sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Guerra Junqueiro (A Boneca)


Deixe-me agora, leitor, contar-lhe a história de uma boneca!

Estava eu uma noite, distraidamente, encostado a uma barraca de feira.

Cansado das inúmeras figuras, que tinha visto passar por aquela espécie de lanterna mágica, dispunha-me a dar o espetáculo por concluído, quando novas personagens me chamaram a atenção.

Eram os meus vizinhos ricos.

Expliquemos:

Das famílias da minha vizinhança, só conheço três.

Uma vive na loja da casa onde habito. É uma tribo de crianças que fazem o martírio e a alegria da pobre mãe, e tem por chefe um honrado sapateiro.

Algumas delas, andando limpas, seriam encantadoras; assim, parecem anjos, caídos do Céu sobre um monte de lama.

São os meus vizinhos pobres.

A segunda compõe-se de marido, mulher e filha, e ocupa a casa imediata.

como se costuma dizer, gente que vai muito bem com a sua vida.

A filha, de dez anos, tem destas faces rosadas, rijas e carnudas, cuja solidez a gente, gosta de experimentar com o dedo e que resistem à pressão.

São os meus vizinhos remediados. A terceira é a dos nossos vizinhos ricos. Casa nobre, jardim espaçoso, cavalos,

criados, nome inscrito nas listas dos acionistas de todos os bancos e no rol dos credores do Estado – nada falta àquela ditosa gente!

Compõe-se por igual de marido, mulher e filha.

Que linda criança!... Terá oito anos.

Delgada e pálida, com os cabelos negros, os olhos grandes e cismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos de dedos compridos e esguios, terminando por unhas de uma cor-de-rosa transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz namorado – provavelmente ainda a crescer – que terá um dia direito de lhas cobrir de beijos.

Qual das três famílias será a mais feliz?...

Pelo que noto, não podem invejar-se umas às outras.

São todas felizes: cada qual a seu modo.

Vi, pois, chegar os meus vizinhos ricos.

Parou o carro, o trintanário saltou da almofada e veio, de chapéu na mão e dorso ligeiramente curvado, abrir a portinhola; o meu vizinho saltou, tomou nos braços a filhinha, depô-la no chão, auxiliou a esposa a descer, e com ela e com a menina dirigiu-se para a barraca onde eu estava.

Aquele homem, exemplar como marido, rico, doido por ela, parecia agradecer à formosa criança a manifestação de qualquer desejo.

No fim de meia hora possuía a minha pequena vizinha com que fazer a felicidade de dez crianças menos abastadas.

Tinha o necessário para montar completamente a casa de uma boneca... rica.

Faltava apenas a dona da casa – a boneca.

Todo risos e atenções, apresentou o lojista o que havia de melhor.

Depois de muita hesitação e de, já com os olhos, já com a voz, consultar a mamã, a gentil criança, acabou por escolher uma bela boneca de dois palmos de altura, cabelo de ouro e grandes olhos azuis.

Uma boneca como as outras: cabeça e peito de massa, corpo de pelica recheada, braços e pernas de pau.

Feita a compra, levou o escudeiro todas aquelas preciosidades para dentro do carro.

A boneca teve a honra de ser transportada pela aristocrática menina.

Saí dali, apenas o trem rodou, e fui fazendo até casa variadíssimas considerações, sugeridas pela quase indiferença com que aquela criança recebera brinquedos, que representavam um bom par de moedas.

Que contraste com os olhares de cobiça, com que outras raparigas da mesma idade namoravam uma simples boneca de cabeça de pano, horrível artefato, em que os olhos são representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um alinhavo de retrós cor-de-rosa, a boca por outro fio vermelho, e os cabelos por flocos de lã preta!

Quando cheguei a casa, já na dos meus vizinhos remediados não havia luz.

Na dos meus vizinhos pobres, o pai batia a sola, cantando ao som de três assobios e duas campainhas de barro, com que os anjos, por lavar, provocavam zangas e descomposturas da mãe.

Quando, no dia seguinte, cheguei à janela, seriam onze horas da manhã.

Na rua agenciavam nova camada de imundície os filhos do sapateiro; na casa imediata não se via ninguém – estava a pequena na mestra; no palácio, sentada num tapete estendido sobre a ampla pedra da varanda, divertia-se a minha pequena milionária fazendo rodar, com o auxílio de uma linha, uma magnífica caleche descoberta, puxada por cavalos brancos.

Dentro da caleche pavoneava-se a boneca opulentamente vestida.

– Ah! está a tua caricatura, minha feiticeira!... – disse eu de mim para mim. «Ensaias nas bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a aprender a copiar... Sempre este mundo!...»

Retirei-me da janela.

Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma cena.

A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia em que mudava três e quatro vezes de vestido.

Ao que eu, porém, achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!

Chamava-lhe Srª D. Luísa; dava-lhe excelência; sustentava, finalmente, com a boneca um destes diálogos de senhoras de alta sociedade, em que se fala de tudo, sem se dizer coisa alguma.

Um dia – estava eu de costas voltadas para a janela dos meus vizinhos ricos –ouvi um grito de susto.

Era devido a um acidente, a que está sujeito quem anda de carro.

Voltara-se este e caíra a boneca, rachando a cabeça na pedra da janela.

O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a vítima; vendo, porém, que a ferida havia forçosamente de deixar cicatriz, e lembrando-se de que sé lhe bastava querer, para que lhe dessem outra boneca nova, agarrou-a pelos pés e ia atirá-la com despeito à rua, quando mais perto de mim bradou voz tímida e suplicante:

– Não deite fora!... Dê-ma.

Era a minha pequena vizinha da casa contígua, de quem eu não dera fé até então.

Assim invocada, a menina rica franziu levemente as sobrancelhas e lançou um olhar de rainha para o sítio donde viera a súplica.

Mas, vendo uma criança, pouco mais ou menos da sua idade, serenou e, encolhendo os ombros, respondeu:

– Já não presta!... Está esmurrada!...

– É o mesmo!... Dá-ma?... – bradou a outra, cujos olhos ardiam de cobiça.

– Dou... volveu a rica, encolhendo novamente os ombros.

E, caminhando para o canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da vizinha, que tremia receosa de que o tesouro se fosse despedaçar nas pedras da calçada.

Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para exigir nova boneca; a outra, para mostrar à mãe o que ela ainda não podia acreditar que fosse seu!

Durante meses foi a boneca a principal ocupação da sua dona.

A pobre perdera na troca. ia longe o tempo em que ela se vestia quatro vezes em quatro horas!... Já lhe não davam excelência! Chamavam-lhe a Srª D. Ana; falavam-lhe de arranjos domésticos, de desmazelo da criada, da missa das almas, de coisas, enfim, completamente estranhas para ela!

E a desgraçada perdia as cores; os olhos tornavam-se-lhe cada vez menos azuis; mas o que mais a desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se ia tornando mais escura: parecia uma nódoa, um estigma!

Nos primeiros tempos, enquanto durou o vestido que trouxera no corpo, ainda enganaria olhos pouco conhecedores.

Não tardou, porém, que arrebique de mau gosto, fitas velhas, rendas amareladas, chapéus impossíveis, viessem contrastar com a elegância do vestido. Dava ares de se ter equipado ao acaso, na loja de uma adeleira.

Mas o vestido foi-se tornando velho; desapareceu o brilho, e com ele as ondulações ao moiré, até que, um belo dia, vi a boneca vestida de cassa – no Inverno! – xale e manta na cabeça.

Muito mal lhe ficava aquilo!... Aquela boneca custava-lhe decerto o ver-se tão mal arranjada.

Eu retirei-me da janela com um suspiro e balbuciei:

– É justo!... Cada qual segundo as suas posses.

Por este tempo, entrei em relações com o meu vizinho sapateiro.

O honrado homem soubera que eu me queixara da bulha, que os filhos faziam logo ao amanhecer, e aproveitara a primeira ocasião, para me pedir desculpa...

Vendo-me conversar com o pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de nós e, desde então, nunca saio de casa nem entro, sem grave risco de sofrer as consequências da sua travessa familiaridade.

Entre os filhos do sapateiro, porém, há uma pequenita de onze anos, com quem simpatizei logo à primeira vista.

Chama-se Maria.

Por um destes acasos, que parece às vezes comprazerem-se em suscitar contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.

Acostumado às travessuras e desalinho dos outros filhos do sapateiro, fiquei: deveras atônito quando o pai inda apresentou.

E ele conhecia bem o valor daquela criança, porque se sentia verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse:

«Esta é a minha Maria!» E tinha razão!

Não podia ser mais discreta do que já era naquela idade.

– É quem vale à mãe!... – acrescentou o velho. – Ali, onde a vê, faz o serviço de uma mulher.... – Há seis meses, quando a minha santa caiu de cama – bem pensei que não arribasse! – a pequena era quem cozinhava e olhava pelos irmãos! E caridade como ela tem!?... Olhe que esteve três dias sem se deitar... Ali... ao pé da mãe! Foi preciso eu obrigá-la, não a queria deixar!...

E o desvanecido pai enxugou com a manga da camisa uma lágrima, que, havia muito, hesitava sobre se sim ou não se devia desprender.

Fazia gosto ver aquela criança com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por um lenço branco.

Desde que o pai me deu tão boas informações da rapariga, nunca passei por defronte da porta da loja, sem dar pelo menos os bons-dias à pequena.

Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas, com uma boneca deitada nos joelhos.

– Eu conheço aquela boneca!... – disse de mim para mim.

E, não podendo resistir à curiosidade, bradei:

– Maricas! Quem te deu a boneca?...

– Foi ali a menina da vizinha! – respondeu corando de prazer.

Era escusado dizer-mo.

A Maria pegara na boneca e voltara-a de face para mim. Não podia duvidar... Era ela; lá estava a mancha, o estigma cada vez mais visível no meio da testa.

De tempos a tempos, nas raras horas do descanso, Maria entretinha-se com a boneca.

Quem te viu e quem te vê!... – pensava eu.

Às vezes, se a Maria se descuidava e os irmãos lha apanhavam, que tratos diabólicos não sofria a desgraçada!

Roçada por aquelas mãos, que envergonhariam um carvoeiro, empregada como péla, submetida a torturas, era, ainda assim, bem singular o aspecto da triste miserável!

Dava ares de uma duquesa que, por necessidade, houvera sido levada a fraternizar com o povo.

A triste boneca mudara mais uma vez de nome!... De Srª D. Ana, passara a ser Srª Rosinha e tratavam-na por vossemecê.

Usava vestido de chita, capote velho de pano verde e lenço na cabeça.

Era um prazer para mim escutar as conversas, que Maria sustentava com a boneca.

Esta, umas vezes, fazia o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de perguntar e responder por ela, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por tudo estar caro, por haver falta de trabalho, por ter os filhos doentes, todos os casos, em suma, que mais familiares eram à pequena.

Outras vezes passava a boneca a ser criada de servir. Repreendiam-na, mandavam-na buscar água à fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a despedir.

Já o leitor vê que, apesar da bondade de Maria, a mísera boneca era infelicíssima.

Iam longe os bons tempos em que ela, rica, morava no palácio vizinho!

Desmaiada de cores, quase perdido o cabelo, semiapagados os olhos, desfeito o carmim dos lábios, a boneca não prometia longa duração.

Foi este pelo menos o prognóstico que fiz a última vez que a vi, tentando em vão agradar à última dona que o seu destino lhe dera.

Coitada!... Bem longe estava de lhe imaginar o fim!

Um dia chovia a cântaros! – o enxurro mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em cachão para cima dos passeios, arrastando na passagem mil imundícies.

Eu estava à porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e olhava melancolicamente para a água negra, que coma. Nisto ouvi um grito que partiu da loja do sapateiro. Voltei maquinalmente o rosto... Um objecto, arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço voando, e foi cair no leito do enxurro...

Olhei... Era a boneca!...

A mísera, arrastada pela água, vogou rua abaixo até esbarrar numa pedra; mas o redemoinho envolveu-a, e depois de a fazer girar três ou quatro vezes, obrigou-a a passar entre a pedra e o passeio, e lá a triste seguiu no fio da corrente, até se submergir nas profundezas da primeira boca de lobo, que encontrou na passagem!

Será pieguice, será o que o leitor quiser: mas, confesso-lhe, que me impressionou o destino da pobre boneca.

Mas passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado à vidraça do sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:

– Porque deitaste fora a boneca, Maricas!?

– Não fui eu... balbuciou a pequena, chorando. – Foi ali o Joaquim!

– E porque fizeste tu aquilo, Joaquim?...

– Ora!... respondeu o garoto com enfado... Ora!... Estava velha.., e feia!...

Curvei a cabeça ante aquela razão, e segui o meu caminho.

Pobre boneca!

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) - Pena de Papagaio - VII - Esopo


Durante todo aquele tempo o menino invisível estivera afastado do grupo, vendo uns macacos que haviam aparecido na orla da floresta. Ao voltar anunciou sua chegada, já de longe, com o costumado cócóricócó. O senhor de La Fontaine, que ignorava aquela mania do Peninha, iludiu-se, julgando tratar-se dum galo de verdade.

— Lá está um galo cantando — disse ele ingenuamente. – Gosto dessa ave, que simboliza a bravura e a vitória.

Todos sentiram vontade de rir ao perceberem o engano dum homem tão sábio. Mas contiveram-se, lembrando o respeito que dona Benta lhes ensinara para com os mais idosos. Todos, menos Emília. A burrinha espremeu uma das suas risadas caçoístas e disse, antes que a menina pudesse atrapalhar:

— O senhor está fazendo papel de bobo, senhor de La Fontaine! Aquilo nunca foi canto de galo, nem aqui nem na casa de sua sogra. É o Peninha que vem vindo.

Narizinho, envergonhada, tapou-lhe a boca com a mão e ralhou; — Como chama bobo a um homem tão importante, Emília? Vovó, quando souber, vai ficar danada!...

Nisto a pena de papagaio apareceu flutuando no ar, vinda da floresta, em companhia dum homem esquisito. Todos se voltaram para ver.

— Quem será o bicho careta? Com certeza algum homem que estava tomando banho e perdeu as roupas — berrou Emília. – Vem embrulhado na toalha.

O senhor de La Fontaine explicou quem era.

— Estás enganada, bonequinha. Aquele homem é um famoso fabulista grego. Não vem embrulhado em nenhuma toalha, mas sim vestido à moda dos antigos gregos. Chama-se Esopo. Foi o primeiro que teve a idéia de escrever fábulas.

Esopo chegou e saudou cortesmente o fabulista francês. Depois fez festas às crianças. Vendo Emília, admirou-se.

— Oh, uma bonequinha também! Era o único ente que faltava nestas terras. É falante?

— É sim. Emília fala pelos cotovelos — respondeu Narizinho.

A admiração de Esopo foi grande, porque apesar de velho nunca tinha sabido de nenhuma boneca que falasse.

— É extraordinário !— disse ele. — Bonecas vi muitas em Atenas, mas mudas. O mundo tem progredido, não resta dúvida. Como te chamas, bonequinha?

— Emília de Rabicó, sua criada.

— Lindo nome. E quem te ensinou a falar?

— Ninguém — respondeu Emília com todo o espevitamento.

— Nasci sabendo. Quando o doutor Caramujo me deu uma pílula tirada da barriga dum sapo, comecei a falar imediatamente.

— Emília fala muito bem — explicou Narizinho. — Pena é que diga tanta tolice. O grego sorriu com malícia.

— Nós, sábios, também não fazemos outra coisa — disse ele. — Mas como dizemos nossas tolices com arte, o mundo se ilude e as julga alta sabedoria. Vamos, bonequinha, diga uma tolice para o velho Esopo ver.

Emília desapontou e, torcendo a ponta do seu lencinho de chita, respondeu com muito propósito:

— Assim de encomenda, não sei...

Os dois fabulistas trocaram um olhar de inteligência, como quem diz: “Vê?” Em seguida ferraram uma discussão a respeito da origem das fábulas — e, afastando-se dali, foram sentar-se numa pedra à beira do ribeirão.

Vendo-se sós, os meninos começaram a planejar grandes aventuras.

— Eu quero ver um leão! Quero conhecer o leão da fábula! — disse Pedrinho.

— Eu quero ver aqueles dois pombinhos do apólogo tão bonito que vovó contou — disse a menina.

— E eu quero pegar um tatu-canastra — disse Emília.

Era a terceira vez que Emília falava em tatu-canastra. Narizinho ficou intrigada.

— Que tatu-canastra é esse em que você tanto fala, Emília?

A boneca respondeu sem demora.

— É que a canastrinha que trago sempre comigo me dá muita canseira. Tenho de carregá-la no lombo do Visconde o tempo todo. Ora, se pego um tatu-canastra, fico dona duma canastra que anda por si mesma nos seus quatro pés. Não acham que é boa idéia?

— É a maior idéia que a senhora teve até hoje, marquesa! — exclamou o Visconde.

O pobre sábio andava que mal podia consigo, de tanto carregar às costas a tal canastrinha. Por isso não falou nem se meteu em coisa nenhuma durante todo o passeio. Não pôde nem sequer debater ciência com os dois fabulistas, seus colegas em sabedoria. Se de fato houvesse um tatu-canastra, que bom!


Peninha contou que na floresta havia muito mais bichos do que ali — leões, tigres, macacos, ursos — todos os animais importantes. Em vista disso, para lá se encaminhou o bando, guiado pela pena de papagaio flutuante. Assim que entraram na floresta viram no topo de uma árvore seca um corvo de queijo no bico. Pedrinho, muito sabido em fábulas, disse logo:

— Aposto que embaixo da árvore está uma raposa. Ela vai gabar a voz do corvo, dizendo que nenhum sabiá canta mais bonito que ele. O vaidoso acredita, fica todo ganjento, abre o bico para cantar e o queijo cai e a raposa pega o queijo e foge com ele, na risada. Já sei tudo. Não vale a pena pararmos para ver isso.

— Vale, sim! — contrariou Emília. — Podemos enganar a raposa e comer o queijo.

Narizinho fez cara de nojo.

— Que coragem, Emília! Comer um queijo que já andou em bico de corvo...

— Comer de mentira, boba. Só para ver o desapontamento da raposa.

Mas não pararam. Pedrinho achava que corvo e raposa eram bichos sem importância, dos que não valem a pena. Queria feras de verdade.

— Onde mora o leão, Peninha? — perguntou ele.

— Na montanha. Vai-se pelo caminho da casa da Menina do Leite.

— Bravos! — exclamou Narizinho. — Vovó nos contou a história dessa coitadinha que foi ao mercado vender o primeiro leite da sua vaca mocha, fazendo castelos do que havia de comprar com o dinheiro. De repente tropeçou, o pote veio ao chão e a coitada viu irem-se água abaixo, com o leite, todos os seus lindos sonhos. Desejo muito conhecê-la pessoalmente.

A floresta formava ali uma clareira, de modo que puderam avistar ao longe a fumacinha, depois a chaminé, depois o telhado e por fim a casa inteira de Laura, a Menina do Leite.

— Lá vem ela! — gritou Emília.

De fato, num vestido de pintas vermelhas, Laura vinha vindo na direção deles, com o pote de leite à cabeça.

— Bom dia, Laura! — disse Narizinho ao defrontar a raparigota. — Aonde vai tão requebrada e faceira?

— Ao mercado da vila próxima, vender este leite da minha vaca mocha. Vendo o leite e compro duas dúzias de ovos. Pretendo chocar os ovos e tirar duas dúzias de pintos. Cresço a pintalhada e obtenho doze galos e doze galinhas. Vendo os galos e conservo as galinhas para botarem ovos. A duzentos ovos cada uma por ano, terei, deixe ver... — e começou a fazer a conta de cabeça.

— Não estrague a sua cabecinha, dona Laura — disse Emília.

— Temos aqui o Visconde que é um danado para contas. Visconde, arrie a canastra e faça a conta desta menina.

O embolorado sábio obedeceu. Arriou a canastrinha, enxugou o suor da testa e fez a conta na areia, com um pauzinho.

— Dois mil e quatrocentos ovos — declarou ele por fim.

— É isso mesmo — disse a Menina do Leite, que já tinha feito a conta de cabeça. — Dois mil e quatrocentos ovos! Ponho tudo a chocar e consigo outras tantas aves. Vendo-as no mercado e compro dez porcos. Faço uma criação de porcos. Vendo os porcos e compro cinqüenta vacas.

A boneca, que conhecia a fábula, estava de olho no pote para vê-lo cair. Era naquele ponto que o leite se derramava. Mas o pote não caiu e Laura continuou:

— Faço uma grande criação de vacas. Depois vendo as vacas e compro uma casa e um automóvel. Fico morando na casa e vou passear na vila de automóvel. Lá encontro um lindo moço que se apaixona por mim. Caso-me com ele e vou morar na cidade.

Emília estava na maior aflição. A Menina do Leite já passara todos os pontos em que o pote cai. Já estava casada e morando na cidade. Continuando assim, a fábula ia ficar completamente sem jeito. A boneca não pôde conter-se por mais tempo.

— Pare, senhorita, e derrube o pote de leite, se não a fábula fica sem pé nem cabeça! Laura deu uma gargalhada.

— Já se foi esse tempo, bonequinha! Isso me aconteceu uma vez, mas não acontece outra. Arranjei esta lata de metal, que fecha hermeticamente, para substituir o pote quebrado. Agora posso sonhar quantos castelos quiser, sem receio de que o leite se derrame e meus sonhos acabem em desilusões. Adeus, meninada, adeus!

Foi um desapontamento geral.

— Não valeu a pena pararmos para ver só isto – disse Pedrinho. — Vamos depressa à montanha. Talvez lá as fábulas sejam sempre as mesmas. Quero ver o leão.

Nisto avistaram a montanha onde estava a caverna do rei dos animais. Dali por diante tinham de ir com todas as cautelas, na ponta dos pés, para não despertar a atenção dalguma fera. Chegaram ao terreiro que havia em frente da caverna. Ossos de animais devorados e um cheiro de carniça mostravam que não houvera engano, era ali mesmo a caverna procurada.

— Sei duma fresta na rocha — disse Peninha – donde podemos ver o leão sem que ele nos veja. Sigam-me, sem fazer o menor barulhinho.

Todos o seguiram, pé ante pé, como gatos. Subiram pela rocha e por fim alcançaram a tal fresta, que ficava bem no topo da caverna, em ponto que os bichos não podiam alcançar nem que pulassem. Dali os meninos veriam tudo sem o menor perigo.

Cada qual se ajeitou como melhor pôde, com um olho na fresta.

— Lá está ele! — disse Pedrinho, que foi o primeiro a ver. — Lá está o Leão da Fábula no seu trono de ossos, rodeado de toda a corte.
––––––––––––––
Continua… Pena de Papagaio – VIII - Os animais e a peste

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 465)

Uma Trova de Ademar
Uma Trova Nacional

Tem mulher que, vendo a abelha,
na atitude sem sentido,
logo à ela se assemelha:
mal casou... Mata o marido!
–HÉLIO DE CASTRO/PR–

Uma Trova Potiguar


Tanta sereia na praia,
fiz pescaria invertida,
pesquei um Siri de saia
que infernizou minha vida.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


O viúvo, à falecida,
chorando que dava pena:
- Vai com Deus, minha querida,
que eu fico com Madalena
–ANALICE FEITOZA DE LIMA/SP–

Uma Trova Premiada


2008 - Bandeirantes/PR
Tema: TRABALHO - M/E


Sem trabalho e vomitando
sobre um morcego no lixo,
diz o ébrio: num tô lembrando
de ter comido este bicho!
–CLARINDO BATISTA/RN–

Simplesmente Poesia

Clementina.
–HENRIQUE MARQUES SAMYN/RJ–


Clementina entrou no bar esbaforida
procurando por Antônio, que saíra
há bem pouco, junto a uma mulher da vida.

Atirou-se pelo chão, desesperada,
Clementina. Uma garrafa de bebida
fez de sua companheira; e a madrugada

a mulher assim varou. Nascendo o dia,
despertou em casa alheia, de ressaca,
nua, na cama do Pedro (o da Maria,)
que é amante do Carlinhos – o “Cachaça”.

Estrofe do Dia

Pingo Velho do Monteiro
está cansado e sem dom,
garganta faltando voz,
viola faltando som;
nem toca, nem canta mais
nem morre, nem fica bom.
–HELENO SEVERINO/PE–

Soneto do Dia

Amador Cobra
–TAPAJÓS GOMES/RJ–


Este "enorme colega" (assim define-o
outro colega, espirituosamente),
não garanto, mas deve ser parente
de algum poste da Light, consanguíneo.

É professor e aluno juntamente,
tem prática, traquejo, raciocínio,
e onde quer que ele esteja tem domínio
só pela altura... que faz medo à gente.

É muito alto, demais, o nosso Cobra
e embora assim comprido, ele não dobra
apesar, meus leitores, dos pesares...

Isto de altura é coisa que acontece,
mas o Cobra, palavra que parece
um sobrado de três ou quatro andares!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor
Montagem da Trova do Ademar, por José Feldman sobre imagem enviada pelo autor

J. G. de Araújo Jorge (No Mundo da Poesia) " A Lua dos Poetas aos Astronautas "


" Explicação sobre este Livro”

Este livro reúne um punhado de crônicas poéticas, colhidas de mim mesmo, e da vida, ao redor.

A crônica é um velhíssimo gênero literário, entretanto, sempre atual. De Fernão Lopes a Stanislaw Ponte Preta, passou por todos os estilos, respingou todos os assuntos.

Séria. Mundana, romântica, humorista, é uma impressão leve, instantânea, sobre algo que nos emocionou, de que participamos, ou ainda, uma visão breve o que fomos, num momento de colóquio íntimo. Pela infinita variedade de temas e fatos, pela diversidade de espírito e temperamentos há uma inumerável classificação de cronistas. Mas, para mim, o verdadeiro cronista, é aquele que não precisa de assunto, não escreve sobre a sociedade, os livros, os filmes, as artes, os acontecimentos políticos. O assunto é pura e simplesmente ele mesmo, sua vida, seu mundo.

Como o meu velho e querido amigo Antônio Maria que, de copo em riste, desafiava a noite, o amor, e a solidão. Um poeta a fingir de cronista, a tentar escapar pela janela da prosa - tão rico de si mesmo, e tão perdulário, a esbanjar-se até o último momento. Por isso, quis lhe dedicar este livro, ele que escreveu, certo dia, me amparando:

"Não ligue para os que lhe torcem o nariz, ou acham bonito não gostar de seus versos. Elas gostam, e não é possível que não haja alguma razão. O sorriso desdenhoso da crítica? Ah, meu caro, que mal faz? Será esta atitude definitiva? Existem Glauces, Eunices, Teresas e Isabeis que sabem de cor os seus versos e os dizem com a mesma impertigação com que repetem o Hino Nacional. Agora mesmo, conheci um mundo de menina, olhos azuis e tudo, que após elogiá-lo dos pés à cabeça ( da alma ), disse-me, com o coração na tipóia: - Antônio Maria, você é o J.G. da prosa. E eu fiquei contente, meu caro José Guilherme."

Bem que eu poderia ter respondido: eu sim, é que gostaria de ser, não apenas o Antônio Maria da crônica, mas até da poesia. Ah, quantas vezes nos revelou o grande poeta que era, na sua "Mesa de Pista" e no "Jornal de A.M..."

Estas crônicas, em sua maioria, foram publicadas durante três anos na revista " JOIA " e outras publicadas em " O Globo " e " O Jornal ", do RJ, de Janeiro de 1967 à Agosto de 1969 . Leitores se interessaram por muitas delas, a ponto de me telefonarem, ou escreverem, sugerindo a idéia de enfeixá-las em um livro, como se merecessem escapar à vida efêmera da imprensa.

Acreditei neles, como vêem. Aqui estão, falando sobre poesia, poetas, a Vida, e alguns assuntos menos sérios. De início, pensei em publicá-los em companhia de poemas, iam fazer parte de "O Poder da Flor". Mas o livro ficaria muito volumoso com mais de quinhentas páginas, pouco prático, e caro. Resolvi então separá-las, tirei o título de uma delas, e assim nasceu este "No Mundo da Poesia".

Que consigam fazer novos amigos, novos leitores, e justifiquem a esperança de que realmente merecem uma vida mais longa, sabe lá Deus até quando.
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" A Lua dos Poetas aos Astronautas "

A lua foi sempre território dos poetas e dos namorados.

Há um aparente paradoxo em nosso tempo: enquanto cientistas, físicos e astronautas devassam os espaços com seus projéteis e se apropriam da lua, os poetas se voltam para a terra, lançam raízes e procuram o homem. Ainda ontem, pensando nisto, escrevi este poeminha:

TEMPOS

Qualquer dia destes
os homens vão encontrar Deus...

Mas não serão os filósofos,
serão os astronautas...


Os astronautas, esses seres fantásticos, caminhando pelo espaço sideral, fora das cápsulas, como escafandros do céu, em levitação, serão os primeiros habitantes do romântico satélite. E entre eles, se houver mesmo algum poeta, leremos algum dia o primeiro poema lunático, que a terra há de inspirar... Mas a verdade é que, enquanto isto ainda não acontece, a lua continua a musa em atividade. Os poetas sempre foram tidos como homens que vivem " no mundo da lua ". E quando alguém tem um ar de abstração e de sonho, é um poeta.

A lua já foi símbolo de boa, da melhor poesia brasileira de todos os tempos. Desde a poesia de rua, dos trovadores, dos violeiros, dos seresteiros, até a poesia dos livros, dos grandes literatos.

Quem não se lembra, por exemplo, daqueles versos que acordaram tantas namoradas, enquanto o violão lá fora , pela madrugada, era dedilhado ao luar?

"Lua, manda a tua luz prateada
despertar a minha amada
quero matar meus desejos
sufocá-la com meus beijos. . . "


E os grandes poetas brasileiros, como os de todo o mundo, não ficaram insensíveis à beleza da rainha da noite, ao seu mistério e aos seus encantos. Mesmo com os pés no chão, olham para o alto. E se a lua vai-lhes sendo roubada, restam-lhes as estrelas, aquelas mesmas que Bilac ouvia, recomendando:

"Amai, para entendê-las
pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."


Eu já a vi simbolizando a própria poesia:

"Tudo é trova, a flor, a onda,
a nuvem que passa ao léu
e a lua, trova redonda,
que a noite canta no céu..."


As mais curiosas e lindas imagens ocorreram aos românticos, parnasianos, simbolistas, modernos, líricos de todas as escolas. Para Alberto de Oliveira, o hierático parnasiano, o "luar era um cortinado todo lírios na barra, e em cima estrelas".

Catulo, o nosso Catulo, que enriqueceu a poesia com imagens simples, num típico linguajar sertanejo, diz que:

"o céu parecia uma tigela
cumo o fundo azu imborcado
todo ismartado de novo
adonde a lua tão bela
ia boiando, amarela
cumo uma gema de ovo"


Até o nosso singularíssimo Augusto dos Anjos contribuiria com uma imagem, bem a seu jeito:

"Do observatório em que estou situado
a lua magra, quando a noite cresce
vista, através do vidro azul, parece
um paralelepípedo quebrado."


Está claro que esta não seria a visão dos românticos ou dos simbolistas. Para Cruz e Souza, ela se transfiguraria:

"Ó monja branca dos espaços
parece que abre para mim os braços
fria, de joelhos, trêmula, rezando."


E Alphonsus de Guimarães, das altas montanhas mineiras, como que completaria a estrofe:

"... Parece que se ouve o leve passo
da lua pobre morta que passeia
nos castelos hieráticos do espaço."


Castro Alves havia de associá-la a lembranças de amor.. E ei-lo declamando:

"Entre rendas sutis, surge medrosa
a lua plena, qual moreno seio."


Olegário Mariano, outro amoroso, teria impressões semelhantes:

"Entre as árvores surge a lua
como uma náiade nua
mostrando em suaves coleios
o torso, os braços
os seios."


Seriam infinitas as citações. Antigos ou modernos, os poetas de todas as épocas se enfeitiçaram pela beleza sua beleza. Não poucas vezes foi invocada como testemunha de amor.

Desde o idílio de Romeu e Julieta, no drama shakespeariano:

"Linda! Por esta lua que tem zelos
por ti, por este límpido luar,
que é menos puro do que teus cabelos
que brilha menos do que teu olhar..."


E a réplica, bem feminina de Julieta: "Não jures pela lua que é inconstante!"

Certa vez coloquei como epígrafe de meu livro "A Outra Face", este pensamento: "O poeta em mim, é como aquela face da lua que ninguém vê, voltada sempre para o infinito."

Não faz sentido mais. Hoje os astronautas e os foguetes teleguiados já fotografaram até a " outra face " da lua. Nosso lindo satélite não posa mais de "odalisca", com veuzinho no rosto.

Sinal dos tempos. Aviso de despejo. A lua pertence agora aos seus novos donos. Contentem-se os namorados com o luar, e os poetas, com a saudade.

"Se o cotidiano te parece pobre, não o acuse: acusa-te a ti próprio de não seres bastante poeta para conseguires te apropriar de suas riquezas."

Como quem diz: não desesperes. Colhe o mundo ao teu redor.

Aí estão o homem e suas fronteiras. Aí está, portanto, a poesia.

Rejubila-te, enquanto os foguetes sobem. A poesia sobreviverá ao ano 2000 e a todos os tempos. E por isto justamente: porque está dentro de ti e em tudo que te cerca, é que ela é imortal.

A lua dos verdadeiros poetas é a sua poesia, e esta é um satélite onde só eles podem chegar. Mas cujo luar pertence a todos nós...

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Maria Firmina dos Reis (Poesias Avulsas)


NO ÁLBUM DE UMA AMIGA

D'amiga a existência tão triste, e cansada,
De dor tão eivada, não queiras provar;
Se a custo um sorriso desliza aparente,
Que máguas não sente, que busca ocultar!?...

Os crus dissabores que eu sofro são tantos,
São tantos os prantos, que vivo a chorar,
É tanta a agonia, tão lenta e sentida,
Que rouba-me a vida, sem nunca acabar.

--------------------

D'amiga a existência
Não queiras provar,
Há nelas tais dores,
Que podem matar.

O pranto é ventura,
Que almejo gozar;
A dor é tão funda,
Que estanca o chorar.

Se intento um sorriso,
Que duro penar!
Que chagas não sinto
No peito sangrar!...

Não queiras a vida
Que eu sofro - levar,
Resume tais dores
Que podem matar.

E eu as sofro todas, e nem sei
Como posso existir!
Vaga sombra entre os vivos, - mal podendo
Meus pesares sentir.

Talvez assim deus queira o meu viver
Tão cheio de amargura.
P'ra que não ame a vida, e não me aterre
A fria sepultura.

CONFISSÃO

Embalde, te juro, quisera fugir-te,
Negar-te os extremos de ardente paixão:
Embalde, quisera dizer-te: - não sinto
Prender-me à existência profunda afeição.

Embalde! é loucura. Se penso um momento,
Se juro ofendida meus ferros quebrar:
Rebelde meu peito, mais ama querer-te,
Meu peito mais ama de amor delirar.

E as longas vigílias, - e os negros fantasmas,
Que os sonhos povoam, se intento dormir,
Se ameigam aos encantos, que tu me despertas,
Se posso a teu lado venturas fruir.

E as dores no peito dormentes se acalmam.
E eu julgo teu riso credor de um favor:
E eu sinto minh'alma de novo exaltar-se,
Rendida aos sublimes mistérios do amor.

Não digas, é crime - que amar-te não sei,
Que fria te nego meus doces extremos...
Eu amo adorar-te melhor do que a vida,
melhor que a existência que tanto queremos.

Deixara eu de amar-te, quisera um momento,
Que a vida eu deixara também de gozar!
Delírio, ou loucura - sou cega em querer-te,
Sou louca... perdida, só sei te adorar.

SEU NOME

Seu nome! em repeti-lo a planta, a erva,
A fonte, a solidão, o mar, a brisa
Meu peito se extasia!
Seu nome é meu alento, é-me deleite;
Seu nome, se o repito, é dúlia nota
De infinda melodia.

Seu nome! vejo-o escrito em letras d'ouro
No azul sideral à noite quando
Medito à beira-mar:
E sobre as mansas águas debruçada,
Melancólica, e bela eu vejo a lua,
Na praia a se mirar.

Seu nome! é minha glória, é meu porvir,
Minha esperança, e ambição é ele,
Meu sonho, meu amor!
Seu nome afina as cordas de minh'harpa,
Exalta a minha mente, e a embriaga
De poético odor.

Seu nome! embora vague esta minha alma
Em páramos desertos, - ou medite
Em bronca solidão:
Seu nome é minha idéia - em vão tentara
Roubar-mo alguém do peito - em vão - repito,
Seu nome é meu condão.

Quando baixar benéfico a meu leito,
Esse anjo de deus, pálido, e triste
Amigo derradeiro.
No seu último arcar, no extremo alento,
Há de seu nome pronunciar meus lábios,
Seu nome todo inteiro!...

A UMA AMIGA

Eu a vi - gentil mimosa,
Os lábios da cor da rosa,
A voz um hino de amor!
Eu a vi, lânguida, e bela:
E ele a rever-se nela:
Ele colibri - ela flor.

Tinha a face reclinada
Sobre a débil mão nevada:
Era a flor à beira-rio.
A voz meiga, a voz fluente,
Era um arrulo cadente,
Era um vago murmúrio.

No langor dos olhos dela
Havia expressão tão bela,
Tão maga, tão sedutora,
Que eu mesmo julguei-a anjo,
Eloá, fada, ou arcanjo,
Ou nuvem núncia d'aurora.

Eu vi - o seio lhe arfava:
E ela... ela cismava,
Cismava no que lhe ouvia;
Não sei que frase era aquela:
Só ele falava a ela,
Só ela a frase entendia.

Eu tive tantos ciúmes!...
Teria dos próprios numes,
Se lhe falassem de amor.
Porque, querê-la - só eu.
Mas ela! - a outra ela deu
meigo riso encantador...
Ela esqueceu-se de mim
Por ele... por ele, enfim.

MEDITAÇÃO
(À minha querida irmã - Amália Augusta dos Reis)

Vejamos pois esta deserta praia,
Que a meiga lua a pratear começa,
Com seu silêncio se harmoniza esta alma,
Que verga ao peso de uma sorte avessa.

Oh! meditemos na soidão da terra,
Nas vastas ribas deste imenso mar;
Ao som do vento, que sussurra triste,
Por entre os leques do gentil palmar.

O sol nas trevas se envolveu, - mistérios
Encerra a noite, - ela compr'ende a dor;
Talvez o manto, que estendeu no bosque,
Encubra um peito que gemeu de amor.

E o mar na praia como liso ondeia,
gemendo triste, sem furor - com mágoas...
Também meditas, oh! salgado pego -
Também partilhas desta vida as frágoas?...

E a branca lua a divagar no céu,
Como uma virgem nas soidões da terra;
Que doce encanto tem seu meigo aspecto,
E tanto enlevo sua tristeza encerra!

Sim, meditemos... quem gemeu no bosque,
Onde a florzinha a perfumar cativa?
Seria o vento? Ele passando ergueu
Do tronco a copa sobranceira, altiva.

Passou. E agora sufocando a custo
Meu peito o doce palpitar do amor,
Delícias bebe desterrando o susto,
Que a noite incute a semear pavor.

E um deleite inda melhor que a vida,
langor, quebranto, ou sofrimento ou dor;
Um quê de afetos meditando eu sinto,
Na erma noite, a me exaltar de amor.

Então a mente a divagar começa,
Criando afouta seu sonhado amor;
Zombando altiva de uma sorte avessa,
Que oprime a vida com fatal rigor.

E nessa hora a gotejar meu pranto,
Nas ermas ribas de saudoso mar,
Vagando a mente nesse doce encanto,
Dá vida ao ente, que criei p'ra amar.

E a doce imagem vaporosa, e bela,
Que a mente erguera, engrinaldou de amor,
Ergue-se vaga, melindrosa, e grata
Como fragrância de mimosa flor.

E o peito a envolve de extremoso afeto,
E dá-lhe a vida, que lhe dera Deus;
Ergue-lhe altares - lhe engrinalda a fronte,
Rende-lhe cultos, que só dera aos céus.

Colhe p'ra ela das roseiras belas,
Que aí cultiva - a mais singela flor:
E num suspiro vai depor-lhe as plantas,
Como oferenda - seu mimoso amor.

Mas, ah! somente a duração dum ai
Tem esse breve devanear da mente.
Volve-se a vida, que é só pranto, e dor,
E cessa o encanto do amoroso ente.

Fonte:
CANTOS À BEIRA MAR, São Luís do Maranhão, 1871.

Maria Firmina dos Reis (1825 – 1917)


Maria Firmina dos Reis (São Luís, 11 de outubro de 1825 — Guimarães, 1917)

Nasceu em São Luís, no dia 11 de outubro de 1825 sob duas condições que por si só já seriam capazes de exaurir qualquer futuro de uma mulher num país escravocrata. Era mulata e bastarda. Apesar disso, Maria Firmina rompeu com o sistema vigente e estudou até se “formar” professora. Aos 22 anos venceu o concurso público para a “Cadeira de Instrução Primária”, na cidade de Guimarães. Durante grande parte de sua vida, dividiu-se em duas pessoas: uma a professora e a outra, a escritora, sendo esta última a que mais se destacou. Maria Firmina escreveu e publicou por muito tempo, crônicas, poesias, ficção e até charadas. Mulher inteligente e culta teve participação relevante no cenário cultural nacional, atuando também como folclorista e compositora, tendo sido, inclusive, responsável pelo hino da Abolição da Escravatura.

Como romancista teve duas grandes publicações: Gupeva, de temática indianista, publicado em 1861 e Úrsula, publicado em 1859. Este último configura-se como o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira. Nele, a autora aborda a escravidão a partir do ponto de vista do negro. Em 1887, Firmina escreveu também um conto sobre o mesmo tema, "A Escrava". Para fugir da repressão que era comum na época, Maria Firmina assinou a publicação com o pseudônimo “Uma Maranhense”. Se já é difícil publicar um livro nos dias atuais, imagine esse cenário em pleno século 19, ainda mais para uma mulher, negra e nordestina. As dificuldades eram imensuráveis. Até por isso e por outros motivos, o livro Úrsula só veio a público em 1975, através dos estudos de Horácio de Almeida e de Nascimento Morais Filho, grande pesquisador das obras da romancista.

Maria Firmina foi uma mulher à frente de seu tempo que rompeu a barreira do preconceito, fundamentado no racismo e no machismo, e mostrou para o mundo a importância da literatura maranhense. Ao contrário do que era vigente na época, quando os homens, brancos e ricos iam para a Europa, estudar nas melhores faculdades, Maria Firmina provou que a busca pelo conhecimento não tem fronteiras físicas e deu ao mundo um romance recheado de denúncia de injustiças arraigadas na sociedade patriarcal brasileira e que tinham no escravo e na mulher suas principais vítimas.

Foi professora de primeiras letras, colaboradora de jornais literários e fundadora de uma escola gratuita e mista, para meninos e meninas, que causou escândalo no povoado de Maçaricó, em 1880, e teve que ser fechada.

Morreu em 1917, aos 92 anos sem ver sua principal obra reconhecida pelos intelectuais da época.

Suas obras foram recentemente republicadas pelos estudiosos maranhenses Horácio de Almeida e José Nascimento Morais Filho.

Fonte:
Wikipedia
Jornal de Poesia
Arquivos Monstros

Maria Firmina dos Reis (Úrsula)


Ao publicar Úrsula, pela primeira vez em 1859, a autora, Maria Firmina dos Reis, assinou com o pseudônimo “Uma Maranhense”, estratégia muito utilizada por mulheres naquela época, por várias razões, entre elas porque deviam ficar com mais liberdade para expressar suas idéias, sem se preocupar tanto com as opiniões da sociedade. No caso de Maria Firmina, as novas idéias eram não somente sobre a condição feminina, mas também sobre a condição do negro.

Maria Firmina desconstrói igualmente uma história literária etnocêntrica e masculina até mesmo em suas ramificações afro-descendentes. Úrsula não é apenas o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, fato que, inclusive, nem todos os historiadores admitem. É também o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afro-descendente, que tematiza o assunto "negro" a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em recuperar e narrar a condição do ser negro no Brasil. Acresça-se a isto o gesto (civilizatório) representado pela inscrição em língua portuguesa dos elementos da memória ancestral e das tradições africanas. Texto fundador, Úrsula polemiza com a tese segundo a qual nos falta um “romance negro”, pois apesar de centrado nas vicissitudes da heroína branca, pela primeira vez em nossa literatura, tem-se uma narrativa da escravidão conduzida por um ponto de vista interno e por uma perspectiva afro-descendente.

No prólogo da obra, a autora afirma saber que “pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.” Por trás dessa declaração de modéstia, a escritora revelou sua condição social: o fato de não ter estudado na Europa, nem dominar outros idiomas, como era comum entre os homens educados de sua época, por si só indicava o lugar que ocupava na sociedade em que nasceu. É desse lugar intermediário, mais próximo da pobreza que da riqueza, que Maria Firmina corajosamente levantou sua voz através do que chamou “mesquinho e humilde livro”. E, mesmo sabendo do “indiferentismo glacial de uns” e do “riso mofador de outros”, desafiou: “ainda assim o dou a lume”.

O romance trata de uma trágica história de amor entre dois jovens: a pura e simples Úrsula e o nobre bacharel Tancredo, e, aparentemente, é uma clássica história de amor impossível, como muitas de seu tempo. Porém, logo se nota, pelo tratamento dado aos personagens negros, às mulheres e à escravidão, que as preocupações presentes no romance são outras, pois, apesar de ter sido escrito num período de nacionalismo exacerbado, destoa da literatura produzida em sua época em muitos aspectos, já que não parece estar comprometido com o projeto romântico que era fundar a idéia de nação, construindo através de suas narrativas um ser nacional.

O prólogo estabelece o território cultural que embasa o projeto do romance. Era 1859, momento em que a prosa de ficção dava seus primeiros passos na literatura brasileira. Com seu gesto, sob muitos aspectos inaugural, Maria Firmina apontou o caminho do romance romântico como atitude política de denúncia de injustiças, há séculos arraigadas na sociedade patriarcal brasileira e que tinham no escravo e na mulher suas principais vítimas. Foi, portanto, como mulher e como afro-brasileira que a autora pôs-se a narrar o drama da jovem Úrsula e de sua desafortunada mãe, ao qual se acrescentaram os infortúnios de Tancredo, traído pelo próprio pai, e a tragédia dos escravos Túlio, Susana e Antero, que receberam no texto um tratamento marcado pelo ponto de vista interno, pautado por uma profunda fidelidade à história oculta da diáspora africana no Brasil. Essa solidariedade para com o oprimido é absolutamente inovadora se comparada àquela existente em outros romances abolicionistas do século XIX, pois nasceu de uma outra perspectiva, pela qual a escritora, irmanada aos cativos e a seus descendentes, expressou, pela via da ficção, seu pertencimento a este universo de cultura.

A narrativa se articula a partir de um triângulo amoroso formado por Adelaide, Tancredo e seu pai. Esse triângulo é desfeito com a derrota de Tancredo. Cria-se, então, um segundo triângulo formado por Tancredo, Úrsula e seu tio. Mas há, também, uma tríade, formada por três personagens negros, que vão aparecendo ao longo da narrativa, cuja importância vai tomando proporções cada vez maiores: Túlio, Mãe Susana e Antero que, juntamente com o jovem Tancredo, dão o tom diferente à narrativa. Um leitor desavisado pode entender seus papéis como mero acessório para o drama dos demais personagens, porém, ao ler com o cuidado que o romance merece, percebe-se que o drama dos escravos vai tomando proporções cada vez maiores, a ponto de prender a atenção do leitor.

Do ponto de vista formal, o texto marca-se pela linearidade narrativa e por personagens desprovidos de maior complexidade psicológica. Tais figuras vivem quase sempre situações extremas, marcadas pelo acaso e por mudanças bruscas do destino. Situando Úrsula no contexto da narrativa folhetinesca, pode-se aquilatar o quanto a escritora se apropria das técnicas do romance de fácil aceitação popular, a fim de utilizá-las como instrumento a favor da dignificação dos oprimidos, em especial a mulher e o escravo. O triângulo amoroso formado pela jovem Úrsula, seu amado Tancredo e pelo tio Comendador, que surge como encarnação de todo o mal sobre a terra, ocupa o plano principal das ações. Além de assassinar o pai e abandonar a mãe da protagonista anos e anos entrevada numa cama, o Comendador compõe a figura sádica do senhor cruel que explora a mão de obra cativa até o limite de suas forças. Ao final, enlouquecido de ciúmes, o vilão mata Tancredo na própria noite do casamento deste com Úrsula, o que provoca a loucura, o posterior falecimento da heroína e o inconsolável remorso que também leva o tio à morte, não sem antes passar pela libertação de seus escravos e pela reclusão num convento. O texto descarta o final feliz e opta pelos esquemas consagrados no romance gótico a fim de estabelecer a empatia com o público.

Todavia, o livro cresce na medida em que emergem os dramas dos escravos. A narrativa se inicia com o jovem Túlio – único cativo da decadente propriedade da mãe de Úrsula – salvando a vida de Tancredo num acidente. Não por acaso, o primeiro capítulo, destinado à apresentação do cenário e dos dois personagens, se intitula “Duas Almas Generosas” e logo sabe-se porquê. De imediato, destaca-se a humanidade condoída do sujeito afro-descendente, cujo perfil dramático e existencial vai além da mera força de trabalho ou do papel de porta-voz do ódio rancoroso dos quilombolas.

Na construção dos personagens nota-se uma valorização das características próprias dos afro-descendentes, rompendo-se, assim, com o estereótipo racial que sempre deu ao negro uma conotação negativa – o que podemos perceber na seguinte descrição de Túlio que é uma verdadeira exaltação à raça negra:

O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar 25 anos, e que na franca expressão de sua fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano refervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e a escravidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava; porque se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra o fraco (Reis, 2004: 22).

A composição do personagem já indica a perspectiva que orienta a representação do choque entre as etnias no texto de Maria Firmina dos Reis. A escravidão é “odiosa”, mas nem por isto endureceu a sensibilidade do jovem negro. Eis a chave para compreender a estratégia da autora de combate ao regime sem agredir em demasia as convicções dos leitores brancos. Túlio era vítima, não algoz. Sua revolta se fazia em silêncio, pois não tinha meios para confrontar o poder dos senhores. Não os sabotava nem os roubava, todavia, como os escravos presentes em As Vítimas-algozes, de Joaquim Manoel de Macedo (1869). Seu comportamento pautava-se pelos valores cristãos, apropriados pela autora a fim de melhor propagar seu ideário:

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... aquele que também era livre no seu país... aquele que é seu irmão?! E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista. (Reis: 2004). Ressalte-se de início que não se trata de condenar a escravidão unicamente porque um escravo específico possui um caráter elevado. Trata-se de condenar a escravidão como instituição. E a autora o faz partir do próprio discurso religioso oriundo da hegemonia branca, que afirmou serem todos irmãos independentemente da cor da pele. Se pensar em termos do longínquo ano de 1859 e da longínqua província do Maranhão, pode-se aquilatar o quanto tal postura tem de avançado, num contexto em que a própria Igreja Católica respaldava o sistema escravista.

E não é só. O primeiro capítulo objetiva apresentar os dois personagens masculinos que irão encarnar a positividade moral do texto: um branco e um negro. Assim eles entram em cena, primeiro Tancredo; depois, Túlio. Entretanto, ao utilizar-se do artifício do acidente, a autora faz com que o segundo tome a frente do primeiro e cresça enquanto personagem. Já de início, o leitor passa a conhecê-lo em suas virtudes, enquanto do outro sabe apenas do atordoamento mental que provocou o acidente. Há mais: ao despertar do desmaio, Tancredo deparou-se com o negro à sua frente e, apesar da febre que já lhe turvava novamente os sentidos, vislumbrou no escravo o homem bom que o salvou:

O cavaleiro começava a coordenar suas idéias, e as expressões do escravo, e os serviços que lhe prestara tocaram-lhe o mais fundo do coração. É que em seu coração ardiam sentimentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro: por isso, num transporte de íntima e generosa gratidão, o mancebo, arrancando a luva, que lhe calçava a destra, estendeu a mão ao homem que o salvara. (Reis: 2004)

O negro não foi apenas colocado na trama em pé de igualdade frente ao rico cavaleiro. Mais que isto, ele foi a “base de comparação” para que o leitor aquilatasse o valor do jovem herói branco. Ou seja, no discurso do narrador onisciente, o negro é parâmetro de elevação moral. Tal fato se constitui em verdadeira inversão de valores numa sociedade escravocrata, cujas elites difundiam teorias “científicas” a respeito da inferioridade natural dos africanos. Assim fazendo, a voz que narra mostra-se desde o início comprometida com a dignificação do personagem, ao mesmo tempo em que expressa com todas as letras qual o território cultural e axiológico que reivindica para si: o da afro-descendência. Esse pertencimento se traduz ainda na simpatia que a autora devota a Túlio e aos demais personagens submetidos ao cativeiro.

Ao abrigar o cavaleiro ferido na casa de sua senhora, o escravo propicia o encontro dos dois e o início da paixão que os leva à breve felicidade. Mais uma vez, sobressaem nesses momentos o zelo e a dignidade de Túlio, que termina ganhando a alforria como sinal de gratidão do homem branco. Um forte elo de amizade passa a uni-los e, a partir de então, o negro torna-se companhia inseparável de Tancredo. Ele faz a figura do jovem de bom caráter, que respeita a senhora por não tê-lo maltratado, e que se julga em dívida com aquele que o libertou. No entanto, sua nova condição é desmascarada por Mãe Susana, quando esta ironiza a “liberdade” do alforriado – que afinal, irá conduzi-lo à morte – comparando-a à vida que levava em África:

- Tu! tu livre? Ah não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. (...) Liberdade... eu gozei em minha mocidade! – continuou Suzana com amargura. Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. (Reis: 2004)

Além de reforçar a própria condição afro-descendente do texto, a entrada em cena da velha africana confere maior densidade ao sentido político do mesmo. Mais uma vez, o território de origem é mencionado sem rodeios, ao contrário do que se vê em outros escritos do século XIX, inclusive assinados por afro-brasileiros. Sobressai, então, a condição diaspórica vivida pelos personagens arrancados de suas terras e famílias para cumprir no exílio a prisão representada pelo trabalho forçado. É Mãe Susana quem vai explicar a Túlio o sentido da verdadeira liberdade, que não seria nunca a de um alforriado num país racista. Para tanto, a velha escrava recordava sua terra natal, a infância livre, o amor de seu companheiro e a vida feliz que levavam junto à filhinha até o dia em que foi capturada pelos “bárbaros” mercadores de seres humanos. Segue-se a narrativa do aprisionamento e da crueldade com que foi tratada ao deixar para sempre “pátria, esposo, mãe, filha, e liberdade”:

Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se de minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. (...) Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas que se levam para recreio dos potentados da Europa. (REIS: 2004)

Sobressai de imediato a postura do sujeito da rememoração, na qual o eu individual deságua num nó coletivo. É o discurso do outro fazendo ouvir pela primeira vez na literatura brasileira a voz dos escravizados. Voz política que denunciava, em plena vigência do espírito das luzes, o conquistador europeu como bárbaro, invertendo de forma inédita a acusação racista, corrente na Europa e presente no pensamento de filósofos do porte de Hegel, que excluía a África do mundo civilizado. O romance prossegue com o verismo da descrição sobrepujando-se à ficção propriamente dita. Com isto, o texto ganhou em densidade histórica e humana o que perdeu porventura em termos de aprofundamento psicológico dos personagens e do próprio andamento da trama, suspendendo-se esta para que se ouvisse a versão das vítimas. A narrativa da vida de Mãe Susana, na África, e de seu aprisionamento, ocupa todo o nono capítulo e foi inscrita no texto justamente no momento em que se deu a alforria de Túlio a fim de relativizá-la enquanto conquista da liberdade.

O discurso anti-escravista perpassa praticamente toda a obra de Maria Firmina.

Além das sofridas lembranças de Mãe Susana e da moldura cristã que preside a nova condição de Túlio, Úrsula trata ainda de um outro tipo de escravo: o que perde a auto-estima e se entrega ao vício. Surge então a figura decrépita de Pai Antero, sujeito de bom coração, mas dominado pelo alcoolismo. Saudoso dos costumes de sua terra e do “vinho de palmeira” bebido no ritual africano do descanso semanal, que Maria Firmina nomeia “festa do fetiche”, Antero cumpre na trama o contraponto dramático ao caráter elevado de Túlio. Além disso, ao ressaltar o vício do personagem, o texto escapa à idealização pela qual todo negro seria perfeito e todo branco ruim. Com Antero, fechou-se a estrutura trina encimada por Mãe Susana, e essa tríade negra vai aos poucos seqüestrando a atenção do leitor e superando em importância o previsível triângulo amoroso vivido pelos personagens brancos.

Assim, entre a positividade e a ingênua bondade do jovem afro-brasileiro e a negatividade representada pela decadência do velho africano, Maria Firmina abre espaço para o discurso de Mãe Susana, elo vivo com a memória ancestral e com a consciência da subordinação. Espécie de alter ego da romancista, a personagem configura aquela voz feminina porta-voz da verdade histórica e que pontua as ações, ora com comentários e intervenções moralizantes, ora como verdadeira pitonisa a tecer passado, presente e futuro nos anúncios e previsões que, por um lado, preparam o espírito do leitor e aceleram o andamento da narrativa e, por outro, instigam a reflexão e a crítica. Essa voz feminina emerge, pois, das margens da ação para carregá-la de densidade, do mesmo modo que sua autora, que também emerge das margens da literatura brasileira para agregar a ela um instigante suplemento de sentido: o da afro-brasilidade.

Fontes:
Eduardo de Assis Duarte, Prof. de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UFMG | Adriana Barbosa de Oliveira, Mestra no Programa de Estudos Literários - UFMG, disponível em Passeiweb

Machado de Assis (Uma Águia sem Asas)


CAPÍTULO PRIMEIRO

Era uma tarde de agosto. Caía o sol, e soprava um vento fresco e brando, como para compensar o dia que estivera extremamente calmoso. A noite prometia ser excelente.

Se a leitora quer ir comigo ao Rio Comprido, entraremos juntos na chácara do Sr. James Hope, comerciante inglês desta praça, como se diz em linguagem técnica. James Hope viera para o Brasil em 1830, com pouco mais de 20 anos, e começou imediatamente uma brilhante carreira comercial. Casou pouco depois com a filha de um compatriota, já nascida aqui, e mais
tarde fez-se cidadão brasileiro, não só no papel, como no coração. Do seu matrimônio, teve um filho e uma filha; o primeiro, chamado Carlos Hope, seguia a carreira do pai, e contava 26 anos ao tempo em que começa este romance; a filha recebeu o nome de Sara e tinha 22 anos.

Sara Hope era solteira. Por quê? A sua beleza era incontestável; reunia a graça brasileira à gravidade britânica, e em tudo parecia destinada a dominar os homens; a voz, o olhar, as maneiras, tudo possuía um misterioso condão fascinador. Além disto, era rica e ocupava uma invejável posição na sociedade. Dizia-se à boca pequena que algumas paixões havia já inspirado a interessante moça; mas não constava que ela as houvesse tido em sua vida.

Por quê?

Esta pergunta todos a faziam, até o pai que, apesar de robusto e sadio, previa algum acontecimento que viesse a deixar a família sem chefe, e desejava ver casada a sua querida Sara.

Na tarde em que começa esta narrativa, estavam todos assentados no jardim, em companhia de mais três rapazes da cidade que tinham ido jantar em casa de James Hope. Dispensem-me de lhes pintar as visitas do velho comerciante. Bastará dizer que um deles, o mais alto, era advogado principiante, dispondo de algum dinheiro do pai; chamava-se Jorge; o segundo, cujo nome era Mateus, era comerciante, sócio de um tio que dirigia uma grande casa; o mais baixo não era coisa nenhuma, tinha algum pecúlio, e chamava-se Andrade. Estudara medicina, mas não tratava doentes, por glória da ciência e sossego da humanidade.

James Hope estava extremamente alegre e bem disposto, e todos os mais pareciam gozar o mesmo beatífico estado. Quem entrasse subitamente no jardim, sem ser pressentido, podia descobrir que os três rapazes procuravam obter as boas graças de Sara, tão visivelmente que, não só os pais da moça o percebiam, mas até não podiam encobrir eles mesmos, uns aos outros, as suas pretensões.

Se isto era assim, escusado é dizer que a mesma Sara conhecia o jogo dos três rapazes, porque em geral a mulher sabe que é amada por um homem, antes mesmo que ele o perceba.

Longe de parecer incomodada com o fogo dos três exércitos, Sara os tratava com tanta bondade e graça que parecia indicar uma criatura coquete e frívola. Mas quem atentasse alguns largos minutos, conheceria que ela era mais irônica que sincera, e, por isso mesmo que os igualava, os desprezava a todos.

James Hope acabava de contar uma anedota da sua mocidade, ocorrida em Inglaterra. A anedota era interessante, e o James sabia narrar, talento difícil e raro. Entusiasmado com os vários pormenores de costumes ingleses a que James Hope teve de aludir, o advogado manifestou o grande desejo que nutria de ver a Inglaterra, e em geral o desejo de viajar toda a Europa.

— Há de gostar, disse Hope. As viagens deleitam muito; e além disso, nunca devemos desprezar as coisas estranhas. Eu iria de boa vontade à Inglaterra, durante alguns meses, mas creio que já não posso viver sem o nosso Brasil.

— É o que me acontece, acudiu Andrade; acredito que lá fora haja muita coisa melhor do que cá; mas nós cá temos coisas melhores do que lá. Umas compensam as outras; e por isso não valeria a pena de uma viagem.

Mateus e Jorge não foram absolutamente desta idéia. Ambos protestaram que dariam algum dia um pulo ao velho mundo.

— Mas por que não faz isso que diz, Sr. Hope? perguntou Mateus. Ninguém melhor do que o senhor pode realizar esse desejo.

— Sim, mas há um obstáculo...

— Não sou eu, acudiu rindo Carlos Hope.

— Não és tu, disse o pai, é Sara.

— Ah! disseram os rapazes.

— Eu, meu pai? perguntou a moça.

— Três vezes tenho tentado a viagem, mas Sara opõe sempre algumas razões, e não vou. Creio que descobri a causa da resistência dela.

— E qual é? perguntou Sara, rindo.

— Sara tem medo do mar.

— Medo! exclamou a moça, franzindo as sobrancelhas.

O tom com que ela proferiu esta simples exclamação impressionou o auditório. Bastava aquilo para pintar um caráter. Houve alguns segundos de silêncio durante os quais contemplavam a bela Sara, cujo rosto pouco a pouco readquiriu a calma habitual.

— Ofendi-te, Sara? perguntou James.

— Ah! isso não se diz, meu pai! exclamou a moça com todas as harmonias de sua voz. Não podia haver ofensa; houve apenas uma tal ou qual impressão de espanto, quando ouvi falar de medo. Meu pai sabe que eu não tenho medo...

— Sei que não, e já me deste provas disso; mas uma criatura pode ser valorosa e ter medo ao mar...

— Pois não é esse o meu caso, interrompeu Sara; se lhe dei algumas razões, é porque me pareceram aceitáveis...

— Pela minha parte, interrompeu Andrade, penso que foi um erro que o Sr. Hope aceitasse tais razões. Era conveniente, e mais do que conveniente, era indispensável, que a Inglaterra visse que flores pode dar uma planta sua, quando transplantada às regiões americanas.

Miss Hope seria lá o mais brilhante símbolo desta aliança de duas raças vivaces... Miss Hope sorriu ouvindo este cumprimento, e a conversa tomou diversos caminhos.

CAPÍTULO II

Nessa mesma noite, foram os três rapazes cear no Hotel Provençaux, depois de terem passado duas horas no Ginásio. Havia já dois ou três meses que andavam naquela campanha sem se comunicarem uns aos outros as impressões ou as esperanças que tinham. Estas, porém, se alguma vez as tiveram, começavam a diminuir, pelo que não tardaria muito que os três pretendentes se abrissem francamente e dissessem todas as suas idéias a respeito de Sara.

Aquela noite foi tacitamente escolhida pelos três para as confidências recíprocas. Estavam numa sala particular onde ninguém os perturbaria. As revelações começaram por alusões vagas, mas não tardou que assumissem um ar de franqueza.

— Por que negaremos a verdade? disse Mateus depois de alguns remoques recíprocos; todos três gostamos dela; é claríssimo. E o que também me parece claro é que ela ainda não se manifestou por nenhum.

— Nem se manifestará, respondeu Jorge.

— Por quê?

— Porque é uma namoradeira e nada mais; gosta que lhe façam a corte, e não passa disso. É uma mulher de gelo. Que te parece, Andrade?

— Não concordo contigo, acudiu este. Não me parece namoradeira. Pelo contrário, cuido que é uma mulher superior, e que...

Estacou. Entrou nesse momento um criado trazendo umas costeletas pedidas. Quando o criado saiu, os outros dois rapazes insistiram para que Andrade concluísse o pensamento.

— E quê? disseram eles.

Andrade não deu resposta.

— Conclui a tua idéia, Andrade, insistiu Mateus.

— Creio que ela ainda não encontrou um homem como imagina, explicou Andrade. É romanesca, e só se casará com alguém que lhe realize um tipo ideal; toda a questão é saber que tipo é esse; porque, desde que o soubéssemos, tudo estava decidido. Cada um de nós procuraria ser a reprodução material dessa idealidade desconhecida...

— Talvez tenhas razão, observou Jorge; bem pode ser isso; mas, nesse caso, estamos nós em pleno romance.

— Sem nenhuma dúvida.

Mateus discordou dos outros.

— Talvez não seja assim, disse ele; o Andrade terá razão em parte. Creio que o meio de lhe vencer a esquivança é corresponder, não a um tipo ideal, mas a um sentimento próprio, a um traço de caráter, a uma expressão de temperamento. Neste caso, o vencedor será aquele que melhor disser com o gênio dela. Por outras palavras, cumpre saber se ela quer ser amada por um poeta, se por um homem de ciência, etc.

— Isso ainda pior, observou Andrade.

— Pior será, creio, mas grande vantagem é sabê-lo. Que lhes parece a minha opinião?

Concordaram os dois com esta opinião.

— Ora bem, continuou Mateus, pois que assentamos nisto, sejamos francos. Se algum de nós sente uma paixão exclusiva por ela, deve dizê-lo; a verdade antes de tudo...

— Paixões, respondeu Jorge, eu já as conheci; amei aos 16 anos. Hoje, tenho o coração frio como uma lauda das Ordenações. Desejo casar-me para descansar, e se há de ser com uma mulher vulgar, melhor é que seja com uma formosa e inteligente criatura... Isto quer dizer que nenhum ódio votarei àquele que for mais feliz do que eu.

— Minha idéia é outra, disse Andrade; caso por curiosidade. Uns dizem que o casamento é delicioso, outros que aborrecido; e todavia os casamentos não acabam nunca. Tenho curiosidade de saber se é mau ou bom. O Mateus é que me parece verdadeiramente apaixonado.

— Eu? disse Mateus deitando vinho no cálice; nem por sombras. Confesso, porém, que lhe tenho alguma simpatia e certa coisa a que chamamos adoração...

— Nesse caso... disseram os dois.

— Oh! continuou Mateus. Nada disto é amor, pelo menos amor como eu imagino...

Dizendo isto, bebeu de um trago o cálice de vinho.

— Estamos pois concordes, disse ele. Cada um de nós deve estudar o caráter de Sara Hope, e aquele que atinar com as suas preferências será o feliz...

— Fazemos um steeple-chase, disse Andrade.

— Não fazemos só isto, observou Mateus; ganhamos tempo e não nos prejudicamos uns aos outros. Aquele que se julgar vencedor, declare-o logo; e os outros deixarão o campo livre. Assim entendidos, conservaremos a nossa recíproca estima.

Concordes neste plano, os nossos rapazes gastaram o resto da noite em assuntos diferentes, até que cada um se foi para casa, disposto a morrer ou vencer.

CAPÍTULO III

Algum leitor achará este pacto romanesco demais, e um pouco fora dos nossos costumes. Todavia, o fato é verdadeiro. Não direi quem mo referiu, porque não quero fazer mal a um cidadão honrado. Celebrado o pacto, cada um dos nossos heróis procurou descobrir o ponto vulnerável de Sara.

Jorge foi o primeiro que supôs tê-lo descoberto. Miss Hope lia muito e era entusiasta dos grandes nomes literários da época. Quase se pode dizer que nenhum livro, mais ou menos falado, lhe era desconhecido. E não só lia, discutia, criticava, analisava, exceto as obras poéticas.

— A poesia, dizia ela, não se analisa, sente-se ou esquece-se.

Seria esse o ponto vulnerável da moça? Jorge procurou sabê-lo e não esqueceu nenhum meio necessário para isso. Conversaram de literatura longas horas, e Jorge dava largas a um entusiasmo poético mais ou menos real. Notou Sara esse prurido literário do rapaz, mas sem indagar as causas dele, tratou de o aproveitar no sentido das suas preferências.

Sem nenhuma ofensa à pessoa de Jorge, posso dizer que ele não era grande conhecedor em matéria literária, pelo que não poucas vezes lhe acontecia tropeçar desastradamente. Por outro lado, sentia necessidade de alguma fórmula mais elevada para o seu entusiasmo e andou catando na memória aforismos deste jaez:

— A poesia é a linguagem dos anjos.

— O amor e as musas nasceram no mesmo dia.

— A poesia e o amor são os dois olhos de Deus.

E outras coisas mais que a moça ouvia sem admirar muito o espírito inventivo do jovem advogado.

Aconteceu que um domingo de tarde, andando os dois passeando no jardim, um pouco separados do resto da família, Sara pregou os olhos no céu tingido com as rubras cores do ocaso.

Esteve assim calada durante longo tempo.

— Contempla a sua pátria? perguntou-lhe com meiguice Jorge.

— A minha pátria? disse a moça sem perceber a idéia do rapaz.

— É a bela hora do poente, continuou este, a hora melancólica da saudade e do amor. O dia é mais alegre, a noite mais terrível; só a tarde é a verdadeira hora das almas melancólicas... Ah! tarde! Oh! poesia! oh! amor!

Sara conteve o riso que esteve a ponto de lhe rebentar dos lábios ao ouvir o tom e ao ver a atitude com que Jorge proferiu aquelas palavras.

— Gosta então muito da tarde? perguntou ela com um tom irônico que não escaparia a outro.

— Ah! muito! respondeu Jorge. A tarde é a hora em que a natureza parece convidar os homens ao amor, à meditação, à saudade, ao arroubo, aos suspiros, a cantar com os anjos, a conversar com Deus. Posso dizer com o grande poeta, mas variando um pouco a sua fórmula: tirai a tarde ao mundo, e o mundo será um ermo.

— Isto é sublime! exclamou a moça, batendo palmas.

Jorge parecia contente de si. Deitou à moça um olhar lânguido e amoroso e foi o único agradecimento que deu ao elogio de Sara. A moça compreendeu que a conversa podia seguir um caminho menos agradável. Parecia-lhe ver já dançando nos lábios do rapaz uma confissão intempestiva.

— Creio que meu pai me chama, disse ela; vamos.

Jorge foi obrigado a acompanhar a moça, que se aproximou da família. Os outros dois pretendentes viram o ar alegre de Jorge, e concluíram que ele estava no caminho da felicidade. Sara, entretanto, não mostrava a confusão própria de uma moça que acaba de ouvir uma confissão de amor. Olhava muitas vezes para Jorge, mas era com uns longes de ironia, e em todo caso perfeitamente tranqüila.

— Não tem que ver, dizia Jorge consigo, acertei-lhe com a corda; a rapariga é romanesca; tem vocação literária; gosta de exaltações poéticas...

Não se deteve o jovem advogado; a essa descoberta seguiu-se logo uma carta ardente, poética, nebulosa, carta que nem um filósofo alemão chegaria a entender.

Poupo aos leitores a íntegra desse documento; mas não resisto à intenção de lhes transcrever aqui um período, que bem o merece:

“... Sim, minha loura estrela da noite, a vida é uma
aspiração constante para a região serena dos espíritos,
um desejo, uma ambição, uma sede de poesia! Quando
duas almas da mesma índole se encontram, como as
nossas, já isto não é terra, é céu, céu puríssimo e
diáfano, céu que os serafins povoam de encantadas
estrofes!... Vem, meu anjo, passemos uma vida assim!
Inspira-me, e eu serei maior que Petrarca e Dante,
porque tu vales mais que Laura e Beatriz!...”


E cinco ou seis páginas neste gosto. Esta carta foi entregue, num domingo, à saída do Rio Comprido, sem que a moça tivesse ocasião de perguntar o que aquilo era.

Digamos a verdade toda. Jorge passou a noite sobressaltado. Sonhou que entrava com Miss Hope em um riquíssimo castelo de ouro e esmeraldas, cuja porta era guardada por dois arcanjos de longas asas abertas; depois sonhou que o mundo inteiro, por meio de uma comissão, o coroava poeta, rival de Homero. Sonhou muitas coisas neste sentido, até que veio a sonhar com um chafariz, que deitava, em vez de água, espingardas de agulha, verdadeiro disparate que só Morfeu sabe criar.

Três dias depois foi procurado pelo irmão de Sara.

— Minha demora é pequena, disse o rapaz; venho por parte de minha mana.

— Ah!

— E peço-lhe que não veja nisto nada de ofensivo.

— Nisto quê?

— Minha mana quis por força que eu viesse restituir-lhe esta carta; e que lhe dissesse... Em suma, isto é bastante; aqui tem a carta. Ainda uma vez, não há ofensa, e a coisa fica entre nós...

Jorge não achava palavra para responder. Estava pálido e vexado. Carlos não poupou expressões nem carícias para provar ao rapaz que não desejava a menor alteração na amizade que se votavam um ao outro.

— Minha mana é caprichosa, dizia ele, é por isso...

— Concordo que foi um ato de loucura, disse enfim Jorge, animado pelas maneiras do irmão de Sara; mas o senhor compreenderá que um amor...

— Compreendo tudo, disse Carlos; e é por isso que lhe peço esqueça isto, e ao mesmo tempo posso afirmar-lhe que Sara não tem nenhum ressentimento disto... Portanto, amigos como dantes.

E saiu.

Jorge ficou só.

Estava acabrunhado, envergonhado, desesperado. Não lamentava tanto a derrota como as circunstâncias dela. Entretanto, era preciso mostrar boa cara à sua fortuna, e o rapaz não hesitou em confessar a derrota aos dois adversários.

— Safa! disse Andrade, essa agora é pior! Se ela está disposta a devolver todas as cartas pelo irmão, é provável que o rapaz se não empregue em outra coisa.

— Não sei disto, respondeu Jorge; confesso-me vencido, eis tudo.

Durante esta curta batalha, dada pelo jovem advogado, os outros pretendentes não estavam ociosos, e cada qual por si procurava descobrir o ponto fraco na couraça de Sara. Qual deles acertaria?

Vamos sabê-lo nas páginas que nos restam.

CAPÍTULO IV

Mais curta foi a campanha de Mateus; imaginara ele que a moça amaria loucamente a quem lhe desse sinais de bravura. Concluía isto da exclamação que lhe ouvira, quando James Hope disse que ela tinha medo do mar.

Tudo empregou Mateus para seduzir Miss Hope por esse lado. Em vão! a moça parecia cada vez mais recalcitrante. Não houve proeza que o candidato não referisse como glória sua, e algumas fê-las ele mesmo com sobrescrito para ela.

Sara era uma rocha. A nada cedia.

Arriscar uma carta seria loucura, depois do fiasco de Jorge; Mateus julgou prudente abater as armas.

Restava Andrade.

Teria ele descoberto alguma coisa? Parecia que não. Todavia, era dos três o mais atilado, e se a causa de isenção da moça fosse a que eles apontavam não havia dúvida de que Andrade atinaria com ela. Durante esse tempo, ocorreu uma circunstância que vinha transtornar os planos do rapaz. Sara, acusada pelo pai de ter medo do mar, o induzira a uma viagem à Europa.

James Hope participou alegre esta notícia aos três moços.

— Mas vão já? perguntou Andrade quando o pai de Sara lhe disse isto na rua.

— Daqui a dois meses, respondeu o velho.

— Valha-nos isso! pensou Andrade.

Dois meses! Devia vencer ou morrer dentro daquele prazo. Andrade auscultava o espírito da moça com perseverança e solicitude; nada lhe era indiferente; um livro, uma frase, um gesto, uma opinião, tudo Andrade ouvia com atenção religiosa, tudo examinava cuidadosamente.

Um domingo em que lá se achavam na chácara todos, em companhia de algumas moças da vizinhança, falava-se de modas e cada uma dava a sua opinião.

Andrade conversava alegremente e também discutia o assunto da conversa, mas o seu olhar, a sua atenção estavam voltados para a bela Sara.

A distração da moça era evidente. Em que pensaria ela?

De repente, entra pelo jardim o filho de James, que ficara na cidade para aviar uns negócios do paquete.

— Sabem a novidade? disse ele.

— Que é? perguntaram todos.

— Caiu o ministério.

— Deveras? disse James.

— Que temos nós com o ministério? perguntou uma das moças.

— O mundo caminha bem sem o ministério, observou outra.

— Oremos pelo ministério, acrescentou piedosamente uma terceira. Não se falou mais nisto. Aparentemente, era uma coisa insignificante, um incidente sem resultado, na vida aprazível daquela abençoada solidão.

Assim seria para os outros.

Para Andrade foi um raio de luz, — ou pelo menos um indício veemente. Notou ele que Sara ouvira a notícia com atenção profunda demais para o seu sexo, e depois ficara algum tanto pensativa. Por quê?

Tomou nota do incidente.

Noutra ocasião foi surpreendê-la a ler um livro.

— Que livro será esse? perguntou ele sorrindo.

— Veja, respondeu ela apresentando-lhe o livro.

Era uma história de Catarina de Médicis. Isto seria insignificante para outro; para o nosso candidato era um vestígio preciosíssimo. Com os apontamentos que tinha, já Andrade podia conhecer a situação; mas, como era prudente, buscou esclarecê-la melhor. Um dia mandou uma cartinha a James Hope, concebida nestes termos:

“Empurraram-me alguns bilhetes de teatro: é um espetáculo em benefício de um homem pobre. Sei como o senhor é caridoso, e por isso aí lhe remeto um camarote. A peça é excelente.”

A peça era o Pedro.

No dia aprazado, lá estava Andrade no Ginásio. Hope não faltou, com a família, ao espetáculo anunciado. Nunca Andrade sentira tanto a beleza de Sara. Estava esplêndida, mas o que aumentava a beleza e o que lhe inspirava adoração maior, era o concerto de louvores que ele ouvia à roda de si. Se todos gostavam dela, não era natural que ela só lhe pertencesse a ele?

Pela razão de beleza, como por causa das observações que Andrade queria fazer, não tirou os olhos da moça durante a noite inteira. Foi ao camarote dela no fim do segundo ato.

— Venha, disse-lhe Hope, deixe-me agradecer-lhe a ocasião que me proporcionou de ver Sara entusiasmada.

— Ah!

— É um excelente drama este Pedro, disse a moça apertando a mão de Andrade.

— Excelente só? perguntou ele.

— Diga-me, perguntou James, este Pedro sobe sempre até ao fim?

— Não o disse ele no primeiro ato? respondeu Andrade. Subir! subir! subir! Quando um homem sente em si uma grande ambição, não pode deixar de realizá-la, porque justamente nesse caso é que se deve aplicar o querer é poder.

— Tem razão, disse Sara.

— Pela minha parte, continuou Andrade, nunca deixei de admirar este caráter soberbo, natural, grandioso, que me parece falar ao que há de mais íntimo em minha alma! Que é a vida sem uma grande ambição?

Este arrojo de vaidade produziu o desejado efeito, eletrizou a moça, a cujos olhos parecia que Andrade se havia transfigurado. Bem o percebeu Andrade, que coroava assim os seus esforços. Adivinhara tudo.

Tudo o quê? Adivinhara que Miss Hope era ambiciosa.

CAPÍTULO V

Eram duas pessoas diferentes até aquele dia; daí a pouco pareciam entender-se, harmonizar-se, completar-se. Tendo compreendido e sondado a situação, Andrade não deixou de prosseguir no ataque em regra. Sabia para onde iam as simpatias da moça; foi com elas, e tão cauteloso, e ao mesmo tempo tão audaz, que inspirou ao espírito de Sara pouco disfarçável entusiasmo. Entusiasmo, digo, e era esse o sentimento que devia inspirar quem pretendesse o coração de Miss Hope.

Amor é bom para as almas angélicas.

Sara não era assim; a ambição não se contenta com flores e horizontes curtos. Não pelo amor, mas pelo entusiasmo, é que ela devia ser vencida.

Sara via Andrade com olhos de admiração. Ele soubera, a pouco e pouco, convencê-la de que era um homem essencialmente ambicioso, confiado na sua estrela, e seguro dos seus destinos.

Que mais queria a moça?

Ela era efetivamente ambiciosa e sedenta de honras e eminências. Se tivesse nascido nas imediações de um trono, poria esse trono em perigo.

Para que ela amasse alguém, era necessário que esse pudesse competir com ela no gênio, e lhe afiançasse a vinda de glórias futuras. Andrade compreendera isso.

E tão hábil se houve que conseguira fascinar a moça. Hábil, digo eu, e nada mais; porque, se houve jamais criatura desambiciosa neste mundo, espírito mais tímido, gênio menos desejoso de mando e poderio, esse foi sem dúvida o nosso Andrade.

A paz era para ele o ideal. E a ambição não existe sem perpétua guerra. Como conciliar, pois, este gênio natural com as esperanças que inspirara à ambiciosa Sara?

Deixava ao futuro?

Desenganá-la-ia, quando fosse conveniente?

A viagem à Europa foi ainda uma vez adiada, porque Andrade, competentemente autorizado pela moça, pediu-a em casamento ao honrado comerciante James Hope.

— Perco ainda uma vez a minha viagem, disse o velho, mas desta vez por um motivo legítimo e agradável; faço minha filha feliz.

— Parece-lhe que eu... murmurou Andrade.

— Ande lá, disse Hope batendo no ombro do futuro genro; minha filha morre pelo senhor.

O casamento foi celebrado dentro de um mês. Os noivos foram passar a lua-de-mel na Tijuca. Cinco meses depois estavam ambos na cidade, ocupando uma casa poética e romanesca em Andaraí. Até então a vida foi um caminho semeado de flores. Mas o amor não podia tudo numa aliança iniciada pela ambição.

Andrade estava satisfeito e feliz. Simulou enquanto pôde o caráter que não tinha; mas, le naturel chassé, revenait au galop. A pouco e pouco iam manifestando-se as preferências do rapaz por uma vida calma e pacífica, sem ambições, nem ruído.

Sara começou a notar que a política e todas as grandezas do Estado aborreciam sobremaneira o marido. Lia alguns romances, alguns versos, e nada mais, aquele homem que, pouco antes de casar, parecia destinado a mudar a face do globo. Política era para ele sinônimo de dormideira.

Tarde conheceu Sara quanto se havia enganado. Grande foi a sua desilusão. Como ela possuísse realmente uma alma ávida de grandeza e poderio, sentiu amargamente este desengano. Quis disfarçá-lo, mas não pôde.

E um dia disse a Andrade:

— Por que razão a águia perdeu as asas?

— Qual águia? perguntou ele.

Andrade compreendeu a intenção dela.

— A águia era apenas uma pomba, disse ele, passando-lhe o braço à roda da cintura.
Sara recuou e foi encostar-se à janela.

Caía, então, a tarde; e tudo parecia convidar aos devaneios do coração.

— Suspiras? perguntou Andrade.

Não teve resposta.

Houve longo silêncio, interrompido apenas pelo tacão de Andrade que batia compassadamente no chão. Afinal, levantou-se o rapaz.

— Olha, Sara, disse ele, vês este céu dourado e esta natureza tranqüila?

A moça não respondeu.

— Isto é a vida, isto é a verdadeira glória, continuou o marido. Tudo mais é manjar de almas doentias. Gozemos isto, que deste mundo é o melhor.

Deu-lhe um beijo na testa e saiu.

Sara ficou longo tempo pensativa, à janela; e não sei se a leitora achará ridículo que ela vertesse alguma lágrima. Verteu duas. Uma pelas ambições abatidas e desfeitas. Outra pelo erro em que estivera até então. Porquanto, se o espírito parecia magoado e entorpecido com o desenlace de tantas ilusões, dizia-lhe o coração que a verdadeira felicidade de uma mulher está na paz doméstica.

Que mais lhe direi para completar a narrativa?

Sara disse adeus às ambições dos primeiros anos, e voltou-se toda para outra ordem de desejos. Quis Deus que ela os realizasse. Quando morrer não terá página na história; mas o marido poderá escrever-lhe na sepultura: Foi boa esposa e teve muitos filhos.

Fonte:
Machado de Assis. Histórias Românticas. RJ: Edições W. M. Jackson, 1938.
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, setembro de 1872.

Emilio de Menezes (Poemas Esparsos)


ELA
" Amar, amar, eternamente amar."

É bela e sedutora! Seus olhares
Muito meigos, serenos, — um portento, —
Representam-me fúlgidos altares,
Onde vou suavizar os meus pesares,
Na muda invocação do pensamento...

Seus lábios de carmim, sempre sorrindo,
E dos dentes mostrando a fina alvura,
Exornam mais e mais seu rosto lindo,
Esse rosto sem par, de encanto infindo,

O Sacrário sublime da ternura.
Seu corpo donairoso de princesa,
D'uma graça indizível modelado,

É a imagem perfeita da beleza,
Ante a qual, com respeito e singeleza,
Eu me curvo e confesso apaixonado...

NATAL

Não há talvez no Calendário, um dia
Como este vinte e cinco de Dezembro,
Em que a própria velhice se avigora
Da lembrança à dulcíssima caudal!

Moço, nele, a esperança me fulgia,
Velho, nele, ainda exclamo: bem me lembro!
Sinto que vivo numa eterna aurora
Neste glorioso dia de Natal.

Passam-se as horas todas, dentro, apenas,
De um pequenino e colossal minuto,
De um minuto que encerra, hora por hora,
O Tempo imperecível e imortal.

Nem ouço a voz de minhas próprias penas
Só do supremo Bem os sons escuto!
— Vibra dentro em meu seio a eterna aurora
Na glória deste dia de Natal!

Os séculos são nada, ante este imenso
Porém diminutíssimo segundo,
De que eles brotarão, tempos em fora,
Como as caudais de escasso manancial!

De anelo e gozo, num fervor intenso
Em suavíssima luz meu ser inundo!
Canta dentro de mim da eterna aurora,
A glória imorredoura do Natal.

É que não tem o Calendário, um dia
Como este vinte e cinco de Dezembro
Em que a própria velhice se avigora,
Da saudade à dulcíssima caudal
Velho, nele, inda exclamo: ó se me lembro!

Mas de mim vai fugindo a eterna aurora,
Deste saudoso dia de Natal! ...

AO TIRO RIO BRANCO

"Ide, galharda flor da Paz armada em Guerra!

Ide, gloriosa flor das gloriosas legiões,
Que a mocidade em si, neste momento encerra,
Como encerra o alto céu áureas constelações.
Que desde a orla marinha às quebradas da Serra,
Que dos Campos Gerais às fecundas Missões,
Que onde comece e finde a vossa amada terra,
Vibre o entusiasmo, a encher os vossos corações!
Da mais ampla campina à mais densa floresta,
A natureza ali, toda rebrilhará
Ao fulgor imortal que o vosso brilho empresta.
Ide, que já pressinto, ide que escuto já
O vosso berço entoar, nos mesmos sons de festa,
Num hino a Rio Branco, um hino ao Paraná!"

NO ÁLBUM DE CORDÉLIA MURAT

Aqui não quero ver-te a formosura
Na glória da mulher bela e perfeita.
Ao ler-te o nome, a mim se me afigura
A Cordélia de todos nós eleita.

A Cordélia que a cada travessura,
De menina risonha e satisfeita,
Dava o clarão de um sol a uma alma escura,
Dava a amplidão de um céu a uma alma estreita.

Crescente. És mulher forte e bonita
E o sangue adulto que hoje te avigora,
Mal recorda a Cordélia pequenita.

Eu, porém, só te vejo como outrora.
É que a velhice a recordar me incita:
Sou tarde. És meio-dia. Eu lembro a aurora...

ESPUMAS
(Lendo Amadeu Amaral)

Na aparente quietude ou plácido remanso
E ao suavíssimo olor com que os versos perfumas,
Se lanço alegre o olhar, se úmidos olhos lanço,
Vejo que a luz do sol não n'a encobrem as brumas.

Abaixo, assim, do leve e ondulado balanço
Da superfície espilmea, eu sinto, umas por umas,
As grandes emoções de oceanos sem descanso,
Estudando ocultamente à aluvra das espumas.

Mas nem sempre a avistar tênue espiral de fumo
Se prevê que à floresta, ao requeimar das franças,
Mortos, só restarão os troncos nus a prumo.

Não, que é chama fecunda essa a que te abalanças!
Do que foste, és, serás, o teu livro é o resumo:
Nobres recordações, certezas, esperanças.
===========

"Entretanto, é intuitiva a impropriedade da escolha do uniforme da Cruz Vermelha para
festejos carnavalescos. Esse uniforme foi sempre e é, com especialidade neste momento,
uma cousa sacratíssima. Ele simboliza a abnegação de milhares de senhoras nestes dias
ae amargura".
(Da seção "Salpicos", de Emílio de Menezes, na Gazeta de Notícias)


À excelsa Sra. Gaby Coelho Neto

Senhora! Aos vossos pés aqui se ajoelha
Não do humorismo a brincalhona musa,
Mas uma alma que à vossa alma se cruza
Ante a bondade ideal que em vós se espelha.

A Santa Instituição dai a centelha
Da vossa caridade ampla e profusa.
Não podeis insistir nessa recusa
De dar o vosso esforço à Cruz Vermelha.

As que, ingênuas, profanam em folia
O símbolo sagrado, eu as contemplo,
Como cegos a quem falece um guia.

Vinde senhora a dar o grande exemplo
De vosso amor, blindado de energia;
Vinde e Correi as más irmãs do templo!

Fonte:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes. RJ: Livraria José Olympio, 1980.

Pedro Malasartes (De Como Malasartes Vende o Cadáver da Velha)


Nisto ele soube no caminho que sua mãe tinha morrido, e, como era muito extremoso, foi logo ter em casa. Lá encontrou os irmãos que se fingiam chorosos. Ele também derramou muitas lágrimas e resolveram logo fazer a partilha, pois que cada um' queria cuidar de sua vida.

A herança não era grande, mas sempre havia um sítio, umas colheitas, umas terras e uma casinha...

Os irmãos começaram a escolher o que havia de melhor: Mas Pedro Malasartes disse:

-Lá por isso não seja a dúvida. Eu quero somente três coisas: uma folha da porta da casa o corpo de minha mãe e o cavalo matungo.

Os outros estranharam aquilo, mas, como era fácil de contentar, combinaram na partilha. Pedro amarrou o corpo da velha no selim do matungo, em posição de cavaleiro. E saiu, puxando o cavalo, prometendo voltar depois, em procura da porta.

Foi dar numa fazenda, já tarde da noite, e pediu pousada. A gente da casa já estava acomodada, mas a pessoa que veio abrir consentiu na hospedagem porque Pedro alegou o cansaço da velha, a doença dela, coitadinha!

Mostraram-lhe um quarto na entrada, onde os dois ficaram. A certa hora, Pedro Malasartes pegou no cadáver, enveredou com ele pelo corredor e foi colocá-lo encostado à porta do quarto do dono da casa.

Este quando, pela manhã, abriu a porta, levou um grande susto ao ver que um corpo pesado caiu dentro do quarto. E havia no chão muito sangue pois a cabeça da defunta, quando o corpo caiu se tinha quebrado.

O homem fez um grande alarma, vindo logo Pedro, esfregando os olhos e fingindo ter-se acordado naquele momento.

Ao ver aquele quadro, lançou-se sobre o cadáver da velha e fez um grande choro, acusou o fazendeiro de haver sido o assassino de sua mãe e pediu grossa gratificação, sob pena de ir queixar-se à justiça. O fazendeiro não teve outro remédio senão cair com o cobre e ainda fazer o enterro do corpo.

E Pedro Malasartes voltou para casa em procura da porta tendo ainda no caminho vendido o punga que logo, logo, causado da viagem, arriou na estrada e morreu. Pedro Malasartes, quando chegou com a porta onde ficara o cavalo, viu que sobre este estava um bando de urubus, atirou a porta sobre o bando, apanhou um urubu que ficou com a perna quebrada e seguiu viagem. Esse dito urubu foi o mesmo que ele vendeu por cinco contos. Estão lembrados?