quinta-feira, 7 de junho de 2012

Marie-Louise von Franz (O Problema da Sombra nos Contos de Fada) 1


Esclarecimento

O texto deste livro foi extraído de duas series de conferências realizadas por Marie-Louise von Franz no Insitituto C. G. Jung de Zurique; a primeira, o “Problema da Sombra nos Contos de Fada”, durante o Inverno de 1957 e a segunda, “Lidando com o Mal nos Contos de Fada”, no inverno de 1964. O estilo coloquial de comunicação foi essencialmente mantido. 
Somos gratos a Una Thomas pela transcrição destas conferências.

PRIMEIRA PARTE

O PROBLEMA DA SOMBRA NOS CONTOS DE FADA

1
A sombra e conto de fada

Antes de entrarmos em contato com o nosso material, devemos precisar com clareza a definição de sombra em psicologia, pois ela pode variar bastante e não é tão simples como supomos. Geralmente, na psicologia junguiana, definimos sombra como a personificação de certos aspectos inconscientes da personalidade que poderiam ser acrescentados ao complexo do ego mas que, por várias razões, não o são. Poderíamos portanto dizer que a sombra é a parte obscura, a parte não vivida e reprimida da estrutura do ego, mas isso é só parcialmente verdadeiro. Jung criticava seus alunos quando estes se apegavam aos seus conceitos de maneira literal, fazendo deles um sistema, e quando o citavam sem saber exata-mente do que falavam. Numa discussão acabou por dizer: "Isto não tem sentido, a sombra é simplesmente todo o inconsciente". Acrescentou que tínhamos esquecido como essas coisas haviam sido descobertas e vividas pelo indivíduo e que sempre é preciso pensar na condição atual do paciente.

Se vocês tentarem explicar alguns processos não aparentes e inconscientes a alguém, que não conhece nada de psicologia e inicia uma análise, isto é a sombra para ele. Assim numa primeira etapa de abordagem do inconsciente, a sombra é simplesmente um nome "mitológico", aquilo que me diz respeito mas que não posso conhecer diretamente. Somente quando começamos a penetrar a esfera da sombra da personalidade, investigando seus diferentes aspectos, é que surge nos sonhos, depois de um certo tempo, uma personificação do inconsciente, do mesmo sexo que o sonhador. Mas depois o paciente descobrirá que ainda existe, nessa área desconhecida, um outro tipo de reação chamada anima (ou ânimus) representando sentimentos, estados de espírito, ideias etc. Abordaremos também o conceito do Self. Por razoes práticas, Jung não achou necessário se estender além destas três etapas.

Muitas pessoas permanecem num impasse quando o problema não é apenas questão de teoria, mas de prática. Integrar a anima ou o ânimus é uma obra de arte e ninguém pode se vangloriar de tê-lo conseguido. Por isso, quando falamos de sombra devemos ter bem explícita a situação pessoal do indivíduo em questão, inclusive seu nível específico de consciência e percepção interior. Assim, numa primeira fase, podemos dizer que a sombra é tudo aquilo que faz parte da pessoa mas que ela desconhece. Geralmente, quando investigamos a sombra, descobrimos que consiste em parte de elementos pessoais e em parte de elementos coletivos. Praticamente, nesse primeiro contato, a sombra é apenas um conglomerado de aspectos em que não conseguimos definir o que é pessoal e o que é coletivo.

Exemplificando, digamos que uma pessoa tem pais de diferentes temperamentos, dos quais herdou algumas características que, por assim dizer, não se misturam bem quimicamente. Por exemplo, uma vez tive uma ana-lisanda que herdou do pai um temperamento inflamável e brutal, e da mãe uma grande suscetibilidade. Como poderia ela ser as duas pessoas ao mesmo tempo? Se alguém a contrariasse ela se defrontava com duas reações opostas. Existem possibilidades opostas numa criança que não se harmonizam entre si. Geralmente, no decorrer de seu desenvolvimento, uma escolha é feita, de modo que um lado fica mais ou menos consolidado. Sempre escolhendo uma qualidade e preferindo uma determinada atividade em detrimento de outra, através da educação e dos hábitos, estas acabam se tornando uma "segunda natureza"; as outras qualidades continuam a existir, só que debaixo do pano. A sombra se constrói a partir dessas qualidades reprimidas, não aceitas ou não admitidas porque incompatíveis com as que foram escolhidas. É relativamente fácil reconhecer esses elementos e é isto que chamamos "tornar a sombra consciente", através de uma certa dose de insight, com a ajuda de sonhos e assim por diante — e é normalmente nesse ponto que a análise é interrompida. Mas isto não significa o término de um trabalho, pois daí vem um problema muito mais difícil, diante do qual a maioria das pessoas encontra grande dificuldade: elas sabem o que é a sua sombra mas não conseguem expressá-la ou integrá-la em suas vidas. Naturalmente a mudança não agrada às pessoas de seu meio, pois isto significa que elas também têm que se readaptar. Uma família ficaria simplesmente furiosa se um membro até então doce e cordato de repente se tornasse agressivo, dizendo Não às suas ordens. Isso conduz a muitas críticas e o ego da pessoa em questão também se ressente da situação. A integração da sombra poderá não dar certo e o problema chegará então a um impasse. É um ato de grande coragem enfrentar e aceitar uma qualidade que não nos é agradável, que se escolheu esconder por muitos anos. Mas se a pessoa decidir não aceitá-la, acabará sendo apanhada pelas costas. Uma parte do problema é enxergar e admitir a existência da sombra, constatar que alguma coisa aconteceu, que algo irrompeu; mas o grande problema ético surge quando se decide expressar a sombra consciente-mente. Isso requer grande cuidado e reflexão, para que não se produza uma reação perturbadora. Gostaria de lhes dar um exemplo disso.

Pessoas do tipo sentimento estão sempre prontas a serem cruéis e mesquinhas ao julgar seus amigos. Por um lado se sentem bem com as pessoas mas, por dentro e por trás, são capazes de ter pensamentos e julgamentos extremamente negativos a seu respeito. Outro dia eu estava num hotel com uma pessoa do tipo sentimento. Eu sou do tipo pensamento e acontece que estava com uma tremenda pressa quando a avistei, de modo que apenas a cumprimentei rapidamente. Daí ela achou que eu a odiava, que estava furiosa com ela e que não queria passar o dia em sua companhia, que eu era uma pessoa fria e insociável etc. De repente o tipo sentimento passou a ter pensamentos negativos, com toda uma explicação para o fato de eu tê-la cumprimentado apressadamente.

No estágio inicial a sombra é todo o inconsciente — um acúmulo de emoções, julgamentos e assim por diante. Vocês poderiam achar que minha amiga foi envolvida pelo pensamento negativo do ânimus — mas o que aconteceu realmente foi uma explosão de pensamentos negativos (neste caso a função inferior), emoção brutal (sombra) e alguns julgamentos destrutivos (neste caso o ânimus). Se estudarem essas explosões negativas, vocês poderão distinguir entre a figura que chamamos de sombra e a faculdade de julgamento que na mulher chamamos de ânimus. Depois de um certo tempo as pessoas descobrem essas qualidades negativas em si mesmas e conseguem não apenas vê-las mas expressá-las, o que significa abdicar de certas idealizações e padrões. Isso acarreta sérias considerações e uma boa dose de reflexão, caso a pessoa em questão não queira ter uma ação destrutiva sobre as coisas que a cercam. Então, visto que podemos descobrir nos sonhos elementos que parecem não ser pessoais, dizemos que a sombra consiste em parte de material pessoal e em parte de material impessoal e coletivo.

Todas as civilizações, mas especialmente a cristã, têm sua própria sombra. Esta é uma afirmação banal, mas se vocês estudarem outras civilizações verão em que ponto elas são melhores que a nossa. Na índia, por exemplo, as pessoas estão na nossa frente no que diz respeito ao desenvolvimento espiritual e filosófico em geral, mas seu comportamento social nos choca. Se andarem pelas ruas de Bengala, verão um grande número de pessoas obviamente morrendo de fome; elas estão in extremis e ninguém se importa com isso pois esse é o seu karma — cada um deve se preocupar consigo mesmo, com a sua própria salvação; importar-se com o outro significaria simplesmente entrar em considerações terrenas. Para nós europeus essa atitude social estraga tudo, pois é revoltante ver gente morrendo de fome e ignorar o fato. Chamaríamos a essa condição de sombra da civilização hindu; sua extroversão está abaixo do limite e sua introversão, acima. Poderia ser que o lado luminoso não tivesse consciência do lado sombrio, o que é óbvio para uma outra civilização.

Se alguém vivesse sozinho seria praticamente impossível perceber sua própria sombra, pois não haveria ninguém para lhe dizer qual seria a sua imagem. É preciso um espectador. Se levarmos em consideração a reação do espectador, poderemos falar da sombra de diferentes civilizações. Por exemplo, muitos orientais acham que nossa atitude coletiva é completamente inconsciente com relação a certos fatos metafísicos, e que ingenuamente nos deixamos levar por ilusões. É assim que eles nos vêem, mas não é assim que nos vemos. Devemos ter uma sombra de que ainda não nos demos conta, da qual não temos consciência; e a sombra coletiva é particularmente ruim porque cada um apoia o outro em sua cegueira — é somente nas guerras ou nos ódios entre nações que se revela algum aspecto da sombra coletiva.

Assim, podemos dizer que os europeus possuem algumas qualidades negativas ou incompatíveis que foram reprimidas pelo indivíduo, o qual por sua vez também leva consigo qualidades negativas do grupo ao qual pertence — qualidades de que geralmente não tomou consciência. A sombra coletiva também surge sob outra forma: quando em pequenos grupos ou sozinhos, certas qualidades nossas se reduzem, crescendo porém repentinamente quando estamos num grupo maior. Esse fenómeno compensatório típico ocorre com introvertidos retraídos que no fundo desejam ser brilhantes, um grande personagem no meio da multidão. Com o extrovertido ocorre o contrário. Quando sozinho o introvertido diz que não é ambicioso e que não se importa com isso, que não se envolverá em intrigas ambiciosas, que realmente será ele mesmo, satisfeito com sua introversão. Basta introduzi-lo numa multidão onde haja extrovertidos ambiciosos e rapidamente ele estará contaminado pela infecção. Isso é comparável à situação de uma mulher que corre a uma loja para comprar alguma coisa barata e outras mulheres vão correndo atrás dela e compram a mesma coisa; ao chegarem em casa se perguntam, surpresas: "mas, afinal de contas, por que comprei isto?"

Se alguém só sente ambição quando está em grupo, podemos dizer que aí se trata de sombra coletiva. Às vezes você se sente bem, interiormente, mas ao entrar num grupo onde o diabo está solto, fica meio perturbado, como aconteceu com alguns alemães quando iam aos encontros do partido nazista. Refletindo em casa eles poderiam ser anti-nazistas, mas nesses encontros alguma coisa se acendia e eles ficavam, como alguém comentou, "como que possuídos pelo demónio". Temporariamente eles foram dominados mais pela sombra coletiva do que pela pessoal.

O mal coletivo é ainda personalizado nos sistemas religiosos através da crença nos espíritos das trevas e demónios do mal. Uma pessoa da Idade Média voltando do tal encontro diria que tinha sido possuída pelo demónio e que agora estava livre novamente. O próprio diabo exemplifica tal personificação da sombra coletiva. Por outro lado, podemos dizer que se os demónios cole-tivos nos afetam, é porque devemos ter algo deles em nós — caso contrário não nos afetariam e a porta de nossa psique não estaria aberta à sua entrada. Quando partes de nossa sombra pessoal não estão suficientemente integradas, a sombra coletiva pode passar furtivamente por essa porta. Conseqiientemente devemos estar conscientes da existência desses dois aspectos, porque este é um problema ético e prático capaz de causar enormes danos.

Suponhamos que um analisando se comporte de maneira ultrajante em grupo. Se tentarmos fazê-lo ver que a culpa foi sua, ele se sentirá oprimido e objetiva-mente isso não seria correto, pois em parte aí se encontra a sombra coletiva. Além disso, ele teria um grande sentimento de culpa. Existe uma espécie de norma interior secreta, a respeito de quanto um ser humano pode suportar a sombra. Não é saudável ignorá-la nem absorvê-la demais. Uma dose excessiva impede que a pessoa funcione psicologicamente. Quando alguém tem a consciência pesada, deve então considerar um pouco mais a própria sombra; mas o pior é que geralmente não se distingue a própria consciência que fica embaçada quando se olha para a sombra muito de perto — e este é um problema muito sutil.

Estou me referindo a estes aspectos a fim de esclarecer o fato de que existe um aspecto individual e outro coletivo na sombra, a sombra do grupo. De certa forma, esta última consistiria na soma de todas as sombras individuais e seria algo que não perturba o grupo, sendo visível somente a grupos externos. Em outras palavras, se reunirmos três ou quatro intelectuais típicos, com os mesmos interesses, eles dirão que passaram uma noite maravilhosa em discussões intelectuais, sem no entanto perceberem que entre si o contato humano foi ruim; mas um simples camponês ali presente diria que a reunião foi horrível. Quando todos têm o mesmo problema, tudo parece maravilhoso! Provavelmente nós, europeus, possuímos muitas características que nos passam despercebidas, pois para nós, elas são normais. Este é o nível normal de consciência em indivíduos e também em grupos.

Eu gostaria de corrigir um ponto. Mais acima disse que somente quando um grupo agride outro é que percebe sua sombra; mas não fui totalmente exata, pois em muitas civilizações há rituais religiosos que visam precisamente tornar o grupo consciente de sua própria sombra. Em nossa civilização cristã isto corresponderia à missa negra, onde se blasfema o nome de Cristo, se beija o ânus de um animal em nome do demónio e assim por diante; o que importa é que se faz exatamente o contrário do que se considera sagrado. Esses festivais anti-religiosos morreram e tendem a ser esquecidos, mas foram uma tentativa de mostrar a sombra ao povo. Em muitas civilizações primitivas existem bufões que exercem a função de realizar as regras do grupo ao contrário. Riem quando deveriam ficar sérios, choram quando os outros riem etc. Por exemplo, em certas tribos da América do Norte, uma pessoa é eleita para realizar de forma ritualística o oposto do estabelecido pelas regras sociais do grupo. Provavelmente, a ideia é que há outro lado que também deve ser reconhecido. Trata-se de um festival de catarse da sombra. Se alguém desejar conhecer um remanescente genuíno desses rituais na Suíça, basta ir até Basileia na época do Carnaval (embora atualmente a atmosfera seja perturbada pela presença de muitos estranhos) e então verá como um grupo mostra a sombra coletiva de uma forma genuína e bonita. No exército suíço fala-se do mascote da companhia, alguém inconscientemente escolhido para ser o bo-de-expiatório, geralmente um homem com uma estrutura de ego fraca compelido a se comportar como sombra do grupo. Tal situação pode produzir trágicos resultados. Encontramos o mesmo esquema na família, onde a ovelha negra é forçada a carregar a sombra dos outros.

Agora podemos examinar um problema correlato: o que os contos de fada representam, ou deixam de representar, e em que medida podemos encará-los como material psicológico? Para compreendermos isso devemos nos perguntar qual é a provável origem dos contos de fada, e qual a sua função em nossa civilização. Como o Instituto Jung é uma escola, somos infelizmente obrigados a repetir certos princípios fundamentais. É como ligar a vitrola — de modo que me desculpem se agora eu lhes apresentar apenas uma rápida visão do problema.

Antigamente, até mais ou menos o século XVII, os contos de fada não eram destinados apenas às crianças, mas também a adultos das classes mais baixas da população como lenhadores e camponeses, divertindo-se as mulheres a ouvi-los enquanto fiavam. Havia inclusive (e ainda podemos encontrá-los em algumas vilas na Suíça), narradores profissionais de contos de fada, sempre solicitados a repetidamente narrar contos de fada. Esses narradores às vezes são pouco inteligentes, meio desequilibrados e neuróticos; mas também podem ser particularmente saudáveis e normais — enfim, há de tudo. Se você lhes perguntar por que narram contos de fada, alguns dirão que herdaram essa função, outros que aprenderam com a cozinheira, ou que é uma tradição que passa de pessoa a pessoa. Sabemos agora que existem contos de fada do tipo coletivo e que são passados de uma geração a outra como nas antigas tradições — é uma espécie de sabedoria popular. As teorias a respeito da origem dos contos de fada variam bastante: algumas dizem que são remanescentes degenerados de mitos e doutrinas religiosas, outras afirmam que eles provêm de uma parte degenerada da literatura. Já se disse também que eles são uma espécie de sonho, mais tarde contados como estórias. A meu ver, sua origem pode ser percebida através do seguinte exemplo típico.

Numa família suíça existia, na época de Napoleão, uma crónica familiar dizendo que um dia o moleiro foi caçar uma raposa e de repente ela começou a falar: pedia ao moleiro que não a matasse, pois ela o tinha ajudado em seu trabalho no moinho. Quando ele voltou para casa encontrou seu moinho girando sozinho. Pouco tempo depois o moleiro morreu. Recentemente, um estudante de folclore foi a essa vila, e lá perguntou aos mais idosos se conheciam alguma coisa a respeito do moleiro, recolhendo várias versões da antiga estória. Um dos velhos deu a mesma versão mas disse que depois a raposa correu por entre as pernas do moleiro, o que lhe provocou uma infecção fatal na pele. Assim, nessa parte do país, supõe-se que a raposa cause esse tipo de doença. Portanto um elemento novo foi acrescentado à estória original. Outra variação dizia que o moleiro foi a uma festa, e lá seu copo de vinho quebrou, e daí ficou sabendo que a raposa era a alma-bruxa de uma tia morta. (Dizem que as almas das raposas são almas de bruxas). A estória se ampliou, sendo-lhe acrescentado material ar-quetípico, exatamente como acontece nas fofocas.

Assim, podemos perceber como se origina uma estória: existe sempre um núcleo que se forma a partir de experiências parapsicológicas ou sonhos. Se ela contém um assunto que existe na vizinhança, a tendência é de ocorrer uma amplificação. Temos agora a estória de um moleiro perseguido por uma antiga bruxa, que ele quase matou e que depois o mata. Essa estória ainda não é um conto de fada, apenas o início. O nome do moleiro permaneceu inalterado. Mas suponhamos que a cozinheira da aldeia vá a uma outra aldeia contar essa estória: provavelmente o moleiro teria outro nome ou seria apenas chamado de o moleiro. Todos os elementos que não interessam a essa aldeia cairão fora, permanecendo na memória somente o que for arquetípico. Sempre me surpreendo com o fato de que posso me lembrar melhor do material arquetípico do que de outras coisas — ele sempre deixa uma impressão eterna, de modo que é sempre lembrado. Um jovem professor fez uma experiência a esse respeito. Contou duas estórias, sendo que somente uma continha elementos mitológicos, e fez com que seus alunos redigissem ambas, três dias depois. É óbvio que o conto mitológico foi lembrado, com maior precisão.

Enquanto certos níveis da população não possuíam rádio nem jornal, seu grande interesse consistia nas estórias — e assim podemos ver como se origina um mito. Acredito que é assim que surgem os contos de fada. Entretanto, não afasto a teoria de que às vezes existem remanescentes de literatura degenerada. Por exemplo, vocês podem encontrar o mito de Hércules diluído em uma estória na Grécia de hoje. Ele foi reduzido a uma estrutura básica, permanecendo seu material arquetípico, e são esses elementos de formas religiosas do passado que reaparecem no material do conto de fada. Elementos diferentes aparecem juntos e as estórias são contadas porque ainda são interessantes e excitantes, mesmo se não compreendidas. O fato de que agora estejam relegadas às crianças revela uma atitude típica — que eu diria define nossa civilização — segundo a qual o material arquetípico é encarado como algo infantil. Se essa teoria a respeito de sua origem é verdadeira, os contos de fada refletem a estrutura psicológica elementar do homem muito mais do que os mitos e as produções literárias. Como certa vez disse Jung, quando estudamos os contos de fada podemos estudar a anatomia do homem. Em geral, o mito está mais inserido na civilização. Não se pode conceber a Épica de Gilgamesh separada da civilização Babilônico-Sumeriana, ou a Odisseia longe da Grécia. O conto de fada, porém, pode migrar melhor, pois é tão elementar e tão reduzido aos seus elementos estruturais básicos que faz sentido para qualquer um. Certa vez, um missionário foi enviado a uma das Ilhas da Po-linésia e o primeiro contato que conseguiu foi através de um conto de fada, o laço comum. Entretanto isso é verdade somente cum grano salis.

Tendo estudado contos de fada por um bom período, cheguei à conclusão de que existem típicas ramificações europeias e africanas de contos de fada, e embora possa me enganar com a troca de nomes de tais contos, é ainda bem visível o parentesco entre eles. De certa forma os contos de fada são também influenciados pela civilização em que surgiram, mas muito menos que os mitos, devido à sua estrutura mais elementar. Pesquisadores do comportamento animal têm observado que certos rituais na vida animal contêm elementos estruturais básicos. Todas as espécies de patos realizam uma certa dança antes de se acasalarem, que consiste em certos movimentos da cabeça e das asas e em outros pequenos movimentos: é a forma ritual do macho cortejar a fêmea. Os behavioristas acharam que esse ritual tinha a ver com os genes e assim cruzaram diferentes espécies de patos, criando uma nova espécie e observando seu comportamento. Descobriram que algumas vezes a antiga dança ritual era aceita mesmo não sendo característica de nenhuma das espécies cruzadas, ou que a dança de um dos parceiros se repetia de forma reduzida, ou que havia uma combinação de duas formas. Certos elementos estruturais na dança do macho estavam sempre presentes, enquanto outros variavam.

Se aplicarmos isto ao homem, podemos dizer que há certas estruturas básicas do comportamento psicológico que pertencem à espécie humana em geral e outras mais desenvolvidas em um grupo ou raça e menos predominantes em outros. Os contos de fada têm uma estrutura que reflete os traços humanos mais gerais. Desempenham um grande papel porque através deles podemos estudar as mais básicas estruturas de comportamento. Mas para mim há também uma razão prática: através do estudo de contos de fada e mitos podemos vir a conhecer certos complexos estruturais, tornando-nos mais capazes de distinguir entre o que é e o que não é individual, e ver as possíveis soluções. Por exemplo, se estudarmos o mito do complexo materno, ou seja, a relação afetiva e o comportamento instintivo do menino com sua mãe, e todas as consequências psicológicas dessa relação refletidas nos mitos, poderemos distinguir características típicas. O menino procura desenvolver características do herói, mais precisamente as do rapaz de tipo femíneo como Átis, Adónis ou Baldur, que morre jovem e tende a recusar a vida, especialmente em seu lado sombrio. Segundo esses mitos, o jovem herói que amava a mãe era morto por uma figura masculina ctôni-ca, e isto significa que o momento crucial para o jovem nessa situação é o momento em que ele ou é psicologicamente morto por um javali ou, recusando-se a aceitar a sua sombra, provavelmente — se o caso se verifica nos dias de hoje — se torna piloto e morre num acidente, ou vai para as montanhas e cai.

Se vocês estiverem seguindo um caso em análise no qual o mito não aparece, no qual os sonhos são pessoais, provavelmente poderão reconhecer aspectos mitológicos nas figuras que aparecem nos sonhos desse tipo de jovem: por exemplo, no amigo que lembra Marte, ou no javali. Estas figuras poderão ter um nome pessoal mas vocês perceberão o modelo básico, sua possível solução e desenvolvimento — se conhecerem o mito. Vocês não devem proclamá-lo, pois isso seria impor uma ideia mitológica; mas terão uma melhor compreensão do caso. Naturalmente ainda somos influenciados pelo pensamento mitológico quando lidamos com essa sombra masculina obscura do analisando. Podemos talvez contar o mito, dizendo que isto lembra o mito de Átis-Adônis, e assim trazer à tona a solução. Tal pessoa sentirá então que seu problema não é exclusivo e insolúvel, mas que já foi resolvido mil vezes de uma certa forma; isso inclusive diminui a pretensão, da pessoa, pois ela sentirá que faz parte de uma situação geral e que sua neurose não é única. O mito também tem um impacto mágico nos níveis que não podem ser alcançados por uma conversa intelectual; ele provoca a sensação de déjà entendu e não obstante é sempre novo e estimulante.

O exame da sombra nos contos de fada deve portanto focalizar não a sombra pessoal mas a sombra co-letiva e grupai. Assim podemos estabelecer apenas uma visão geral do caminho que a sombra percorre — e só isto, para mim, já é muito válido. As pessoas tendem a pensar no meu ego e não percebem que nós consideramos o ego também uma estrutura geral e um arquétipo. É um arquétipo, no sentido de que se baseia numa disposição inata para desenvolver um ego e produzir certos tipos de reações e representações. Pode-se dizer que na maioria das civilizações, em toda parte e em diferentes graus, existe esta tendência a desenvolver um complexo do ego: o que é conhecido como "eu" é uma estrutura geral humana inata. Nas primeiras fases da infância muita energia é gasta na construção do complexo do ego; havendo perturbações no meio ambiente, o processo se altera e esse impulso, entre outras coisas, pode causar um extremo egoísmo. Essa tendência inata seria o aspecto não pessoal do complexo, mas há também outra tendência inata, ainda que menos forte, para se separar do ego; é essa cisão que concede um aspecto arquétipo à figura da sombra. Somente essas estruturas gerais se refletem nos contos de fada, podendo ser influenciadas pelas civilizações nas quais os contos se originam.
–––––––––
continua…

Fonte:
Marie-Louise Von Franz. A sombra e o mal nos contos de fada. [tradução Maria Christina Penteado Kujawski]. São Paulo : Paulus, 1985. Disponível em http://groups.google.com/group/digitalsource

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Alvarenga Peixoto (Caderno de Sonetos)


A MARIA IFIGÊNIA

 Em 1786, quando completava sete anos.

 Amada filha, é já chegado o dia,
 em que a luz da razão, qual tocha acesa
 vem conduzir a simples natureza,
 é hoje que o teu mundo principia.

 A mão que te gerou teus passos guia,
 despreza ofertas de uma vã beleza,
 e sacrifica as honras e a riqueza
 às santas leis do filho de Maria.

 Estampa na tua alma a caridade,
 que amar a Deus, amar aos semelhantes,
 são eternos preceitos da verdade.

 Tudo o mais são idéias delirantes;
 procura ser feliz na eternidade,
 que o mundo são brevíssimos instantes.

"AO MUNDO ESCONDE O SOL SEUS RESPLENDORES"

Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
 e a mão da Noite embrulha os horizontes;
 não cantam aves, não murmuram fontes,
 não fala Pã na boca dos pastores.

 Atam as Ninfas, em lugar de flores,
 mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
 erram chorando nos desertos montes,
 sem arcos, sem aljavas, os Amores.

 Vênus, Palas e as filhas da Memória,
 deixando os grandes templos esquecidos,
 não se lembram de altares nem de glória.

 Andam os elementos confundidos:
 ah, Jônia, Jônia, dia de vitória
 sempre o mais triste foi para os vencidos!

"EU VI A LINDA JÔNIA E, NAMORADO"

Eu vi a linda Jônia e, namorado,
 fiz logo voto eterno de querê-la;
 mas vi depois a Nise, e é tão bela,
 que merece igualmente o meu cuidado.

 A qual escolherei, se, neste estado,
 eu não sei distinguir esta daquela?
 Se Nise agora vir, morro por ela,
 se Jônia vir aqui, vivo abrasado.

 Mas ah! que esta me despreza, amante,
 pois sabe que estou preso em outros braços,
 e aquela me não quer, por inconstante.

 Vem, Cupido, soltar-me destes laços:
 ou faze destes dois um só semblante,
 ou divide o meu peito em dois pedaços!

"EU NÃO LASTIMO O PRÓXIMO PERIGO"

Eu não lastimo o próximo perigo,
 Uma escura prisão, estreita e forte;
 Lastimo os caros filhos, a consorte,
 A perda irreparável de um amigo. 

 A prisão não lastimo, outra vez digo, 
 nem o ver iminente o duro corte, 
 que é ventura também achar a morte 
 quando a vida só serve de castigo. 

 Ah, quão depressa então acabar vira 
 este enredo, este sonho, esta quimera, 
 que passa por verdade e é mentira! 

 Se filhos, se consorte não tivera 
 e do amigo as virtudes possuíra, 
 um momento de vida eu não quisera.

"NÃO ME AFLIGE DO POTRO A VIVA QUINA"

Não me aflige do potro a viva quina;
 Da férrea maça o golpe não me ofende;
 Sobre as chamas a mão se não estende;
 Não sofro do agulhete a ponta fina. 

 Grilhão pesado os passos não domina;
 Cruel arrocho a testa me não fende;
 À força perna ou braço se não rende;
 Longa cadeia o colo não me inclina. 

 Água e pomo faminto não procuro;
 Grossa pedra não cansa a humanidade;
 A pássaro voraz eu não aturo. 

 Estes males não sinto, é bem verdade;
 Porém sinto outro mal inda mais duro:
 Da consorte e dos filhos a saudade!

Fonte:
www.sonetos.com.br

Alvarenga Peixoto (1744 -1793)


Inácio José Alvarenga Peixoto (Rio de Janeiro 1744 – Ambaca, Angola 1793), foi filho de Simão Alvarenga Braga e Maria A. Braga. 

Estudou no Colégio dos Jesuítas no Rio de Janeiro, tendo se transferido para Portugal, onde obteve o Bacharelato, com louvor, em Direito na Universidade de Coimbra. Aí conheceu o poeta Basílio da Gama (São José do Rio das Mortes, atual Tiradentes - MG 1740 – Lisboa, Portugal 1795) de quem se tornou um grande amigo. 

Exerceu o cargo de Juiz de Fora da Vila de Sintra em Portugal, bem como a de Senador pela cidade mineira de São João Del-Rei. 

Também exerceu o cargo de Ouvidor da comarca de Rio das Mortes. Alvarenga, por esse tempo, se dedicou à agricultura e à mineração. 

O poeta tinha um caráter entusiasta e generoso, mas, ao mesmo tempo era ambicioso e perdulário. Com isso conquistou amigos, inimigos e muitas dívidas. Foi amigo dos poderosos da época e partilhava com os demais intelectuais de seu tempo idéias libertárias advindas do Iluminismo. Por fim, pressionado pelas dívidas e pelos altos impostos, acabou se envolvendo na Inconfidência Mineira. 

A temática amorosa era uma das vertentes da poesia de Alvarenga Peixoto que era casado com a poeta Bárbara Heliodora (São João Del-Rei, MG 1758 – São Gonçalo do Sapucaí 1819). 

Alvarenga era amigo dos poetas Cláudio Manoel da Costa (Ribeirão do Carmo, atual Mariana, MG 1729 – Vila Rica, atual Ouro Preto 1789) e Tomás Antônio Gonzaga (Porto, Portugal 1744 – Maputo, Moçambique 1810). 

Em seus poemas é fácil perceber uma postura crítica quanto à sociedade da época. Entre os poetas árcades, Alvarenga foi o que mais se envolveu na Conjuração. Sua diminuta obra foi recolhida por Rodrigues Lapa e apresenta alguns dos sonetos mais bem acabados do arcadismo brasileiro. 

O poeta frequentava constantemente Vila Rica. Denunciado como participante da trama foi deportado para Angola onde veio a falecer.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Inácio_José_de_Alvarenga_Peixoto
http://www.recantodasletras.com.br/biografias/36161

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 570)


Uma Trova de Ademar  

Em inspirações imerso, 
fiz do sol o próprio guia 
para conduzir meu verso 
nos caminhos da poesia! 
–ADEMAR MACEDO/RN– 

Uma Trova Nacional  

Ausência é pena doída, 
vazio amargo e medonho. 
É o findar da própria vida 
no acordar de um lindo sonho. 
–ELIANA PALMA/PR– 

Uma Trova Potiguar  

Nas asas de um vento brando, 
na espuma branca do mar... 
as ondas chegam cantando, 
trazendo o sal potiguar! 
–PROF. GARCIA/RN– 

Uma Trova Premiada  

2011 > CTS-Caicó/RN 
Tema > PEGADA > 10º Lugar 

Olhando as velhas estradas 
por onde andei nos teus braços, 
eu vejo em tuas pegadas 
o raio-x dos meus passos! 
–ARLINDO TADEU HAGEN/MG– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Desde minha mocidade 
que a saudade me ronda; 
pra me livrar da saudade 
não sei onde me esconda. 
–CHICO MOTA/RN– 

Uma Poesia  

Não queria que tudo terminasse
entre nós desta forma e desse jeito,
nosso elo com o tempo foi desfeito
pus um ponto final no nosso enlace;
foi você que lançou na minha face
o veneno mortal da ingratidão,
paralítico eu fiquei sem reação
até hoje eu me lembro desse dia;
os garranchos da sua covardia
arranharam demais meu coração. 
–JUNIOR ADELINO/PB– 

Soneto do Dia  

Por Que? 
–DIVENEI BOSELI/SP–

Homem, que te deitaste, ousado, em minha cama
e comigo fizeste os filhos que tivemos,
como é comum ao ser que vive, luta e ama
e mostra a todo mundo a farsa que vivemos;

homem, que me envolveste em ardilosa trama,
comigo tripudiaste e, em brigas, nos batemos,
como é comum a quem faz da comédia o drama
e vai expor na feira os sonhos que vendemos;

a quem eu escrevi meu verso mais amargo,
por quem cedo verti a lágrima mais linda
e tarde desprezei, audaz, com gesto largo;

se até já te esqueci, se a nossa trilha é finda,
por que te escrevo agora estes versos de embargo?
Se não te quero mais, por que te escrevo ainda?...

Calendário de Festas de Concursos de Trovas- 2012


15, 16 e 17 de junho
Jogos Florais de Curitiba

23 de junho
Concurso de Maranguape

21 e 22 de julho
Concursos de São Paulo

11 a 14 de outubro
Natal e Caicó

27 de outubro
Jogos Florais de Cantagalo

26, 27 e 28 de outubro
Ouro Fino

24 e 25 de novembro
Jogos Florais de Niterói

Fonte:
Calêndula Literária. UBT Porto Alegre. Edição nº 408 - Junho de 2012.

terça-feira, 5 de junho de 2012

José Feldman (Saudades de um Amigo)



Meu amigo 

Hoje é 5 de junho de 2012. Já se faz 1 ano e 11 meses que nos deixou. Este ano farias 12 anos de idade. 

A saudade que deixaste é uma cratera imensa que nunca vai se fechar. A vida de nós humanos, não é uma vida, mas são momentos que morrem pouco a pouco e vai mitigando nossa alma. As vezes, quando escuto latidos no meio da noite, penso que é você que retornou e apesar do frio, procuro você na escuridão da noite. Queria poder tocar em você novamente e poder sentir seu pêlo entre os dedos. Estás agora livre, a correr pelas planícies do paraíso. Feliz estou em saber de que és uma alma livre. Não sei como é o lugar onde estás, mas desejo que a benção da luz esteja contigo onde estiver, a luz exterior e a luz interior. E se houver um sol, e mereces muito mesmo que haja, que a santa luz do sol brilhe sobre ti, e aqueça teu coração até que ele resplandeça como um grande fogo e se houver alguém necessitado, possa vir e nele se aquecer, como um amigo que sempre fostes.

Que a luz brilhe de dentro de teus olhos, como candeia colocada na janela de uma casa, oferecendo ao peregrino um refugio na tormenta.

E se houver chuva, que a benção da chuva, da chuva suave e boa, seja contigo. Que ela tombe sobre tua alma para que as pequenas flores todas possam surgir e derramar suavidade na brisa.

Que a benção das grandes chuvas seja contigo, caindo em tua alma para lavá-la bem lavada, nela deixando muitas poças reluzentes onde o azul do céu possa brilhar e, às vezes, uma estrela.

E que a benção da terra, da grande terra redonda, seja contigo. Que sempre tenhas uma saudação amiga aos que passam por ti ao longo dos caminhos.

Que a terra seja macia debaixo de ti onde repousas, e, leve, ela descanse sobre ti por estar deitado nela. E que seja um tapete de flores que sirva de conforto para você.

Que a tua alma que tão cedo se libertou de seu peso, livre e leve, esteja junto de Deus, que seja sempre abençoada.

Obrigado pela sua amizade, meu amigo. Seja luz!!!!
Saudades, muitas, muitas, muitas saudades

Trova 220 - Marcley de Aquino (Fortaleza/CE)


Mário Quintana (Presença)


É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.

Renato Russo (A Carta)


Escrevo-te estas mal traçadas linhas, meu amor
Porque veio a saudade visitar meu coração
Espero que desculpes os meus erros por favor
Nas frases desta carta 
que é uma prova de afeição
Talvez tu não a leias mas quem sabe até darás
Resposta imediata me chamando de meu bem
Porém o que me importa
é confessar-te uma vez mais
Não sei amar na vida mais ninguém

Tanto tempo faz,
que li no teu olhar
A vida cor-de-rosa que eu sonhava
E guardo a impressão
de que já vi passar
Um ano sem te ver,
um ano sem te amar
Ao me apaixonar,
por ti não reparei
Que tu tivestes só entusiasmo
E para terminar, amor assinarei
Do sempre, sempre teu...

Pablo Neruda (Saudade)



Saudade é solidão acompanhada, 
é quando o amor ainda não foi embora, 
mas o amado já... 

Saudade é amar um passado que ainda não passou, 
é recusar um presente que nos machuca, 
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais... 

Saudade é o inferno dos que perderam, 
é a dor dos que ficaram para trás, 
é o gosto de morte na boca dos que continuam... 

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade: 
aquela que nunca amou. 

E esse é o maior dos sofrimentos: 
não ter por quem sentir saudades, 
passar pela vida e não viver. 

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

Carlos Drummond de Andrade (A Um Ausente)


Tenho razão de sentir saudade,

tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.



Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?



Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.



Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste

Olivaldo Junior (Saudades)



Tenho saudade. Saudade das estrelas que eu contava no seu rosto, das estradas que eu contava no seu passo, dos passeios que eu fazia nos meus sonhos. Sonhar é bom até que chegue a solidão, que também se chama amor. Amor é uma bela poesia que não foi escrita. Poema é amor consumido, sumido em si mesmo. O amor que eu tinha me estafa. Um dia o amor me mata e eu viro flor: saudade sua. 

Olivaldo 

Trovas 
Saudade

A saudade é um velho jeito
de entender meu coração:
quando bate em tom perfeito
não tem som: tem solidão.

A saudade é um chinelinho
que se arrasta na memória,
despertando o meu vizinho
para ouvir a minha história.

A saudade é um pé de cravo
num jardim que já morreu:
jardineiro é mesmo escravo
das "roseiras" que perdeu.

Fonte:
O Autor

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 569)


Uma Trova de Ademar  

Com insônia... Apaixonado, 
sinto-me feliz porque... 
Passando a noite acordado 
eu penso mais em você! 
–ADEMAR MACEDO/RN– 

Uma Trova Nacional  

Orvalho, brilho de prata 
sob a densa luz da lua, 
que em solene passeata 
faz espelho em minha rua... 
–MARIA DE LOURDES PAIVA/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Quando me perco na rota 
dos pensamentos dispersos, 
reagrupo minha frota 
numa enseada de versos. 
–HÉLIO PEDRO/RN– 

Uma Trova Premiada  

1995 > UBT-São Paulo/SP 
Tema > CHEGADA > Venc. 

Na vida, vindas e idas,
contrastes de nossa sorte,
chegada lembrando a vida,
partida lembrando a morte!
–JAIME PINA DA SILVEIRA/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

A saudade em horas mortas, 
sem ver que o tempo passou, 
teima em abrir velhas portas 
que há muito a vida fechou ... 
–WALDIR NEVES/RJ– 

Uma Poesia  

É de noite na hora da dormida
que a saudade cruel perturba o sono,
não importa o motivo do abandono
pois todos nos levam a despedida,
é lembrando o momento da partida
que a saudade chegando rouba a paz;
e essa dor que nos toma é tão vorás,
quanto mais passa o tempo aumenta o drama;
é distante de alguém que a gente ama
que o amor verdadeiro aumenta mais. 
–WELTON MELO/PE– 

Soneto do Dia  

Ser Poeta. 
–MARCOS MAIA/RN– 

Ser poeta é fazer da vida um verso,
é caçar seus amores do seu jeito.
É enxergar que o amor não tem defeito 
e pintar de outra cor todo o universo. 

Ser poeta é viver o adverso
sem fingir, sem fugir, sem preconceitos.
É lutar por seus sonhos, seus conceitos,
não calar, não viver no submerso. 

Ser poeta é ficar em outra esfera,
é cumprir o papel que lhe espera
e gravar em poesia o sentimento. 

É um anjo de paz, um sonhador
que no solo da vida planta o amor
pra o leitor consumir como alimento.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Wagner Marques Lopes (Trova Rio +20) 1


Sotero Silveira de Souza (O Trovador da Lira Triste) Parte 3, final


Dizem que a paixão é louca,
E os beijos de ternura,
Como o amor, tem vida pouca,
É eterno enquanto dura!

Os teus seios palpitantes,
Que afago com calor,
São dois coxins odorantes,
Onde durmo com amor!

As aves de grande porte,
Adejam sem sobressalto,
Se elas temessem a morte,
Não voariam tão alto!

Sempre a alma padece,
Quando no amor não há sorte;
tolice, ninguém merece,
O preço de nossa morte!

Agradeço o teu beijo,
Que me deste com calor,
Veio matar o meu desejo,
E aumentar meu amor!

Quisera ser passarinho,
Para bem alto voar,
Depois, pousar no raminho,
De laranjeira e cantar!

O teu corpo delicado,
Que demonstra perfeição,
Foi por Deus emoldurado,
Pra tentar meu coração!

Perdi-me no areal da vida,
Fraco, sedento de amor,
E ao encontrar-te querida,
Tornei-me um trovador!

Eu vi as garças voando,
Caçando junto à lagoa,
O pantanal enfeitando,
Sobressaltadas à toa!

Não sei dizer o que sinto,
Quando vejo o teu olhar,
É uma alegria, não minto,
Que vontade de casar!

Não sei porque tu me deixas,
Com orgulho, com desdém,
Escuta as minhas queixas,
Voltes de novo meu bem!

Diz que o passado não morre,
E não para de passar,
É como o rio que corre,
Tristonho, no rumo do mar!

Setenta e um anos vividos,
Com fé, saudade e amor,
Entre anseios, beijos e gemidos;
Hoje, só, frio, sem calor!

Por que a vida madrasta,
Quando se trata de amor;
O ciúme atroz nos desgasta,
Só fica tristeza de cor!

Para uns a morte é linda,
Para outras é querida,
É uma espera infinda,
pois ela é outra vida!

Recordo-me da cigana,
Que olhou na minha mão,
Olhei-a com tanta gana,
Beijando-a com emoção!

Como Deus, Jesus foi Santo,
sendo assim, jamais pecou;
Como homem, eu garanto,
Que Jesus também amou!

Jesus deve ter amado,
Com mente pura e sadia,
Como um lírio imaculado,
Na virente penedia!

Teus olhos verdes, luzentes,
Que jorram cintilação,
São quais estrelas cadentes,
Na noite de um coração!

Teus olhos verdes vagos,
Que às vezes tento mirar,
Tem o mistério dos lagos,
Na hora de crepuscular!

Teus olhos verdes, fulgentes,
Brilhando na solidão,
São esmeraldas pingentes,
Num rico colar de sultão!

Teus olhos verdes tristonhos,
Que nunca pude sondar,
São dois pedaços de sonhos,
São duas negas de mar!

Não vires as costas pra mim,
Pois o anjo não tem costas,
Quanto mais tu fazes assim,
Eu sei que de mim mais gostas!

Abracei teu corpo lindo,
Quando contigo dançava,
E vi, que estavas sorrindo,
Enquanto eu suspirava!

Eu sei que não mereço,
Mas vou tentar te amar,
Querida, eu te agradeço,
A bondade do teu olhar!

Feliz por te conhecer,
nasceu em mim esperança,
Jamais hei de me esquecer
Do teu corpo naquela dança!

Toda de branco catita,
Com rosa de rubra cor;
Não sei quem é mais bonita,
Se a mulher ou a flor!

Te implorei a vida inteira,
Que me desses um retrato,
Foste bela companheira,
Mas de coração ingrato!

A mãe que trabalha é nobre,
É um fato que consola;
Digna é a mão do pobre,
Aberta, pedindo esmola!

Há muita gente vaidosa,
Que o orgulho se consome;
Chega a sorrir prazerosa,
Vendo o pobre passar fome!

Teu rosto lindo, morena,
E o teu corpo encantador,
Faz-me lembrar de açucena,
Num ramalhete de flor!

Ao ver-te altiva, serena,
Com teu talhe sedutor,
Penso da deusa morena,
Fugida do templo do amor!

O preto velho chorava,
E sorria com emoção,
Ao ver que o neto brincava,
Liberto da escravidão!

É belo assistir nos campos,
A noite amena chegar,
A dança dos pirilampos,
Estrelas mil a brilhar!

Quando passo pela estrada,
Descanso, à sombra do ipê,
Com sua copa dourada,
Que me viu beijar você!

É triste de ouvir na roça,
A pomba rola arrulhar,
No colmo de uma palhoça,
Quando a noite vai chegar!

Mirando o tom azulado,
Dos tão lindos olhos teus,
O céu é mais desbotado,
Que obra prima de Deus!

Que importa se a rima é pobre,
Se o nome termina em ão;
Existe coisa mais nobre,
Que a palavra do coração!

Quando passa o cavaleiro,
Nas picadas do sertão,
O burro trota ligeiro,
Sem medo da escuridão!