terça-feira, 12 de junho de 2012

Ana Miranda (Desmundo)


O discurso ficcional permite a desestabilização do discurso da história, e as histórias podem, então, ser narradas a partir de um ponto de vista não focalizado pelo último. Se, por exemplo, à história dos primeiros anos de colonização do país o acesso se dá através dos cronistas portugueses, o romance de Ana Miranda lê a história destes momentos a partir de um outro prisma, acompanhando, inclusive, o pensamento da personagem pontilhado de crenças, medos e questionamentos diante do mundo/Desmundo que a ela se apresenta. 

 A literatura passa a traduzir uma história que não se quer imóvel. Através da narrativa de Oribela, o leitor ingressa em formas de ação e de pensamento da época, deparando-se com aspectos tais como existência feminina, religiosidade, nova terra, amor e sexualidade. Por meio do relato da personagem fictícia, torna-se possível pensar no que ela possui de comum com outros indivíduos que viveram no século XVI, que, por sua vez, herdaram sua forma de ver o mundo a partir de estruturas mentais construídas culturalmente. O romance de Ana Miranda, enquanto situação especial de comunicação, se oferece a uma leitura no horizonte da história das mentalidades e aproveita para utilizar as informações que lhe pode oferecer este tipo de história. 

Mais uma vez o intertexto com a história se faz presente em Desmundo e, no discurso de Oribela, ouvem-se as vozes que surgem também quando se consultam livros sobre a história das mulheres na sociedade colonial, sociedade esta que procurava, conforme Mary del Priori, domesticar a mulher no seio da família, privando-a de qualquer poder ou saber ameaçador e regulando seus corpos e suas almas.

Esta normatização se dava através de dois mecanismos poderosos: o discurso normativo da Igreja e o discurso médico. Em Desmundo, os ecos do discurso religioso se fazem ouvir, por diversas vezes, na voz da própria personagem narradora, que permite as vozes de seu pai, da Velha, de Francisco de Albuquerque, de membros da Igreja, a revelarem qual deveria ser o papel feminino. 

Um dos momentos em que se torna perceptível de maneira mais enfática esta questão pode ser apreendido no fragmento textual seguinte: 

“Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os cabelos soltos, mas atados, seja em turbante, seja trançado, não morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação, nem punho cerrado, que é ameaça. Tampouco a mão torcer, que é despeito. Nem pá pá pá pá nem lari lará. Nem lengalengas nem conversas com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem danças de rua, nem olhar cão preto que pode ser chifrudo, deus te chame lá que ninguém te chama cá, temperar legume com sal, não apagar luz que alumia morto nem deitar as águas fora que é de judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho nem o corpo na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa. Açoite e língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar panos às mulheres, mas só nas festas reais, se lhes oferecer o mercador um bom preço, que eles não façam obra alguma desde o posto do sol até o sol saído e dia de domingo e a viver segundo o capricho dos homens. Aqui do rei. 

 E disse eu, Ora, hei, hei, não é melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou, olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira nem folha de figueira”. 

O fragmento textual pertencente à terceira parte do romance, intitulada Casamento, revela aspectos interessantes que podem ser analisados. Este fragmento desdobra-se em duas vozes diferentes: a da Velha que orienta as jovens próximas do casamento e a de Oribela a questionar sobre tantas imposições. Oribela parece, em determinado momento, encurtar as orientações da Velha, quando, após tantas regras, surge a frase: “Nem pá pá pá nem lari lará”. Percebo as interdições impostas pela Velha como um momento em que a autora recorre às informações extraídas de textos referentes à história das mentalidades para construir seu texto. É significativo observar, por exemplo, a reiteração da conjunção coordenativa aditiva “nem” e do advérbio de negação “não”, para revelar a quantidade de interdições a que uma mulher casada seria submetida. 

Outro aspecto bastante significativo, quanto ao fragmento textual, é a referência à normatização do corpo representada, no texto, pelo fato de as interdições estarem ligadas a partes do corpo, em seqüência: cabelos, beiço, nariz, bochechas, ombros, olhos, punhos, mãos, língua e, por fim, novamente, o corpo todo. Nada pertenceria totalmente à mulher: nem sua alma, nem seu corpo. 

O emprego da maior parte dos verbos no infinitivo revela, ainda, a idéia de atemporalidade, ou seja, as interdições que se declaram a partir do discurso da Velha parecem valer por muito tempo, numa alusão às mudanças lentas estudadas pela história das mentalidades, a história da longa duração. 

 Como é possível perceber, a história vai sendo lida a partir da literatura, com a possibilidade de uma liberdade maior no trato com questões esquecidas pela história tradicional. Zilah Bernd relaciona esta liberdade de que pode desfrutar o texto ficcional à literatura das sociedades pós-coloniais, atentando para o fato de que, nestas sociedades, a literatura terá o papel de suprir os vazios da história oficial, possibilitando que versões populares dos fatos históricos possam se fazer ouvir, versões estas repletas de referências ao imaginário e de muitas outras significações, postura bastante comum na ficção da América Latina. O escritor assume a tarefa do cronista e, além de trabalhar com a informação, trabalha com a possibilidade de reconstruir o imaginário. A vantagem deste tipo de discurso é exatamente a possibilidade de desestabilizar a história oficial, seja através da utilização do ponto de vista descentralizado, seja através da apresentação de questões não abordadas por aquele tipo de história. No romance de Ana Miranda, por exemplo, são apreensíveis as relações intertextuais com o discurso histórico, já a partir do momento em que as epígrafes são cotejadas. Quando a personagem Oribela passa a narrar sua experiência no desmundo, a rede intertextual continua.

A linguagem que permite este discurso intertextual em Desmundo advém, ao que parece, de uma linhagem rosiana. Alguns aspectos presentes na produção literária de Guimarães Rosa surgem na linguagem da personagem narradora, como a revelar a necessidade de compreender a realidade e o mundo, ambos muitas vezes incompreensíveis. A linguagem vai sendo, então, moldada conforme o uso que se quer fazer da língua. 

Davi Arrigucci Jr., quando se detém a observar, em Guimarães Rosa, as relações entre linguagem e realidade, aponta para vários aspectos presentes na linguagem rosiana, especificamente no que concerne ao poético presente em Rosa.

Percebo que muitos dos aspectos apontados por Arrigucci em relação à linguagem de Rosa são utilizados, também, por Ana Miranda, para construir a linguagem de Oribela. 

Arrigucci, ao ater-se ao poético em Rosa, elege traços que caracterizam a linguagem rosiana, estabelecendo, entre o primeiro e o poeta espanhol Góngora, um paralelo. Em meu trabalho, aproprio-me da análise da linguagem rosiana feita por Arrigucci e, ao invés de relacioná-la a Góngora, procuro buscar o que há em comum entre a linguagem rosiana e a linguagem utilizada por Ana Miranda, para construir o discurso de Oribela. 

Em ambos, o instrumento lingüístico disponível é insuficiente para demonstrar a grandiosidade dos universos apresentados. Em Desmundo, especificamente, do mundo – desmundo que a Oribela se apresenta. Há, então, a fuga à linguagem bem comportada e lexicalizada. Para a criação desta linguagem, comparece uma série de recursos. A começar pelo título do romance, uma palavra não-dicionarizada, Desmundo, uma vez que parece faltar o termo exato para expressar o significado da nova terra para Oribela, que vê seu destino como “desrumo”, outro termo inexistente na língua oficial. Vale lembrar, ainda, que, ao se referir à nova terra, a personagem narradora utiliza palavras, dicionarizadas ou não, que são iniciadas pelo prefixo de negação “des”, como se, vê em: “despejado lugar”, “terras desabafadas”, “desventura”, além dos já citados “desrumo” e “desmundo”. Ou seja, através do trabalho com a linguagem, é possível revelar o caráter de purgação que caracterizava a nova terra. Além dos termos não-dicionarizados já citados, outros comparecem para construir o discurso da personagem Oribela, conferindo à linguagem um matiz arcaico e, ao mesmo tempo, popular. 

Há, entre as palavras não-dicionarizadas, aquelas cujo matiz arcaico se faz pela ocorrência de metaplasmos, de alterações fonéticas, o que se verifica também em Guimarães Rosa. Tais palavras podem, ou não, registrar, em dicionário, uma forma correspondente, estatuída como oficial. De Guimarães Rosa, extraídos de Grande Sertão: veredas, ilustram o primeiro caso: “satanazim”, “patavim”, “asp’ro”, “arreparare”, “essezim”, “tirotêi”. As formas diminutivas “satanazim” e “essezim” exemplificam a apócope e, ao lado da alteração fonética do sufixo, “inho”, remetem ao tom arcaizante que Guimarães Rosa deu à linguagem literária, inscrevendo-a como voz do povo. A tais ocorrências junta-se a síncope do /e/ em áspero>asp’ro, lembrando a rejeição popular às formas proparoxítonas. E, ainda, “arreparare”, trazendo à memória a freqüência de próteses características do desempenho popular: alembrar, afamilhar, azangar, arreceber, adispois, arruído, arrefém, alumiar, entre outros elementos lexicais, numerosos, dicionarizados, ou não. 

Na linguagem rosiana, são freqüentes, ainda, criações resultantes de processos derivacionais: pacificioso, vastoso, estranhoso, docice, pobrejar, espinarol, desenormes, antesmente, horrorizância, prostitutriz, trestriste, desjustiça, desmim, regrosso, etc.... Formas compostas inusitadas também são encontradas: “zé-zombar”, “outrolhos”, “vagavagar”, “alinhalinhar”, “neblim-neblim”, “contracalado”, “malmontar”, etc... 

Assim como em Guimarães Rosa, também em Ana Miranda formas derivadas e compostas revestem a linguagem de acento popular e arcaico. “Omildosa” e “trigosas” trazem à tona a freqüência de adjetivos em “oso”/“osa”, já em textos medievais. Além da marca sufixal, é preciso considerar, em “omildosa”, o registro escrito sem o h inicial, um dos traços da escrita arcaica, fonética, desvinculada de étimos gregos ou latinos e que caracteriza, também, a grafia popular; “trigosas”, significando apressadas, pressurosas, aparece no “Auto da Alma”, de Gil Vicente, numa das falas do anjo: “Já cansais, alma preciosa / Tão asinha desmaiais? / Sede esforçada! / Oh! como viríeis trigosa / e desejosa / se vísseis quanto ganhais/nesta jornada”. 

Há, na fala do povo, uma intuição da forma da palavra que se quer linguagem como imagem, conduzindo a criações não estatuídas, pelas quais o dizer enuncia com maior clarividência o que quer fazer-se voz. Assim “renembranças”, “desrumo”, “disraiar”, “dulçura”, “esmerdada”, “cuidações”, “estridosamente” , “bonamore”, “vem-para-casa-mesmo-bêbado-papai”, “águafrescáguafresca”. 

Doçura é expressão corriqueira, e o sentimento, quando se quer dizê-lo inusitado, é num percurso de reencontro com raízes que se vai buscá-lo, retornando ao étimo latino dulce>doce. Da mesma forma, “bonamore”, forma composta, aglutinando os radicais latinos bonus>bom e amoris>amor, o bom amor, imune às contradições, o amor sonhado tranqüilo: Benditas as desposadas e casadas; para o meu varão me guardei perfeita, ru, ru, chegasse com o pé direito, trouxesse Deus o bonamore, que não tenho nenhuma burrinha, tirasse de mim os desejos, os temores, os fingimentos, as visões (...) (p. 30). É uma voz ambígua esta de Oribela que, no “bonamore”, situa o sonho na realidade da obrigação de guardar-se para o esposo, e, nas visões, a experiência do inferno da relação homem/mulher, o real, a fazer-se negativa do sonho. 

A justaposição “ia-voava”, em “sentimento meu ia-voava para ele”, extraída de Guimarães Rosa, já referida anteriormente, faz-se tradutora de um sentimento trigoso, pressuroso, impulso amoroso em apressamento que com essa, não com outra voz, deve ser dito. Em Ana Miranda, o “aviso da terra” traz o júbilo desenfreado da sede a ser saciada e que se expressa, aqui também, numa forma justaposta “águafrescáguafresca” transfigurando-se em canto, euforia: “acabada a água do armário do camarote e só chuva para tomar, atinava eu que ia beber água fresca, água fresca, água fresca, água fresca águafrescáguafresca lari lará, molhar as mãos, as ventas, derramar o que fosse, sem contar gota por gota, não ouvir mais gente bradar por água, molhar meus cabelos em um chafariz, bica ...”. 

“Diguice”, “conspeito”, “percurar, “imigo” são arcaísmos, dentre outros presentes em Guimarães Rosa. A eles acrescenta-se “peia”, bagagem, cuja ocorrência em Gil Vicente pode ser comprovada com um excerto da “Farsa de Inês Pereira”: “Pero: deitai as peias no chão./Inês: “As perlas para enfiar,/três chocalhos e um novelo/e as peras do capelo: e as peras onde estão?”

Também, em Ana Miranda, além de “trigosas”, registra-se o arcaísmo “pardeus” interjeição correspondente a “por Deus”, cujo emprego pode ser ilustrado pelo verso: “Pardeus! bom ia eu à aldeia”, da “Farsa de Inês Pereira”, de Gil Vicente. “Rodiquelhe”, “alvaiade”, “adens”, manseza tornam-se ilustrativos de uma freqüência considerável de palavras que dão, à linguagem de Ana Miranda, o acento medieval / popular. 

Surge, na voz de Oribela, uma língua viva, vida perceptível pela negação de sua unicidade. Não é uma língua social única, mas representante da contínua evolução histórica de uma língua viva. A voz de Oribela busca compreender, a partir desta língua, o desmundo em que se encontra. 

Há momentos em que, para compreendê-lo, parecem faltar palavras. É necessário entender a vida, “uma rede de tristuras tenebrosas”. Neste momento, a metáfora, mais um recurso utilizado pela linguagem rosiana, segundo Arrigucci, comparece na construção de uma linguagem cheia de mistérios a serem descobertos, num “estilo cujo objeto é o próprio estilo”.

Em Ana Miranda, as metáforas atuam na construção do discurso de Oribela e representam a linguagem poética de forma significativa. Há que se observar uma delas: “nem dobrou minha alma em joelhos”. Esta metáfora faz referência à expressão “em joelhos”, muitas vezes presente durante o romance, reveladora da concepção medieval de mundo (tantos joelhos viviam a dobrar-se), ainda no século XVI. Quanto à metáfora, não são os joelhos no sentido denotativo que se recusam a dobrar-se, mas os joelhos da alma, a alma que se quer livre, que não se dobra diante de tantas imposições e negações oferecidas pelo mundo novo à alma de quem fosse mulher. Que se quer mistério e não permite que o coração seja desvendado. 

Nesta metáfora há, ainda, referência a dois aspectos relativos à mulher, que deveriam ser domesticados: a alma e o corpo (representado pela palavra joelho). Quanto a Oribela, os joelhos podem até dobrar-se, mas, quanto à alma ... É ter “numa parte o corpo e noutra o coração”. 

Surgem metáforas que atestam a forma como Oribela compreende o real, mas, até mais que isto, a maneira como procura entender-se enquanto ser humano neste mundo que entra pela porta de seus olhos, a fazer que seus desejos sejam “torcidos com amarguras”. 

Um outro recurso utilizado por Guimarães Rosa, as antíteses, também surge em Desmundo, como a revelar o caráter contraditório mundo versus desmundo, ou seja, a esperança e a desesperança e as próprias dúvidas que atormentam a personagem: “boas mulheres versus putas e regateiras”, “poder alembrar e poder esquecer”, “luz e sombra”, “grande segredo é o morrer, maior segredo é o viver”, “sacramentada ao Ximeno versus a suspeitar que ele era o demo” e muitas outras antíteses que, muito mais que as matas, as grandes florestas fazem seu estro perder-se em labirintos sem fim. Quando me atenho com mais vagar a uma destas antíteses “boas mulheres x putas e regateiras”, torna-se inevitável um retorno ao intertexto com a história das mentalidades e aos protótipos de mulher forjados pela sociedade colonial: o da santa mãezinha e o da mulher sem qualidades. 

Ao papel da santa mãezinha estava associado o perfil inspirado na devoção européia à Virgem Maria, e o modelo de feminilidade correspondia à castidade, ao sacrifício e à sociedade. Era necessária a purificação da mulher, desde as origens um agente de Satã, e esta purificação, de forma mais urgente, era mister numa terra como a nossa, onde reinava o Diabo. 

À mulher sem qualidade, aquela da rua, corresponde o avesso da santa mãezinha, e, por não enquadrar-se no papel a ela destinado, era demonizada e excluída. O uso que fazia da sexualidade era considerado ameaçador, por colocar em perigo o projeto da Igreja e do Estado, segundo o qual o corpo feminino deveria estar a serviço da sociedade patriarcal e do projeto de colonização. 

Oribela, outras vezes, durante o romance, demarcará esta diferença e parece se perguntar: até que ponto sou uma “santa mãezinha” e até que ponto sou uma “mulher sem qualidade”? Que papel agradaria a ela, de verdade, assumir? 
 Todas as antíteses observadas durante a leitura do romance, parecem culminar em questionamentos acerca de assuntos muito variados, como, por exemplo: Viver, que significa? Morrer? Quem realmente é o mouro? Vida, qual seu significado? 

Uma outra característica da linguagem rosiana é a utilização da hipérbole propriamente dita, também aproveitada para a elaboração do romance Desmundo. Há um grande medo do castigo divino, e a hipérbole seguinte representa a enormidade do medo: “ia o pai mandar muitas setas de fogo, gemidos, chamas de enxofre que nunca acabam de queimar, tal que o ímpeto de um rio de lágrimas não poderia apagar um dia Deus alagaria o velho mundo com as águas do céu em que se afogaria todo o gênero humano como se matasse uma vaca brava e a terra ficaria deserta, restando os que tinham vindo ao novo país e quem aqui fosse o mais forte seria o rei do mundo”. 

O que se refere a Deus, principalmente no que concerne ao castigo divino, é sempre visto de maneira hiperbólica pela personagem narradora. O hiperbólico se presentifica, também, no que concerne às imagens visionárias que povoam os delírios da personagem central: “era eu devedora de pagar com meu coração no que de mim abriram o peito, um corte fino de dor e as mãos dedudas e grosseiras do algoz se meteram no meu peito a arrancar o coração."  

Conforme Arrigucci, em Rosa, ocorre uma subversão do esquema lingüístico tradicional, numa quebra da harmonia e da regularidade do clássico na linguagem literária. Em Desmundo, esta subversão também se dá e despontam, então, construções frasais não muito usuais, tais como a expressão “todos chegando o chegar”. O contexto em que esta expressão é empregada permite uma melhor compreensão da riqueza de seu significado. Oribela utiliza esta expressão para relatar a alegria da chegada da nau portuguesa às terras brasileiras “tocar com os pés ali naquela terra onde nunca entrava o inverno, arribar, arribar, a salvamento, sem se poder a gente nem a cargo, todos chegando o chegar, deleitando, gozo”. 

Na construção da expressão analisada, comparecem dois termos semelhantes: chegando (verbo conjugado no gerúndio) e chegar (substantivo formado por derivação imprópria). A frase poderia ser simplesmente “Todos chegando”, mas, ao acrescentar “o chegar”, a autora quer intensificar, mostrar a importância desta chegada, aliás, “Chegada” é o nome da primeira parte do romance, parte em que se localiza o fragmento que está sendo analisado. Ao apropriar-se de um verbo para dar a ele o estatuto de nome e, ainda, utilizá-lo para provocar uma redundância, a autora dá maior sentido à chegada dos portugueses à nova terra e, ao mesmo tempo, subverte a linguagem tradicional. Não é uma chegada qualquer, é uma chegada prenhe de esperança e de desejos de felicidade. 

Outra construção bastante intrigante pertence ao fragmento localizado na parte dois do romance, intitulada “Terra”. As jovens órfãs aguardam seu destino no convento dos padres “esquecidas ali, guardadas, esperando esperandesperando...” A expressão me chama atenção. Exatamente por divergir das construções usuais “esperando esperandesesperando” intensifica a idéia da espera, que é também desespero. A começar pelo uso do gerúndio, tempo verbal que dá idéia de uma ação contínua, a intensificação se faz, também, pela repetição da própria palavra “esperando” três vezes. A elipse do “o” final do segundo emprego da forma “esperando”, que se une ao outro “esperando”, conota a angústia da espera, monta-se em desespero. É preciso apressar o término da espera, para saber o que as aguarda neste mundo tão novo. 

Somando-se às várias construções inusitadas, aparecem palavras pertencentes à língua indígena, na fala de Temericô; à língua espanhola, nas falas da Parva e em construções como “No he temor, piedoso es el Señor” e, ainda, à língua latina mesclada à fala/oração de Francisco de Albuquerque. Esta mescla de línguas diferentes colabora para a criação de uma linguagem que remete às diversidades de línguas presentes no século XVI em terras brasileiras. Remeto-me, neste caso, às idéias de Mikhail Bakhtin, no que diz respeito a uma das características do gênero romanesco: a diversidade social de línguas presentes no romance. Mesmo que o romance de Ana Miranda se enuncie como expressão da língua portuguesa, a língua do colonizador, outras línguas aparecem para representar o plurilingüismo. Surgem expressões em espanhol e latim, linguagens muito próximas da língua portuguesa, mas também expressões em língua indígena, a dizerem como o conflito lingüístico pode ser internalizado no próprio discurso. E, ainda mais, o quanto este confronto pode significar também um conflito social e cultural. Na passagem do romance em que Temericô conta a Oribela sua história antes da chegada dos portugueses, este conflito começa a se anunciar: 

“Cantava cantigas, tocava um pífano de graveto, contava de sua povoação onde amava os pais e irmãos, de quem mais nada sabia, que lhe falavam deles as estrelas, fora ela caça o mato e palavras mansas. Era de um gentio muito antigo que fora lançado fora da sua terra das vizinhanças do mar por outro gentio seu contrário que descera do sertão pela fama da fartura da riba do mar e seus pais e avós perderam as terras que tinham senhoreado muito anos e lhe destruíram as aldeias, roças, matando os que lhes faziam rosto, sem perdoar a ninguém, em frontaria com os contrários numa crua guerra, onde se comiam uns aos outros, os que cativavam ficavam escravos dos vencedores, numas batalhas navais, ciladas por entre as ilhas grandes mortandade e se comiam e se faziam escravos, até chegar o tempo dos portugueses. O – z o – a k y p û e r i, um trás outro, trás de um o outro, mokõî, mokô’, mokõî. Tinga”. 

É através do discurso de Oribela que se manifesta o discurso de Temericô e, mesmo o tempo anterior à chegada dos portugueses, é narrado em língua portuguesa, a língua do colonizador. Onde a língua indígena? Está restrita aos termos utilizados nas duas últimas linhas e a linguagem do dominado parece manifestar-se, então, muito mais pela ausência, denúncia da subjugação de uma língua e de um povo. 

Um outro fragmento textual em que a língua indígena aparece trata do momento em que Temericô pretende ensinar sua língua a Oribela. As palavras indígenas buscam sempre seu equivalente na língua portuguesa, numa tentativa de aproximação de línguas provenientes de culturas extremamente diversas, como a cultura portuguesa européia e a cultura indígena. Nesta tentativa de aproximação, entretanto, o tempo já mostrou, os resultados são desiguais e conduzem ao quase total desaparecimento da língua indígena como se pode hoje constatar.

Enredo

 Em 1570, chega ao Brasil um grupo de órfãs, enviadas pela rainha de Portugal para desposarem os primeiros colonizadores. Entre elas vem Oribela, uma jovem sensível e religiosa. 

 Contra sua vontade, ela se casa com Francisco de Albuquerque, que a leva para seu engenho de açúcar. Apesar de rude, Francisco trata Oribela respeitosamente: quer que ela seja a senhora da casa, mãe de seus filhos brancos. Contudo, na fazenda moram a mãe e uma jovem irmã de Francisco, num estranho e incestuoso núcleo familiar. 

 Certo dia, aproveitando a passagem de Ximeno, um comerciante vendedor de escravos, Oribela foge. Quer pegar um navio e voltar a Portugal. Nesta primeira tentativa, é estuprada pelos marinheiros que deveriam levá-la ao navio. Furioso, o marido a prende acorrentada num galpão. Sozinha e ferida, a jovem esposa se deprime, passa os dias chorando. A índia que lhe leva comida é quem, pouco a pouco, ajuda-a na sua recuperação. Mas Oribela é obstinada em tentar uma volta impossível para o velho mundo. 

 Em busca do conhecido - passado doloroso, mas conhecido - acaba indo de encontro a todos os perigos, da ira do marido abandonado, às feras da mata virgem e as pedras da sociedade. Três vezes ela foge do casamento a que foi empurrada, pelos padres e reis, com um desconhecido que só lhe provocava náuseas. "Seu aspecto era o de um cão danado, lhe faltavam dentes, tinha pernas finas, nariz quebrado, da cor de um desbotado seus olhares. Cheirava a vinho de açúcar, usava um chapéu roto, tinha tantos pêlos a modo de uma floresta desgrenhada e estava sujo, imundo (...) O homem me veio a mirar e no rosto lhe cuspi", conta a jovem rebelde, que aceita o casamento com medo de um mal maior, acabar como outra mulher que conheceu no mosteiro, que teve os pés e mãos cortados por recusar um marido. Mas, como um animal selvagem engaiolado, Oribela só pensa em fugir. Na segunda tentativa, perde a esquadra, mas encontra a paixão pelo homem a que mais temia. Na terceira, depois de colocar fogo em tudo, vive a loucura ou a felicidade.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/d/desmundo

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Eliana Ruiz Jimenez (Haicai: Sapa Sapeca)




Pedro DuBois /RS (Poemas Escolhidos)


MEMÓRIA

Pelo vão da porta
insiro a memória
cobro pela entrega
o gesto
desprendido do envelope
sob a porta
envelopo a série 
e na espera tenho
a sequência mnemônica
dos atrasos
a companhia alarma a casa
e sobre o assoalho 
repousa a prova na memória
avivada dos extremos.

SOBRAS

Prefiro as sobras do banquete
o vinho quente na garrafa
o azedo da salada
o restante da carne
junto ao osso

o guardanapo
usado com esforço

guardo a rolha
em confirmação: aguardo
o retorno
inserido
na minha vontade.

SURPRESA 

O elemento surpresa onde se escondem
as mudanças. O estertor com que fogo
queima o estrado e o preso se arrepende
em novo ano. Não reconheço a espera:
o esperto acreditar
no futuro: o inexplicável
alvoroço do cão: o amargo
da vida na ilusão passageira
do amigo. Folgo em me colocar
contra a janela: inocento o suspeito. Suspeito
de outras eras: chego sem ser anunciado.
Desdobro a canção dos horrores
consumidos em preitos
panelas
e tigelas. O elemento
e a presa na hora em que o circo 
pega fogo e o mundo se desmantela
no imitar do bandido ao espoucar
da pipoca: a chave em giro
mecânico na porta.

IMAGINAR 

Construo a imagem 
ao arrepio do espelho
a lâmina assusta 
o rosto que se desfaz
em gritos ante o dia
que se abre ao mito

minto cada leve dobra
do espírito: aumento
a expressão e o riso

o espelho desmente
a impostura do porte

em dinâmico gesto
destrói o sonho
onde me encontro

contruo outro corpo
e não me arrependo
na informação errônea
da identidade: quebro
o vidro e ao lado vejo 
que a estrutura mente.

CONFISSÃO 

Ao pássaro confesso minha incerteza
ao pé do ouvido grito meus pertences
e o preço pago em cada compra: vendo
a alma em desavenças. Calo
a inconsequência do canto.
Ao pássaro não ofendo o silêncio
em alardes frios de sofrimentos:
o ninho por manter
a cria por alimentar.
Incerto
encaminho a voz ao segredo
revelado em poucas palavras.

PRESENTE 

Sou visita e residente

passado aparente
em nova visita
e o de sempre

o mesmo: quem
conhece o caminho
entre o quarto
e a cozinha

vida renovada
na morte persistente

a oração em sofrimento
na brisa mensageira
da notícia

o de fora e o de dentro:

filho
pai
marido

esquento o trabalho e saio
passeio
troco de lado
e me escondo em periferias

quem vem de longe
para ver a família.

ANTES 

Saber da excelência
a véspera
antes o desdouro
nasça e se faça fonte
ao jazer na espuma ocidente
a lâmpada apagada dos ex-amantes

barcos aos cais anunciam
atracar em portos
desacostumados na avalanche
marítima das verdades

no dia anterior barulhos cessam
e na voz a surdez exala o poente.

Fontes:
O Autor
http://pedrodubois.blogspot.com.br/

Mário de Sá Carneiro (A Confissão de Lúcio)


Esta obra foi considerada por José Régio como a obra-prima de entre as novelas de Sá Carneiro, onde estão presentes três de suas obsessões dominantes: o suicídio, o amor pervertido e o anormal avançando até a loucura.

Nesta obra, ao incitar seus personagens na busca de uma transcendência distorcida, Sá-Carneiro cria uma atmosfera de exacerbado lirismo. Capaz de acrescentar um prazeroso sabor ao narrar o inarrável, mesmo no leitor que possui poucas fibras de sensibilidade ele é capaz de produzir um turbilhão interior próximo ao palpitar acelerado do coração quando em êxtase.

A Confissão de Lúcio, publicada pelo poeta em 1914, um ano antes do aparecimento do primeiro número de Orpheu é uma novela que parece apresentar, através da fragmentação, a existência de questões que ficam sem resposta: repetição de silêncios intervalares, espelhamentos intertextuais como forma de dar consistência a essa outra voz, consciente de que tudo aquilo é material com que se constrói a obra de arte, cuja linguagem é plástica e maleável, criadora de um sentido provisório e impossível de fixar.

Foco narrativo

A Confissão de Lúcio é obra narrada em primeira pessoa e o personagem-narrador procura sempre demonstrar o contrário da característica da obra, isto é, apresentar os (simples) fatos a fim de obter credibilidade do leitor, que é o “júri”. Ao modo próximo dos simbolistas, o narrador vai captando as relações mais íntimas do âmbito da percepção, levando esse conjunto de sensações a rever o conceito de realidade e aproximá-la do fantástico.

A narrativa começa do fim para o início, e já na primeira página o próprio narrador demonstra claramente a desilusão que tomou conta de sua vida depois dos acontecimentos que vai narrar, a ponto dos dez anos que passara na prisão por um crime que não cometera parecerem-lhe "uma coisa sorridente". É bom lembrarmos que há uma certa ironia que passa por toda a narrativa, e tal ironia provém do próprio narrador. É como se, o tempo todo, ele estivesse analisando o passado sob os olhos do presente, a fim de dar um tom de maior veracidade aos fatos narrados, porém, sua tentativa é malograda, uma vez que a ironia empregada assume apenas um tom de riso profilático e é totalmente posta por terra no final, pois notamos que o narrador nada mais é do que a vítima confessa delas próprias.

As várias funções exercidas pelo narrador Lúcio na história - ele é ao mesmo tempo personagem narrador e receptor de outras obras - indicam a ambigüidade, inerente à linguagem, em que o significante desliza constantemente sob o significado, tornando impossível o estabelecimento de qualquer sentido definitivo. E também que o reverso (ou o complemento?) da criação é a destruição: Lúcio destrói no fogo sua peça Brasas, Ricardo mata Marta, sua criatura, o final da obra da americana coincide com a sua morte.

O estilo da narrativa tem por objetivo deixar o leitor em constante dúvida (o relato é real ou imaginário?). Inicialmente, os autores optaram pelo mesmo estilo: uma confissão. Essa confissão alcançou o objetivo na novela de Sá Carneiro. 

Ele intensifica o caráter documental de sua obra: a novela é apresentada ora como confissão de fatos consumados ora como um diário íntimo.

Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.

(...) E são apenas fatos que relatarei. Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
(...)

Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade - mesmo quando ela é inverossímil.

(A Confissão de Lúcio - Prólogo)

O protagonista desta narrativa cumpre um destino absurdo que não é possível explicar pela lógica comum: deixa-se prender e condenar por um crime que não cometeu e que afinal não existiu.

Personagens

Com relação às personagens, dentre as várias existentes, entendemos ser o triângulo amoroso formado por Lúcio, Ricardo e Marta, o cerne fundamental que levará à desilusão do autor/narrador no final da narrativa.

Ricardo - o protagonista dos fatos narrados. Trata-se de um poeta que, antes de ser apresentado a Lúcio, é mencionado por várias personagens. Sua marca principal é a incoerência: seu maior problema é que sente-se totalmente estranho à vida normal, ao mesmo tempo que sente uma irresistível atração por ela.

Lúcio Vaz - narrador-personagem, jovem escritor português, é a duplicação do eu de Ricardo, ou seja, o seu outro, o grande conflito que marca toda a obra de Sá-Carneiro.

Marta - retratada como uma mulher belíssima, mas todo um mistério a envolve durante toda a parte da narrativa em que aparece. É esposa de Ricardo, porém Lúcio se apaixona por ela. Os dois têm uma relação extra-conjugal que, para Lúcio, parece óbvia demais para Ricardo não perceber. Lúcio parece ter certeza de que Ricardo sabe de sua relação, mas acha muitíssimo estranho que este nada faça. Em dado momento, Marta deixa de vir à casa de Lúcio e passa a encontrar-se com Sérgio Warginsky, outro freqüentador da casa de Ricardo, o que deixa Lúcio horrorizado.

Para falar de Marta, é necessário ter em mente esta questão do outro, pois esta é a explicação mais plausível do desenrolar final da narrativa, uma vez que é ela quem acende o estopim das ações que levarão à desilusão em relação à vida do autor/narrador.

Enredo

Num primeiro momento a história de desenvolve na Paris de 1895. O narrador, Lucio, nos conta do meio artístico e destaca-se nessa narração a figura de Gervásio Vila Nova: escultor, dono de uma conversa envolvente, embora fosse algo “disperso, quebrado, ardido”. Destaca-se ainda, nesse momento, a admiração que vai desenvolver por uma misteriosa americana, mulher rica e linda: “Criatura alta, magra, de um rosto esguio de pele dourada - e uns cabelos fantásticos, de um ruivo incendiado, alucinante.” Por meio dela fica sabendo da chegada de Ricardo Loureiro, poeta cuja obra era muito admirada.

Numa festa promovida por Gervásio, Lúcio é apresentado a Ricardo. Logo da primeira conversa vai se desenvolver uma grande amizade e admiração entre ambos.

A admirada americana ruiva desaparece de cena, Gervásio também encerra aqui sua participação no enredo, uma vez que retorna a Portugal. Enquanto as conversas com os outros tinham um interesse voltado para o intelectual, o conhecimento, as feitas com Ricardo pareciam atingir a alma de Lúcio. Desse amizade nasce uma relação que pode ser representada como sendo uma projeção de Lúcio sobre o outro, Ricardo. Pressente-se um tom de homossexualidade: “Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.”

Ricardo vai para Lisboa, ficam os amigos separados por um ano, trocam-se cinco cartas durante esse período. Em dezembro de 1897 Ricardo retorna a Paris: “As suas feições haviam-se amenizado, acetinado - feminilizado, eis a verdade.” Lúcio sabia, no entanto, que Ricardo havia se casado. Num jantar Lúcio é apresentado a ela, Marta: “Era uma linda mulher loira, muito loira, alta, escultural (....) Cheguei a ter inveja de meu amigo.”

Os três ficaram amigos inseparáveis. Participavam em reuniões de amigos intelectuais e artistas, e nessas se destacava a figura de Sérgio Warginsky, músico russo, que no entanto, vai criar uma impressão negativa e de quase ódio em Lúcio.

Envolvido com sua produção literária, por vezes, Ricardo deixava Lúcio a sós com Marta. Entre situações às vezes constrangedoras que beiravam o limite da amizade, Lúcio começa a se sentir envolvido pela figura de Marta. Até que, enfim, Marta torna-se amante de Lúcio. Lúcio acaba se apaixonando por Marta, apesar de continuar a amizade com Ricardo. Estranhamente Lúcio atenta para alguns detalhes da fala de Ricardo, como quando o amigo lhe diz que ao se observar ao espelho não mais se via: “Ah! Não calcula o meu espanto... a sensação misteriosa que me varou... Mas quer saber? Na foi uma sensação de pavor, foi uma sensação de orgulho.”

Por outro lado, Marta também parecia a Lúcio como uma mulher irreal: “sim, em verdade, era como se não vivesse quando estava longe de mim.” Nada confirmava sua existência além do perfume penetrante que ficava no leito, precisava não mais provar o amor, mas a existência real dessa misteriosa mulher que tanto se entregava a ele e que traía com intensidade o amigo: “As suas feições escapavam-me como nos fogem as das personagens dos sonhos. E, às vezes, querendo-as recordar por força, as únicas que conseguia suscitar em imagem eram as de Ricardo. Decerto por ser o artista quem vivia mais perto dela.”

Depois de algum tempo, Marta torna-se fugidia, demora-se menos com Lúcio, os encontros tornam mais difíceis. Lúcio começa a desconfiar de Marta e desenvolve um sentimento de ciúme. Nas tardes em que apenas encontra o amigo Ricardo, começa a procurá-la desesperadamente. Uma vez seguindo Marta, descobre que ela fora ao apartamento de Sérgio Warginsky. Por essa época, Lúcio terminara uma peça de teatro e começa a andar pelas ruas, em uma dessas andanças encontra Ricardo, este lhe faz uma estranha afirmação, de que Marta é uma criação de Ricardo: “Compreendemo-nos tanto, que Marta é como se fora a minha própria alma,. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos. Somos nós dois... (...) E ao possuí-la, eu sentia, tinha nela, a amizade que te deveria dedicar.”

Nesta cena alucinante, Ricardo mata Marta, e então Lúcio descobre que um mistério envolvia essa morte: Marta folheava um livro, em pé, ao fundo da casa. Ricardo dá-lhe um tiro à queima roupa:

“E então foi o Mistério... o fantástico Mistério da minha vida...

Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela não era Marta - não! - era o meu amigo, era Ricardo... E aos meus pés - sim, aos meus pés! - caíra o seu revolver ainda fumegante!...”

Marta desaparecera, como uma ilusão, uma névoa.

Fonte:

Olivaldo Junior (Adeus)




A um velho amigo 

Palavra que eu não queria mais nunca escrever é a palavra adeus. Muitas vezes, sinto que me dizem essas letras de outra forma, sem que eu sinta que estão sendo ditas. Adeus tem cinco letras, mas saudade tem sete. A saudade sempre ganha do adeus. Pode voar bem longe, posso voar bem mais. Mas saudade sempre ganhará dos adeuses. Nas asas de cinco estrofes, no canto de versos limpos, adeus tem um jeito de passarinho que sabe voltar. Quando quer.

Todo adeus começa assim:
com seu “a” de adoração,
diz ao mundo que o seu fim
não termina em solidão.

Com seu “d”, o adeus delata
que os dizeres da poesia
são promessa ao que nos ata
pelos prós que contraria.

Com seu “e”, que estrago faz!
Entre os erros que espalharam,
murcha um pouco e se desfaz,
dando adeus aos que estacaram.

Um adeus tem sempre um “u”.
Essa letra é quase um lenço,
quase um velho e triste “blue”,
doce azul, que não dispenso.

Sobre o adeus, a letra “s”
tem segredos que não diz:
cada verso é minha prece
contra o tempo mais feliz.

Fonte:
O Autor

Wagner Marques Lopes / MG (Rio + 20) 4


Ana Maria Machado (Os Dois Ratinhos)


Era uma vez dois ratinhos. Bom, na verdade, eram dois camundongos, desses bem pequeninos que vivem nas casas velhas. E era mesmo onde eles moravam, numa casa de fazenda que já tinha sido de avós e bisavós de gente. Por isso, a madeira cedia num lugar, o reboco descascava em outro, um pedacinho de taipa caía mais adiante... Era uma maravilha de moradia para ratinhos e camundongos. Havia túneis pelas paredes, amplas avenidas no forro e vastos descampados no porão, além de ruas e vielas por todo o esqueleto da casa.

Pois uma dessas ruas é a que nos interessa — e era a que mais interessava a eles. A que desembocava na cozinha.

Uma noite, os dois camundongos saíram para um passeio na cozinha. Era sempre uma festa.

Tinha lingüiça no fumeiro por cima do fogão de lenha.

Tinha chouriço pendurado na despensa.

Tinha queijo na prateleira.

Tinha um saco de fubá num canto.

Tinha tanta coisa para comer que nem dá para lembrar tudo.

Os dois ratinhos se banquetearam, se empanturraram, até se fartarem. Depois, deu sede. Mas um deles ainda tinha lugar na barriga para comer mais um bocadinho. Enquanto discutiam se já deviam ir beber água ou não, viram uma tigela imensa, coberta por um pano de prato de beiradas bordadas em ponto de cruz.

Foram olhar de perto. Era leite que a cozinheira deixara para fazer coalhada. Uma tigela cheinha, quase transbordando.

Pronto! Era a solução! Assim, matavam a sede e o restinho de fome ou gulodice ao mesmo tempo.

Mas, quando se equilibraram na borda da tigela para beber, um deles perdeu o equilíbrio e plaft! Caiu lá dentro. Na queda, tentou se agarrar ao rabo do outro e plaft! O segundo ratinho também caiu.

Começaram a tentar sair. Mas era difícil, as bordas da tigela escorregavam. E eles estavam pesados, de barriga cheia. Nadaram e se debateram, mas não dava para se apoiarem e sair. Foram nadando, se debatendo e ficando cansados.

Um deles simplesmente desistiu. O outro resolveu que não ia entregar os pontos. Nadava, nadava, mesmo que fosse em círculos, só para não parar de lutar. Quando cansava muito, boiava ou se agarrava às bordas e depois voltava a nadar. Passou assim a noite toda.

De manhã, quando a cozinheira chegou à cozinha e levantou o pano de prato bordado que cobria a tigela de coalhada, teve duas surpresas. Lá dentro tinha um camundongo morto. Mas a surpresa maior não foi essa. Foi ver que a coalhada tinha virado manteiga, de tanto ser batida. E, por cima, havia muito nítido um caminho feito de rastros — as pegadas frescas de um ratinho que saíra caminhando sobre a manteiga e fora embora.

Moral: se é fábula, tem que ter moral, mas eu prefiro que você a descubra. 

Como utilizar o texto em sala de aula

Em Os Dois Ratinhos, Ana Maria Machado reconta uma fábula tradicional que, como toda fábula, possui uma moral. A escritora optou por não revelá-la, convidando cada leitor a descobrir por conta própria a lição embutida no texto. Você pode enriquecer essa proposta em classe, aprofundando a leitura com atividades interdisciplinares. É o que sugere Lúcia Pimentel Góes, coordenadora da área de Literatura Infantil e Juvenil na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP). Depois de se empanturrarem com a história em aulas de Ciências, Português, Matemática e Educação Artística, os alunos devem chegar a morais diferentes. "E isso é ótimo", afirma Lúcia. "Ler descobrindo, criando e recriando é sempre mais prazeroso." 

UM PRATO CHEIO DE IDÉIAS

Em Português, amplie o vocabulário da turma. Proponha que escrevam receitas usando expressões como tigela, coalhada, chouriço, lingüiça. Ilustre a atividade com uma visita à cozinha da escola, onde as crianças irão preparar o que elaboraram. Pratos prontos, organize uma "feirinha" gastronômica e convide alunos, pais e outros professores para se deliciarem. A feira também é oportuna para explicar operações matemáticas. Com dinheirinho fictício, algumas crianças "pagam" pelas guloseimas, enquanto outras aprendem a calcular o troco.

LIÇÃO DE HIGIENE

Na aula de Ciências, aguce a curiosidade das crianças revelando que um rato é diferente de um camundongo. Mas em quê? Para responder à pergunta, a turma pode se dividir em grupos e estudar as características de cada animal: as espécies às quais pertencem, o espaço onde vivem, como fazem seus ninhos e do quê se alimentam. Aproveite e passe noções de higiene. No conto, os ratos aparecem como bichinhos simpáticos, que passeiam com tranqüilidade por um cozinha repleta de utensílios e alimentos. É importante explicar a seus alunos que, apesar da aparência inofensiva, a grande maioria desses roedores transmite doenças ao ser humano — entre elas, a leptospirose. Por esse motivo, são necessárias precauções para mantê-los longe de casa. 

NA COLA DOS RATINHOS

Juntamente com seus alunos, reproduza o passeio dos ratinhos pela casa de fazenda até chegar à cozinha. Repleto de objetos, dispostos cada um de uma maneira, o cômodo instiga à produção de um inventário. As crianças podem pesquisar as peculiaridades da arquitetura de uma casa de fazenda, do seu mobiliário, da vizinhança. Para tanto, devem recorrer a livros e a entrevistas com profissionais como pedreiros, arquitetos e engenheiros. Esse texto descritivo será o alicerce da construção de uma maquete durante a aula de Educação Artística.

Fonte:
Nova Escola. Contos, Fábulas e outros.

Marie-Louise von Franz (O Problema da Sombra nos Contos de Fada) 4


Esse tipo indefinido de sofrimento pode ser superado através de uma forma expressa simbolicamente, ou talvez o rapaz acabe achando sua vida sem sentido e beba até morrer.  Assim,  podemos  dizer  que  os  estados  de espírito, os anseios secretos e as necessidades das pessoas simples  do povo expressam de maneira clara as necessidades do nosso tempo.  Quando analiso pessoas desse nível sempre fico surpreendida com o material ar-quetípico de seus sonhos, os quais parecem estar muito mais ligados aos problemas de nosso tempo do que os sonhos de pessoas instruídas. Uma moça pobre, cheia de medos e com um horizonte nublado não percebe que talvez seja vítima de sua época e eventualmente sonha com nosso problema atual de forma clara e surpreendente. Podemos chamar tais sonhos de visões de nosso tempo operando na alma da pessoa. Quanta coisa podemos aprender analisando uma faxineira ou um joão-ninguém! Durante o intervalo me fizeram duas perguntas: uma delas é por que uma pessoa simples pode ter tais visões tão claras a respeito  dos  problemas  de  nosso  tempo. Nós concluímos que esses indivíduos estão muito mais desamparados do que os das classes mais altas que podem construir uma casa de campo e assim encontrar uma forma de fugir e compensar a situação. Além disso, as pessoas instruídas percebem a situação em que se encontram e procuram tratar-se, não sentindo o problema do mesmo modo. Por exemplo, eles não são obrigados a viver miseravelmente numa rua barulhenta de onde não podem sair. As pessoas pobres estão mais expostas ao problema e, como sofrem mais, sua reação instintiva de cura é mais intensa.

Pediram-me que exemplificasse. Uma professora teve a seguinte visão: um dia ela foi a um encontro antropossófico numa catedral mundialmente famosa, numa cidade vizinha. Ao sair da casa onde um pastor fazia uma conferência ela viu nuvens escuras e um terremoto, como se fosse o fim do mundo. No topo da torre da catedral, em seu ponto mais alto, ela avistou a figura da morte a cavalo, de bronze, e uma voz disse: "A morte está descendo e começa a cavalgar sobre o mundo". A torre começou a contrair-se como uma mulher dando à luz e a figura da morte estremeceu. A mulher voltou correndo para o lugar do encontro dizendo: "Venham ver, a morte está se soltando". A amplificação era que haveria muitas mortes por doença e guerra; mas quando ela se voltou viu que a torre estava restaurada depois da morte ter descido. Agora, no lugar mais alto via-se uma figura feminina de pedra que lhe deu mais confiança.

Podemos compreender o sonho por um ângulo pessoal. Essa mulher sempre teve uma atitude muito cristã, com ideias de auto-mortificação, nunca se permitindo nada e alimentando um desejo secreto de morrer. Como achasse que não valia nada, decidiu ajudar os outros, desistindo completamente de sua própria vida, reconstruindo-a sobre o princípio da morte — em consequência, ela se arruinou psíquica e fisicamente com a atitude cristã de auto-mortificação. Este foi o aspecto pessoal da visão, sendo o princípio supremo a atitude cristã que servia mais à morte do que à vida. Ela vivia segundo os princípios da Imitatio Christi, que implica na morte aos 30 ou 32 anos, o que lhe causou as mais amargas consequências. Além disso, ela estava possuída pelo ânimus e excluía por completo o lado feminino da vida, ausência esta que corresponde também ao princípio cristão.

Num caso desses, o princípio da morte deve ser substituído por uma divindade feminina. Assim, a visão tinha uma conotação pessoal. Além do mais, nessa época ela achava que estava com um começo de câncer. Por outro lado, sua visão mostra o problema de nosso tempo com todas as suas implicações, inclusive o dogma da Assunção da Virgem Maria. Ela vivia um destino coletivo e o inconsciente coletivo aparece completamente nu no seu inconsciente. Essa mesma pessoa sonhou que um dia estava sentada ao ar livre quando ouviu um zumbido e viu um enorme disco redondo voando no céu — era uma aranha de metal cheia de seres humanos. Do interior da aranha uma voz repetia um hino ou oração: "Ponha-nos sobre a terra e guie-nos até o céu"; e o objeto ficou pairando sobre um prédio do parlamento, algo assim como um objeto não identificado; as pessoas lá dentro ficaram com tanto medo que rapidamente assinaram um tratado de paz e então a mulher percebeu que estava sem roupa. Ela tinha uma certa disposição es-quizóide, mas além disso pode-se perceber aqui a situação de nossa época. Estes seriam exemplos de sonhos e visões ingénuos.

Analisei também uma faxineira com acentuadas tendências suicidas totalmente convencida de que suas visões eram revelações religiosas que deveriam ser difundidas pelo mundo. Decidiu escrever um livrete e mandá-lo para Walt Disney; a julgar pelos esboços o livrete não era nada estúpido. O plano não era tão negativo quanto parece e Walt Disney seria capaz de reescrevê-lo, pois suas visões pretendiam claramente curar nossas dificuldades atuais. O problema foi que a mulher não tinha instrução suficiente para elaborar adequadamente os elementos que lhe surgiam e por isso empacava, tornando-se mórbida. Essas pessoas precisam ser ajudadas de uma forma concreta e a grande questão é se existe ou não suficiente vitalidade. Se ela tivesse tal vitalidade — o que de fato não acontecia — eu lhe teria dito para fazer um curso no Migros, ** aprender algo adequado e daí dedicar-se à sua visão, dessa forma encontrando uma ocupação e um objetivo. Infelizmente, um tipo esquizói-de quase nunca tem vitalidade suficiente, de modo que só podemos ajudar com a nossa própria vitalidade ou a de outrem; geralmente essas pessoas se encontram num estado físico miserável e por isso não conseguem dar forma ao seu conteúdo. No decorrer da História houve pessoas desse tipo que conseguiram realizar essa tarefa, como Jakob Boehme, um sapateiro que escreveu revelações religiosas baseadas em suas visões, muito embora não tivesse instrução suficiente para formulá-las de modo mais adequado. Mas ele teve um grande impacto em seu tempo e suas experiências interiores adquiriram significado para os outros. Tais "Jakob Boehmes" latentes existem em maior número do que se imagina. Assim sendo, se essas constelações forem suficientemente fortes na sociedade tudo pode acontecer, como se deu com a religião cristã que por assim dizer da noite para o dia produziu uma atitude religiosa completamen-te nova com base nos estratos inferiores da população. 0 cristianismo não atingiu de imediato as classes mais altas da sociedade romana, mas começou entre os escravos. Naquele tempo as pessoas tinham visões de Cristo e uma relação muito pessoal que se alastrava como fogo entre as pessoas simples do povo, expressando sua necessidade de livrar-se da escravidão e encontrar um novo objetivo: isso seria a renovação vinda de baixo. 0 rei foi substituído por um trabalhador ou escravo e isto se tornou o símbolo dominante, literalmente expresso na descrição de Cristo como Rei dos Reis e ao mesmo tempo servo dos homens.

Em nossa estória o rei ainda não foi deposto. O alfaiate não se torna príncipe mas casa-se com um membro da família real, tendo sido, juntamente com o sapateiro, servo da corte por algum tempo. Assim, encarando a estrutura como um todo, temos um rei, nem bom nem mau, mas meio decadente — o que se conclui pelo fato de precisar de ajuda para assumir um filho e de ter perdido a coroa. Ele portanto já está se aproximando do estado de rei decadente, mas ainda com força suficiente para manter sua posição e sua corte. Na esfera da consciência coletiva e suas representações dominantes dois fatores opostos vêm à tona, ficando o rei dividido entre um e outro. Primeiro o sapateiro ganha a confiança do rei, depois o alfaiate. O primeiro desempenha o papel do Diabo ou de Lúcifer, como Satã no Livro de Jó que critica Jó dizendo que ele é rico e também Piedoso mas somente enquanto na posse de seus bens. sapateiro, numa escala menor, funciona exatamente da mesma maneira nessa estória: ele ganha a confiança do rei e o alfaiate se vê sob tremenda pressão.

Eu afirmaria que o rei representa o símbolo coletivo dominante de nossa era, isto é, do cristianismo, embora não possa dizer exatamente em que época, se nos séculos XVI, XVII ou XVIII. Nos contos de fada é difícil definir os períodos, mesmo possuindo algumas dicas exteriores; se há menção de pistolas tem-se uma indicação, mas isso não é uma prova definitiva. O fato de termos um tipo de conto de fada similar a "Amor e Psique" mostra que sua estrutura básica deve ter dois mil anos ou mais, de forma que a data pode talvez ser comprovada pela situação arquetípica, por evidências interiores ou até mesmo exteriores. Pode-se dizer que o rei representaria o aspecto da atitude cristã dominante que ainda não atingiu o ponto de ser completamente deposto ou renovado, mas que já não possui a antiga força. Surgem dois fatores arquetípicos, dois deuses, Mercúrio e Saturno; constelaram-se na corte e a questão é qual deles vencerá. Nos contos de fada quando não existe a sombra, ocorre a duplicação de uma figura arquetípica, uma parte sendo a sombra da outra. O mesmo acontece quando a sombra individual não se constela em termos pessoais. Todos os complexos e estruturas gerais, isto é, complexos com uma base coletiva, possuem um lado sombrio e outro luminoso num sistema polarizado. Pode-se dizer que o modelo de um arquétipo compõe-se de duas esferas, uma luminosa e outra sombria. No arquétipo da Grande Mãe temos a bruxa, a mãe diabólica, a velha sábia e a deusa que representa a fertilidade. No arquétipo do espírito há o velho sábio e o mágico destrutivo ou demoníaco, representado em muitos mitos. O arquétipo do rei pode tanto indicar a fertilidade e a força da tribo ou nação como o velho que sufoca a vida nova e deve ser deposto. O herói pode ser a renovação da vida, o grande destruidor, ou ambos. Cada figura arquetípica possui sua própria sombra. Será esta sombra um fenómeno genuíno ou será que resulta de nossa maneira de encará-la? Não sabemos como é o arquétipo no inconsciente, mas quando ele toca a orla da consciência, como nos sonhos, que são fenómenos semi-conscientes, ele manifesta sua duplicidade. Somente quando a luz atinge um objeto é que aparece sua sombra.

Provavelmente os complexos no inconsciente são neutros — uma complexio oppositorum — tendendo a duplicar-se em Sim e Não, em mais e em menos, quando a consciência focaliza o objeto. O tema dos gémeos na mitologia mostra-nos que sempre existe um par, um mais introvertido e outro extrovertido, um macho e outro fêmea, um mais espírito e outro mais animal — entretanto um não é moralmente melhor do que o outro; e há também mitos onde um é bom e outro mau. Acho que quando existe uma atitude ética na consciência, a atitude do par é eticamente diferenciada, mas se não houver consciência ética isto não acontece. Em nossa estória existe uma diferença entre bem e mal. A atitude judaico--cristã aguçou o conflito ético no homem, e há portanto em nossa civilização uma tendência a julgar de acordo com esse princípio ético, sem deixar lugar às coisas mal definidas. Se uma figura arquetípica se desdobra, então ela se desdobra também moralmente, aparecendo não apenas como o bem e o mal mas como luminosa e menos luminosa — é esse o refinamento da resposta ética produzido por nosso sistema religioso.

O contraste entre extrovertido e introvertido se aplica entre o alfaiate e o sapateiro. O último leva pão para sete dias pensando na fome, enquanto o alfaiate tem a atitude despreocupada do extrovertido que passa de uma situação para outra sem premeditação; é neste sentido específico que ambos se opõem mutuamente. Se relacionarmos esse aspecto ao simbolismo do rei enquanto dominante cristão, duas figuras são consteladas, uma tendendo a uma introversão desagradável e a outra a uma despreocupada extroversão. Será que estamos fantasiando ou o cristianismo apresentou de fato tal problema?

Eu acho que sim. O simbolismo cristão, especialmente se servarmos suas ramificações na América (caracterizada por um certo ímpeto extrovertido), possui uma visão otimista da vida, uma grande confiança em Deus, o otimismo cristão básico — e isto é um tipo de atitude cristã porque o cristianismo julga Deus como sendo o bem, e o mal apenas como ausência do bem, o que cria uma atitude de confiança em si mesmo e em Deus, uma tendência a ignorar e a não enfatizar seja a realidade do mal em si mesmo e nos outros, seja a atitude de ajuda. Temos o desenvolvimento oposto no calvinismo e em outras facções pessimistas do cristianismo que apresentam uma atitude específica, marcada pelo espírito mercantil, um rigor ético totalmente não cristão e não caridoso, com um temperamento de pesada melancolia encontrado em certas ramificações do pensamento cristão. Isso corresponderia ao tipo do sapateiro, sempre com o olho pregado no lado duro e difícil da vida. Se estudarmos esses movimentos austeros na religião cristã veremos que não existe alegria na vida. As pessoas devem ser tristes, devem se arrepender de seus pecados, não devem gostar de boa comida pois isso desagradaria a Jesus Cristo. E esse tipo se encontra em toda parte, bem como esta tradição. Essas pessoas são ricas, elas têm o "pé na terra", são céticas, realistas, desconfiadas, e estão mais enraizadas do que as outras no lado sombrio deste mundo por se prevenirem tanto contra o mal e o lado obscuro da vida. As pessoas otimistas tendem a não ver as dificuldades e são atingidas por elas pelas costas, tanto pelos outros como por si mesmas, quando sua sombra destrutiva vem à tona.

Podemos portanto dizer que o alfaiate representa um tipo simples de atitude ingénua dentro do mundo cristão, com uma visão esperançosa e confiante em Deus, sendo o sapateiro o oposto, a sombra dessa atitude. Ambas são tendências da civilização cristã de uma certa época.

–––––––––
continua…

Fonte:
Marie-Louise Von Franz. A sombra e o mal nos contos de fada
[tradução Maria Christina Penteado Kujawski]. São Paulo : Paulus, 1985. Disponível em http://groups.google.com/group/digitalsource

domingo, 10 de junho de 2012

Adelina Velho da Palma (O Zodíaco em Soneto)


ARIES

Precursor, mas pouco perseverante,
 corajoso, mas brusco e apressado,
 ativo com tendência a exaltado,
 líder muitas vezes intolerante...

 O Fogo faz-te vivo e arrogante,
 do interno p’ro externo orientado...
 Por Marte não temes o arriscado
 e avanças sem ensaios p’ra diante...

 De ti irrompe a semente da Vida
 a força primordial incontida
 a energia livre e transbordante!... 

 És cardinal e por isso impulsivo
 buscando incansável o lenitivo
 da meta final e inebriante!…

TOURO

Conservador, estável, paciente,
 teimoso até ao irracional,
 escrupuloso e muito leal,
 somente para ti mesmo indulgente!..

 Tua força vem da Terra fremente,
 da posse primitiva e sensual...
Vénus dá-te a visão do ideal
 perfeito, absoluto e coerente!...

 Fixo, tendes à cristalização,
 não te é fácil fazer a seleção
 do alvo que desejas atingir...

 Mas uma vez a decisão firmada
 tua vontade se queda obcecada
 e nada te causará desistir!

GEMEOS

Propenso à descoberta e inovação,
 perspicaz, curioso e expressivo...
 Inquieto, inconstante e inventivo,
 faltam-te rigor e concentração...

 Mutável, mestre na adaptação,
 de olhar sintético e cognitivo,
 Mercúrio fez-te comunicativo
 fluente na palavra e transmissão...

 Aéreo, fortemente cerebral,
 absorves ideias em turbilhão
 com um espírito aberto e jovial...

 Capaz da maior contradição,
 de raciocínio paradoxal,
 és vasto, contens uma multidão!…

CANCER

Sensível, engenhoso e nutridor,
 imaginativo mas reservado,
 de constante nostalgia impregnado,
 receptivo, porém conservador...

 A Água potencia o teu sabor
 da emoção em que vives mergulhado,
 A Lua é a memória do passado
 da Mãe o fundamento protetor!...

 Cardinal, rico em impulsividade,
 procuras a paz e a serenidade
 na família, ligação divina...

 Mas a busca da fugaz segurança
 acentua teu tono de criança
 saudosa da vida intra-uterina!…

LEÃO

Egocêntrico porém amistoso,
 romântico mas também insensível,
 pleno dum egoísmo irredutível,
 alegre, criativo e corajoso...

 Dentro de ti arde um Fogo garboso
 que consome um eterno combustível,
 ofuscar o teu ego é impossível
 pois do Sol tens o brilho glorioso!...

 És fixo, dotado de persistência,
 conduzindo toda a tua existência
 com paixão e orgulho visceral!...

 Na vida estás como um ator em cena
 que a plateia subleva ou serena,
 ciente do seu papel principal!...

VIRGEM

Metódico e mui racional,
 por vezes crítico em demasia,
 propenso à ordem e à melhoria
 mas dum ceticismo proverbial...

 Nascido da Terra, sensorial,
 pragmático de eterna teimosia...
 Mutável, que reduz a entropia
 fazendo a ponte p’ro essencial...

 Mercúrio deu-te esta capacidade
 de olhar p’lo bem da comunidade,
 de abarcar o todo da situação...

 Dissecas o sistema em pormenor
 integrado no processo maior
 da busca incansável da perfeição!…

BALANÇA

Ativo amiúde inconsequente,
 social, expressivo e diplomata,
 com vocação artística inata,
 d’equilíbrio e ocupação carente...

 O Ar conceptualiza tua mente
 harmoniosa, sutil e cordata,
 ser Cardinal às vezes te arrebata,
 dinamiza-te o ímpeto latente!...

 De Vénus tens a estética sensível
 o movimento ágil e flexível
 o empenho com tato e atenção...

 Mas só existes em função de alguém
 o compromisso é o que te sustém
 e tua identidade a relação!…

ESCORPIÃO

Penetrante e mui observador,
 instinto e desejo feitos império,
 cheio de secretismo e de mistério,
 defensivo mas concretizador...

 Tua Água é um pântano incolor
 onde imerges em denso refrigério,
 Plutão é-te a via do necrotério
 onde a transformação surge da dor...

 Teu carisma e poder de sedução
 utilizas na manipulação
 de algum ingênuo interlocutor...

 Fixo, vives em luta permanente
 presa de demônio inconsciente
 oculto no teu eu mais interior!..

SAGITÁRIO

Filósofo, porém exuberante,
 exagerado, mas franco e honesto,
 dotado de otimismo manifesto,
 às vezes fanático e provocante!

 És Fogo de aventura crepitante,
 de ideal, de procura, de protesto,
 jovial e versátil é teu gesto
 de tónica Mutável mui marcante!...

 Em todas as situações “à vontade”
 granjeias fácil popularidade
 com sentido de ética e retidão...

 Júpiter dá-te a visão abrangente,
 a fé na aventura permanente,
 um universo sempre em expansão!…

CAPRICÓRNIO

Responsável e lúcido estratega,
 carente de afirmação social,
 cauteloso e mui convencional,
 mas também capaz de dura refrega!

 Ser Cardinal dá-te a ambição cega
 e o impulso de afirmação cabal,
 a Terra estrutura o teu ideal
 focando o objetivo da entrega!

 Saturno leva-te a ser espartano
 marca o Tempo e o Espaço de teu plano
 cujo fito é exterior e concreto...

 Mas se a maturidade é alcançada
 a meta obtida é desvalorizada,
 e inflectes p’ra íntimo trajecto!…

AQUÁRIO

Excêntrico, livre e original,
 por vezes alheio à realidade,
 sumo defensor da comunidade,
 independente e com visão global!:..

 Aéreo, de mente universal,
 cujo fito transcende a identidade,
 ser fixo dá-te a força de vontade
 na perseguição de nobre ideal!...

 Urano é imprevisto e inovação,
 progresso, rebeldia, revolução,
 apelo à individualidade!..

 És único e tens de o demonstrar
 sem contudo esquecer ou descurar
 as aspirações da Humanidade!…

PEIXES

Sensível, sonhador e criativo,
 abrangente, disperso e inspirado,
 no entanto confuso e isolado,
 presa fácil de contorno emotivo!... 

 Tua Água é expressão de coletivo
 de um sentir total indiferenciado,
 Mutável, de um viver experimentado,
 fundindo-se no Todo subjetivo!... 

 Netuno é o sonho, a utopia,
 caótico e misterioso guia,
 rica mas perturbadora ilusão... 

 Tudo em ti é vago e indefinido,
 busca de identidade, de sentido,
 amálgama de Humana Condição!…

Fonte:
http://www.avspe.eti.br/biografias/AdelinaVelhoPalma.htm