terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Esmeraldo Siqueira (1908 – 1987)


Médico, professor, poeta, crítico literário potiguar, nasceu em 16 de agosto de 1908 e morreu em 20 de junho de 1987.

"Expressão mais alta da nossa vida literária e científica", nas palavras de Veríssimo de Melo, Esmeraldo Homem de Siqueira nasceu em Vila Nova, hoje Pedro Velho (Rio Grande do Norte), filho do juiz Joaquim de Siqueira Cavalcanti e de dona Maria Joaquina de Siqueira Cavalcanti. Transferiu-se com seus pais para Natal em 1913, iniciando no mesmo ano seus estudos primários no Grupo Escolar Augusto Severo. Depois, estudou no colégio Santo Antônio e no Ateneu Norte-rio-grandense.

Em 1928, matriculou-se na Faculdade de Medicina do Recife onde colou grau na turma de 1933. Começou a exercer a profissão em Jardim do Seridó. De lá, nas horas vagas, escrevia e mandava para A República os seus "Intentos", série de artigos sobre literatura e filosofia. A partir de 1936, transferiu-se para Natal e passou a lecionar na Escola Normal a disciplina de História Natural. Em 1941, ingressa no quadro de professores do Ateneu Norte-rio-grandense ensinando Língua e Literatura Francesa. Para essa cadeira publicou "Letras de França" (1969), que é uma espécie de excursão didática erudita nas obras e nas vidas dos grandes autores franceses.

Intelectual polêmico e contestador, portador de uma vasta cultura científica e humanista, colaborou assiduamente nos jornais A República, Diário de Natal, Correio do Povo e Tribuna do Norte. Neste último, manteve uma coluna semanal sobre literatura e filosofia entre os anos de 1954 e 1955.

Era um homem de temperamento arredio, contrário às reverências aos poderosos e aos círculos de privilegiados, preferindo o trabalho intelectual solitário que exercia habitualmente à noite, encerrada a jornada diária pelos colégios onde ministrava aulas. Deixou dezenas de livros editados versando sobre temas da literatura clássica européia, sobretudo francesa, mas também sobre temas da cultura brasileira.

A maioria desses livros foi paga por ele próprio. Na poesia, deixou uma produção vasta e variada, lírica, satírica, romântica.

Descrevendo-o em artigo, assim se expressa seu filho Juliano Siqueira: "Esmeraldo escreveu seus poemas de acordo com seu credo literário: romântico, parnasiano, simbolista, moderno. Um humanista."

Em 1949 funda, com outros colegas, a Faculdade de Farmácia e Odontologia - primeira escola superior da Universidade Federal no Rio Grande do Norte - onde lecionou a cadeira de Botânica Farmaceutica. Foi também um dos fundadores da Faculdade de Filosofia à qual vinculou-se depois que essa instituição acadêmica foi incorporada à Universidade Federal.

Em 1957, fundada a Faculdade de Filosofia de Natal, passa a lecionar Língua e Literatura Francesa. Aposenta-se em 1958 na cadeira que ocupava na Faculdade de Farmácia. Suas aulas, cultas e descontraídas, ficaram famosas por atraírem grande número de alunos, inclusive vindos de outros cursos. Ingressou, a convite, na Academia Norte-rio-grandense de Letras, em 1949, ocupando a cadeira número 29, cujo patrono é Armando Seabra.

Obras:

Caminhos Sonoros (versos), Tipografia A. Lira, Natal, 1941;
Roteiro de uma Vida, editora Pongetti, Rio, 1968;
Música no Deserto, editora Pongetti, Rio, 1968;
Fauna Contemporânea - Sátiras, editora Pongetti, Rio, 1968;
Novos Poemas (versos), Departamento Estadual de Imprensa, Natal, 1950;
Taine e Renan (ensaios), editora Pongetti, Rio, 1968;
Sugestões da Vida e dos Livros (crítica literária) Imprensa Universitária, Natal, 1973;
Caminhos Sonoros (poesias) editora Pongetti, Rio 1941;
Poemas do Bem e do Mal (poesia), editora Pongetti, Rio, 1984;
Pretéritas (poemas) editora Pongetti, Rio, 1984;
Jorge Fernandes Desconhecido in "Revista da ANL", número 15, voluma 27, novembro de 1979/80.

Fonte:
Enciclopédia Nordeste

J. G. de Araújo Jorge (Os Últimos Reflexos de Uma Época)


A minha geração também poderia falar de uma belle époque. Nossa formação literária vinha de escritores que vivem ou participaram desse período. Julio Verne, Pierre Loti, Rostand, Zola, Heredia, Maupassant, Anatole France, Proust, cada um contriuiu com seu traço pessoal para aquela paisagem do espírito batizada com o nome vago de art nouveau.

Ainda agora leio nos jornais que Carlos Maul vai publicar um novo livro: O Rio da Bela Época. Ele próprio esclarece o título da obra:

“Era assim que na Europa, no princípio do século, se denominava o período entre 1898 e 1914, quando a humanidade parecia feliz e despreocupada, e não pressentia que a guerra a surpreenderia. O Brasil também pagou seu quinhão à calamidade, mas não tanto como os países devastados. Por isso, nossa “bela época” durou de 1900 a 1930.”

Eu prolongaria essa data por mais alguns anos. Minha geração ainda vislumbrou as suas últimas claridades. Em que pese as agitações políticas que refletiram posteriormente as lutas dos extremismos na Europa, vivíamos aqui, literariamente, como se fossemos uma longínqua província onde não tinham chegado as perturbações da metrópole.

Adolescentes, acordando para as letras, pertencemos ao tempo dos “cafés sentados”, os “cafés literários”, quando se tinha mais tempo para perder. Ainda se fará um dia a crônica dessa fugaz belle époque dos cafés do Rio de Janeiro. Primeiro, o velho Belas-Artes, na esquina da Avenida com a Rua Almirante Barroso. Lá nos reuníamos -a novíssima geração-, em longos “papos”, nos fins das tardes, a propósito de tudo.

Joaquim Ribeiro, que ampliou, no tempo, a inteligência e a obra do pai, João Ribeiro, Joaquim, talvez a maior cultura de nossa geração; Guilherme Figueiredo, então ainda e apenas o poeta de “um violino na sombra”; Edmundo Moniz, também poeta, engolfado sempre em estudos políticos e sociólogos; Odilo Costa Filho, recém-chegado do Norte; Henrique Carstens, poeta desaparecido; Augusto Rodrigues, que apenas começava seus desenhos, seus primeiros bonecos; Jair, figura exótica, com seus estranhos bigodes, extraordinário desenhista, autodidata, o penúltimo boêmio autentico que conheci (o último foi Antônio Maria, o pastor das madrugadas); Garibaldi, então pintando interiores do Mosteiro de São Bento, em fase mística, e que se perderia durante anos por Paris.

Lembro-me de uma tarde, ao chegar ao grupo que rodeava a mesa, repleta de xícaras vazias, transformadas em cinzeiros, Joaquim Ribeiro, antes que me sentasse, me apresentou a um novo companheiro:

- Araujo Jorge, este aqui é o Josué Montelo. Acaba de chegar do Maranhã Reverente, sacudindo ainda o pó das sandálias, Josué levantou-se, humilde e cordial:

- Araujo Jorge? J.G.? Admiro-o muito. Seu nome é muito conhecido em minha terra, não só pelos seus livros como pela colaboração no Correio da Manhã.

E enquanto me sentava a seu lado, foi logo retirando do bolso um trabalho:

- Gostaria de ouvir sua opinião.

Era um artigo sobre Celso Vieira. Um belo artigo, por sinal.
Disse-lhe minha impressão e me referi à sua letra, miúda, muito certa, que me lembrava a de Coelho Neto, que eu conhecia de vários manuscritos.

Alguns momentos depois, levantou-se e se despediu.

Quando Josué saiu, Joaquim voltou-se para nós da mesa, e com aquele espírito e senso de humor que o caracterizava, sem nenhuma maldade:

- O Josué trouxe quarenta artigos prontos, um sobre cada acadêmico. Vocês vão ver, enquanto nós vamos continuar aqui na “academia” do Belas-Artes, ele acaba na Academia.

O Café Belas-Artes foi realmente nossa “academia” durante alguns anos. Na esquina seguinte, frente para a antiga Galeria Cruzeiro, era o Café Nice, ponto de reunião de cantores, músicos, compositores da velha-guarda.

Eram dois mundos que não se misturavam. Quando instalaram a Caixa Econômica no local do Belas-Artes, levantamos vôo e fomos pousar na Cinelândia. Iniciava-se a fase do Café Amarelinho. O café existe até hoje, mas p erdeu definitivamente aquelas características de QG literário.

O mesmo grupo do Belas-Artes estava agora acrescido de outros elementos, alguns mais velhos, de outras gerações. Era comum, nas cadeiras de palhinha, na calçada, encontrarmos Murilo Araújo, Álvaro Moreira, Mário de Andrade, (quando de passagem pelo Rio), Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Portinari, Graciliano Ramos, Jorge de Lima. Uma tarde fui apresentado a Julio Salusse, o poeta de Os Cisnes.

Jorge de Lima tinha consultório no mesmo edifício do café e era o médico dos escritores e artistas do Amarelinho. Hoje, depois de tantos anos, só lastimo não ter me aproximado do Jorge, participado mais de sua convivência. O grande poeta me pareceu sempre esquivo, silencioso, distante.

No mesmo edifício ficava também a redação de Dom Casmurro, o jornal literário de Brício de Abreu. Quem desejar escrever a história dessa época terá que consultar as coleções de Dom Casmurro. Lembro-me que, na ocasião, um nome novo se projetava ? Joel Silveira, que acabara também de chegar do Norte, e que à maneira de Sergio Porto, depois lírico e satírico, tirava do dia-a-dia da vida da cidade a substância de suas crônicas.

No Amarelinho, reuniam-se ao nosso grupo jovens músicos cheios de idealismo e de planos. Eleazar de Carvalho e José Siqueira são velhos amigos, com quem troquei muitas vezes idéias. Eu estivera na Alemanha, freqüentara a Filarmônica de Berlim, então sob a regência de Furtwaengler, fora a Bayreuth, assistira a Wagner em seu teatro, e muitas vezes lhes sugeri a criação de nossa Orquestra Sinfônica Brasileira, da qual Álvaro Ladeira, cronista de arte, outro amigo, foi secretário por muitos anos.

Falar do Amarelinho é recordar nomes e amigos, poetas, romancistas, jornalistas, pintores, compositores, caricaturistas, cuja convivência, nessa época, enriqueceu de lembranças minha memória: Armando Pacheco, eram dois, o pintor e o jornalista; os Condes, Mendes, Alvarus, Wilson W. Rodrigues, D’Almeida Victor, Cursino Rapôso, Paulo Mac-Dowell, Nélio Reis, Nélson Ferreira, alguns desaparecidos, como Osório Borba, Augusto de Almeida Filho, Amadeu Amaral Júnior, Martins Castelo. Era a minha geração. Não ficou marcada cronologicamente: de 35 ou de 40 -Mas teve seu tempo, foi bem um prolongamento do que se poderia chamar a belle époque.

Como poetas, apenas dois nos fixamos: eu e Vinicius de Morais. Os outros perderam-se na vida, e, distraídos da poesia, enveredaram por múltiplos atalhos. Que sejam felizes!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ademar Macedo (Carnaval em Trova e Soneto e Uma Setilha)


De sábado a terça-feira
cai na folia o país...
Diverte-se a pátria inteira,
sem medo de ser feliz!
–A. A. DE ASSIS/PR–

Quando encontrei desbotado
seu retrato de arlequim
no carnaval do passado,
senti saudade de mim!
–ALFREDO DE CASTRO/MG–

Ah! Esse amor eu queria...
Mas o destino, afinal,
pôs fim em nossa folia,
logo em pleno carnaval!
–CLENIR NEVES RIBEIRO/RJ–

Na loucura de três dias,
vai-se tentando afogar
as frustrações, nostalgias
que a vida deixa ficar...
–CONCEIÇÃO A. C. DE ASSIS/MG–

Nos quatro dias de momo
ante tanta bebedeira,
eu estarei, não sei como,
quando chegar quarta-feira!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Foliões encantadores,
fantasias colossais...
um mesclado de mil cores,
só nos nossos carnavais!
–GLÓRIA MARSON/SP–

Nos três dias de folia,
aquela atração fatal,
não passou da fantasia
de um amor de carnaval!
–GUILHERME MACHADO/RJ–

Os poetas foliões
vestiram as fantasias,
desfilaram nos cordões
declamando poesias.
–HELOISA CRESPO/RJ–

No carnaval da paixão
no quesito “nosso amor”
a nota da comissão
foi um “dez” e com louvor!
–LARISSA LORETTI/RJ–

Sem amor e sem carinho
no carnaval da ilusão,
vou pular frevo sozinho
no bloco da solidão.
–LUIZ GONZAGA ARRUDA/CE–

Na passarela dos sonhos,
num desfile de magia,
passam pierrôs tristonhos,
num carnaval sem folia...
–MARIA CARRIÇO/RN–

Carnaval!... Grande folia.
Vou mostrar o meu segredo,
vou rasgar a fantasia,
cantando meu samba-enredo.
–MIFORI/SP–

Carnaval exige estudo
para quem busca namoro:
escolha bem, pois nem tudo
que está reluzindo é ouro!!!
–MILTON SOUZA/RS–

Nos carnavais desta vida
muitos desfilam, risonhos,
uma versão colorida
dos seus malogrados sonhos.
–ZENAIDE MARÇAL/CE–

UMA SETILHA DE ADEMAR

Hoje eu faço do “repente”
minha grande alegoria;
nos versos de uma setilha
ponho a minha fantasia
para a festa ser completa;
pois carnaval de poeta
não pode faltar poesia.
–ADEMAR MACEDO/RN–

SONETOS:

Uma Vez Sambista... Sempre Sambista
DE: DARLY O. BARROS/SP
PARA: CARMEN OTTAIANO/SP


Se o sangue ferve e a pele se arrepia,
ao som da Escola, em novo samba-enredo,
sem mais rodeios, veste a fantasia
e a máscara, que é bom guardar segredo!

Esquece os males, entra na folia
que é tempo de alegria e de folguedo,
só não te atrases, nossa bateria
vai esquentar seus tamborins mais cedo!

Quero te ver de novo na Avenida,
suada, sorridente, enrouquecida,
rememorando antigos carnavais

e então, findo o desfile, em plena rua,
te ver sambando, ainda, à luz da lua,
com alma leve e um ar de quero mais!...

Poema da Apoteose
–ELISABETH SOUZA CRUZ/RJ–


Tem gente que se diz carnavalesca
pensando no vestir da fantasia...
Há gente com ideia gigantesca
de mascarar a dor numa folia...

Outras existem, de ilusão dantesca,
às margens de uma suposta euforia,
não indo além da gula romanesca
de saciar o sonho por um dia...

O Carnaval, não mais de antigamente,
anda mesclado de prazer urgente,
com gente que não tira os pés do chão!

Mas Carnaval não tem dia nem mês...
é aquele em que se perde a sensatez
na apoteose de uma inspiração!

Perdi Meu Carnaval
–AMILTON MACIEL MONTEIRO/SP–


Brinquei nos carnavais lindos de outrora,
Um tempo bom e muito diferente
De tudo o que se escuta e vê agora
No modo de folgar de tanta gente.

As graciosas marchas, feito a “Aurora”
E a “Jardineira”, mais que de repente
Sumiram da folia, foram embora,
Expulsas num barulho “ensurdecente”...

O romantismo todo que existia
No jogo de confete e serpentina,
Em busca do romance tão sonhado,

Suponho até que entrou em agonia...
Agora é a adrenalina o que domina...
Pra que xodó?... Tá tudo liberado!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Clevane Pessoa (A Boneca de Pano)


O retalho de fino veludo preto, na banca das “Casas Regente”, tradicional loja de tecidos em “Juiz de Fora” , atraiu a moça. Pensou em cortá-lo em retângulos e neles aplicar flores de fita varicor, o que estava em voga naqueles anos sessenta. Gostava de trabalhos manuais e de criar peças para o seu enxoval. As claras mãos, muitos finas, destacaram-se no negro. O anel bonito, que terminava numa pérola encaixada em garras de ouro branco, faiscou. Presente de Pete, com quem namorava “firme”, como diziam então.

Acabou mandando embrulhar o retalho, pagou e, como sempre, foi à sorveteria da loja, onde os fregueses podiam servir-se gratuitamente de um delicioso sorvete, mais cremoso que o de qualquer outro lugar.

Professorinha recém-nomeada, foi dar aulas em um grupo escolar. Muito ocupada fazendo todo o material didático, já que as escolas estaduais da época possuíam-no muito pouco – confeccionava desde as cadernetas de notas mensais, feitas de cartolina dobradas e decoradas com seus caprichosos desenhos, às provas mimeografadas... Mapas, quadro de pregas para ensino de unidades, dezenas, centenas... Flanelógrafos, corpo humano, fauna e flora! Tudo feito em casa, na grande maioria, mais o plano dos testes... Nas datas comemorativas, dezenas de pequenos brindes e enfeites, alusivo: dia da páscoa, em abril, dia das mães em maio, dias de festas juninas, dia dos pais em agosto, dias da árvore e da entrada da primavera em setembro, dias das crianças e de N. Sra. Aparecida, padroeira do Brasil, em outubro, dia da bandeira em novembro e, em dezembro, as festas de fim de ano, com suas formaturas ou despedidas. Haja papel-cartão, papel-cetim, papel-de-seda, papel fantasia, papel kraft! Haja isopor, cola, aquarela e lápis cera e de cor! Os dedos, machucados de tanto usar tesoura, o rosto com pontos luminosos de brocal, purpurina, as unhas estragando-se.

Mas o prazer de lecionar, agradar à criançada, ver os resultados, mesclado à criatividade que recebera como dom, sobrepujava em muito aquela canseira toda.

Também ganhava presentes, em certas datas, mas, principalmente, no seu aniversário e no dia do professor. Alguns, feitos a capricho, pelas mães, como panos de prato, toalhinhas de crochê. Outros, terríveis, certos bibelôs de porcelana branca, com traços informes e riscos dourados. Alguns insuportáveis perfumes baratos, brincos de plástico vagabundo. Os simplórios ou baratos, como sabonetes. Bichinhos de pelúcia, bombons, cosméticos, principalmente se a mãe era uma “revendedora Avon”.

E broa com carinho, empadinhas sem azeitonas... De vez em quando, havia um pai dono de padaria, uma prendada tia, avó ou mãe confeiteira, doceira, costureira, florista... e, falando em flores, elas vinham aos montes, as de jardins e horta, as arrancadas pelo caminho ou roubadas de vizinhos...

Voltava para casa carregada com esses troféus do carinho que lhe dedicavam, feliz da vida. Uma vez, um aluno quis dar a ela algo inusitado:

- Um gato-coelho, fessora.

- Que é isso, Serginho?

- Um gato com rabo de coelho, todo branco, que pula como coelho.

A mãe dela adorava animais e, acompanhada do garoto, foi à casa dele após a aula. A mãe de Sérgio achou graça porque o animal – uma linda aberração – era a paixão da criança e da família.

- Olha, Eva, ele gosta muito mesmo da senhora, porque em casa é muito ciumento do bichinho.

Sérgio, nos dias de início das aulas, chorava tanto, que, literalmente, ficava com a camisa do uniforme encharcada. Chorava pelos olhos, pelo nariz, pela boca. Às vezes, pela bexiga. Eva fora tão carinhosa, que o conquistara “para sempre”.

- Fessora, eu amo você para sempre!

- Que bom, Serginho, eu também, mas agora, vá para o recreio merendar e brincar...

Se deixasse, ele ficaria olhando-a, sem ir ao pátio com os coleguinhas...

Ele chegou com um sorriso de melancia no rosto moreno, olhos cheios de estrelinha:

- Olha tia, meu gato-coelho!

Ou então, um coelho-gato. O menino tinha razão. Um mistério de cruzamento. Deixou-o contentíssimo, aliviado, quando declinou do presente, com uma desculpa.

- Ah, Serginho, não vou poder levá-lo, porque na minha casa temos dois cachorros e ele vai correr perigo...

Num feriado, arrumando seus guardados, encontrou o retalho, já retalhado, em cinco retângulos menores. Teve a idéia de fazer uma boneca e foi costurando, com ponto caseado miúdo, braços, pernas, tronco.

Braços e pernas, após enrolar cada tecido sobre si mesmo, como rocambole, os primeiros mais apertados para ficarem mais finos e não precisarem de enchimento. Já as pernas, tronco e rosto, receberam espuma de nylon por dentro.

A cabecinha fez com um pedaço de cetim preto. Olhos de botões, boca e nariz bordados, cabelos de lã preta em mil trancinhas, vestido xadrez vermelho “vichy”, avental marinho.

Fez por fazer, talvez para os filhos que tivesse, uma garotinha ou garotinho – afinal, estavam descobrindo que os meninos também podem gostar de brincar de pais. Mas, pronta a Maria Pretinha, pensou nos “filhos diários e resolveu levar a boneca para a escola.

A Maria ficou na bolsa enorme do tipo que as professoras usam para caber toda a tralha didática. De repente, Lu e Marcos saíram aos tapas, sem ouví-la quando pediu que parassem com a encrenca. Aí, lembrou-se da boneca e tirou-a, expondo-a aos olhos curiosos da criançada, que dela se aproximou. Quando os briguentos perceberam que não tinham platéia, também se chegaram. Aí, quase sem mover a boca, como fazem os ventríloquos, mas deixando o som formar-se naturalmente, admoestou Lu e Marcos e então começou a incrível história de amor, empatia imediata, entre os pequenos e Maria Pretinha.

A partir daí, tudo que queria, pedia através da boneca. Num dia em que esqueceu de colocá-la na bolsa, deixando-a pendurada no varal, para tomar um solzinho, foi uma decepção geral. Aninha, de sobrenome alemão e incríveis olhos azuis, passou todo a tarde a olhar para o lugar, sobre a escrivaninha, onde Maria Pretinha ficava sentada, costas apoiadas em livros. Eva notou que, após as perguntas iniciais, o resto da turma, compreendendo sua explicação de que ontem chovera dentro da grande bolsa de palha e, se não secasse, a boneca iria mofar, aquietou-se, participando das atividades do dia. Aninha, não: ora suspirava, ora enchia os belos olhinhos de lágrimas, olhando de vez em quando para o lugar sem bonequinha.

Após a aula final, a garotinha a esperou:

- “Fessora”, amanhã a senhora jura que traz a Maria Pretinha?

- Claro, Aninha! Quando eu chegar em casa, vou contar a ela que você sentiu sua falta...

- Eu fiquei morrendo de saudades dela...

- “Vivendo de saudade”, pensou Eva, fazendo um carinho nos cachos cor-de-mel e preparando-se para ir embora: não podia perder o ônibus, pois Pete saía do trabalho e corria para esperá-la no ponto final, de onde iam caminhando de mãos dadas, lentamente, ele falando de uma tal CLT, ser ou não optante da lei e ela contando dos aluninhos do pré-primário.

No fim do ano, quando as aulas iam encerrar-se, ela sabia que não ia voltar porque, casando-se, ia mudar de cidade. Fez uma festinha para sua classe, entregou a “Aninha Cachinhos de Ouro”, como chamava a sensível menina, um pacote embrulhado em papel fantasia. Havia levado um presentinho para cada um dos alunos, deixando-a por último. Aí, abraçando-a, disse-lhe ao ouvido:

- Só abra quando chegar em casa, porque seu presente é especial, eu não tinha para todo mundo.

Aninha entendeu, surpresa, mas com medo de acreditar, correu para casa e no caminho rasgou um pedaço do embrulho... Acertara: os pés de Maria Pretinha apareceram fazendo seu coração bater mais forte.

Eva, parece que adivinhou ao lhe dar o presente; só teve dois filhos, homens, que, ensinados pelo avô, tinham horror a bonecas, “coisa de menina, mãe”... Mas Eva nunca esqueceu Aninha, nem esta a sua Maria Preta…

Fonte:
Jornal de Poesia

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 488)

Uma Trova de Ademar   Uma Trova Potiguar Eu construo o meu presente e alguns atos do passado, trazendo o “trigo semente” , deixando o joio queimado!... –TARCISIO JOSÉ FERNANDES/RN– ...E Suas Trovas Ficaram A missão será cumprida quer tu acertes ou falhes Deus traça as linhas da vida e o destino, os seus detalhes... –ADALBERTO DUTRA RESENDE/PR– Uma Trova Premiada 2009 - Cantagalo/RJ Tema: SERTÃO - 2º Lugar Quando a chuva da bonança jorra prata pelo chão, as lágrimas de esperança brilham no olhar do sertão. –ADILSON MAIA/RJ– Simplesmente Poesia Namorada –EFIGÊNIA COUTINHO/SC– Queria ser sua namorada Não tenho como não ser Já sou muito mais que isso Sou certa de me perder Sem perder um só cuidado Não sei o que me espera Perco-me pelo que quero Nem me acabo de perder Porque mais me perder espero! Estrofe do Dia Olho a tela do tempo e me torturo vejo o filme do meu inconsciente, meu passado maior que o meu presente meu presente menor que o meu futuro; se a velhice é doença eu não me curo, que os três males que atacam um ancião: são carência, desprezo e solidão, e é difícil escapar dessa trindade; se eu pudesse comprava a mocidade nem que fosse pagando a prestação. –GERALDO AMÂNCIO/CE– Soneto do Dia Lembranças –ALMIRA GUARACY REBÊLO/MG– Lembranças memoráveis do passado, que se perderam pela vida afora, voltam todas, em bando alvoroçado, a confortar-me, nesta extrema hora. A infância, brincadeiras no sobrado, algazarra de pássaros na aurora, minha mãe ao piano; eu, a seu lado, dormindo ao som da música que aflora. Fogão de lenha, a carne no braseiro, desvario de frutas no terreiro, cirandinha de roda na calçada... Do amor primeiro, o mágico esplendor e, no final, o derradeiro amor, que trouxe o sol da vida à minha estrada. Fonte: Textos enviados pelo Autor

Ialmar Pio Schneider (A Primavera...)


Dentre as estações do ano, principalmente aqui no sul, onde são mais definidas, é a que traz amenidades, prenunciando o próximo verão de sol ou de chuva, mas também de águas salgadas e areia, aos que se dirigem às praias, tão convidativas nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março. Nesse período, os que têm condições de fazê-lo, vão ao litoral, nem que seja por quinze dias, a fim de refazer-se um pouco da estafa adquirida no dia-a-dia.
Outrossim, representa também a quadra da vida, quando se está na adolescência, tão decantada pelos poetas, tais como Casimiro de Abreu e Pe. Antônio Tomás que nos deixou o soneto inesquecível:

“CONTRASTES” –

“Quando partimos, no verdor dos anos,
da vida pela estrada florescente,
as esperanças vão conosco à frente
e vão ficando atrás os desenganos.

Rindo e cantando, céleres e ufanos,
vamos marchando descuidosamente...
Eis que chega a velhice de repente,
desfazendo ilusões, matando enganos.

Então nós enxergamos claramente
como a existência é rápida e falaz,
e vemos que sucede exatamente

o contrário dos tempos de rapaz:
- os desenganos vão conosco à frente,
e as esperanças vão ficando atrás.”

Isto me leva a meditar num passado recente, porque a vida é efêmera, e não faz muito navegava nessa fase, percorrida sem grandes lances aventureiros. Conservo ainda enraizados aqueles devaneios que me assaltavam o pensamento na juventude pacata e laboriosa. Sempre lutando por dias melhores, desde a infância, consegui algum progresso relativo, o que me leva a acreditar no estudo e no trabalho. E muitas vezes me surpreendo ao deparar com acontecimentos já presenciados outrora, que pareciam sepultados na tumba do tempo, mas que surgem avivados qual uma brasa encoberta pelas cinzas. São as reminiscências que nos fazem, enfim, reviver alguns momentos mais representativos ao longo de nossa caminhada pelo mundo. Aos treze anos de idade, quando praticava datilografia, cujo ensino me era ministrado por uma freira, numa sala da escola em que concluía o curso primário, há mais de quarenta anos, havia um piano no qual algumas meninas aprendiam a tocar. De uma delas recordo bem; as outras me parecem névoas que se dissiparam. Embora minha paixão pela música, meu dever era a datilografia e não o piano. Hoje só me resta dizer: “Parece que foi ontem !” São os desígnios da existência...
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Poeta e cronista
Publicado em 29 de setembro de 1999 - no Diário de Canoas.

Cecília Meireles (Viagem e Vaga Música)


Com o livro Viagem, de 1938, Cecília Meireles encontra seu estilo definitivo. O verso melódico sustenta os motivos fundadores de sua poética – sonho, solidão, mar, canção, melancolia, nuvens, céu, morte...

Obra que consagra a autora, além da interpretação de uma trajetória espiritual, Viagem apresenta poemas que refletem sobre o fazer poético, em indagações ainda encontradas em livros posteriores.

A obra Viagem, juntamente com Vaga Música, inscrevem-se no panorama do Modernismo brasileiro e assinalam sua singularidade primordial. São poemas marcados pela engrandecimento dos elementos mais simples da existência, os quais adquirem significação simbólica.

A obra, pela capacidade lírica inovadora, retrata uma permanente viagem interior; intimista e introspectiva, sugerindo num tom leve e delicado, temas de solidão, melancolia, fuga pelo sonho, o vazio do existir, saudades e sofrimento. Essas características percorrerão toda sua obra lírica.

Poetisa da fugacidade, da precariedade, da provisoriedade, Cecília Meireles, desde Viagem, marca essa noção capital de fluidez em vários dos elementos da natureza que surgem ao longo de sua poesia, dentro de um fluxo mais amplo que é o do próprio canto.

Utilizando-se de jogos de palavras, metáforas, sinestesias, dentre outras figuras de linguagem, o eu-lírico investiga o processo de criação literária. Tal questão é tematizada em várias poesias, como se verifica no poema MOTIVO:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.


Viagem é composto por doze poemas, que podem ser interpretados como doze etapas de uma trajetória espiritual, onde vida e poesia se confundem, da mesma maneira que a poeta e a natureza. Formalmente, convivem lado a lado versos de sete e oito sílabas e versos livres.

VIAGEM

Fez tanto luar que eu pensei em teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
- Os ares fogem, viram-se as água,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.


Há em Viagem, em Vaga Música (1942), as claridades clássicas, as melhores sutilezas do gongorismo, a nitidez dos metros e dos consoantes parnasianos, os esfumados de sintaxe e as toantes dos simbolistas, as aproximações inesperadas dos super-realistas. Tudo bem assimilado e fundido numa técnica pessoal, segura de si e do que quer dizer. Vaga música marcou definitivamente o clímax de sua carreira como escritora. A obra mostra sua poesia contínua que avança para uma virtuosidade implacável, com uma preocupação crescente com a imagem do mar, sugerindo a fluidez plástica e a adaptação de sua personalidade interna.

Uma das formas poéticas mais utilizadas em Vaga música é a da canção, o que vem indicado, à maneira antiga, já nos títulos: "Pequena canção da onda", "Canção da menina antiga", "Canção excêntrica", "Canção quase inquieta", "Canção do caminho", "Canções do mundo acabado", "Canção quase melancólica", "Canção de alta noite", "Canção mínima", entre muitas outras semelhantes.

Essa forma é na verdade largamente usada em toda a obra de Cecília Meireles, não constituindo uma peculiaridade apenas desse livro.

Note o poema seguinte extraído de Vaga música:

PEQUENA CANÇÃO

Pássaro da lua,
que queres cantar,
nessa terra tua,
sem flor e sem mar?

Nem osso de ouvido
Pela terra tua.
Teu canto é perdido,
pássaro da lua...

Pássaro da lua,
por que estás aqui?
Nem a canção tua
precisa de ti!


No poema escolhido, algumas características da canção aparecem nitidamente: a forte atuação do som e do ritmo, a impregnação da realidade exterior pela emoção, o apagamento dos fatos, a indeterminação quanto ao tempo e ao espaço. Essas características se ligam intimamente. Assim, a musicalidade mais enfatizada na canção indica a fusão entre o eu e o mundo exterior. A alma invade o mundo objetivo, que aparece apenas como um reflexo daquela. Isso leva a um apagamento dos contornos da vida exterior e, conseqüentemente, a frases mais brandas, mais musicais, pois, mais do que definir um acontecimento, busca-se criar uma atmosfera emocional, para o que a música contribui fortemente. Esse relaxamento dos contornos implica também o relaxamento das noções de tempo e espaço, elementos sempre difíceis de precisar numa canção, que parece no mais das vezes se desenvolver no sem-tempo e no sem-espaço. É o sem-tempo e o sem-espaço da vida interior.

Fonte:
Passeiweb

Efigênia Coutinho/SC (Imortalidade)


Nutrindo suspeitas que turvam a mente
Exibes essa fúria que cevas corroendo
Por essas atitudes que tens assumido...
Por que?Triste de mim! Por que não te risco?

Na santa redenção, almejo dia e hora
Nesta parte do Universo que desmaia.
Oh! que venha minha redenção declinar,
Opressão desumana que me devora!...

Acorde Cristal; que, ao frio e mudo,
Contra vontade, os sonhos ocultando.
Onde encontrar socorro para o Amor!?
Numa ardente estação de fino clamor.

Solta-te dos grilhões para benevolência,
Ao longo do tempo a gemer clemência
Rompendo Futurecendo, vossa Imortalidade,
Aos sons prazenteiros da doce liberdade!...

Fonte:
Poema enviado pela autora

Lygia Fagundes Telles (O Encontro)


Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco. Contra o céu, erguiam-se os negros penhascos tão retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma nuvem.

"Onde, meu Deus?! - perguntava a mim mesma - Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?"

Era a primeira vez que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanças pelas redondezas, jamais fora além do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansaço, transpus a colina e cheguei ao campo. Que calma! E que desolação. Tudo aquilo - disso estava bem certa - era completamente inédito para mim. Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória? Voltei-me para o bosque que se estendia à minha direita. Esse bosque eu também já conhecera com sua folhagem cor de brasa dentro de uma névoa dourada. “Já vi tudo isto, já vi... Mas onde? E quando?”

Fui andando em direção aos penhascos. Atravessei o campo. E cheguei à boca do abismo cavado entre as pedras.

Um vapor denso subia, como um hálito daquela garganta de cujo fundo insondável, vinha um remotíssimo som de água corrente. Àquele som eu também conhecia. Fechei os olhos. “Mas se nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e agora os encontro, palpáveis, reais? Por uma dessas extraordinárias coincidências teria eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?”

Sacudi a cabeça, não, a lembrança - tão antiga quanto viva - escapava da inconsistência de um simples sonho. Ainda uma vez fixei o olhar no campo enevoado, nos penhascos enxutos. A tarde estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele silêncio, no fundo daquela quietude eu sentia qualquer coisa de sinistro. Voltei-me para o sol que sangrava como um olho empapando de vermelho a nuvenzinha que o cobria. Invadiu-me a obscura sensação de estar próxima de um perigo. Mas que perigo era esse e em que consistia?

Dirigi-me ao bosque. E se fugisse? Seria fácil fugir, não? Meu coração se apertou, inquieto. Fácil, sem dúvida, mas eu prosseguia implacável como se não restasse mesmo outra coisa a fazer senão avançar. “Vá-se embora depressa, depressa!” - a razão ordenava enquanto uma parte do meu ser, mergulhada numa espécie de encantamento, se recusava a voltar.

Uma luz dourada filtrava-se por entre a folhagem do bosque que parecia petrificado. Não havia a menor brisa soprando por entre as folhas enrijecidas, numa tensão de expectativa.

“A expectativa está só em mim” - pensei, triturando entre os dedos uma folha avermelhada. Veio-me então a certeza absoluta de já ter feito várias vezes esse gesto enquanto pisava naquele -mesmo chão que arfava sob os meus sapatos. Enveredei por entre as árvores. - “E nunca estive aqui, nunca estive aqui” - fui repetindo a aspirar o cheiro frio da terra. Encostei-me a um tronco e por entre uma nesga da folhagem vislumbrei o céu pálido. Era como se o visse pela última vez.

“A cilada” - pensei diante de uma teia que brilhava suspensa entre dois galhos. No centro, a aranha. Aproximei-me: era uma aranha ruiva e atenta, à espera. Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu em farrapos. Olhei em redor, assombrada. E a teia para a qual eu caminhava, quem? quem iria desfaze-la? Lembrei-me do sol, lúcido como a aranha. Então enfurnei as mãos nos bolsos, endureci os maxilares e segui pela vereda.

“Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio.” E cheguei a rir, entretida com aquele estranho jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda. “Se for agora por este lado, vou encontrar um regato.” Apressei-me. O regato estava seco mas os pedregulhos limosos indicavam que provavelmente na próxima primavera a água voltaria a correr por ali.

Apanhei um pedregulho. Não, não estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho podia caber uma paisagem tão minuciosa? Restava ainda uma hipótese: e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se estivesse vivendo. Por que não? Daí o fato estranhíssimo de reconhecer todos os segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me captara em seu sonho. “Faço parte de um sonho alheio” - disse e espetei um espinho no dedo. Gracejava mas a verdade é que crescia minha inquietação: “se for prisioneira de um sonho, agora escapo.” Uma gota de sangue escorreu pela minha mão, a dor tão real quanto a paisagem.

Um pássaro cruzou meu caminho num vôo tumultuado. O grito que soltou foi tão dolorido que cheguei a vacilar num desfalecimento, e se fugisse? E se fugisse? Voltei-me para o caminho percorrido, labirinto sem - esperança. “Agora é tarde!” - murmurei e minha voz avivou em mim um último impulso de fuga. “Por que tarde?”

A folha que resvalou pela minha cabeça era a seca advertência que colhi no ar e fechei na mão, que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse, na hora exata.
Enveredei por entre dois carvalhos. Ia de cabeça baixa, o coração pesado mas as passadas eram enérgicas, impelida por uma energia que não sabia de onde vinha. “Agora vou encontrar uma fonte. Sentada ao lado, está uma moça.”

Ao lado da fonte, estava a moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito branco uma expressão tão ansiosa que era evidente estar à espera de alguém. Ao ouvir meus passos, animou-se para cair em seguida no maior desalento.

Aproximei-me. Ela lançou-me um olhar desinteressado e cruzou as mãos no, regaço.

- Pensei que fosse outra pessoa, estou esperando uma pessoa...

Sentei-me numa pedra verde de musgo, olhando em silêncio seu traje completamente antiquado: vestia uma jaqueta de veludo preto e uma extravagante saia rodada que lhe chegava até a ponta das botinhas de amarrar. Emergindo da gola alta da jaqueta destacava-se a gravata de renda branca, presa com um broche de ouro em forma de bandolim. Atirado no chão, aos seus pés, o chapéu de veludo com uma pluma vermelha.

Fixei-me naquela fisionomia devastada. “Já vi esta moça, mas onde foi? E quando?...” Dirigi-me a ela sem o menor constrangimento, como se a conhecesse há muitos anos.

- Você mora aqui perto?

- Em Valburgo - respondeu sem levantar a cabeça.

Mergulhara tão profundamente nos próprios pensamentos, que parecia desligada de tudo, aceitando minha presença sem nenhuma surpresa, não notando sequer o disparatado contraste de nossas roupas. Devia ter chorado. E agora ali estava numa patética exaustão, as mãos abandonadas no regaço, alguns anéis de cabelo caindo pelo rosto. Nunca criatura alguma me pareceu tão desesperada, tão tranqüilamente desesperada, se é que cabia tranqüilidade no desespero. Perdera toda a esperança e decidira resignar-se. Mas sentia-se a fragilidade naquela resignação.

- Valburgo, Valburgo... - fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido. E não me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região.

- Fica logo depois do vale. Não conhece Valburgo?

- Conheço - respondi prontamente. Tinha agora a certeza de que esse lugar não existia mais.

Com um gesto indiferente, ela tentou prender o cabelo que desabava do penteado alto. Afrouxou ansiosamente o laço da gravata, como se lhe faltasse o ar. O bandolim de ouro pendeu, repuxando a renda. “Esse broche... Mas já não vi esse mesmo broche nessa mesma gravata?!”

- Eu esperava uma pessoa - disse com esforço, voltando o olhar dolorido para o cavalo preso a um tronco.
- Gustavo?

Esse nome escapou-me com tamanha espontaneidade que me assustei, era como se estivesse sempre em minha boca, aguardando aquele instante para ser dito.

- Gustavo - repetiu ela e sua voz era um eco. Gustavo.

Encarei-a. Mas por que ele não tinha vindo? “E nem virá, nunca mais. Nunca mais.”

Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem de um antiquíssimo álbum de retratos. Álbum que eu já folheara muitas vezes, muitas. Pressentia agora um drama com cenas entremeadas de discussões tão violentas, lágrimas. A cena esboçou-se esfamadamente nas minhas raízes, cena que culminou naquela noite das vozes. exasperadas. De homens. De inimigos. Alguém fechou as janelas da pequena sala frouxamente iluminada por um candelabro. Procurei distinguir o que diziam quando através da vidraça embaçada vi delinear-se a figura de um velho magro, de sobrecasaca preta, batendo furiosamente a mão espalmada na mesa enquanto parecia dirigir-se a uma máscara de cera que flutuava na penumbra.

Moveu-se a máscara entrando na zona de luz. Gustavo! Era Gustavo. A mão do velho continuou batendo na mesa e eu não podia me despregar dessa mão tão familiar com suas veias azuis se enroscando umas nas outras numa rede de fúria. Nos punhos de renda de sua camisa destacavam-se com uma nitidez atrozos rubis de suas abotoaduras. Um dos homens avançou. Foi Gustavo? Ou o velho? A garrucha avançou também e a cena explodiu em, meio de um clarão. Antes do negrume total vi por último as -abotoaduras brilhando irregulares como gotas de sangue.

Senti o coração confranger-se de espanto, “quem foi que atirou, quem foi?!” Apertei os nós dos dedos contra os olhos. -Era quase insuportável a violência com que o sangue me golpeava as fontes.

- Você devia voltar para casa.
- Que casa? - perguntou ela abrindo as mãos.

Olhei para suas mãos. Subi o olhar até seu rosto e fiquei sem saber o que dizer: era parecidíssima com alguém que eu conhecia tanto.

- Por que não vai procurá-lo? - lembrei-me de perguntar. Mas não esperei resposta. A verdade é que ela também suspeitava de que estava tudo acabado.

Escurecia. Uma névoa roxa - e que eu não sabia se vinha do céu ou do chão - parecia envolvê-la numa aura. Achei-a impregnada da mesma falsa calmaria da paisagem.

-Vou-me embora - disse apanhando o chapéu.

Sua voz chegou-me aos ouvidos bastante próxima. Mas singularmente longínqua. Levantei-me. Nesse instante, soprou um vento gelado com tamanha força que me vi enrolada numa verdadeira nuvem de folhas secas e poeira. A ramaria vergou num descabelamento desatinado. Verguei também tapando a cara com as mãos. Quando consegui abrir os olhos ela já estava montada. O mesmo vento que despertara o bosque, com igual violência arrancou-a daquela apatia: palpitava em cima do cavalo tão elétrico quanto as folhas vermelhas rodopiando em redor. Espicaçado, o animal batia com os cascos nos pedregulhos, desgrenhado, indócil. Quis retê-la..

- Há ainda uma coisa!

Ela então voltou-se para mim. A pluma vermelha de seu chapéu debatia-se como uma labareda em meio da ventania. Seus olhos eram agora dois furos na face de um tom acinzentado de pedra.

- Há ainda uma coisa - repeti agarrando as rédeas do cavalo. Ela arrancou as rédeas das minhas mãos e chicoteou o cavalo. Recuei. Aquela chicotada atingiu em cheio o mistério. Desatou-se o nó na explosão da tempestade. Meus cabelos se eriçaram. Era comigo que ela se parecia! Aquele rosto era o meu.
- Eu fui você - balbuciei. - Num outro tempo eu fui você! - quis gritar e minha voz saiu despedaçada. Tão simples tudo, por que só agora entendi?... O bosque, a aranha, o bandolim de ouro pendendo da gravata, a pluma do chapéu, aquela pluma que minhas mãos tantas vezes alisaram... E Gustavo? Estremeci. Gustavo! A saleta esfumaçada, se fez nítida. Lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia acontecer.
- Não! - gritei, puxando de novo as rédeas. Um raio chicoteou o bosque com a mesma força com que ela chicoteou o cavalo. Ele empinou, imenso, negro, os olhos saltados, arrancando-se das minhas mãos. Estatelada, vi-o fugir por entre as árvores.

Fui atrás. O vento me cegava. Espinhos me esfrangalhavam a roupa. Mas eu corria, corria alucinadamente na tentativa de impedir o que já sabia inevitável. Guiava-me a pluma vermelha que ora desaparecia, ora ressurgia por entre as árvores, flamejante na escuridão. Por duas vezes senti o cavalo tão próximo que poderia tocá-lo se estendesse a mão. Depois o galope foi se apagando até ficar apenas o uivo do vento.
Assim que atingi o campo, desabei de joelhos. Um relâmpago estourou e por um segundo, por um brevíssimo segundo, consegui vislumbar ao longe a pluma debatendo-se ainda. Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo.

Franz Kreüther Pereira (Painel de Lendas & Mitos da Amazônia) Parte 5


Trabalho premiado (1º lugar) no Concurso "Folclore Amazônico 1993" da Academia Paraense de Letras

A PRESENÇA DO ANIMAL E DO SEXO NO MITO

Os elementos de narrativa mitológica, maximé na região amazônica, são quase todos zoomorfos, e aí reside também um conteúdo simbólico cujas raízes perderam-se nos eões da história humana. Aparentemente o animal personifica algumas qualidades humanas, como por exemplo, a astúcia, que nas lendas tapuias encontra-se caracterizada no inofensivo jabuti, enquanto que nos mitos de origem européia, a mesma qualidade é atribuída à raposa; e na mítica africana, ao macaco. Como a nossa cultura recebeu legado das três raças - aborígene, negra e européia - encontramos com facilidade traços dessa miscigenação nalgumas lendas e contos por todo território nacional. É de se observar, porém, que a região Norte guarda ainda muito do acervo ancestral, ao passo que para a região Sul e Centro-Oeste, principalmente, as freqüentes correntes migratórias acrescentaram novos adornos, enfeites, adereços, de sorte que resta pouco do espírito fundamental que vive nas tradições populares.

Vejamos a opinião do já citado autor de "O Mundo Mágico dos Sonhos":

"O animal é sobretudo o instinto no que pode ser mais agudo: o Ver ou o Sentir, e também a Audição. Pelos seus órgãos sensoriais muito desenvolvidos, ele percebe e capta toda espécie de informações, de influências, de indícios, de sinais, que o homem não poderá jamais perceber. Para as sociedades primitivas, o animal estava presente na terra bem antes do homem; chamam-no o Ancestral, e nós carregamos, segundo a entidade totêmica à qual somos ligados, a marca, a característica astral de um ou outro animal, se não de vários...."[34]

Buscar nos animais características ou atributos necessários a um guerreiro, é costume em todos os povos primitivos. Indígenas de diversas culturas identificam-se cerimonialmente com alguns animais ou batizam sua tribo e sua própria descendência com nome de bichos. E, além disso, nalguns povos antigos, celebrava-se, com periodicidade, rituais cuja finalidade consistia em promover o casamento entre o homem e a natureza, formalizando pactos e reforçando os liames invisíveis que garantiriam um período de fertilidade, de boas colheitas e de fecundidade, tanto para o solo cultivado quanto para as criações domésticas, para o rebanho e para a própria prole.

A análise detalhada e percuciente que fez Osvaldo Orico, subsidiária desse e de tantos outros trabalhos, observou que “mesmo certas festas e crenças que adquiriram sabor regional [...] São transplantações de cerimônias remotas, que os gauleses, germanos e escandinavos celebravam por ocasião dos solistícios de verão” [35]. Obviamente se conclui que alguns mitos que ainda hoje ouvimos, são fragmentos desses antigos rituais pagãos, que o cristianismo perseguiu e fez desaparecer. Um típico ritual celta da fertilidade é apresentado e descrito com vigor e beleza de cores e poesia, pela escritora Marion Z. Bradley, na sua saga mágica "As Brumas de Avalon”. Nele, um homem vestido como o animal sagrado e encarnado pela energia totêmica, simbolizando o poder fecundante, era posto em conúbio com mulheres - ou com uma virgem - que representavam o "espírito da terra", o receptáculo universal da energia criadora que era representada pelo homem.

No folclore de nossos indígenas e caboclos é frequente encontrarmos histórias onde figuram relações sexuais entre seres humanos e não-humanos, animais ou encantados. Na Amazônia temos esse delfim, o Boto, e temos, também, algumas versões do Curupira, em que o sexo é negociado como escambo. Temos ainda, o Xibui (Chíbui) e outros numes, mas, ao contrário das lendas medievais onde o sexo é carregado de uma conotação cerimonial, nas nossas histórias ele não parece conter nenhum significado mágico e nem sentido moral. Há uma lenda sobre a origem do Sol e da Lua[36], onde são registradas diversas relações sexuais entre algumas mulheres e bichos.

A respeito dessas histórias eróticas com seres míticos, a opinião de Jung é a seguinte:

"El critico moralista dirá que esas figuras son projeciones de estados sentimentales de ansiedad e de fantasias de caráter repudíable."

Entre as possibilidades levantadas por Mercier e as afirmativas da psicanálise, segundo a qual essas histórias constituem a expressão de desejos sufocados, inclino-me à primeira. Não acredito que a origem dos mitos e das relações entre seus elementos e os seres humanos sejam meras projeções inconscientes de alguns desejos represados, ou fantasias de almas sonhadoras, ou ainda, visualizações de pessoas mentalmente sugestionáveis. Defendo para o mito uma origem basal única, fundamentada na clarividência que os primitivos deviam possuir e que foram perdendo na medida que evoluíam até resultar no homem moderno. Quanto ao caráter sexual contido no mito e as relações entre um humano e um animal, parece que surgiram junto com a Criação, quando a primeira mulher de Adão, Lilith, era uma serpente!

As relações sexuais também constam de outro mito mais moderno, consoante com a Era Espacial em que vivemos: o mito dos Discos Voadores. Há relatos na casuística ufológica* onde atestou-se o contato carnal, a relação sexual, entre criaturas humanas e extraterrestres; e no curso da história humana há indícios inquietantes da presença de inteligências exobiológicas e seu concurso com os habitantes da Terra. E há ainda a crença, entre os nativos da região do Rio Negro, que através de "puçangas", que são umas beberragens preparadas com certas plantas, a pessoa - pajé ou feiticeiro - pode transformar-se em diversos animais, como boto, morcego, pássaro, etc., e sob essa forma ir ter com alguém. Essa transformação, por certo, não se dá no plano físico, ou seja, na metamorfose, na transfiguração de gente em bicho. É mais crível que se processe num plano astral, ao qual o praticante alcança pela ingestão de certas substâncias alucinógenas, que possibilitam ao seu duplo etérico ou corpo astral, abandonar o corpo físico e se identificar com o duplo do animal.

A idéia de que um "duplo" pode ser o elemento originador, o gérmen, de um mito - tal como o grão que ao penetrar na ostra se transforma em uma pérola - também é aceita pelo eminente Câmara Cascudo. Percebemos isto quando, em sua Geografia dos Mitos Brasileiros, afirma que maragingoana é um "duplo". Maragingoana é, para uns, a alma que, separada do corpo físico, aparece para alguém lhe anunciando a morte próxima; para outros, é tido como uma espécie de "espírito desordeiro". Porém, esse ser astral nada tem de luxúria e libertinagem, essas características ou predicativos são de outra categoria, denominados íncubos (os masculinos) e súcubos (os femininos). Segundo os místicos e ocultistas, os íncubos e os súcubos são formas astrais originárias dos pensamentos obsedantes de natureza lasciva que conduzem a imaginação do indivíduo, durante o sonho, para uma real sensação de cópula, produzindo muitas vezes o orgasmo. Não há nada de anormal nesses sonhos eróticos, sua finalidade é libertar a pessoa da carga sexual reprimida, que se desbloqueia no mundo onírico, onde á a imaginação do sonhador que dita as normas, cria as regras e dirige o espetáculo.

Ter sonhos libidinosos está na natureza de todo ser humano, mas foram os religiosos catequistas que incutiram nos selvagens, naturalmente supersticiosos, a crença de que estes sonhos, bem como os pesadelos e as perturbações que tinham durante o sono, eram artes de um demônio que os atormentava por estarem com culpas inconfessas; por estarem incorrendo em pecado, etc. Dessa forma, os missionários disseminaram a crença num ente maléfico, um espírito do mal, responsável pelos tormentos noturnos e sonhos maus a que estavam sujeitos os íncolas. E o responsável por tudo isso era o Jurupari, “que aparece em sonhos, causando pesadelos às pessoas”.[37] Para. Orico "o sexo é a tônica da atividade mental do índio como agente criador de uma literatura oral subordina da ao instinto, pelo uso de sucos e raízes excitantes"[38], mas isso não explica porque apenas a Iara, efetivamente, é a sedutora dos homens enquanto que as mulheres podem ser seduzidas por animais que se metamorfoseam em homens. Eu creio que a questão do sexo nas lendas e mitos merece um estudo mais atencioso, pelo menos um ensaio.
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Notas
34 MERCIER, Mario. Op. cit. p. 54.
35 ORICO, Osvaldo. Op. Cit. p. 54
36 VILAS BOAS, Orlando & Cláudio. Xingu: os índios. seus mitos. Porto Alegre: Kuarup, 1986.
37 ORICO, Osvaldo. Op. cit. p. 62.
38 Id. ibid.p.25.
* A Ufologla é uma ciência emergente que se dedica ao estudo dos fenômenos que envolvem as aparições dos UFOs (Unidentified FIying Object - Objetos Voadores Não ldentificados ou OVNI) e de seres extraterrestres (ETs), e da consequente influência desses contatos sobre o planeta, sobre as plantas, animais e pessoas.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Auta de Souza (Trovas Avulsas)


Ama e serve, sofre e luta...
Sem lâmina que a sublima,
a pedra largada e bruta
nunca seria obra-prima.

Arte nobre, ativa e bela
Venha de crentes ou ateus,
E sempre luz que revela
A Providência de Deus.

Caridade verdadeira,
Em todos os seus caminhos,
Quando oferece uma rosa
Sabe tirar os espinhos.

Colhi, entre amigos meus,
este conceito profundo:
- Mãe é um sorriso de Deus
nos sofrimentos do mundo.

Embora desiludida,
alma cansada e sincera,
por muito te doa a vida,
não desanimes!... Espera!

Eu quero bem às crianças
porque não sabem mentir:
são pombas lindas e mansas,
passam na vida a sorrir.

Filho do meu coração,
Nas lutas por luz e paz,
Não te afastes da razão,
Mas só na fé vencerás.

Mãe de filhinhos dos outros,
Mulher de mãos benfazejas...
Diz o Mundo : – "Deus te guarde!..."
Diz o Céu : – "Bendita sejas!...”

Na bela dupla de estrelas
Em que o Natal se anuncia,
Precedendo a de Belém,
A primeira foi Maria.

Ofensa, pedrada, espinho,
injúria, maldade ou lama...
Tudo vence, no caminho,
o coração de quem ama.

Obsessão de quem ama,
ninguém consegue entendê-la:
parece vaso de lama
encarcerando uma estrela.

Quando eu morrer, vou assim:
Sustendo meu coração...
Saudade da terra? Sim!
Saudade da vida? Não!

Segue o ideal que te aquece,
serve ao bem, seja onde for;
trabalho que permanece
é o que se faz por amor.

Tenho a luz dos dias meus
nesta sentença concisa:
coração entregue a Deus
tem tudo de que precisa.

Tribulações de alma aflita?...
Esquece, fazendo o bem;
Deus é a bondade infinita,
não desampara a ninguém.

Todo amor é Deus na vida
A criá-la e engrandecê-la,
Desde a penúria do charco
À luz divina da estrela.
--
Fonte:
Trovas enviadas pela profa. Dione de Souza/RN
Auta de Souza. Psicografia de Francisco Cândido Xavier

Trova 219 - Nemésio Prata (CE)

Auta de Souza (Poemas Escolhidos)


CREPÚSCULO

a Júlia Lyra

O Ângelus soa. Vagarosamente
A noite desce, plácida e divina.
Ouço gemer meu coração doente
Chorando a tarde, a noiva peregrina.

Há pelo espaço um ciciar dolente
De prece em torno da Igrejinha em ruína...
Pássaros voam compassadamente;
Treme no galho a rosa purpurina...

E eu sinto que a tristeza vem suspensa
Sobre as asas da noite erma e sombria...
E que nessa hora de saudade imensa,

Rindo e chorando desce ao coração:
Toda a doçura da melancolia,
Todo o conforto da recordação.

TUDO PASSA

Aquela moça graciosa e bela
Que passa sempre de vestido escuro
E traz nos lábios um sorriso puro,
Triste e formoso como os olhos dela...

Diz que sua alma tímida e singela
Já não tem coração: que o mundo impuro
Para sempre o matou... e o seu futuro
Foi-se num sonho, desmaiada estrela.

Ela não sabe que o desgosto passa
Nem que do orvalho a abençoada graça
Faz reviver a planta que emurchece.

Flávia! nas almas juvenis, formosas,
Berço sagrado de jasmins e rosas,
O coração não morre: ele adormece...

AO PÉ DO TÚMULO

Eis o descanso eterno, o doce abrigo
Das almas tristes e despedaçadas;
Eis o repouso, enfim; e o sono amigo
Já vem cerrar-me as pálpebras cansadas.

Amarguras da terra! eu me desligo
Para sempre de vós... Almas amadas
Que soluçais por mim, eu vos bendigo
Ó almas de minh'alma abençoadas.

Quando eu daqui me for, anjos da guarda,
Quando vier a morte que não tarda
Roubar-me a vida para nunca mais...

Em pranto escrevam sobre a minha lousa:
"Longe da mágoa, enfim, no Céu repousa
Quem sofreu muito e quem amou demais".

AGONIA DO CORAÇÃO

"Estrelas fulgem da noite em meio
Lembrando círios louros a arder...
E eu tenho a treva dentro do seio...
Astros! velai-vos, que eu vou morrer!

Ao longe cantam. São almas puras
Cantando á hora do adormecer...
E o eco triste sobe ás alturas...
Moças! não cantem, que eu vou morrer!

As mães embalam o berço amigo,
Doce esperança de seu viver...
E eu vou sozinha para o jazigo...
Chorai, crianças, que eu vou morrer!

Pássaros tremem no ninho santo
Pedindo a graça do alvorecer...
Enquanto eu parto desfeita em pranto...
Aves, suspirem, que eu vou morrer!

De lá do campo cheio de rosas
Vem um perfume de entontecer...
Meu Deus! que mágoas tão dolorosas...
Flores! Fechai-vos, que eu vou morrer!”

AO CAIR DA NOITE

Não sei que paz imensa
Envolve a Natureza,
N’ess’hora de tristeza,
De dor e de pesar.
Minh’alma, rindo, pensa
Que a sombra é um grande véu
Que a Virgem traz do Céu
Num raio de luar.

Eu junto as mãos, serena,
A murmurar contrita,
A saudação bendita
Do Anjo do Senhor;
Enquanto a lua plena
No azul, formosa e casta,
Um longo manto arrasta
De lúrido esplendor.

Minhas saudades todas
Se vão mudando em astros...
A mágoa vai de rastros
Morrer na escuridão...
As amarguras doidas
Fogem como um lamento
Longe do Pensamento,
Longe do Coração.

E a noite desce, desce
Como um sorriso doce,
Que em sonhos desfolhou-se
Na voz cheia de amor,
Da mãe que ensina a Prece
Ao filho pequenino,
De olhar meigo e divino
E lábio aberto em flor.

Ah! como a Noite encanta!
Parece um Santuário,
Com o lindo lampadário
De estrelas que ela tem!
Recorda-me a luz santa,
Imaculada e pura,
Da grande noite escura
Do olhar de minha mãe!

Ó noite embalsamada
De castas ambrósias...
No mar das harmonias
Meu ser deixa boiar.
Afasta, ó noite amada,
A dúvida e o receio,
Embala-me no seio
E deixa-me sonhar!

CAMINHO DO SERTÃO

Tão longe a casa! Nem sequer alcanço
Vê-la através da mata. Nos caminhos
A sombra desce; e, sem achar descanso,
Vamos nós dois, meu pobre irmão, sozinhos!

É noite já. Como em feliz remanso,
Dormem as aves nos pequenos ninhos...
Vamos mais devagar... de manso e manso,
Para não assustar os passarinhos.

Brilham estrelas. Todo o céu parece
Rezar de joelhos a chorosa prece
Que a Noite ensina ao desespero e a dor...

Ao longe, a Lua vem dourando a treva...
Turíbulo imenso para Deus eleva
O incenso agreste da jurema em flor.

OLHOS AZUIS

O teu olhar azul claro
Reflete não sei que luz,
O brilho fulgente e raro
Do meigo olhar de Jesus.

Eu cuido ver todo o encanto,
Toda a beleza do Céu,
Nestes teus olhos sem pranto,
N’estes teus olhos sem véu.

Sinto uma doce ventura,
Uma alegria sem fim,
Se d’eles a chama pura
A’s vezes cai sobre mim.

São flores azuis boiando
À tona d’água, de leve,
Esses dois olhos beijando
O teu semblante de neve!
--
Fontes:
http://apoesiadobrasil.blogspot.com/2011/12/auta-de-souza-1876-1901.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/Auta_de_Souza

Auta de Souza (1876 – 1901)


Com a paulista Francisca Júlia e a carioca Gilka Machado compõe o grande trio feminino pré-modernista. Se Francisca é a mais social e Gilka a mais carnal, Auta é certamente a mais espiritual das três, segundo a humilde opinião do editor deste blog.

Auta de Souza Nasceu em Macaíba (RN), em 12 de setembro de 1876, filha de Eloy Castriciano de Souza e Henriqueta Leopoldina de Souza e irmã de dois políticos e intelectuais, Henrique Castriciano e Eloy de Souza. Aos 14 anos, apareceram os primeiros sinais da tuberculose, obrigando-a a abandonar os estudos e a iniciar uma longa viagem pelo interior em busca de cura.

Auta de Souza deve ser considerada a poetisa norte-rio-grandense que mais ficou conhecida fora do Estado. Sua poesia, de um romantismo ultrapassado e com leves traços simbolistas, circulou nas rodas literárias do país despertando sempre muita emoção e interesse, e foi fartamente incluída nas antologias e manuais de poesia das primeiras décadas. Como a maioria dos escritos femininos, sua obra poética deixou-se contaminar pelas experiências vividas, o que, aliás, não compromete o lirismo e o valor estético de seus versos.

Por volta de 1895, Auta conheceu João Leopoldo da Silva Loureiro, promotor público de sua cidade natal, com quem namorou durante um ano e de quem foi obrigada a se separar pelos irmãos, que preocupavam-se com seu estado de saúde. Pouco depois da separação, ele também morreria vítima da tuberculose. Esta frustração amorosa se tornaria o quinto fator marcante de sua obra, junto à religiosidade, à orfandade, à morte trágica de seu irmão e à tuberculose. A poetisa, então, encerrou seu primeiro livro de manuscritos, intitulado Dhálias, que mais tarde seria publicado sob o título de Horto.

Aos 24 anos, no dia 7 de fevereiro de 1901, Auta de Souza morria tuberculosa. No ano anterior havia publicado seu único livro de poemas sob o título de Horto, com prefácio de Olavo Bilac, que obteve significativa repercussão na crítica nacional. Em 1910, saía segunda edição, em Paris, e, em 1936, a terceira, no Rio de janeiro, com prefácio de Alceu de Amoroso Lima.

Colaborações em jornais e revistas

Aos dezoito anos, passou a colaborar com a revista Oásis, e aos vinte escrevia para A República, jornal de maior circulação e que lhe deu visibilidade para a imprensa de outras regiões. Seus poemas foram publicados no jornal O Paiz, do Rio de Janeiro. No ano seguinte, passaria a escrever assiduamente para o prestigiado jornal A Tribuna, de Natal, e seus versos eram publicados junto aos de vários escritores famosos do Nordeste. Entre 1899 e 1900, assinou seus poemas com os pseudônimos de Ida Salúcio e Hilário das Neves, prática comum à época.

Também foi publicada nos jornais A Gazetinha, de Recife, e no jornal religioso Oito de Setembro, de Natal, e na Revista do Rio Grande do Norte, onde era a única mulher entre os colaboradores.

Venceu a resistência dos círculos literários masculinos e escrevia profissionalmente em uma sociedade em que este ofício era quase que exclusividade dos homens, já que a crítica ignorava as mulheres escritoras. Sua poesia passou a circular nas rodas literárias de todo o país, despertando grande interesse. Tornou-se a poetisa norte-rio-grandense mais conhecida fora do estado.

Fonte:
http://apoesiadobrasil.blogspot.com/2011/12/auta-de-souza-1876-1901.html

Nilto Maciel (Desastre sobre o Labirinto de Creta)


Chamava-se Ícaro. Belo rapaz, apaixonado por aventuras perigosas. Sobretudo aéreas. E quantas quedas, quantas decepções! Desde muito criança experimentava os mais variados vôos. De cima de muros, de galhos de árvores. Sempre incentivado pelo pai. Um sujeito meio louco chamado Dédalo.

— Engraçado, pai, eu sempre pensei que o senhor fosse grego.

Dédalo dizia gostar de boas mentiras. Com isso sempre alcançava seus objetivos. Assim conquistara sua mulher, dizendo-se engenheiro.

— Mas o senhor construiu o labirinto, não foi?

Dédalo ria, gargalhava. Não, nunca construíra nada. Mais uma mentira fabulosa de sua vida.

Ícaro também ria. Enquanto se preparava para mais uma aventura. Iria voar pelos céus.

Ajudado pelo pai, amarrava a si umas enormes asas. Voaria até perto do sol.

— Pode ir, meu filho.

E ele decolava. Partia lentamente, a poucos metros do chão. Batia as asas, subia mais, impunha-se velocidade. Olhava para baixo. O pai se reduzia a quase nada, assim como as casas, as árvores, a própria Terra. Avistava estrelas, que cresciam a cada instante. Um prodígio voar, andar pelo espaço, pleno de liberdade!

Ria, quando avistou um objeto vindo em sua direção. Um meteoro? Um disco voador? Um pássaro? E se o atingisse?

O objeto voava célere contra ele. Um pequeno avião. Aguçou a vista. Havia um homem no aparelho. Podia ver, com nitidez, uma inscrição na parte externa do avião: 14-Bis. E as feições do homem: Alberto Santos Dumont.

Acontecia então o choque. E suas asas se espatifavam. Tonto, caía velozmente.

Num átimo, chocava-se contra o chão, feito uma fruta caída do galho. Em pleno labirinto de Creta.

Estirado na cama, olhos grudados no teto, Santos Dumont gritava.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Pescoço de Girafa na Poeira, contos. Brasília: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Clevane Pessoa (Haicais 1)

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 487)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Este orgulho que carregas,
insano, dentro do peito,
foge, tão logo te entregas
de corpo e alma em meu leito.
–ESTER FIGUEIREDO/RJ–

Uma Trova Potiguar

Quem quiser comprar saudade,
me procure, por favor,
pois eu tenho em quantidade...
herança de um grande amor!...
–LUIZ XAVIER/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Guardando conflitos na alma
há muita gente infeliz,
que se diz serena e calma,
sem ter a calma que diz!
–ALOÍSIO ALVES DA COSTA/CE–

Uma Trova Premiada

2006 - Balneário Camboriú/SC
Tema: PESCADOR - M/E


Rede que volta vazia
traz tristeza ao pescador
que apesar da nostalgia
leva adiante o seu labor.
–ELIANA RUIZ JIMENEZ/SC–

Simplesmente Poesia

Fidelidade
–THALMA TAVARES/SP–


Este perdão que me negas
por “um nada” que eu te fiz,
é mais um cravo que pregas
na cruz de um peito infeliz.

Se alguma mágoa carregas,
magoar-te, eu juro, não quis.
E o desamor que tu alegas
o teu olhar contradiz.

Eu sei que sou pecador,
mas nunca tive outro amor
senão o amor que te dei...

Sempre fui teu e em verdade
para mim fidelidade
mais que virtude; é uma lei!...

Estrofe do Dia

Não choro, se ouvir um não;
não grito com dor pequena;
não faço drama sem cena;
não suspeito sem razão.
Não julgo pela emoção;
não decoro a voz da mente
quando autora ela se sente,
quando escrevo o que ela inspira:
O tempo mesmo é quem tira
o bom da vida da gente.
TARCÍSIO FERNANDES/RN–

Soneto do Dia

Paraíso
–JOÃO JUSTINIANO/BA–


O paraíso está em minha casa,
aqui à frente - no computador.
Aqui eu sonho e gozo, vivo o amor.
e a iluminação que o sonho abrasa.

Aqui, senhora, vem e não se atrasa,
a íntima paz de quem revive o ardor
da plena mocidade, luz, calor,
e ainda quer voar... E é vôo, e é asa!

Sou eu o paraíso. Em febre estala,
arde-me o coração e o sonho embala
como ao filho, no colo, em feriado...

O tempo não me importa, nem a idade.
A vida é simples na felicidade
de ser eu mesmo e ser poeta e amado.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Franz Kreüther Pereira (Painel de Lendas & Mitos da Amazônia) Parte 4


Trabalho premiado (1º lugar) no Concurso "Folclore Amazônico 1993" da Academia Paraense de Letras

O MITO REGIONAL x A CATEQUESE

.. duas classes de pessoas forneciam informações acerca dos indígenas: a dos missionários e a dos aventureiros. Em luta uma com a outra, ambas se achavam de acordo nesse ponto de figurarem os selvagens como feras humanas. Os missionários encareciam assim a importância de suas catequeses; os aventureiros buscavam justificar-se da crueldade com que tratavam os índios."
José de Alencar

É muito difícil dissociar mito de religião; não no conceito, é claro, mas no sentido prático e histórico. A tradição do mito não deixa de ser uma forma de "religare" as antigas tradições e doutrinas tribais. A Enciclopédia Mirador[26] apresenta o mito como a manifestação da "dependência do homem de forças sobrenaturais (...) é um fenômeno especificamente religioso", complementa.

A essência da religião está na alma, e Jung defendia a tese de que existe uma relação profunda e intrínseca entre o mito e a psiqué, ou alma. Disse ele que "el alma contiene todas las imágenes de que han surgido los mítos...". Jung evidentemente sabia que a razão humana não inventa o que não consegue entender, portanto, os deuses e demônios antigos eram em sua maioria - senão em sua totalidade - fatores ou fenômenos naturais, que a alma primitiva personificava, atribuindo-lhes propriedades e qualidades. Por conseguinte, mito e religião estão em um amálgama quase perfeito, e apresentam uma relação orgânica, de tal maneira que o primeiro fundamenta, e muitas vezes é a pedra de arremate da segunda.

Ambos se utilizam de alegorias, porém, somente a religião é dialética, e foi nessa dialética que os missionários vindos para o Brasil, e para a região Amazônica em particular, instituíram seu trabalho de catequese dos indígenas.

Como se sabe, o primeiro trabalho dos missionários é identificar os focos de adoração nativa, para depois combatê-los em nome da sua fé e crença. Dessa forma, os mitos cosmogônicos, que constituem a base da religião tribal, foram combatidos acirradamente de forma direta e ás vezes violenta, ou de maneira sutil e mais demorada, quando os religiosos inseriam conceitos não existentes na cultura nativa, aproveitando-se daquilo que melhor se aproximasse dos seus propósitos. Esse é o caso, por exemplo, dos conceitos cristãos de Deus e Diabo, que os missionários personificaram em Tupá - ou Tupana - e Jurupari, respectivamente.

O verbete Tupã, no Dicionário do Folclore Brasileiro[28] de Câmara Cascudo, informa-nos que este é "um deus criado pela catequese católica no século XVI e nome imposto pelo hábito às crianças e catecúmenos". Tupã era apresentado pelos padres, como um ser criador de todas as coisas, mas essa idéia panteísta - segundo Stradelli[29]- estava longe de ser absorvida pelos indígenas. Tanto que não há vestígios de festas ou cultos em honra a Tupã, as os há ao Jurupari. Por outro lado Osvaldo Orico[30] sustenta que os indígenas possuíam uma noção num Ente Supremo ou um "principio superior com o nome de Tupã".

O fato é que enquanto criavam entre os selvagens a idéia de um deus Todo-Uno, de um Deus Onipotente, causa de todos os efeitos; no mesmo processo arrancavam à fórceps da teogonia autóctone, um deus que encarnasse os atributos contrários, pois a religião necessita de um dipolo, de uma antinomia. Esse deus opositor, encontraram-no na figura do Jurupari, uma lenda comum às tribos Tupi-Guaranis.

Esse processo catequético e aculturativo, iniciado logo após a descoberta, foi uma ação conjugada à colonização e ocupação das terras nativas e do próprio índio como mercadoria, e ganhou forte impulso, com a chegada à Amazônia, de diversas ordens. E mesmo depois da expulsão dos jesuítas, em 1757, o processo não sofreu interrupção e nem decréscimo: hoje o número de missionários espalhados pela região amazônica é surpreendentemente elevado.

Um artigo publicado pela revista ISTO É, datada de 23 de outubro de 1985 e intitulado "O Culto dos Ianques", faz graves denúncias contra os missionários norte-americanos presentes na Amazônia - e por tabela aos de outras nacionalidades -. Uma dessas denúncias é contra a violência cultural a que estão subjugados os índios, "principalmente contra a língua e os costumes", escreve o articulista.

A agudização dessa ação culturicida, levou o padre paulista Antonio Iasi, ex-secretário do Conselho indigenista Missionário (CIMI), a declarar para a mesma reportagem: "Quase todas as tribos amazônicas foram violentadas a partir da religião, tanto por católicos como por evangélicos". Informa, ainda, o citado artigo que há "cerca de setecentos missionários estrangeiros dispersos pela Amazônia em nome de vinte seitas religiosas". A presença missionária* no Brasil computava, em 1985, segundo dados do CIMI, cerca de 53 ordens religiosas para algo em torno de 210 tribos e aproximadamente 30 famílias lingüísticas.

Esse processo que permanece "ad seculorum" fez desaparecer muitas fontes primárias da oralidade nativa, e o que restou foi degenerado pela ação do invasor branco na ânsia de impor sua religião, seu Deus, suas crenças, sua filosofia, seus costumes, sua cultura. Assim, a cultura nativa fica(va) entre dois fogos; de um lado a demagógica ação eclesiástica e do outro o rolo compressor do capitalismo. Como funciona esse último todos sabemos, mas para termos uma idéia dos métodos sutis, e eficazes da Igreja, o que aconteceu com a tribo Waiwai (Roraima) pode nos servir de exemplo; como conta ainda a Revista ISTO É:

"O tuxaua Ewka, que se julgava filho do Caititu - um porco do mato- foi convencido por um missionário (missão Novas Tribos do Brasil) a alimentar-se da carne do animal. Na crença dos Waiwai, o desfecho seria a morte imediata de Ewka. Como ela não ocorreu, todos se converteram ao cristianismo."

E para rematar com chave de ouro o sucesso da conversão, Ewka, o tuxaua, virou pastor da seita!...

Mais recentemente (19.08.1991), o jornal paraense O LIBERAL circulou com uma discreta nota a respeito do suicídio de dois índios da tribo Ticuna. Um dos suicidas era um jovem de 17 anos que, esclarece a pequena notícia, "não bebia, não fumava e a ainda não há pistas que indiquem as causas do suicídio, a não ser o forte envolvimento do adolescente ticuna com a seita fanática Irmandade da Cruz, praticada pela maioria dos 5,5 mil índios da área".

A cultura indígena tem seus dias contados no Brasil. No excelente trabalho de pesquisa sobre o Tribunal da Inquisição no Pará, J.R. do Amaral Lapa[31] atesta que "no interior da Amazônia, vivendo praticamente isolados ou em meio dos índios, os colonos dificilmente mantinham seu padrão de costumes, sendo que o processo de aculturação era no geral degenerativo para os índios".

E Coutinho de Oliveira[32] afirma-nos que "todas as lendas indígenas ou pelo menos, as colhidas recentemente, revelam a contaminação do cristianismo", e isso ele testemunhou faz meio século.

Como vemos, nossos brasilíndios foram atacados naquilo que um povo possui de mais autêntico, que são seus mitos, seus costumes, sua cultura, enfim, sua identidade; em duas frentes: uma sutil, persuasiva e devastadora - a dos missionários - e outra mais imediatista, agressiva e crudelíssima - a dos aventureiros e comerciantes -. Porém, de todas as agressões sofridas pelos gentios, a mais nefasta foi e ainda é - aquela efetuada às suas crenças, seu fabulário, seus mitos, enfim, às suas raízes. Sem elas não há como reverter o processo de extinção a que estão condenados.

Atualmente já se percebe uma resistência organizada por parte de alguns povos indígenas, para se preservarem culturalmente, ou o que ainda lhes resta da cultura ancestral. Este é o caso dos Yanomami, "o último grande povo, a última grande nação que vive ainda com todo o seu acervo cultural sem ter sofrido perdas graves no seu contato com a civilização"[33]. E estas organizações de defesa cultural e social indígena quase sempre contam com a participação de elementos religiosos, seculares ou não, mas, efetivamente ativos, que lhes prestam assistência.
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Notas:
26 ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, v. 14, p. 7772
27 JUNG, Carl G. Op. cit. p. 13.
28 CASCUDO, Câmara. Op. cit. p. 864.
30 ORICO, Osvaldo. Op. cit. p. 272-277.
31 LAPA, J. R. do Amaral. Livro da visitação do santo ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará. São Paulo: vozes 1978, p. 32.
32 OLIVEIRA, Coutinho. Folclore Amazônico. Belém: São José, 1951. v. 1, p. 97
33 MENSAGEIRO. Estudo n. 4, 52'ed. p. 154.

* O precursor do surto de messianismo foi o padre Samuel Fritz, “a quem o papel de messias não parece ter desagradado”, conforme lemos em História da Igreja na Amazônia, p.38. (Nota desta edição).

Pedro Malasartes (Ai, Que Dor de Dente)


Cansado de andar, Pedro Malasarte chegou a uma grande cidade. Já haviam se passado dois dias desde que se banqueteara com os cegos e seu estômago dava horas.

Para piorar ainda mais sua situação, estava com uma dor de dentes que mal podia suportar.

Mas não tinha dinheiro nem para pagar o dentista -que naquele tempo era o barbeiro -nem para comer. Gastara as últimas moedas no caminho, comprando um burrico para uma pobre velha que também ia para a cidade mas mal podia andar.

Ia mergulhado em tristes pensamentos quando passou na porta de uma padaria. Acabava de sair uma fornada e o cheiro de pão enchia o ar.

Pedro Malasarte olhou para dentro e viu toda espécie de pães e bolos.

Ficou com água na boca.

O dono da padaria estava na porta, com seu avental branco, e parecia ter o rei na barriga. Em tom de mofa, vendo a cara de Pedro Malasarte, perguntou-lhe:

– Quantos pães e doces seriam necessários para matar a sua fome, hein?

Nosso herói respondeu sem hesitar:

– Puxa, aposto que comeria uns cem...

– Ora, ora! – exclamou o padeiro, que adorava fazer apostas. – Que posso lhe fazer se não conseguir comer mesmo cem pães e doces?

– Amigo padeiro, já deve ter percebido que não tenho comigo um só tostão. Mas para lhe mostrar que sou mesmo capaz de fazer o que estou dizendo, pode mandar me arrancar um dente de quatro raízes se não comer cem pães e doces!

Arrancar dente sempre foi coisa de meter medo. Divertido com a aposta, o dono da padaria mandou Pedro Malasartes entrar e serviu-lhe os mais finos produtos do seu estabelecimento. Pãezinhos de queijo e broas, bolos, doces, marias-moles e tudo o mais.

Nosso herói estava mesmo com uma fome de lobo e conseguiu comer, sem maior esforço, uns quatro pães, duas ou três broas, algumas roscas e quatro ou cinco doces.

Dando-se por satisfeito, virou-se para o padeiro:

– É... Não é que não consigo nem olhar mais para pães e doces?

Prontamente o outro o agarrou pelo braço e levou-o ao barbeiro:

– Amigo barbeiro, trate de arrancar por minha conta um dente de quatro raízes desse malandro!

– Este aqui, este aqui -apontou Pedro Malasartes, mais que depressa, rindo por dentro.

O barbeiro arrancou-lhe o dente dolorido em três tempos. Não doeu tanto assim, mas Malasartes fez muitas caretas.

-Está vendo só no que dá fazer apostas? -disse o padeiro, com ar triunfante. -Devia ter visto logo que não poderia comer tanto assim.

– Pois agora é que vou comer muito mais! -retrucou Pedro Malasartes.

E foi-se embora assobiando, com a barriga cheia e livre do dente que tanto o incomodava, sem gastar um tostão...