tem o aspecto visual e a ação física como pontos básicos para a encenação. Há uma complicada estória de gêmeos que se separam aos sete anos, em virtude de um naufrágio. Vivendo em lugares distantes, sem notícias um do outro, aquele que permanece em companhia do pai assume, estranhamente, o nome do irmão desaparecido: Antífolo. Este fato vai complicar mais o enredo a partir do momento em que, já adultos, os dois se encontram na mesma cidade. Sendo absolutamente idênticos, a confusão é completa, pois nem mesmo a mulher e a amante de um deles, são capazes de distingui-los. Criados e outros personagens também não notam a diferença entre os indivíduos que respondem pelo mesmo nome. O “nonsense” da situação estende-se por toda a peça e o clímax da comicidade é atingido no momento em que a irascível esposa de um dos Menecmos é envolvida. A discórdia conjugal é aguçada pela intromissão do parasita Peniculos que denuncia as infidelidades daquele a quem explora. Parecendo ser um personagem importante para a ação, desaparece logo após dar esta contribuição para o estabelecimento do conflito. Neste momento, a confusão estabelecida já é tão grande e os mal entendidos tão numerosos, que ninguém sente falta de sua presença.

Toda esta mistura de confrontos físicos com a negação da razão culmina numa luta final em que todos se envolvem e que coloca a peça numa posição mais próxima da farsa do que da comédia.

Pertencente à fase de iniciação literária de Shakespeare, A comédia dos erros tem como enredo a triste estória do naufrágio de Egeu, que no acidente perde mulher e filho. O humor resulta de equívocos e trocadilhos duplicados pela existência de dois criados gêmeos que servem aos dois Antífolos, de Éfeso e de Siracusa. Assim como os patrões, os criados gêmeos também têm o mesmo nome, atendendo ambos por Drômio. Shakespeare coloca ainda duas mulheres em contraste significativo. Adriana, a esposa ciumenta e independente que reage contra a submissão feminina e Luciana, que considera os homens seres superiores. .

O enredo se expande e os intrincados conjuntos de relacionamentos pessoais tornam-se parte essencial da concepção cômica de Shakespeare. Entretanto, preocupado com a elaboração de um enredo de intriga, o dramaturgo inglês buscava um efeito mais complexo, qual seja o estabelecimento da ação cômica num quadro que se forma a partir de uma atmosfera notadamente séria.

A peça começa com Egeu, mercador de Siracusa, explicando o motivo de sua presença em Éfeso: a busca de mulher e filho há longos anos desaparecidos . Sua figura trágica e solitária leva o Duque a manifestar compaixão sem, entretanto, revogar a pena de morte a que Egeu fora condenado. Paralelamente à figura patética do velho mercador que sem amigos e sem dinheiro está condenado a morrer ao final do dia, os problemas de troca de identidades e o desenvolvimento das relações pessoais e comerciais instauram o cômico. Há, assim uma união perfeita de elementos aparentemente disparatados. A vida é representada não em situação normal, mas no absurdo de situações que são às vezes tristes e alegres simultaneamente.

Em momentos de grande lirismo já é possível entrever a genialidade do autor que começa a despontar. Apesar de alguns críticos reclamarem da irrealidade do tema, é por outro lado necessário admitir que a aceitação de um conjunto de circunstâncias absurdas é essencial à farsa e que este foi o tipo de entretenimento pretendido por Shakespeare.

5. A COMÉDIA SEGUNDO MERCHANT

Merchant analisa a mistura de gêneros e afirma que, para ser possível estudar profundamente a comédia, é necessário, primeiramente explorar suas incursões dentro da tragédia, começando com o teatro grego. Verifica que também no teatro shakespeariano o cômico acha-se presente, com muita freqüência, nas peças trágicas, servindo de alívio à tensão apresentada.

Merchant, ao falar do efeito que a intromissão do cômico exerce como intensificador do momento trágico, sugere que se use a intromissão trágica para diminuir a intensidade do cômico e depois incrementá-la novamente. É o que acontece em A comédia dos erros e em outras peças de Shakespeare. Algumas vezes, a seriedade de assuntos enfocados na comédia leva à insegurança quanto ao modo de classificá-las. Este fato é resultante da grande dificuldade de demarcaçao dos limites entre o trágico e o cômico, pois

Há momentos em que o espírito cômico invade um trabalho de predominante visão trágica, ou, inversamente, um lampejo de tragédia obscurece um trabalho de predominante comicidade; é aí que a demarcação entre tragédia e comédia não parece fácil de se definir; é quando [...] a comédia parece alcançar sua maior estatura não em independência mas em associação com as visões mais sombrias da tragédia. (3)

Desta forma, muitas das comédias shakespearianas, assim denominadas devido a um enquadramento feito a partir da resolução dos conflitos e das cenas finais, deixam o espectador/leitor, em dúvida a respeito da adequabiliade desta denominação, tão perto ficam da tragédia e da comédia ao mesmo tempo.

6. CONCLUSÕES

À primeira vista, lendo ou assistindo A comédia dos erros, temos a sensação de que Shakespeare graceja, faz brincadeiras tolas e que seu único objetivo através das confusões absurdas entre personagens que se duplicam é fazer rir, mas a modificação das fontes que serviram de inspiração para a peça dá-lhe um novo tom. Shakespeare chama a atenção para um problema sério que é a perda ou troca de identidades e as consequências daí advindas, como a desintegração familiar e social. Ao final, redescobrindo o seu próprio “eu” os personagens reassumem seu lugar no mundo, a ordem é restaurada e a violência é substituída pela delicadeza do amor. A ação cômica em toda sua vitalidade conduz a uma espécie de ressurreição, de renascimento, de restauração.

Os paradoxos da irracionalidade estão presentes nos incidentes que se nos apresentam e mesmo numa peça considerada menos importante na gloriosa carreira de Shakespeare, podemos observar a perspicácia do autor na análise do ser humano.

A comédia dos erros não se limita a propiciar uma descarga de energia psíquica liberada através do riso aliviando o espectador das tensões e inibições do mundo em que vive. Ela também induz à simpatia e a sentimentos de compaixão e solidariedade para com os problemas que nos cercam, levando-nos a compreender a importância da paciência e da abnegação para que a ordem possa se impor à desordem e para que o amor e a harmonia nas relações humanas possam ser restaurados no final.

Transcendendo à farsa, Shakespeare demonstrou com A comédia dos erros, que uma grande alegria é melhor sentida pela sua contraposição ao sofrimento, definindo um caminho para as comédias que viria a escrever posteriorrmente.

7. BIBLIOGRAFIA

1- BENDER, Ivo C. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre, Editora
UFRGS/PURS. 1996.
2- CANOVA, Marie-Claude. La comédie. Paris, Hachette. 1993.
3- HOWARTH, W.D. (ed.). Comic drama. London, Methuen. 1978.
4- MERCHANT, Moelwyn. Comedy. London, Methuen. 1972.
5- NOGUEIRA, Goulart. História breve do teatro. (I) Lisboa, Editorial Verbo. 1962.
6- PLAUTO. Os dois Menecmos. Versão de Carlos Alberto L. Fonseca. Coimbra, Instituto
Nacional de Investigação Científica. 1983.
7- PLAUTO e TERÊNCIO. A comédia latina. Trad. Agostinho da Silva. Rio de Janeiro,
Ed. Tecnoprint (Ediouro). s.d.
8- SHAKESPEARE, William. The comedy of errors. New York, Washington Square
Press. 1963.
9- TRAVERSI, Derek. An approach to Shakespeare (I). London, Hollis and Carter. 1968.

8- NOTAS

As citações foram traduzidas pela autora deste trabalho, de acordo com a edição mencionada na bibliografia.
1-BYRON, APUD MERCHANT(1972:1)
2-WALPOLE, APUD MERCHANT (1972:2)
3-MERCHANT(1972:48)

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Decimar Biagini (Poesias Avulsas)


POÉTICA DIVAGANTE HODIERNA

Olhei para o canto inferior da tela
Naqueles dias de navegador intrépido
Lá estava o calendário da virtual janela
Mais um ano passando rápido

Na info-maré não se utiliza barco a vela
Nem cinzas ao mar, ou pomposa lápide
A poesia é uma utopia de “a vida é bela”
Mas será que temos aproveitado ela!

Que essência busca o poeta moderno?
Já não se morre de tuberculose
Sequer há rascunho ou algum caderno
Tampouco há tinteiro aqui perto
Aboliram o uso indiscriminado da celulose

Pouco a pouco o mundo inteiro ficará descoberto
Em um único clique de um curioso esperto
Enquanto alguns poetas morrem de overdose
E algumas coisas mudaram por certo
A velha semântica leva a mesma pitada de psicose!

LUZ PRÓPRIA

Todo pai
Vive uma tensão
Logo cai
A angústia do coração

Nem todo pai
Ama sua criação
E assim se vai
A grande contradição

Entre rimas de ai
Entre rimas de ão
O verso então sai
Sem deixar nenhuma lição

Cada filho traz consigo
Uma luz própria cintilante
Um anjo da guarda amigo
E Deus, as vezes distante
Mantém o filho esquecido
Como um enterrado diamante

Até que um belo dia
O mineiro amor, num instante
O ensina a brilhar com alegria
Eis a graça, o mistério triunfante!

NUMA PRAÇA

Por longos anos deixei de visitar aquele ambiente lúdico
Muitos enganos vivenciei ao me afastar, indiferente e pudico
Sim, eu tinha vergonha, de ir lá sem motivo algum
De não ter sequer uma semente para colocar no escorregador
Daí, veio a cegonha, e uma paternidade instintiva me trouxe um:
Filho, que inspira cuidado frequente, e exige brincadeira com amor.
Não vejo a hora de embalar os sonhos de Arthur num balanço
E percebo que agora, ao poetar ao lado desse abajur, não me canso:
De esperar que lá fora, possa caminhar com muita luz, em descanso,
numa praça.

PERCEPÇÕES

O carpete está sujo
O carpete estava sujo
Os pés estavam limpos
Mas os tênis tinham vincos

A lareira está suja
A lareira estava suja
Os deuses do Olimpo
Mantinham templos limpos

PAIXÕES ADORMECIDAS

Observo atentamente
Deus confirmando sua presença
Naquela energia latente
Ungida sobre a Musa e a criança

Sonho a cada dia
Com os olhos bem abertos
Eivado de alegria
Sem escolhos e dias incertos

A vida nos aproxima
Para entender a existência
E nada ela nos ensina
Se não buscarmos sua essência

Arthur está dormindo
A Musa esbanja excelência
Esse babão vai sorrindo
Com verso, rima e cadência

O TAL DE CHÁ DO BEBÊ

Então era Sábado, isso lá pelo meio dia
A Morena encomendava os salgados
A vovó do Arthur fazia o bolo e a torta fria
E eu pegava alguns produtos nos mercados

Entre uma lista de afazeres
Trocava a lâmpada que queimou na garantia
Filas, e alguns desprazeres
Fixava a tampa da caixa do vaso que se abria

Comprei uma pua de pedreiro
Uns parafusos, e cimento-cola
Então se foi todo meu dinheiro
Quando no semáforo dei esmola

Nisso joguei voley por uma hora
A Musa ficou brava, pois tinha de buscar a cunhada
E assim retornei, e vamos embora
E o tempo conspirava, contra a agenda alinhavada

DE noite, massagem na barriga, ninho do Arthur
A mão travava, o creme dava liga, e sem abajur
Eu me inclinava para apagar a tão esperada tomada

No domingo, tudo arrumado para o chá do bebê
Nunca vi tanta mulher falando no mesmo local
Parecia uma torre de Babel, não sei pra que
Me soquei no quarto, para assistir a dupla grenal

Numa que outra me chamavam para tirar foto
Depois que descobri como filmar foi um alívio
Então voltei para o quarto com salgados e um copo
Pois quando vi começou a esvaziar o comício
Um monte de fraldas descartáveis, ganhei na loto
No final, o último convidado disse: - é só o início

MAS TANTO FAZ, AFINAL VOCÊ ME LEU

Sabe que nunca vi um milionário
Tampouco conheci um José Rico
Sabe que nunca ouvi um canário
Tampouco o diferenciaria do tico-tico

Sabe que eu acho esse poema hilário
Falo coisas sem nenhum sentido
Sabe que lendo isso ao contrário
Eu calo por causa do meu improviso

8 MESES EM SEU VENTRE

Estou lhe escrevendo,
só para saber
o final do poema
A vida não é um conto de fada.

Mas não estou gostando.
Acalme-se para ver.
A leitura valerá a pena,
não pisque para não perder nada.

Bom, o último verso vem chegando.
Eu vim aqui para lhe dizer
o quanto amo você morena.
E o quão estou feliz em vê-la grávida!

TROPILHA DE RIMAS

Hoje me sinto
Despido da poesia
Por isso minto
Mais do que eu queria

A rima ainda se encontra
Lá no fundo de minh’alma
E o leitor se pergunta
Onde o poeta perdeu a calma?

Cansei de fazer poema
Mas a atividade lúdica me atrai
Pôr a rima no esquema
Ver como o improviso se sai!

Saudade, sim, dos amigos
Dos poetas parceiros
Dos leitores de meu umbigo
E dos inimigos traiçoeiros

Agora, que me despeço sem glória
Fazendo trilha com patas leves
Com tropilhas de rima na memória
Me sinto no fim dessa lúdica história
Um lobo sem matilha, com poemas em greve

Fonte:
http://www.novaordemdapoesia.com/search/label/Decimar%20Biagini

Autran Dourado (Ópera dos Mortos) Parte final

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Sobre o autor: http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/autran-dourado-1926.html
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Sendo essa uma narrativa composta de símbolos, não se pode ter idéia exata de como ela será interpretada, sentida. Pois esvaziada de sua carga significativa se transforma em signo. Assim sendo vejamos uma dentre muitas possibilidades de leituras que essa "ópera barroca" oferece.

1. O Sobrado

O habitar de Rosalina é feito em um jogo de contrários que compõe o sobrado. É a partir desse jogo que Rosalina é. O sobrado é uma coisa que faz com que a quadratura se manifeste em um jogo de movimento e repouso. Rosalina é a união permanente entre Lucas Procópio e João Capistrano porque só como só como essa unidade dual pode ser.

O sobrado é também símbolo da linguagem, pois ao se habitar o sobrado, constrói-se a linguagem, que é a casa do ser. Assim, a linguagem barroca não está em Ópera dos Mortos apenas com a função de descrever o sobrado. Não se trata de falar sobre a casa, mas de construí-la com a única linguagem possível. Em outros termos, só a linguagem plurissignificativa do barroco pode construir a história de uma personagem plural como Rosalina.

Em Ópera dos Mortos o sobrado é uma espécie de espaço cênico onde acontecem os grandes atos da ópera. É o local onde a narrativa começa e termina.

O narrador convida o leitor para que o veja com a memória e com o coração. Revela que o sobrado, além da sua beleza barroca, tem uma história e um significado profundo. Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure ver do outro lado, no fundo do lago, mas além do além, no fim do tempo. O sobrado representa a Gente Honório Cota, os seus triunfos e derrotas, as noites de festas e as noites de solidão. Um verdadeiro referencial memorialístico dessa gente. Cada detalhe dele conta um pouco da história dos Honório Cota, relata os momentos ali vividos. O reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida mostra a decadência dessa família com as suas feridas à mostra para toda a cidade.

O sobrado é o estigma Honório Cota fincado no centro da cidade como marco de orgulho e grandeza, sisudez e vulnerabilidade. Assim pode-se dizer que quando o espaço é dominante, a temporalidade é virtual, e que, quando o tempo é dominante, a espacialidade é virtual. Rosalina, assim como seu pai, Coronel João Honório Cota, também se sentia como o sobrado, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos. Rosalina estava fincada ali, sem comunicação com nenhuma pessoa da cidade, exceto Quiquina, sua antiga ama, que era muda, e Emanuel, homem que cuidava dos seus negócios e filho do único amigo de seu pai, que a via apenas uma vez no ano para deixá-la informada de como andavam os seus bens. Ela preservava o orgulho da família não se mostrando a ninguém, permanecendo além das paredes do sobrado, conservando assim a grandeza da mágoa da sua gente.

Estava radicalmente fechada para o mundo desde a sua adolescência, quando seu pai morrera. Sofria a vulnerabilidade da sua dolorosa e imensa solidão. Fechou-se no sobrado assim como Des Esseintes, personagem do romance simbólico À Rebours de Huymans que fechou-se em seu quarto e tapou os ouvidos ao som do insistente exterior.

Rosalina, tal como o sobrado, era sólida, intransponível, mesmo em declínio. Enquanto o sobrado tinha uma arquitetura barroca, ela apresentava uma personalidade conflitante, fragmentada e contraditória. O narrador convida o leitor para que veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa…. É preciso que o leitor visualize a imagem do sobrado para melhor compreender a sua dimensão simbólica e a íntima ligação deste com os Honório Cota. E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para mais além da mais antiga memória.

Dessa forma, percebe-se que "o sobrado", construído em estilo barroco, valorizando os contrastes entre claros e escuros era a perfeita arquitetura para abrigar tantos conflitos entre o ser e o não ser, tantas antíteses sentimentais que habitavam aquele espaço imaculado e santo, sacro e profano, compostos de importantes detalhes e significantes arestas. João Capistrano fazia questão de que o sobrado fosse a união de dois tempos, duas gerações, duas histórias. Quando da sua construção, a casa era um só pavimento que retratava muito bem a alma do seu construtor, Lucas Procópio, homem da terra, inabalável, rústico e forte. No tempo de Lucas Procópio a casa era um só pavimento, ao jeito dele: pesada, amarrada ao chão, com as suas quatro janelas, no meio da porta grossa, rústica, alta..

Com a morte de Lucas Procópio, seu filho, João Honório Cota, mandou construir um outro pavimento que fosse a continuação do primeiro, não queria que se percebesse diferenças entre ambas, mas que apresentasse uma unidade de linhas, cores, que o sobrado tivesse uma só feição. Ele não queria a dissociação entre memória e imaginação. Não queria também descaracterizar a obra de seu pai, queria fazê-la crescer, ostentá-la e uni-la à sua. Não quero mudar tudo, disse. Não derrubo obra de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele. […] Eu quero uma casa só, inteira, eu e ele juntos pra sempre.. O sobrado era uma espécie de palco com uma permanente apresentação, um espetáculo que reverenciava o passado que é a memória, enquanto a mobília com seus significativos ornamentos compõe o cenário que mantém as personagens em atuação na Ópera dos Mortos. Assim, o sobrado era um espaço sagrado.

Longe de ser indiferente, o espaço num romance exprime-se, pois, em formas e reveste sentidos múltiplos até constituir por vezes a razão de ser da obra. Ele passa a ser não apenas o espaço físico onde habitam as personagens, mas apresenta-se como espaço de angústia quando Rosalina sente pesar a solidão, questiona o seu estado de abandono e convive com os conflitos; como espaço psicológico quando ele, através da sua imagem, e do seu significado, faz com que Rosalina recorde o seu passado. O espaço, quer seja "real" ou "imaginário", surge portanto associado, ou até integrado, às personagens, como o está à ação ou ao escoar do tempo. O narrador atento a essas possibilidades, mais uma vez, chama a atenção do leitor para sua metáfora maior, o sobrado. O espaço por ele criado meticulosamente para ser o símbolo principal da sua narrativa.

Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas sensação, imagina; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado; veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo, veja: a casa ou a história.

2. A Escada

A escada, em Ópera dos Mortos, é uma ponte de ligação que une os dois pavimentos do sobrado, o térreo (a parte antiga) e o andar de cima (a parte nova) que representa a parte superior do sobrado e que dá a ele uma postura nobre e imponente. É dentro desse espaço que Rosalina se divide e faz da escada a ponte que a conduz para a travessia da sua existência. É por essa escada que ela, no ritual de descê-la ou subi-la, apresenta as mais importantes decisões da sua vida.

Para o povo da cidade o ato de descer as escadas está associado ao poder. Quem desce vem do andar superior, logo, reina. Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha…. Mantendo o mesmo mistério da descida ela sobe ritualisticamente deixando apenas um rastro de silêncio. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu. Quando o seu pai morreu, o coronel João Capistrano Honório Cota, depois de muito tempo sem ter contato com o povo da cidade e sem receber esse povo no sobrado, Rosalina só apareceu uma vez no velório, foi ao descer a escada para colocar o relógio de ouro que o pai usava na parede ao lado do outro. Descia a escada, todo mundo de olho nela.

Depois, num outro momento significativo da sua vida, Rosalina usou a escada para fugir dos braços de Juca Passarinho quando já se entregava a ele. Quando ele procurou Rosalina, viu-a no meio da escada, correndo fugia. Temos aqui a escada como elemento de fuga, uma ponte de ligação também entre o corpo (térreo) e o espírito (o andar de cima). Rosalina se refugiava no andar de cima do mundo e de suas tentações. O andar de cima era para ela a redoma do seu espírito. Seu quarto, o seu mais íntimo recanto. Por meio dessa admirável divisa, a casa e o quarto são marcados por uma intimidade inolvidável. Com efeito, haverá imagem de intimidade mais condensada, mais segura de seu centro que o sonho do porvir de uma flor ainda encerrada e recolhida em sua semente?

Perturbada com o que sentia por Juca Passarinho e envergonhada de quase ter concretizado totalmente a sua paixão, chegou a pensar em nunca mais usar a escada para não fundir a Rosalina introspectiva à Rosalina expansiva que desabrochava. E se não descesse, se não descesse nunca mais?. A escada era o passaporte dos seus conflitos, só queria transpô-la quando se sentia forte, segura, senhora de si, sem os arroubos da paixão. Recomposta, ela desceu.. Essa mesma escada conduzia Rosalina embriagada pelo vinho e pela paixão ao andar de cima onde finalmente ela resolve abrir o seu quarto para viver intensamente a sua paixão nos braços de Juca. O vinho, a sensualidade e a paixão foram os ingredientes afrodisíacos que deram a Rosalina coragem para conduzir pela escada o seu amante e ter com ele uma noite dionisíaca. …toda noite, como num ritual, quando subiam a primeira coisa que ele fazia era soltar-lhe os cabelos.

No entanto, quando Rosalina depois de todas as transgressões que fizera, abrindo o seu quarto, o seu mundo, o seu corpo, perde o domínio sobre todas as Rosalinas, sobe pela última vez permanecendo no mundo da ilusão, no mundo lúdico dos loucos e desce quando tem que deixar o sobrado para ir para um sanatório, mas pensando que vai viver um sonho ou mais uma ilusão. Antes de terminar de percorrer ritualisticamente toda a escada, quando estava no último degrau ela parou, talvez estivesse se despedindo do sobrado e dos seus mortos, não se sabe, mas foi ainda na escada que ela proferiu sua última palavra no sobrado, encerrando ali o seu "solo" naquela ópera. Quando Rosalina chegou no último degrau da escada, parou, disse qualquer coisa baixinho… ninguém ouviu..

3. A Janela

Era da janela que Rosalina tinha uma comunicação passiva com a cidade. Uma comunicação pelo olhar. Da janela, por trás da cortina, ela observava a cidade e o povo que andava pelas ruas. Assim, através de uma camada protetora, Rosalina filtrava instantâneos da vida lá fora.

Rosalina conhecia o Largo do Carmo palmo a palmo, desde sempre olhando detrás das cortinas a igreja, as casas fronteiras, a Escola Normal, a estrada. Os olhos vazios e mornos miravam o silêncio coalhado da praça, a solidão do descampado às três horas da tarde, o céu de verão sem nuvens, o sol estorricando a terra, reverberando nas paredes brancas, os burricos peados junto ao cruzeiro, os jacás vazios esperando os donos - […] - alguém que entrava no Largo, […] e ela o seguia com a vista, a atenção neutra dos desocupados, até que dobrava a esquina ou se perdia de vista no fim da rua.

O povo via Rosalina somente quando ela aparecia na janela, mas era uma visão sombria, a cortina, feito uma tênue membrana, não, deixava que o povo a visse nitidamente e ainda a protegia contra os olhares curiosos. O próprio narrador direciona o olhar e a curiosidade do leitor em relação a Rosalina, adverte que é necessário antes ver o sobrado, o espaço existencial dela.

Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar os seus mínimos gestos, como ela acompanhava os passeantes, […] Mas veja antes a casa, deixa Rosalina pra depois, tem tempo.

Para Rosalina a janela era uma espécie de olho do sobrado, através dela gostava de olhar, porém quando via que estava sendo observada logo desviava o seu foco. A cidade vivia em constante expectativa, o povo estava sempre atento a uma aparição de Rosalina. E então, silêncio. Rosalina vai chegar na janela. Tal como se fosse uma celebridade que satisfaz a curiosidade do público com a sua rápida aparição. Rosalina se isolava por trás da cortina para além da janela. Aquele parecia ser o seu casulo intransponível, ela não gostava de ser vista, mas apreciava ver o povo da cidade, afinal essa era a imagem mais viva que a sua visão vislumbrava. Amanhã, da janela do seu quarto, escondida detrás da cortina, ia ver a procissão sair.

4. Flor de Seda

Fazer flores era a única ocupação de Rosalina desde que se fechara dentro do sobrado. As flores tão bonitas que ela fazia. Pra divertimento, era rica, não carecia. Tinha, no seu silêncio permanente, como única forma de expressão, fazer flores de papel crepom e seda. Eram essas flores a única coisa sua que o povo da cidade podia ver, pegar e lembrar dela, isso devido a Quiquina, sua empregada antiga que as vendia na cidade. Quiquina cuidava da venda das flores. Quem contratava, marcava os preços.

Essas flores, símbolo das virtudes, sobretudo de Rosalina, eram para a cidade, também, símbolo de comunicação, pois era através delas, das suas cores e formas, que eles imaginavam Rosalina que há mais ou menos quatorze anos não viam. Rosalina era, para o povo, a flor do sobrado, uma rara flor, vista poucas vezes. Era através das flores que fazia que ela indiretamente participava dos eventos sociais da cidade. As suas flores, todos os anos, ornamentavam o andor de Nossa Senhora do Carmo, o que dava a ela um certo orgulho. …o andor de Nossa Senhora do Carmo especialmente preparado […] Queria ver as flores de papel e de pano, aquelas flores que só ela sabia fazer tão bem. Assim, ela fabricava flores para festas de cidade grande, as flores de laranjeira quando tinha casamento (as que ela menos gostava de fazer), os lírios de primeira comunhão etc. O ofício de fazer flores era também para Rosalina uma forma de atenuar a pesada carga que carregava ao longo dos anos.

O fato de se tornar a guardiã da memória dos seus ancestrais e enclausurar-se em casa tal como os mortos no túmulo aumentava o peso da vida (que) está em toda forma de opressão; acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas. Por isso o ato de fabricar flores, atividade tão delicada, representa a saída que Rosalina encontrou para suavizar o enorme peso que era a sua vida. Ela, apesar de toda uma existência conflituosa, movida pela vivacidade e inteligência, sabia que para contrapor tamanho peso era necessária a leveza, uma leveza consciente. Confirma-se assim em Rosalina a busca da leveza como reação ao peso do viver.

5. Rosalina

Rosalina, como personificação do sobrado (e da linguagem que ele simboliza) é também metáfora ou imagem da memória dos mortos que compõem o sobrado. Rosalina é quem mantém Lucas Procópio e João Capistrano presentes para a cidade que deseja esquecê-los, mas não pode. A cena do enterro de João Capistrano mostra que Rosalina, contrariando o desejo da cidade, não enterrou seus mortos:

Foi assim que Rosalina fez, todos os gestos medidos: viu o pai no caixão, o corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem ia rezar mas não rezou. Súbito se voltou para onde tinha vindo. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu.

Rosalina não enterrou o pai, não cumpriu o ritual esperado pela cidade. Essa foi uma das formas de mantê-los presentes, pois o sobrado é Lucas Procópio e João Capistrano, mas Rosalina é a memória dos dois. Entende-se assim porque Autran Dourado compara, na sua Poética de Romance: matéria de carpintaria, os mortos de Rosalina aos mortos de Antígona. A lei de Rosalina é a lei dos deuses ("Não esqueço, ninguém deve esquecer") que se opõe à lei da pólis. Enterrar João Capistrano significaria enterrar sua briga com a cidade, mas para Rosalina isso significaria tirar a dignidade do pai, assim como não enterrar Polínices significaria, para Antígona, tirar a dignidade do irmão.

A questão da memória está visceralmente ligada à do tempo. São símbolos do tempo em Ópera dos Mortos os relógios e as voçorocas, como já citado.

6. Relógios

Os relógios, embora parados referem-se à dinâmica do tempo. Para Autran Dourado, o tempo não é concebido como mera sucessão de passado, presente e futuro, mas uma ciranda, uma roda.

O primeiro relógio que pára em Ópera dos Mortos é o comemorativo da independência que João Capistrano pendura na parede da sala do sobrado no início de sua briga política, depois o relógio armário, quando da morte de sua esposa, Dona Genu e, por fim, o relógio de ouro, parado por Rosalina no dia da morte de João Capistrano. Os relógios parados permanecem presentes para marcar o tempo contínuo dos mortos. Mesmo mortos, continuam a operar, marcam tanto a vida do sobrado e de Rosalina como a da cidade. Mesmo em todo seu isolamento Rosalina e o sobrado participam da vida da cidade. Isso pode ser observado em várias passagens pela fala do narrador, como no segundo bloco, quando conta ao observador sobre a chegada do relógio armário ao sobrado:

E vinha gente de longe regalar a vista (...) deliciar os ouvidos com a música prateada das pancadas finas, aquela música que mais tarde, quando o relógio parado, ia marcar as horas do nosso remorso.

Observamos que, no momento da narração, o relógio já estava parado, mas sua música ainda se fazia ouvir.

Os relógios, mesmo parados, estão em movimento, mostrando que passado, presente e futuro não se sucedem, mas se imbricam:

Foi quando o coronel João Capistrano Honório Cota morreu. Tudo foi de novo, igualzinho relógio de repetição.
(...)
Tudo repetido, a gente assistia tudo de novo pra trás. De novo se voltava feito numa fita-em-série onde o herói ficou em perigo e a gente não sabia como é que ele vai sair para continuar suas cavaleiranças. A gente esperava que a cena se repetisse para ter uma outra solução mais conforme, não a que ficou parada, sugerida.

Entretanto, a cena não tem solução, pois isso significaria parar a roda do tempo.

A morte de D. Genu marca o início do silêncio entre o sobrado e a cidade, e a de João Capistrano o estabelecimento desse silêncio, mas o silêncio não cessa a comunicação, pois o sobrado determina, em certos aspectos a vida da cidade, como já observado.

Os relógios também se imbricam na personalidade de Rosalina, o que não é nada mais nada menos que o imbricamento das questões do tempo, da linguagem e da memória:

Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa (...).

O tempo aqui é como um rio: mesmo parado continua em movimento. Rosalina não pode mexer nos relógios porque não pode mexer no tempo, mas como memória pode fazer com que aquilo que já não é retorne a ser, pode tornar o tempo uma ciranda que gira permanentemente e que se transforma também no tempo da cidade. O sobrado, símbolo da linguagem, é o que guarda esse tempo-ciranda e, em seu silêncio, fala à cidade.

7. Voçorocas

O trabalho do tempo, que transforma as coisas em ruínas é simbolizado pelas voçorocas. Elas provocam estranhamento em que as vê porque traz à tona aquilo que é a única certeza do homem, mas que lhe é absolutamente desconhecido: a morte. A dificuldade de encarar as goelas de gengivas vermelhas das voçorocas é a dificuldade de encarar a finitude humana, o limite. Por isso elas assustam tanto Juca Passarinho, sempre alegre e falante: elas o colocam de frente para o nada e provocam a experiência do silêncio:

Já vi aluvião, erosão virar voçoroca, disse José Feliciano, mas deste tamanhão, nunca na minha vida!
Desta vez não mentia, não exagerava no elogio. Tinha até medo de olhar aquelas goelas de gengivas vermelhas e escuras (...). Que coisa mais medonha, seu Silvino. Parece que não acaba mais essa começão de terra. Coisa do diabo, mais parece esta fome toda de terra.

As voçorocas remetem, assim como os relógios, remetem à dinâmica do tempo: são a própria presença do passado, do que já não é naquilo que é (presente), mas não indicam futuro a não ser a morte, a destruição. Não há futuro para a cidade, assim como não há futuro para Rosalina. Trata-se de uma cidade marcada pelo trabalho (ópera) dos mortos, que Rosalina / memória cuidou de manter presentes tanto para si como para a cidade. Tudo é determinado pelo sobrado e seus mortos. Mesmo em ruínas, é o sobrado que se mostra ao narrador e a partir dele desenrola-se a narrativa. As voçorocas estão para a cidade assim como os relógios estão para o sobrado: "O sobrado era o túmulo, as voçorocas, as veredas sombrias".

Observações gerais

O narrador de Ópera dos Mortos também contribui para a concepção de tempo como ciranda, continuidade e contigüidade. A obra é narrada sob vários focos narrativos, o que implica dizer que não há um, mas vários narradores. Por ser segundo o autor, uma obra mais trágica do que romanesca, destacamos aqui o narrador coral, que interpreta os eventos à moda do drama ático. Já no primeiro bloco, observa-se a presença do coro, como nos parênteses do fragmento abaixo:

Um recuo no tempo pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino.

Principalmente a partir do capítulo “A Semente no Corpo, na Terra” (Rosalina grávida), quando, ainda segundo Autran Dourado, Rosalina fala, mas sem discurso, só presença, tem-se o discurso do coro. É ele que interpreta as muitas Rosalinas, que Juca Passarinho não consegue entender:

Mas o corpo era o mesmo, com dificuldade ele via o mesmo corpo onde as duas se alternavam. O corpo sem a noite continuava a existir? Era possível só a luz, a escuridão total?
Ele [Juca Passarinho] se perdia em pensamentos absurdos, não esses, outros – feitos de imagens concretas (...) mas que desses pensamentos se aproximava na sua luta incessante de querer entendê-la para repousar em duas Rosalinas(...) que tinham de comum entre si o traço de união, o corpo...
(...)
E de repente descobriu com espanto: ela era três e não duas. A dona Rosalina que existia entes de sua chegada ao sobrado e continuou a existir até aquela noite (...), a Rosalina das noites em fogo e sangue, em fúria consumida, e a dona Rosalina diurna de agora, perto de quem humildemente ele ficava (...) Essas distinções eram demais para ele, homem simples.

E assim o agregado desiste de entendê-la e passa a aceitá-la, mas é o coro quem interpreta, porque um narrador onisciente seria contraditório com a concepção de linguagem dessa obra que barroca que dialoga com a tragédia. Se a tensão harmônica dos contrários é a base da narrativa, não pode haver certezas absolutas exclusivas de um narrador.

Ópera dos Mortos interpreta as questões linguagem, memória, ser e tempo em uma perspectiva deliberadamente ambígua. A obra recusa os conceitos maniqueístas e concebe a unidade na dualidade. A linguagem barroca e trágica revela a imanência recíproca das questões abordadas em sua originalidade. Nesse sentido é um “acontecer poético” e cria mundo, mas não um mundo paralelo ao chamado “real”. O mundo magistralmente criado em Ópera dos Mortos é real naquilo que tem de inaugural: a paródia de elementos barrocos e trágicos interpretando originalmente as questões que inquietam a humanidade desde seus primórdios.

Fontes:
Denilson Albano Portácio - Universidade Federal do Ceará
Laura Goulart Fonseca - doutoranda em Ciência da Literatura, Teoria Literária, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Marilúze Ferreira de Andrade e Silva - Departamento das Filosofias e Métodos - FUNREI
Carla Aparecida Alves Bento, Mestranda em Literatura Brasileira - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/opera_dos_mortos

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 428)

Árvore Natalina em Natal/RN
Uma Trova Nacional

Natal... que festa mimosa
todos felizes, contentes
fraternidade gostosa
com vinho, pão e presentes.
–NILTON MANOEL/SP–

Uma Trova Potiguar

Tocam sinos de alegria
no encanto do firmamento...
E a luz da estrela anuncia
Jesus em seu nascimento!
–MARA MELINNI GARCIARN–

Uma Trova Premiada

1999 - Fuzeta/Portugal
Tema: Natal - venc.

É Natal... tempo de prece,
de amor, de fraternidade!
Do céu, um Menino desce
e mostra, ao mundo, a Verdade!
–MARINA BRUNA/SP–

Uma Trova de Ademar

Neste Natal, que o Senhor,
num ritual de orações,
plante uma árvore de amor
em todos os corações.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


É Natal! A casa cheia
e a família reunida
no amor de Deus faz a ceia,
dividindo o pão da vida!
–VERA MARIA BASTOS/MG–

Simplesmente Poesia

M O T E : Neoly Vargas/RS

Quisera colher a estrela
com um brilho sem igual,
e a vocês oferecê-la
com carinho no natal!

G L O S A: Gislaine Canalles/SC

Quisera colher a estrela
que nasce de uma amizade,
pois, com amor, posso vê-la
trazendo felicidade!

Quero pôr na sua vida
com um brilho sem igual,
essa estrela, tão querida,
essa joia de cristal!

Com afeição, vou fazê-la
ficar, ainda, mais linda,
e a vocês oferecê-la
com uma ternura infinda!

Com muito amor, eu desejo,
na luz da estrela especial,
mandar, a todos, meu beijo,
com carinho no natal!

Estrofe do Dia

O senhor, Papai Noel,
esqueceu meu endereço.
Por que é que eu não mereço
um presente aí do céu?
o guri do bacharel
todo ano tem presente,
mas, a mim, que sou carente
nunca deste um presentinho.
Tudo bem, sou pobrezinho,
mesmo assim, também, sou gente.
–TARCÍSIO FERNANDES/RN-DF–

Soneto do Dia

Natal
–AUTA DE SOUZA/RN–

É meia noite ... O sino alvissareiro,
lá da igrejinha branca pendurado,
como num sonho místico e fagueiro,
vem relembrar o tempo do passado.

Ó velho sino, ó bronze abençoado,
na alegria e na mágoa companheiro!
Tu me recordas o sorrir primeiro
de menino Jesus imaculado.

E enquanto escuto a tua voz dolente,
meu ser que geme dolorosamente
da desventura, aos gélidos açoites ...

Bebe em teus sons tanta alegria, tanta!
sino que lembras uma noite santa,
noite bendita mais que as outras noites!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Cara De Coruja – III – Branca de Neve

Nesse momento o Visconde gritou do alto da sua janela:

— Estou vendo outra poeirinha lá longe!...

— Deve ser a minha amiga Branca de Neve — disse a princesa Cinderela. — Branca mora perto de mim e quando passei por lá vi que sua carruagem já estava na porta do castelo.

E foi isso mesmo. Minutos depois ouviu-se um toc, toc, toc. O marquês abriu a porta e anunciou:

— A princesa Branca das Neves.

Narizinho danou outra vez.

— Branca de Neve, bobo! — corrigiu de passagem, indo receber a recém-chegada.

Introduziu-a, fez as apresentações e levou-a a sentar-se Junto de sua amiga Cinderela. Branca reconheceu imediatamente a famosa boneca, apesar de ser a primeira vez que a via.

— Eu trouxe um presentinho para você — disse tirando da bolsa um pacote. — É um espelho mágico que responde a todas as perguntas feitas. Tome.

Abriu o pacote amarrado com fita de ouro e deu-o a Emília. Que alegria! A boneca abraçou o espelho, beijou-o, bafejou nele e depois o limpou bem limpo com o seu lencinho de cambraia. Por fim não resistiu à tentação de fazer ali mesmo uma experiência.

— Diga-me, senhor espelho, qual a boneca que conta histórias mais bonitas?

— É a ilustre marquesa de Rabicó! — respondeu o espelho na sua voz mágica.

Emília suspirou. Embora nada dissesse, Narizinho percebeu que aquele suspiro era de tristeza de já ser casada e não poder portanto casar-se com o espelho.

Branca de Neve contou toda a história da sua vida, prometendo vir mais vezes ao sítio brincar com a menina e a boneca. Prometeu também trazer os anõezinhos que a haviam salvado das unhas da má madrasta.

— Onde vivem hoje aqueles sete anõezinhos ? – perguntou Emília.

— Vivem comigo no castelo. Tudo lá brilha que nem ouro, porque não pode haver no mundo criaturas mais trabalhadeiras.

— Oh! — exclamou a boneca — por que não dá um deles a tia Nastácia? A coitada vive se queixando de que está velha e precisada de quem a ajude na cozinha.

— Impossível! — respondeu Branca. — Eles são sete, e se sair um quebra á conta. A gente não deve mexer com o número sete, que é mágico.

Nesse ponto da conversa o Visconde gritou de novo do alto da sua janela:

— Estou vendo duas poeirinhas lá longe!...

— Duas? — repetiu Branca de Neve. — Com certeza é Rosa Vermelha e sua irmã Rosa Branca. Nunca andam sem ser juntas.

Eram elas, sim. Logo que a carruagem parou no terreiro, Rabicó, com toda a sua burrice, anunciou:

— As senhoras Pé de Rosa Branca e Pé de Rosa Vermelha!

Desta vez Narizinho deu-lhe um beliscão disfarçado, enquanto recebia as duas princesas. Rosa Branca disse logo ao entrar:

— A Bela Adormecida manda comunicar que não pode vir.

— Que pena! — exclamou Narizinho. — E por quê?

— Não sei. Suponho que está se preparando para espetar o dedo noutro espinho e dormir mais cem anos.

Emília imediatamente veio perguntar pelo urso que tinha virado príncipe e casado com Rosa Branca.

A princesa deu uma risada gostosa.

— Pois se o urso virou príncipe, como há de existir ainda?

— Sei disso — replicou Emília toda espevitada. — Mas pelo menos a pele há de existir. Eu queria tanto ver uma pele de urso que virou príncipe...

Depois contou que sabia a história das duas e que muito se indignara com as brutalidades do anão de barba comprida.

— Você querendo fazer-lhe o bem e o burro ai!... não me belisque, Narizinho! sempre com más-criações.

— Anões são gentinha perigosa — disse Rosa Vermelha. – Se uns comportam-se que nem anjos, como aqueles sete do castelo de Branca, outros são verdadeiras pestes. É muito perigoso lidar com essa gentinha.
–––––––
Continua... Cara de Coruja– IV – O Pequeno Polegar

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

José Carlos Dutra do Carmo (Manual de Técnicas de Redação) Parte XVII


REGÊNCIA.

Fique atento à regência de verbos e nomes, sobretudo daqueles que exigem a preposição “a”, para não cometer erro no emprego da crase.

REGÊNCIA VERBAL.

Regência Verbal é um assunto complicado, não acha? Não deveria ser, mas é. Existem vícios que desvirtuam a correta regência de diversos verbos.

O verbo “desfrutar” é muito empregado com regência errada. Por ser transitivo direto, não exige preposição antes de seu complemento. No entanto, o que mais se vê é um “de” insistente acompanhando-o, como na frase: “Eu e meu amigo desfrutamos das férias num paradisíaco balneário”. Errado! O correto é: “Eu e meu amigo desfrutamos as férias num paradisíaco balneário”.

RELER.


Releia com o máximo de atenção o texto que escreveu, antes de passá-lo a limpo, para não deixar ficar erros bobos, tolos, que poderão comprometer seriamente sua nota final.

Lembre-se: é fundamental pensar, planejar, escrever e reler seu texto. Mesmo com todos os cuidados, pode ser que não consiga se expressar de forma clara e concisa. A pressa pode atrapalhar. Com calma, verifique se os períodos não ficaram longos, obscuros. Veja se não repetiu palavras e idéias. À medida que relê o texto, essas falhas aparecem, inclusive erros de ortografia e acentuação. Não se apegue ao escrito. Refaça o texto, se for preciso. Não tenha preguiça, passe tudo a limpo quantas vezes forem necessárias. No computador, esta tarefa se torna mais fácil. Faça sempre uma cópia do texto original. Assim se sentirá à vontade para corrigi-lo quantas vezes quiser.

RELIGIÃO.

Não faça propaganda de doutrinas religiosas na redação. Mantenha-se sempre imparcial.

A religião, qualquer que seja ela, é uma questão de fé; a dissertação, por sua vez, é uma questão de argumentação, que se baseia na lógica. São, portanto, duas áreas situadas em diferentes planos. Não há como argumentar de modo convincente com base em dogmas religiosos; os preceitos de fé independem de provas ou evidências constatáveis. Torna-se, assim, completamente descabido fundamentar qualquer tema dissertativo em idéias que se situem em um plano que transcende a razão.

REPETIÇÃO.

Evite:

Dizer a mesma coisa duas vezes para explicar melhor.

Pormenores (detalhes), divagações, exemplos excessivos.

Palavras terminadas em “ão”, “ade”, “ente”, etc, pois provocam eco (rima inconveniente e condenável) na redação.

Repetições de palavras e de idéias, principalmente no mesmo parágrafo. Troque-as por sinônimos. A repetição de palavras denota falta de cultura, de conhecimento geral e pobreza de vocabulário, além de certa preguiça mental.

O emprego repetitivo das palavras eu, nós, ele, ela, e, que, porque, daí, aí, então, mas (esta, por exemplo, pode ser substituída por contudo, todavia, no entanto).

REPORTAGEM.

É uma notícia em profundidade. Caracteriza-se pela exposição enriquecida e profunda do fato.

REQUERIMENTO.

É um documento (texto administrativo), manuscrito ou datilografado, no qual o cidadão (interessado), depois de se identificar e se qualificar, faz um pedido (solicitação) à autoridade competente. Só é usado quando é pedido ao serviço público. Se traz a solicitação de várias pessoas, chama-se Memorial.

RESUMO.

Num resumo, não comente as idéias do autor. Registre apenas o que ele escreveu, sem usar expressões como segundo o autor..., o autor afirmou que....

Resumo é uma síntese das idéias, fatos e argumentos contidos num texto. Para fazê-lo, empregue suas próprias palavras, evitando, na medida do possível, reproduzir cópias do texto original.

Ler não é apenas passar os olhos no texto. É preciso saber tirar dele o que é mais importante, facilitando o trabalho da memória. Saber condensar as idéias expressas em um texto não é difícil, basta reproduzir com poucas palavras aquilo que o autor disse.

RETICÊNCIAS.

Nas dissertações objetivas, evite as reticências. A clareza na exposição é preferível a esperar que o leitor adivinhe o que você quis dizer.

As reticências marcam uma interrupção da seqüência lógica do enunciado, com a conseqüente suspensão da melodia. É utilizada para permitir que o leitor complemente o pensamento suspenso.

A língua escrita apresenta muitas diferenças em relação à língua falada. Observe como as reticências às vezes são utilizadas para criar o clima de mistério: “era sexta-feira...”

REVISÃO.

Revise a redação. Ela tem começo, meio e fim? Defendeu seu ponto de vista de maneira convincente? Escreveu parágrafos com tópico frasal e desenvolvimento? Respeitou as normas gramaticais vigentes?

Quando for revisar a redação, redobre os cuidados com a crase e a concordância. Triplique a atenção com a voz passiva sintética (do tipo "vendem-se carros") e do sujeito posposto ao verbo.

RISO.

Tire partido dos dados imprevisíveis e inadequados para conseguir o interesse do leitor pelo texto (e, muitas vezes, o riso).

— Ah, estou com vontade de passar a noite com a Luiza Brunet de novo. — O quê? Não me diga que já passou a noite com ela? — Não, mas já tive vontade antes.

Nem acreditei que aquele rapaz, tão jovem, olhava para mim! Então, ele gritou: — Tia, o porta-malas está aberto! — Fui para casa, com o porta-malas aberto e a cara mais fechada do que fundo de touro subindo a ladeira.

ROMANTISMO.

Afaste-se do romantismo fácil, mas não se furte à sinceridade da apresentação de seus sentimentos.

E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz “Vó”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

Os céticos dizem que as mulheres são verdadeiras surpresas, nem sempre muito agradáveis. Mas, como saber, se não tentar chegar ao fundo dos nossos sentimentos? E, se amo, tenho de arriscar, concordam comigo?

SILEPSE.

É a concordância com a idéia, não com a palavra escrita.

Vossa Majestade continua bondoso!

Os brasileiros somos muito otimistas.

Corria gente de todos lados, e gritavam.

SIMPLICIDADE.

Escreva com suas próprias palavras e produza novas idéias.

Use palavras conhecidas, adequadas e períodos curtos. Escreva com o máximo de simplicidade. Amarre as frases, organizando as idéias. Cuidado para não mudar de assunto de repente. Conduza o leitor de maneira leve pela linha da argumentação.

Alguns estudantes pensam que, utilizando palavras pomposas, artificiais, difíceis e rebuscadas, conseguirão impressionar os corretores de provas. Puro engano! Os vocábulos devem ser os mais comuns possíveis. Portanto, escreva com simplicidade. O uso de termos complicados não é prova de que você sabe escrever bem.

Neste tempo em que é preciso, ainda que ocasionalmente, jactar-se do que produzimos intelectualmente, far-nos-á muito bem que tenhamos, por hora, um projeto desenvolvimentista uniforme capaz de...

Ora, qualquer banca corretora, ao ler o texto acima, vai saber muito bem tratar-se de um plágio de alguém, ou, então, achar que você é um marciano!

Fonte:
http://www.sitenotadez.net

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Album de Recordações (A. A. de Assis e Luiz Otávio)

Montagem das trovas sobre foto obtida no livro de A. A. de Assis, "Vida, Versos e Prosa", Maringá: Eduem, 2010. pag. 52

Nemésio Prata Crisóstomo (Cavalgada de Trovas)


Leitura

O ato de ler praticado
com prazer, pelo leitor;
no final, seu resultado,
assemelha-se ao do amor!

Sentimentos

Entre lágrimas e risos,
respostas às emoções,
liberamos sentimentos
represos nos corações!

Sem Inspiração!

Passei horas meditando,
pensando no que dizer;
terminei nada compondo,
sem nada para escrever!

Amigo!

Não queiras por teu amigo
quem não pode ser provado
no dar água, pão e abrigo,
para alguém necessitado!

Livro

Deus me livre, por um dia
me faltar um Livro a mão;
de tristeza eu morreria,
em pungente solidão!

Professor

De tudo que eu aprendi
pra chegar a ser “doutor”,
se, bem, eu o compreendi:
devo muito ao Professor!

Médico

Para cuidar da saúde
com desvelo e competência
busco Médico amiúde,
amigo, de preferência!

Uma Trova Ecológica

Por aqui passava um rio
caudaloso e pleno em vida;
hoje mal se vê um fio
d'água suja e poluída!

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

Aníbal Lopes (Praça da Jorna)

Praça da Jorna do Couço
Não busquei lá trabalho
nem discuti o preço da jorna
mas nas lembranças que baralho
há muita memória que retorna

Gente apinhada na minha lembrança
procurando desesperada, o que fazer
rua cheia de pouca esperança
alguns voltando sem nada trazer

Deambulam sortudos de faina garantida
contrastando com os de fraca procura
todos fazendo pela vida
e a vida para todos sendo dura

Escolhe-se o braço mais forte
hábil no manejo do cabo da enxada
de fora ficam os da má sorte
herdeiros de uma alma magoada

Aluga-se força produtiva
sob a égide do manageiro
não chega a paga furtiva
a quem encheu o celeiro
––––––––––-
Nota
Praça da Jorna = A «praça de trabalho» ou «praça de jorna» é pois um mercado de mão-de-obra, a que vão assalariados e proprietários rurais (ou os seus delegados: os capatazes), e em que os primeiros, como vendedores, oferecem a sua força de trabalho, e os segundos, como compradores, oferecem o salário ou jorna, que é a paga de um dia de trabalho (jornal).
(Soeiro Pereira Gomes, in http://voarforadaasa.blogspot.com/2008/12/blog-post.html)

Fontes:
Poema enviado por Lino Mendes
Imagem =http://andarurbano.blogspot.com/2008/11/praa-de-jorna-feira-das-vaidades.html

Fiodor Dostoiewski (Uma Árvore de Natal e Um Casamento)


Um dia destes, vi um casamento... mas não, prefiro falar-vos de uma árvore de Natal. Achei o casamento bem bonito, mas a árvore de Natal me agradou mais. Nem sei como, olhando para o casamento, me lembrei da árvore. Eis como o caso se passou.

Há cerca de cinco anos fui convidado, na véspera de Natal, para um baile infantil. A pessoa que me convidou era um conhecido homem de negócios, cheio de relações e maquinações, e, assim, não se há de estranhar que o baile infantil servisse apenas de pretexto para os pais se reunirem e, no meio da multidão, se ocuparem de seus interesses materiais com ar inocente e surpreendido.

Como houvesse chegado ali por acaso e não tivesse nenhum assunto comum com os outros, passei a noite de maneira muito independente. Havia mais um cavalheiro que, como eu, não tinha, decerto, conhecidos no grupo, e participava casualmente da felicidade familiar. Ele deu-me na vista antes de todos. Era um homem alto, magro, muito sério, vestido muito decentemente. Notava-se que a felicidade da família não lhe comunicava a menor alegria; mal se retirava a um cantinho, cessava de sorrir e franzia as sobrancelhas espessas e negras.

Afora o dono da casa, não conhecia vivalma em todo o baile. Via-se que ele se entediava horrivelmente, mas que resolvera manter até o fim o papel do homem que se diverte e é feliz. Soube depois que era um provinciano vindo à capital a algum negócio importante e complicado. Trouxera carta de recomendação para o nosso hospedeiro, que o protegia, porém, não con amore, e o convidara, por cortesia, para o baile infantil. Não jogavam cartas com o provinciano, ninguém lhe oferecia um charuto nem com ele entabulava conversação, talvez porque reconhecessem de longe o pássaro pela plumagem, e, deste modo, o meu cavalheiro via-se obrigado, para ter que fazer das mãos, a alisar a noite inteira as suas suíças. Eram, aliás, umas suíças realmente belas - porém ele as acariciava com tanto zelo que a gente, ao fitá-lo, sentia-se inclinada a pensar que primeiro vieram ao inundo as suíças e só depois o homem, para cofiá-las, inserido entre elas.

Além desse personagem, que tomava parte na felicidade do dono da casa, pai de cinco garotos bem nutridos, do modo que acabo de relatar, outro conviva caíra no meu agrado. Mas este era de aspecto completamente diverso. Era um personagem a quem os outros chamavam Julião Mastakovitch. Percebia-se à primeira vista que era ele o convidado de honra. Estava para o dono da casa como este para o cavalheiro que afagava as suíças. o dono e a dona da casa falavam-lhe com amabilidade extraordinária, cortejavam-no, enchiam-lhe o copo, amimavam-no, e lhe apresentavam, recomendando-os, vários convidados, ao passo que a ele não o apresentavam a ninguém. Notei até uma lágrima nos olhos do hospedeiro quando Julião Mastakovitch observou que raras vezes passara o tempo de maneira tão agradável como naquela noite. Comecei a sentir-me acabrunhadíssimo em presença de semelhante figura, e, depois de haver admirado as crianças, retirei-me a um pequeno salão, totalmente vazio, e fui sentar-me sob o florido caramanchão da dona da casa, o qual ocupava quase a metade de toda a peça.

Eram as crianças incrivelmente gentis, e não queriam, apesar de todas as exortações das mamães e das governantas, parecer-se com as pessoas grandes. Num piscar de olho desmontaram toda a árvore de Natal, e conseguiram quebrar a metade dos brinquedos antes mesmo de saber a quem eram destinados. Achei particularmente engraçado um menino de olhos pretos e cabelos frisados que à viva força me queria matar com a sua espingarda de pau. Entretanto, mais que todos, atraía-me a atenção sua irmã, menina de onze anos, um amor de criança, meiga, cismativa, pálida, com grandes olhos sonhadores à flor do rosto. Parecia que os amiguinhos a tinham ofendido, pois veio ao salão onde eu estava sentado e, a um cantinho. pôs-se a brincar com as suas bonecas. Os convidados apontavam, com respeito, um rico negociante, pai da menina, e alguém observou, cochichando, que ela já tinha trezentos mil rublos reservados como dote. Voltei-me para ver quem se interessava por esses pormenores, e o meu olhar caiu sobre Julião Mastakovitch o qual, de mãos cruzadas atrás das costas e inclinando a cabeça para um lado, parecia acompanhar com particular atenção o mexerico de alguns senhores. Pouco depois, não pude furtar-me a admirar a sabedoria dos anfitriões na distribuição dos brindes às crianças. A menina que já tinha seus trezentos mil rublos de dote ganhou uma boneca sumptuosíssima.

Desde então os presentes foram diminuindo de valor, de acordo com a diminuição da importância dos pais daquelas crianças felizes. Afinal, a última' um menino de dez anos, magrinho, baixinho, sardento e ruivo, ganhou apenas um livrinho de contos sobre as maravilhas da natureza, Das lágrimas da sensibilidade, etc., sem estampas e até sem vinhetas. Filho da governanta dos meninos da casa, uma pobre viúva, era um pequeno muitíssimo encolhido e tímido, metido num pobre paletozinho de nanquim. Recebido o seu livrinho, andou muito tempo à volta dos brinquedos dos outros. Tinha uma vontade imensa de brincar com as outras crianças, mas não se atrevia; claro, já sabia e compreendia a sua situação.

Gosto muito de observar crianças. São sobremodo curiosas as suas primeiras manifestações independentes na vida. Notei, pois, que o menino ruivo se deixava seduzir pelos brinquedos dos outros, sobretudo pelo teatro, em que ele se empenhava para representar um papel qualquer, a ponto de aviltar-se. Pegou a sorrir para os outros, a cortejá-los, deu a sua maçã a um pequeno gordo que já tinha o lenço cheio de presentes. e até se ofereceu para carregar outro, só para que não o afastassem do teatro. No entanto, poucos minutos após um rapazinho arrogante deu-lhe uma boa surra. o ruivinho nem teve coragem de chorar. Logo apareceu sua mãe, a governanta, e ordenou-lhe não se intrometesse nos brinquedos alheios. O menino retirou-se para o salão onde estava a menina bonita. Esta o deixou aproximar-se, e as duas crianças entraram a enfeitar a sumptuosa boneca.

Fazia já meia hora que eu estava sentado no caramanchão de hera, e quase adormecera ao zunzum da conversa entre o ruivinho e a menina dos trezentos mil rublos de dote, que se entretinham a respeito da boneca, quando de repente vi entrar no salão Julião Mastakovitch. Aproveitando a distração dos presentes com uma briga surgida entre as crianças, saíra do salão principal sem fazer barulho.

Notara eu, poucos minutos antes, que ele mantinha animada palestra com o pai da futura noiva rica, a quem mal acabara de conhecer, explicando-lhe as vantagens de qualquer emprego público sobre os demais. Parou à porta, tomado de hesitação, e parecia calcular alguma coisa nas pontas dos dedos.

- Trezentos... trezentos - murmurava.- Onze... doze... treze... até dezesseis, são cinco anos... Façamos de conta que sejam quatro por cento, são doze... cinco vezes doze, sessenta; estes sessenta... bem, calculados por alto, ao cabo de cinco anos serão quatrocentos. Está certo... Mas naturalmente o malandro não os terá colocado a quatro por cento! Talvez receba oito ou até dez por cento. Suponhamos que sejam quinhentos, no mínimo, sim, quinhentos mil, na certa. .. o excedente gasta-se no enxoval, hum...

Acabou a meditação, assoou-se, e, indo a sair do salão, súbito avistou a menina e estacou. Como eu estivesse assentado atrás dos vasos de flores, não me pôde ver. Tive a impressão de que o homem se achava muito excitado. Seria o cálculo que operava esse efeito sobre ele, ou outro motivo qualquer? Não sei. seja como for, o certo é que esfregava as mãos e não conseguia permanecer no mesmo lugar.

Quando a sua agitação chegou ao cúmulo, parou um instante e lançou um segundo olhar, muito resoluto, à futura noiva. Quis aproximar-se dela, mas primeiro olhou em redor. Depois, como quem tem sentimentos criminosos, aproximou-se da criança nas pontas dos pés. Com um sorrisinho nos lábios, inclinou-se para ela e beijou-a na testa. A menina, não esperando a agressão, gritou assustada.

- Que é que você está fazendo aqui, bela menina? - perguntou ele em voz baixa.

E, olhando em torno de si, deu-lhe uma palmadinha no rosto.

- Estamos brincando...

- Com ele? - disse Julião Mastakovitch fitando o menino de esguelha.

E logo acrescentou:

- Escuta, meu amigo, por que não vais para o salão?

O menino fitava-o sem falar, de olhos arregalados. Julião Mastalovitch olhou de novo em redor e aproximou-se outra vez da pequena:

- Que é que você tem aí bela menina? Uma bonequinha?- Uma bonequinha - respondeu a criança de cara fechada, cabisbaixa.

- Uma bonequinha... Mas você sabe, gentil menina, de que é feita a bonequinha?

- Não sei... - cochichou a pequena, abaixando ainda mais a cabeça.

- De trapos, minha alma... Mas tu, meu filho, deverias ir para o salão brincar com os teus camaradas, - disse Julião Mastakovitch encarando o menino com severidade.

As duas crianças franziram a testa e agarraram-se pela mão. Não queriam separar-se.

- Sabe você por que lhe deram essa bonequinha? - perguntou Julião Mastakovitch baixando cada vez mais a voz.

- Não.

- Porque você é uma criança boa e se comportou bem a semana toda.

Perturbado a mais não poder, Julião Mastakovitch lançou mais uma vez um olhar em roda, e baixou a voz de modo que a sua pergunta, formulada em tom impaciente e embargada pela emoção, saiu quase imperceptível:

- Diga-me, gentil menina: você gostará de mim se eu fizer uma visita a seus pais?

Havendo proferido tais palavras, Julião Mastakovitch quis beijar a pequena mais uma vez; mas o menino, vendo-a prestes a romper no choro, puxou-a pela mão e, compadecido, começou, ele próprio, a choramingar.

Dessa vez Julião Mastakovitch aborreceu-se deveras.

- Vai-te embora - disse ao menino - Vai para a sala brincar com os teus camaradas.

- Não vá, não - protestou a menina. - Você é que deve ir-se embora. Deixe-o aqui, deixe-o - disse quase soluçando.

Alguém fez barulho à porta. Assustado, Julião Mastakovitch ergueu no mesmo instante o corpo majestoso. O menino ruivo, porém, assustou-se ainda mais do que ele, largou a mão da menina e, devagarinho, roçando a parede, caminhou do salão à sala de jantar. Para não despertar suspeitas, Julião Mastakovitch também passou à sala de jantar. Estava vermelho feito uma lagosta e, mirando-se ao espelho, parecia até envergonhado de si mesmo, talvez arrependido da sua sofreguidão. Teria sido o cálculo feito na ponta dos dedos que o arrebatara a ponto de inspirar-lhe, apesar de toda a sua seriedade e gravidade, um procedimento de criança? Aproximava-se de chofre do seu objectivo, embora este não viesse a tornar-se um objectivo real antes de cinco anos, no mínimo.

Acompanhei o respeitável cavalheiro a sala de jantar, e ali testemunhei um espectáculo curioso. Rubro de raiva e despeito, Julião Mastakovitch perseguia o menino ruivo, o qual, recuando cada vez mais, já não sabia para onde correr:

- Sai daqui! Que diabo vens fazer aqui, velhaco? Vieste roubar frutas, hem? Vieste? Fora daqui, patife! Vai, fedelho, procura os teus camaradas!

Espantado, o pequeno recorreu a um expediente extremo: foi esconder-se debaixo da mesa. Então o seu perseguidor, no auge da excitação, puxou do bolso o grande lenço de baptista e, brandindo-o, procurou enxotar o menino do seu esconderijo.

Este se encolhia caladinho, sem se mexer. Cumpre observar que Julião Mastakovitch era um tanto gordo: rapaz bem nutrido, corado, barrigudo, de pernas robustas, - em uma palavra, como se costuma dizer, redondo e forte como uma noz.

Suava, enrubescia, arfava terrivelmente. Estava exasperado por um sentimento de indignação e, quem sabe, de ciúme.

Não pude conter uma gargalhada. Julião Mastakovitch virou-se e, a despeito de toda a sua importância, ficou mortalmente acanhado. Nesse instante, na porta oposta, apareceu o dono da casa. O ruivinho saiu logo do esconderijo e pôs-se a limpar os joelhos e os cotovelos. Julião Mastakovitch, com um gesto rápido, levou ao nariz o lenço que tinha na mão, seguro por uma das extremidades.

O dono da casa fitava-nos aos três, perplexo, mas, como homem que conhece a vida e a considera pelo lado sério, resolveu aproveitar a circunstância de encontrar-se quase a sós com o seu hóspede.

- É este o menino - disse indicando o ruivinho - que tive a honra de lhe recomendar...

- É? - respondeu Julião Mastakovitch, que ainda não voltara inteiramente a si.

- É filho da governanta de meus filhos - prosseguiu o dono da casa em tom de solicitação -, uma senhora pobre, viúva de um funcionário honesto; portanto, Julião Mastakovitch... se for possível...

- Mas não é? - exclamou sem demora Julião Mastakovitch. - Perdoe-me, Filipe Alexeievitch, é totalmente impossível. Pedi informações... No momento não há vaga, e, ainda que houvesse, já se tem dez candidatos, cada um mais qualificado que este..

- Sinto muito... muitíssimo..

- É pena - disse o dono da casa. - É um menino bonzinho, modesto...

- Pelo que vejo, é um grandíssimo vadio, - estourou Julião Mastakovitch, com uma careta histérica. - Sai daí, menino. Que é que tu queres aí? Vai brincar com os teus camaradas; disse ainda, voltando-se para o ruivinho.

Não conseguindo mais conter-se, olhou para mim de soslaio. Por minha vez, não pude deixar de lhe rir deliberadamente nas barbas. Ele desviou de mim os olhos, e em voz bem alta perguntou ao dono da casa quem era aquele rapaz esquisito.

Saíram os dois da sala cochichando. Vi que Julião Mastakovitch, ouvindo as explicações de seu hospedeiro, abanava a cabeça, meio desconfiado.

Ri a bom rir com os meus botões, e voltei ao salão. Rodeado de mamães, de papais e dos donos da casa, o grande homem explicava alguma coisa com muito calor a uma senhora a quem acabavam de apresentá-lo. Esta segurava pela mão a menina com quem, dez minutos antes, Julião Mastakovitch representara a sua cena no pequeno salão. Agora ele estava-se derramando em extáticos elogios à beleza, aos talentos, à graça e à boa educação da gentil menina. Manifestamente engodava a mamãezinha, que o escutava quase com lágrimas de enlevo. Os lábios do pai sorriam. o dono da casa alegrava-se com essas alegres efusões. Os próprios convidados tomavam parte no júbilo; até os brinquedos das crianças foram suspensos para não se perturbar a conversa. Era uma atmosfera quase religiosa.

Logo depois, ouvi a mãe da interessante pequena, comovida até o fundo da alma pedir a Julião Mastakovitch, com expressões escolhidas, que lhe desse a subida honra de distinguir-lhe a casa com sua preciosa visita, e ele aceitou o convite com entusiasmo; enfim, ouvi os demais convidados, no momento da de despedida, expandirem-se, como o exigiam as conveniências, em louvores comovidos ao rico negociante, a sua mulher e a sua filha, e principalmente a Julião Mastakovitch.

- É casado esse cavalheiro? - perguntei em voz quase alta a um conhecido que estava mais perto dele.

Julião Mastakovitch enviou-me um olhar indagador e feroz.

- Não - disse-me o meu conhecido, profundamente penalizado com a leviandade que eu de propósito cometera.

Passava eu, há pouco tempo. em frente à igreja de ***, quando um grande ajuntamento me despertou a atenção. Em redor falava-se de um casamento. O dia estava nublado, começava a chuviscar; entrei na igreja abrindo caminho através da multidão. Logo avistei o noivo. Era um rapaz baixo, gordo, bem nutrido, de ventre ponderável, muito enfeitado, que corria para todos os lados, se agitava sem parar, dava ordens. Enfim, levantou-se um murmúrio de vozes anunciando a chegada da noiva. Fendi a turba de curiosos e vi uma jovem de admirável beleza, para quem a primavera apenas começava. Mas estava pálida e parecia triste a linda noiva. Olhava distraída e tinha os olhos vermelhos, o que me deu impressão de lágrimas recentes. A severidade clássica de suas feições emprestava-lhe à beleza uma expressão algo solene. Através daquela severidade, daquela gravidade, de toda aquela tristeza, transpareciam os traços de uma criança inocente, algo de incrivelmente ingénuo, juvenil e ainda não formado, que parecia, sem palavras, implorar piedade.

Ouvi observar que ela mal acabava de completar dezasseis anos. Examinando atento o noivo, nele reconheci Julião Mastakovitch, que eu não via desde cinco anos.

Olhei para ela... Meu Deus! Fendi a multidão outra vez para sair da igreja o mais breve possível. Ainda ouvi um espectador dizer que a noiva era rica, que tinha quinhentos mil rublos de dote... e não sei mais quanto para o enxoval.

- Então o cálculo era justo; disse comigo.

- E saí para a rua.

Pedro Du Bois (Parênteses)


ser a vida entre parênteses
na explicação dos teores ocultos
no desplante: mentir explicações
de contados elementos na imagem
modulada no limite do esgarçamento:
conta apresentada em favores;
desligar o som e explicar o silêncio
do quarto entreaberto em atos.
O sentido do rosto contra o espelho
melancólico das imagens. Texto
tosco das palavras sem sentido.

Fontes:
Poema enviado pelo autor
Imagem = http://mentesdementes.zip.net