domingo, 12 de agosto de 2012

Lila Ripoll (Poemas Escolhidos)

Fita Verde

Prendi uma fita bem verde
nos meus cabelos escuros.
Fiquei quase uma menina
capaz de subir nos muros.

Troquei de alma e de idade
e brinquei entre as crianças.
Meus pesares voaram longe...
e as minhas desesperanças.

Na roda da "Cirandinha"
ninguém cantou como eu.
Cantei, cantei todo o dia
até que o sol se escondeu.

E veio a noite e o cansaço
e nós fomos descansar:
as crianças de verdade
e eu que brinquei de enganar.
(...)

Publicado no livro Céu Vazio: poesia (1941).

Neve

A neve desce
fria e fina.
A neve cresce
e há neblina.

Neva na rua,
neva em meu peito.
Cai neve da lua
no mar,
e em meu leito.

A neve gela
meu pensamento.
Cai neve, neve
nos fios do vento.

A neve desce
pelo meu leito.
A neve cresce
sobre meu peito.

Cai neve, neve
cai e se adensa.
Cai neve, leve,
sobre quem pensa.

Publicado no livro Poemas e Canções (1957)

Retrato

Clara manhã de inverno.
Na rua longa e fria
procuro ansiosamente
um número, uma casa.

(...)

Aguardo a professora,
aguardo e penso,
no agasalho do ambiente de silêncio.
E detenho meus olhos surpreendidos
no retrato maior que a sala guarda.

Reconheço a figura, a fronte ampla,
o olhar audaz e manso ao mesmo tempo.
É ele sim, é o grande Cavaleiro,
Cavaleiro de muitas esperanças.

Que faz ali? Que faz ali? pergunto.
Por que naquela casa silenciosa
tranquilamente antiga e acolhedora,
o retrato de Prestes na parede
sobressai e ilumina a sala inteira?

(...)

"É meu neto, menina. Gosta dele?
É o Luís Carlos, meu neto, não sabia?"

E vejo à minha frente, nobre e simples,
a vovó Ermelinda, de Luís Carlos,
para mim Cavaleiro da Esperança

E a voz continuou serena e mansa:
"Um menino tão terno, tão sensível,
quem diria pudesse ser um dia
um revolucionário?"

(...)

Anda longe o Luís Carlos, de seus dias.
Anda longe e está próximo e presente:

nas palavras apenas murmuradas
— afetivos suspiros e lembranças —
e nas outras que brotam impetuosas
dominando planícies e cidades.

(...)

Seu passo um dia cantará nas pedras
e humildes casas se iluminarão.
E à sua voz, de chama e tempestade,
as vozes triunfais responderão.

Publicado no livro Novos Poemas (1951).

Ternura

Eu te amo com a ternura das mães
que embalam os filhos pequeninos.
E te amo sem desejos.

Perto de ti meus sentidos desaparecem.
Meu corpo tem castidades de santa e de menina.

Quando falas nenhuma sobra se interpõe entre nós dois
Fico presa à palavra de tua boca
e à palavra de teus olhos.
Nada existe fora de nós. Longe de nós...
Tu és o Princípio e o Fim. O Tempo e o Espaço
Cada palavra tua mais espiritualiza
o meu sentimento e a minha ternura.

Tenho vontade de que meus braços se transformem
num grande berço,
para embalar teu sono de homem triste.

Nenhuma estrela brilha mais clara que os teus olhos
na minha alma,
e que a tua palavra no meu coração.

Nenhum homem foi amado com tanta pureza sem pecado,
nem tanta adoração!

Nenhuma mulher vestiu de tanta castidade
seu corpo e sua alma,
para a tristeza de um amor que quer viver,
e quer morrer.

Publicado no livro Céu Vazio: poesia (1941).

Fonte:
http://www.astormentas.com/din/poemas.asp?autor=Lila+Ripoll

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 635)

Uma Trova de Ademar 

Com minha alma enternecida,
confesso com todo ardor;
Deus me deu dois dons na vida:
ser “Pai” e ser “Trovador”!...
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


De meu pai, em mim gravada,
guardo a imagem, rotineira,
de uma camisa suada
sobre as costas da cadeira...
–Arlindo Tadeu Hagen/MG–

Uma Trova Potiguar 


Adotando os bons conselhos
das faculdades morais,
os filhos serão espelhos
da retidão de seus Pais.
–Djalma Mota/RN–

Uma Trova Premiada 


2001  -  Pouso Alegre/MG
Tema  -  PAI  -  3º Lugar

É de dor a sensação:
meu pai... arrastando os passos;
e eu... puxando pela mão
quem já me levou nos braços!
–Antônio Carlos T. Pinto/DF–

...E Suas Trovas Ficaram 


Disse Deus à humanidade:
“Crescei e multiplicai” ...
É nesta cumplicidade,
que o homem torna-se pai.
–Francisco Macedo/RN–

Uma  Poesia 


Neste domingo de agosto
os sinos bem mais, badalam,
os passarinhos se calam
do sol nascente ao sol posto,
e o sorriso no meu rosto
descreve uma frase assim
cheia de amor, pois, enfim,
do meu peito um clamor sai:
eu quisera ser um pai
tal qual o meu é pra mim.
–Francisco José Pessoa/CE–

Adélia Maria Woellner (A Escritora em Xeque)


Adélia é poeta e escritora, membro da Academia Paranaense de Letras, autora dos livros: Férias no sítio, A água que mudou de nome, A menina que morava no arco-íris (história foi adaptada, por Gil Gabriel, para o teatro de bonecos), e Festa na Cozinha.

Adélia, quando nasceu o seu desejo de ser escritora?
– Para falar francamente, nunca desejei ser escritora. Aconteceu, porque escrever, para mim, sempre foi uma necessidade. Um prazer. O primeiro livro de poemas foi publicado por sugestão de um amigo, em 1963. Depois aconteceram outros, mas só consegui aceitar a condição de escritora há poucos anos.

Por que escreve para o público infantil?
– Eis outro presente que recebi da vida. Quando escrevi o livro "Para Onde Vão as Andorinhas...", relatando a vida de meus antepassados, ao descrever o sítio de meu avô materno, onde passava alguns dias mágicos, encantadores, o texto surgiu em forma de poema.
Um amigo, lendo-o, me sugeriu: "este poema daria um livro infantil". Pois é... E assim nasceu o "Férias no Sítio", que foi ilustrado pelo meu sobrinho-neto Rafael Furtado Casagrande, com apenas 8 anos de idade. Foi uma delícia!
Acho que, aberta a porta, os outros livros aproveitaram a "fresta" e vieram atrás... Você já os citou. Além deles, também nasceram "A menina do vestido de fitas", para colorir, e uma coleção em coautoria com a Heliana Grudzien, em doze volumes: "Valores Humanos", para a Editora Expressão. Este ano será publicado "A vida do papagaio de cara roxa", em projeto aprovado pelo Ministério da Cultura (Lei Rouanet). Espero, também, conseguir captar recursos para outro projeto, para edição da Coleção Tagarela, com cinco pequenas histórias: "A Casa de Cristal", "O Reino das Águas Azuis", "A Menina do Pastoreio", "A Natureza das Coisas... é assim porque é assim..." e "No Céu e no Mar".

Como surgiu a ideia de escrever um livro infantil sobre alimentos?
– A ideia não foi minha. Eliane Aleixo foi quem me sugeriu. Aos poucos, o tema foi "germinando" e, de repente, aconteceu a história de Dona Margarida. As minhas próprias dificuldades em apreciar alimentos naturais me inspiraram. E hoje, mais do que no meu tempo, os alimentos industrializados conquistam, seduzem as crianças que, pouco a pouco, perdem a atração por alimentos importantes e indispensáveis à saúde. Esta a motivação.

Como estão reagindo as crianças ao ver o livro “Festa na Cozinha”?
– As crianças estão se divertindo... e eu, também. Quando escrevo que cenoura tem topete e que cada fatia, cada rodela, parece um olho, elas reconhecem essas características e a curiosidade é consequência. Depois de ler o livro, tenho certeza de que as crianças passam a enxergar os alimentos de outra forma. Sentem-se mais atraídas por verduras, legumes, frutas... Professores e pais estão aproveitando os pequenos poemas de cada página para despertar essa atração.

Você também é palestrante. Quais são os quesitos para você aceitar ministrar palestras em escolas?
– Não faço restrições, nem exigências. Quando sou solicitada, e tendo disponibilidade de tempo, vou falar com as crianças, com a maior satisfação. O brilho nos olhos delas, o sorriso, as gargalhadas, a empolgação, tudo isso me anima e me incentiva a continuar.

Como podem fazer os professores interessados em suas palestras para entrar em contato com você?
– O contato comigo pode ser feito pelo telefone 9975-7108 ou pelo e-mail: adeliamaria@hotmail.com

Isabel Furini é escritora, poeta e palestrante autora de O livro do Escritor.

Fonte:
http://livrodoescritor.blogspot.com/

Nilton Manoel (A Didática da Trova) Parte 3

 Nos concursos literários, em geral,  têm predominado a trova filosófica e, isto, às vezes, provoca  comentários: “ fulano  tem dificuldade em lirismo e  humorismo, escuda-se na filosofia  e  consegue destaque às suas trovas”. Creio que o segredo está em produzir a trova dentro das “exigências”  literárias e da regulamentação do certame. O estudo da história da trova, da movimentação literária pelo  Brasil e  países de língua portuguesa é importante; mais, ainda, ler, reler e refletir  sobre os resultados finais dos concursos através dos textos premiados. A trova deve ter  o tema proposto  e a mensagem clara do concorrente ; ou seja, uma trova para competir precisa  estar bem elaborada tanto na forma como no fundo. O trovador é o técnico da síntese. O fazer trovadoresco depende também do envolvimento que se tem no gênero. Carlos Guimarães, em 1988, no VIII Concurso Nacional Inter-Sedes, editou folheto, contendo Entrevista Simulada com Adelmar Tavares, onde temos a p.7, a resposta a pergunta: “E falando do gênero poético. Qual é o que mais lhe agrada:

A trova foi sempre, das formas de poesia, a que mais me tocou a sensibilidade, porque foi a poesia dos lavradores de meu velho engenho pernambucano, a poesia daquelas violas inesquecíveis que fizeram o engenho  da minha meninice”.

 “A trova quando é erudita demais não é propriamente trova... A trova não precisa ter erudição profunda porque perde assim o seu espírito, aquele espírito de que Luiz Otávio falava...
Os escritores do passado faziam questão de ser poetas e em meio da prosa deixavam versos para  envolver o leitor. As Edições de Ouro,1.979, publicaram Aprenda a Fazer Versos – contendo um Dicionário de Rimas de autoria de Manoel Macedo. O índice tem na  1ª parte – como fazer versos: poesia e verso, gêneros poéticos e generalidades poéticas; na 2ª parte o Dicionário de Rimas. Neste livro uma frase de Machado de Assis.:”Uma coisa é citar versos, outra é crer neles”.

 Não temos a data, mas colhida na seção humorística Garotas, da revista O Cruzeiro de autoria de A. Ladino, em 1974, o Departamento de Educação e Cultura da Prefeitura do Município de Ribeirão Preto (SP), colocou em volta da Fonte Luminosa diversas trovas escritas em placas de lata, entre elas:

Garota, tua bondade,
tonteia qualquer parceiro
pedaço de tempestade,
no céu de rapaz solteiro.
              
Nessa ocasião, a têmpera humorística de Alcy Ribeiro Souto Maior, Rio de Janeiro ( RJ ) provocou polêmica, com um sócio do Clube da Velha Guarda, por causa desta trova premiada em 1º lugar nos XV  Jogos Florais de Nova Friburgo- (RJ), 1974:

  Ao velho diz o Brotinho:
“Quero fugir com você”
Indaga o pobre velhinho:
-“Fugir? Mas... Fugir pra quê?

A trova acabou retirada do local. A comissão nomeada pelo Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal, concluiu mais ou menos assim: - “ o que fica bem num livro, pode não ficar bem, num local público, como a Fonte Luminosa da praça XV de Novembro, marco zero da paulista São Sebastião do Ribeirão Preto.

Na mesma solenidade de premiação de Nova Friburgo,(RJ) Jacy  Pacheco, Niterói ( RJ ) autor de trovas antológicas, obteve o quarto lugar com esta trova em pleno lançamento da palavra paquera em nossos dicionários:

Pobre do velho que abusa
em paquera com mulher:
sofre quando ela o recusa
e sofre mais se ela quer.

No encanto do humorismo, outras trovas, em exposição, na praça XV, tiveram a visita de alunos de várias escolas, sob a  orientação de professores de Língua Portuguesa. Nessas ocasiões, contavam com a presença de trovadores da municipalidade. A trova a seguir corria solta entre os estudantes .
                       
Meu filho, por acaso,
és filho do Zé-Cereja?
Acaso, não, vim no prazo ,
e meu pai casou na igreja.
José Lucas Filho

 Relendo a revista O Cruzeiro de 1952, encontramos:

Com seus dotes estonteantes
e atitudes majestosas,
as garotas fascinantes,
são sempre as mais perigosas.

Na edição (6 de agosto de 1955,ano XXVII, nº 43, p.62-63, desenho de Alceu Pena e texto de A. Ladino) destacamos duas quadrinhas da seção humorística Garotas .  Ei-las:

Garota, que os olhos turvas,
teu lindo destino alinhas,
nas linhas de tuas curvas
nas curvas das tuas linhas.
                     
Desde as eras mais remotas
Que este conceito é profundo;
Está nas mãos das garotas
todo o destino do mundo.

 Alcy esteve em Ribeirão Preto quando, glosando o tema Pátria, recebeu o troféu e a certificação da municipalidade pelo primeiro lugar, em âmbito nacional/internacional, dos II Jogos Florais de Ribeirão Preto,1976.

Pátria, perdão, só agora,
só depois que te deixei,
caminhando mundo a fora,
dentro de mim te encontrei...

 Neste evento, o poeta Nilton da Costa Teixeira, mereceu o primeiro lugar em âmbito municipal com a seguinte trova:

Neste abraço em  que te aperto
com a beatitude de um monge,
sinto meu amor tão perto,
minha esperança tão longe!
               
O trovador conseguiu na síntese de  quatro versos  glosar o tema  abraço e realçar o significado da palavra beatitude: gozo de alma dos que se absorvem em  contemplações místicas. (FERREIRA,2001,p.93)

No ano seguinte, 1977, era lançado o I  Concurso de  Jogos Florais para o Estudante de Ribeirão Preto”. Entre os 30 classificados, o primeiro lugar coube a Sérgio Bianchi Campos, do Colégio Marista, com esta trova  sob o tema “Fraternidade:

 Fraternidade é sofrer
 por todos os semelhantes.
 É amar, e assim quase ser
 Jesus, por breves instantes!”


 Na sessão solene de premiação, realizada no salão nobre da Sociedade Legião Brasileira de Civismo e Cultura,  o poeta Ciro Armando Catta Preta, proferiu belíssima oração,  saudando os estudantes laureados: (...) “ O poeta que se preza, deve estudar a fundo a língua, pois sem o idioma, seu meio de comunicação, não poderá jamais gravar, por meio de palavras, a beleza, a poesia, que somente os poetas têm o dom de captar”.

Os Jogos Florais Estudantis acontecem, anualmente, apoiados na lei  360/78 que, introduz a Trova como atividade curricular dos estabelecimentos de ensino do município. No mesmo ano, ocorre a oficialização dos Jogos Florais de Ribeirão Preto, pela lei 3404/78. Outras leis garantem o movimento da poesia na cidade: Dia Municipal do Trovador (18 de Julho), Dia Municipal da Poesia ( 3 de maio)  e Dia Municipal da  Literatura de Cordel. (12 de março). As datas homenageiam o natalício dos poetas Luiz Otávio, Nilton da Costa Teixeira e Rodolfo Coelho Cavalcante.

As trovas deixaram de circundar a fonte da praça XV, depois da reforma de regressão para tombamento Histórico, mas existe o Recanto do Trovador (lei 3217/76), na área cultural  do município.

Neste capitulo conhecemos a força e o encanto  da trova através séculos. Verificamos a conceituação antiga e moderna sentindo a força de sua mensagem, recordando textos de antigos livros, revistas e almanaques e os gêneros comumente explorados. Os concursos escolares, as trovas na praça, as datas significativas e a confraternização dos Jogos Florais. Neste próximo capítulo, falaremos sobre a estrutura poética da trova.

Continua…

Fonte:
Nilton Manoel. A Didática da Trova. Batatais, 2008.

sábado, 11 de agosto de 2012

Hermoclydes S. Franco (Album de Recordações - n.1)


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 634)

Uma Trova de Ademar 

A bebida é uma desgraça,
nem mesmo o céu me socorre;
pois quando eu bebo cachaça
meu santo fica de porre!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


No bar, "mamado", esbraveja
e diz sentado num canto
que ele só bebe cerveja,
quem bebe a cachaça é o "santo"...
–Maria Nascimento/RJ–

Uma Trova Potiguar 


Olhem bem para o dilema
que aflige essa solteirona...
seu noivo tem um problema:
nem casa, nem funciona...
–Fabiano Wanderley/RN–

...E Suas Trovas Ficaram 


Eu não vou deixar herança,
pois “grana” é grande ameaça...
Vou torrar minha poupança,
com mulher, e com cachaça.
–Francisco Macedo/RN–

Uma  Poesia 

Na Inglaterra as coisas andam feias
todo mundo por lá endoidecendo;
todo dia é uma princesa sem marido
e um príncipe que sozinho está vivendo...
ou a carne da vaca fez efeito,
ou o chifre do boi está fazendo...
–Edmilson Ferreira/PI–

Soneto do Dia 

A VISITA.
–Edmar Japiassú Maia/RJ–


Suas muitas visitas ao dentista,
em horas variadas do seu dia,
levou a vizinhança, moralista,
a afirmar ser o fato uma ousadia...

No fingimento tinha o dom de artista;
pois, de repente, como por magia,
ressurge a “imensa dor”, sempre imprevista,
que apenas seu dentista é que alivia...

Mas firme, em atitude decidida,
o esposo, transtornado na desdita,
de casa proibiu qualquer saída...

E se hoje aquela “dor” ainda arrasa,
o consultório já não mais visita,
mas o dentista é que a visita em casa!

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Tomás Antônio Gonzaga)

Nascimento do poeta em 11.8.1744 - . -

Belo soneto do árcade poeta,
que, inicialmente, canta a sua Alteia,
mas num momento após, qual um profeta,
já pensa em outra e então muda de ideia.

E qual seria agora a sua meta
à procura, afinal, da linda deia
que poderá surgir e ser completa
em sua vida? Chama-se Dirceia.

E quer prender as duas com grilhões,
pois ambas são fantásticas paixões
que invadem a sua alma de verdade.

Pede ao Cupido: ou de Lorino forma
dois sujeitos; ou, quem sabe, transforma
dois semblantes só numa identidade...

Machado de Assis (O Bote de Rapé)

Peça Teatral

Personagens:

    TOMÉ
    UM RELÓGIO NA PAREDE ELISA, sua mulher
    O NARIZ DE TOMÉ UM CAIXEIRO

CENA PRIMEIRA: TOMÉ, ELISA (entra vestida)


TOMÉ Vou mandar à cidade o Chico ou o José.

ELISA Para ... ?

TOMÉ Para comprar um bote de rapé.

ELISA Vou eu.

TOMÉ Tu?

ELISA Sim. Preciso escolher a cambraia,

A renda, o gorgorão e os galões para a saia,

Cinco rosas da China em casa da Malte,

Um par de luvas, um peignoir e um plissé,

Ver o vestido azul, e um véu ... Que mais? Mais nada.

TOMÉ (rindo) Dize logo que vás buscar se uma assentada

Tudo quanto possui a Rua do Ouvidor.

Pois aceito, meu anjo, esse imenso favor.

ELISA Nada mais? Um chapéu? Uma bengala? Um fraque?

Que te leve um recado ao Dr. Burlamaque?

Charutos? Algum livro? Aproveita, Tomé!

TOMÉ Nada mais; só preciso o bote de rapé

ELISA Um bote de rapé! Tu bem sabes que a tua Elisa...

TOMÉ Estou doente e não posso ir à rua.

Esta asma infernal que me persegue... Vês?

Melhor fora matá-la e morrer de uma vez,

Do que viver assim com tanta cataplasma.

E inda há pior do que isso! inda pior que a asma:

Tenho a caixa vazia.

ELISA (rindo) Oh! se pudesse estar Vazia para sempre, e acabar, acabar

Esse vício tão feio! Antes fumasse, antes.

Há vícios jarretões e vícios elegantes.

O charuto é bom tom, aromatiza, influi

Na digestão, e até dizem que restitui

A paz ao coração e dá risonho aspecto.

TOMÉ O vício do rapé é vício circunspecto.

Indica desde logo um homem de razão;

Tem entrada no paço, e reina no salão

Governa a sacristia e penetra na igreja.

Uma boa pitada, as idéias areja;

Dissipa o mau humor. Quantas vezes estou

Capaz de pôr abaixo a casa toda! Vou

Ao meu santo rapé; abro a boceta, e tiro

Uma grossa pitada e sem demora a aspiro;

Com o lenço sacudo algum resto de pó

E ganho só com isso a mansidão de Jacó.

ELISA Não duvido.

TOMÉ Inda mais: até o amor aumenta

Com a porção de pó que recebe uma venta.

ELISA Talvez tenhas razão; acho-te mais amor

Agora; mais ternura; acho-te. . .

TOMÉ Minha flor,

Se queres ver-me terno e amoroso contigo,

Se queres reviver aquele amor antigo.

Vai depressa.

ELISA Onde é?

TOMÉ Em casa do Real;

Dize-lhe que me mande a marca habitual.

ELISA Paulo Cordeiro, não?

TOMÉ Paulo Cordeiro.

Queres,

ELISA Para acalmar a tosse uma ou duas colheres

TOMÉ Do xarope? Verei.

ELISA Até logo, Tomé.

TOMÉ Não te esqueças.

ELISA Já sei: um bote de rapé. (sai)


CENA II: TOMÉ, depois o seu NARIZ


TOMÉ Que zelo! Que lidar! Que correr! Que ir e vir!

Quase, quase lhe falta tempo de dormir.

Verdade é que o sarau com o Dr. Coutinho

Quer festejar domingo os anos do padrinho,

É de primo-cartello, é um grande sarau de truz.

Vai o Guedes, o Paca, o Rubirão, o Cruz

A viúva do Silva, a família do Mata,

Um banqueiro, um barão, creio que um diplomata.

Dizem que há de gastar quatro contos de réis.

Não duvido; uma ceia, os bolos, os pastéis,

Gelados, chá... A coisa há de custar caro.

O mal é que eu desde já me preparo

A despender com isto algum cobrinho...O quê?

Quem fala?

O NARIZ Sou eu; peço a vossa mercê

Me console, insirindo um pouco de tabaco.

Há três horas jejuo, e já me sinto fraco,

Nervoso, impertinente, estúpido, -- nariz,

Em suma.

TOMÉ Um infeliz consola outro infeliz;

Também eu tenho a bola um pouco transtornada,

E gemo, como tu, à espera da pitada.

O NARIZ O nariz sem rapé é alma sem amor.

TOMÉ Olha podes cheirar esta pequena flor.

O NARIZ Flores; nunca! jamais! Dizem que há pelo mundo

Quem goste de cheirar esse produto imundo.

Um nariz que se preza odeia aromas tais.

Outros os gozos são das cavernas nasais.

Quem primeiro aspirou aquele pó divino,

Deixas as rosas e o mais as ventas do menino.

TOMÉ (consigo) Acho neste nariz bastante elevação,

Dignidade, critério, empenho e reflexão.

Respeita-se; não desce a farejar essências,

Águas de toucador e outras minudências.

O NARIZ Vamos, uma pitada!

Um instante, infeliz! (à parte)

Vou dormir para ver se aquieto o nariz. (Dorme algum tempo e acorda)

Safa! Que sonho; ah! Que horas são!

O RELÓGIO (batendo) Uma, duas.

TOMÉ Duas! E a minha Elisa a andar por essas ruas.

Coitada! E este calor que talvez nos dará

Uma amostra do que é o pobre Ceará.

Esqueceu-me dizer tomasse uma caleça.

Que diacho! Também saiu com tanta pressa!

Pareceu-me, não sei; é ela, é ela, sim...

Este passo apressado ... És tu, Elisa?


CENA III: TOMÉ, ELISA, UM CAIXEIRO (com uma caixa)


ELISA Enfim!

Entre cá; ponha aqui toda essa trapalhada.

Pode ir. (Sai o caixeiro) Como passaste?

TOMÉ Assim; a asma danada

Um pouco sossegou depois que dormitei.

ELISA Vamos agora ver tudo quanto comprei.

TOMÉ Mas primeiro descansa. Olha o vento nas costas.

Vamos para acolá.

Cuidei voltar em postas.

ELISA Ou torrada.

TOMÉ Hoje o sol parece estar cruel.

Vejamos o que vem aqui neste papel.

ELISA Cuidado! é o chapéu. Achas bom?

TOMÉ Excelente.

Põe lá.

ELISA (põe o chapéu)

Deve cair um pouco para a frente.

Fica bem?

TOMÉ Nunca vi um chapéu mais taful.

ELISA Acho muito engraçada esta florzinha azul.

Vê agora a cambraia, é de linho; fazenda

Superior. Comprei oito metros de renda,

Da melhor que se pode, em qualquer parte, achar.

Em casa da Creten comprei um peignoir.

TOMÉ (impaciente) Em casa da Natté

ELISA Cinco rosas da China.

Uma, três, cinco. São bonitas?

TOMÉ Papa-fina.

ELISA Comprei luvas couleur tilleul, creme, marron;

Dez botões para cima; é o número do tom

Olhe este gorgorão; que fio! que tecido!

Não sei se me dará a saia do vestido.

TOMÉ Dá.

ELISA Comprei os galões, um fichu, e este véu.

Comprei mais o plissé e mais este chapéu.

TOMÉ Já mostraste o chapéu.

ELISA Fui também ao Godinho,

Ver as meias de seda e um vestido de linho.

Um não, dois, foram dois.

TOMÉ Mais dois vestidos?

ELISA Dois...

Comprei lá este leque e estes grampos. Depois,

Para não demorar. corri do mesmo lance,

A provar o vestido em casa da Clemence.

Ah! Se pudesse ver como me fica bem!

O corpo é uma luva. Imagina que tem...

TOMÉ Imagino, imagino. Olha, tu pões-me tonto

Só com a descrição; prefiro vê-lo pronto.

Esbelta, como és, hei de achá-lo melhor

No teu corpo.

ELISA Verás, verás que é um primor.

Oh! a Clemence! aquilo é a primeira artista!

TOMÉ Não passaste também por casa do dentista?

ELISA Passei; vi lá a Amália, a Clotilde, o Rangel,

A Marocas, que vai casar com o bacharel

Albernaz...

TOMÉ Albernaz?

ELISA Aquele que trabalha

Com o Gomes. Trazia um vestido de palha...

TOMÉ De palha?

ELISA Cor de palha, e um fichu de filó,

Luvas cor de pinhão, e a cauda atada a um nó

De cordão; o chapéu tinha uma flor cinzenta,

E tudo não custou mais de cento e cinqüenta,

Conversamos do baile; a Amália diz que o pai

Brigou com o Dr. Coutinho e lá não vai.

A Clotilde já tem a toilette acabada.

Oitocentos mil-réis.

O NARIZ (baixo a Tomé) Senhor, uma pitada!

TOMÉ (com intenção, olhando para a caixa)

Mas ainda tens aí uns pacotes...

ELISA Sabão;

Estes dois são de alface e estes de alcatrão.

Agora vou mostrar-te um lindo chapelinho

De sol; era o melhor da casa do Godinho.

TOMÉ (depois de examinar)

Bem.

ELISA Senti, já no bonde, um incômodo atroz.

TOMÉ (aterrado)

Que foi?

ELISA Tinha esquecido as botas no Queirós.

Desci; fui logo à pressa e trouxe estes dois pares;

São iguais aos que usa a Chica Valadares.

TOMÉ (recapitulando)

Flores, um peignoir, botinas, renda e véu.

Luvas e gorgorão, fichu, plissé, chapéu,

Dois vestidos de linho, os galões para a saia,

Chapelinho de sol, dois metros de cambraia

(Levando os dedos ao nariz)

Vamos agora ver a compra do Tomé.

ELISA (com um grito)

Ai Jesus! esqueceu-me o bote de rapé!

Fonte:
Portal São Francisco

Cândida Vilares Gancho (Como Analisar Narrativas) Parte 12, final

Vocabulário crítico
 
Ação: v. Enredo

Ambiente: é um misto de espaço, tempo e clima.

Antagonista ou vilão: é o personagem que se opõe ao protagonista na história.

Anti-herói: é o personagem principal com aparência de herói, mas fracassado.

Assunto: é a maneira como o tema é desenvolvido concretamente no texto.

Bibliográfico(a): adjetivo referente a bibliografia= relação dos livros consultados ou pesquisados.

Burguês ou burguesa: adjetivo referente à classe social burguesia que detém riqueza, terras, indústrias e visa a obtenção do lucro. A sociedade burguesa seria aquela em que há hegemonia (domínio) da burguesia.

Caracteres ou característica: são os atributos as peculiaridades dadas de determinada coisa.

Caricatura: personagem que é conhecido por algum poucas características ridículas.

Causa ou fator ou motivo: é o que provoca o surgimento de algo.

Clima: condições sociais, morais, econômicas, políticas e psicológicas que influem no ambiente.

Clímax: é uma das partes do enredo que constitui o momento de maior tensão da história.

Comando: aquilo que é pedido pelo enunciado de uma questão.

Complicação: uma parte do enredo que corresponde a seu desenvolvimento.

Conflito: oposição (violenta ou não) de elementos externos ou internos aos personagens de uma história.

Conseqüência: efeito ou resultado da ação ou da existência de algo.

Contexto: o conjunto, a totalidade (de um texto no caso).

Crônica: narrativa curta, leve, que se baseia no cotidiano.

Desfecho: uma das partes da narrativa, que consiste no final da história.

Discurso: no âmbito das narrativas, é a linguagem usada pelos personagens para dialogar.

Dogmas: princípios fundamentais e inquestionáveis de uma religião ou doutrina.

Elocução (verbo de): o nome que se dá aos verbos que introduzem diálogos.

Enredo: conjunto dos fatos de uma história.

Enredo linear: enredo cujos fatos ocorrem de modo natural e até previsível.

Enredo não-linear: enredo mais complexo, que não é previsível.

Enredo psicológico: enredo cujos fatos são interiores aos personagens, isto é, são fatos emocionais.

Epopéia: poema que narra as aventuras heróicas, por exemplo Os lusíadas, de Camões, que narra a aventura do herói português Vasco da Gama.

Espaço: o lugar onde se passa a história.

Estilo: modo peculiar de escrever ou produzir um texto.

Exposição: uma das partes do enredo, que consiste no início da história.

Fábula: v. Enredo

Fantástico(a): surpreendente além do real, mágico.

Flashback: nome de uma técnica  cinematográfica usada nas narrativas, e que Consiste em voltar no tempo.

Ficção: imaginação, invenção referente à narrativa.

Fictício: imaginário que pertence ao universo da ficção.

Gênero (literário): categoria de texto determinada pela estrutura, pela recepção junto ao público e pelo estilo.

Herói: protagonista com características superiores às de seu grupo.

Heroína: herói feminino

Heterônimo: é um termo que tem maior abrangência que pseudônimo (nome falso sob o qual o autor se esconde para assinar suas obras) heterônimo seria uma e de personagem que o autor cria para escrever suas obras, com estilo próprio, personalidade própria.

Híbrido:  misto, não puro.

História: v. Enredo

Ideológica(o): adjetivo referente à ideologia conjunto das idéias de uma pessoa ou grupo social.

Intriga: v. Enredo; também significa peripécia fato marcante.

Lingüístico: adjetivo referente a qualquer manifestação da língua ou da linguagem.

Literatura de ficção: produção literária narrada em prosa.

Literatura fantástica: produção literária marcada pelo enredo mágico, isto é, que apresenta fatos e personagens inexplicáveis, ilógicos.

Macabro: ligado à morte, ao horror.

Mensagem: aquilo que se pode concluir a respeito de um texto, ou aquilo que o autor nos transmite através do texto.

Mito: história de caráter sagrado, contada por povos primitivos para explicar sua origem e a de todas as coisas; o mi to é transmitido oralmente através de gerações.

Moral: adjetivo referente ao substantivo moral = código de comportamento determinado pelo grupo social a que se pertence.

Moral da história: mensagem do texto que tem preocupação em ensinar o leitor.

Narrado: o que é contado na história, portanto os fatos.

Narrativa: o mesmo que narração, texto em prosa no qual se conta uma história.

Níveis de linguagem: as várias possibilidades de se usar uma mesma língua: linguagem oral, linguagem escrita, linguagem regional etc.

Onipresença: capacidade do narrador em terceira pessoa de estar em todos os lugares.

Onisciência: capacidade que o narrador em terceira pessoa tem de saber tudo o que se passa na história.

Peripécia: fato marcante do enredo, intriga.

Prosa: a maneira mais comum de falar e escrever, que se distingue da poesia (preocupada com os efeitos sonoros da linguagem).

Protagonista: personagem principal.

Romântico(a): referente a romantismo, movimento literário e artístico do século XIX que se caracterizou principalmente pelo sentimentalismo e pelo idealismo. No sentido popular, romântico é um adjetivo referente a amor.

Tema: a idéia central de um texto.

Tempo cronológico: tempo da narrativa que segue o curso natural, é mensurável, isto é, tem começo, meio e fim.

Tempo psicológico: tempo da narrativa que segue os impulsos emocionais do narrador ou dos personagens, e que por tanto não segue a lógica do tempo cronológico.

Trama: v. Enredo.

Trágico: referente a tragédia, desgraça, ocorrência terrível, contra a qual não se pode lutar.

Verossimilhança: verdade interna ao texto narrativo, isto é, a lógica interna do enredo, provocada pela causalidade (causa e conseqüência) que estrutura os fatos da história.

Fonte:
Cândida Vilares Gancho . Como Analisar Narrativas. 7. Ed. Editora Ática. http://groups.google.com.br/group/digitalsource/

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Cabo Verde – 3. Drama, 4. Biunguismo Cabo-Verdiano)

3.    DRAMA

Uma das formas menos expressivas desta literatura é a área do teatro. O que não deixa de encontrar um correspondente histórico na formação da literatura portuguesa e também brasileira. Isto, de uma maneira geral, aplica-se a todas as ex-colónias portuguesas. Pode dizer-se que, em Cabo Verde, no domínio da arte teatral, há apenas «Terra de sôdade — argumento para bailado folclórico», de Jaime de Figueiredo, publicado na revista Atlântico, em 1946, [98] até hoje à espera de merecer as atenções de uma encenação.

4.    BIUNGUISMO CABO-VERDIANO

É bilingue o povo cabo-verdiano, já anteriormente o dissemos.   Além   da   língua   portuguesa   exprime-se também através do seu dialecto ou da língua crioula que, no plano das relações quotidianas, possui uma total implantação que falece à língua portuguesa.

E se foi longo o tempo necessário para o escritor cabo-verdiano alcançar uma consciência regional enquanto autor de língua portuguesa, cedo porém ele a revelou intuitivamente enquanto autor dialectal, facto que o distingue dos outros povos dos novos países africanos. Vem de tempos recuados e desenvolve-se no século XIX, paralelamente às criações em língua portuguesa, a produção popular em dialecto crioulo, sobretudo veiculada através da morna (mais de dois séculos de existência?) — a grande expressão artística do homem crioulo — das canções populares, das finançons (canções de batuque), do curcutiçans (canções de desafio — ilha do Fogo), de que se podem encontrar alguns exemplos na revista Claridade. Há, assim, um importante substracto dialectal popular que estimularia a produção literária, hoje também enriquecida com a recente exploração da coladeira.

Um dos pioneiros, o cónego António Manuel Teixeira, do Seminário-Liceu da ilha de S. Nicolau, responsável pelo Almanache Luso-Africano, (2 volumes: 1894 e 1899) neste fez publicar algumas tentativas literárias dialectais. Em 1910 José Bernardo Alfama publica Canções crioulas. Saliente-se, no entanto, um Eugênio Tavares (Momos — cantigas crioulas, 1932) [99], um Pedro Cardoso (poeta bilingue), Folcolore cabo-verdeano (1933), de facto dos primeiros a elegerem o crioulo à dignidade de língua literária. Mais perto do nosso tempo, apontam-se Sérgio Frusoni (1901-1975), um caso interessante de aculturação, já que é filho de italianos; Mário Macedo Barbosa, Jorge Pedro, Ovídio Martins (Caminhada, 1962: parte em dialecto crioulo), Luís Romano (Ljçimparim-Negrume, 1973), Gabriel Mariano, Kaoberdiano Dambará (Notí, s/d, [1968?]), Artur Vieira, Sukre D'sal, Tacalhe, Oswaldo Osório, Corsino Fortes, Arménio Vieira, etc.

Instrumento essencialmente afeiçoado à recriação de manifestações de índole lírica, o caso de Beleza, um dos mais populares troveiros do Arquipélago, nestes últimos anos é notório o esforço para a sua utilização cada vez mais ampla. No fundo, a produção literária em crioulo, do ponto de vista ideológico, descreve sensivelmente uma curva evolutiva próxima da língua portuguesa; a uma fase lírica e, por vezes, de conotação social sucede uma fase marcadamente ideológica: protesto e intervenção política. «Ca tem nada na es bida/Más grande que amor» " diz Eugênio Tavares. Ou Pedro Cardoso na apropriação de raiz popular, com intencionalidade social: «Coitado quem dixâ sê terra,/Sêl dixâ nél sê coraçam» 10°. Sérgio Frusoni, uma voz apaixonada do quotidiano ínfimo, adensado por recursos de subtil ironia: «Exe spancadura que bo titã uvi,/ca ê roncadura de pomba, nem vôo de pardal.» (in Claridade, n.° 9, 1960, p. 77).

Com Ovídio Martins o corte ideológico é de vez: «Hora titã tchgá/nhas gente», que Kaoberdiano Dambará persegue em Noii, num deliberado apelo à revolução, e vamos encontrar ainda em Kwame Kondá (Kordá Kaobardi, 1974). Veiculando quase exclusivamente a poesia, cabe a Luís Romano, um dos que de modo apaixonado reclamam a integral cidadania do dialecto, ensaiar com pertinácia a primeira experiência de tomo: L^mparim-Negrume (1973), já citado, que reúne não só poesias como vários contos em crioulo de Santo Antão, acompanhados da tradução livre em português.

Acrescentaríamos ainda que, apesar de tudo quanto dissemos sobre o que aproxima ou afasta Claridade e Certeza, enquanto a primeira logo no seu primeiro número abre a primeira página com uma canção de Beleza, numa evidente preocupação de consagrar o dialecto crioulo, e em números posteriores essa preocupação ganha volume, Certeza desconhece o dialecto crioulo. Travado e combatido pelas entidades coloniais, nem por isso esta raiz vivaz feneceu. Acreditamos estar-lhe reservado, no futuro, papel de relevo na representação de muitos aspectos do homem cabo-verdiano. E mais: estamos, de consciência, convictos de que a longa e radiosa caminhada do dialecto crioulo, com ou sem escolaridade, irá provocar uma correcção, nos domínios da sociolinguística e da psicolinguística que parecem admitir ou predizer o desaparecimento de uma língua quando ela, não sendo ensinada, tem de suportar a concorrência falada de outra ou outras que o são [101].

Se o dialecto crioulo é, como se sabe, a língua-mãe do cabo-verdiano e a língua portuguesa, em muitos casos, a língua aprendida supletivamente, seria de admitir que, ao nível da competência, o escritor cabo-verdiano se sentisse mais seguro na expressão literária dialectal. Porém, isso só acontece, em termos gerais, e com algumas excepções (Eugênio Tavares e Sérgio Frusoni podem ser dois exemplos), no plano da poesia popular. Tal paradoxo (aparente? ou provisório?) provém não só da carência de organização estrutural teórica da língua cabo-verdiana, como também de uma prolongada e fecunda tradição literária escrita sem a qual uma língua não alcança a maleabilidade e a ductilidade que a autêntica criação literária exige [102].

RAÍZES (nota final)

Por fim, uma palavra para a revista Raízes, 1977 *. E porque se trata de um acontecimento na vida cultural do Cabo Verde libertado se transcreve a nota de abertura: «De um encontro de intelectuais cabo-verdianos, irmanados pelo ideal da libertação, da independência e do progresso da sua Pátria, e vivificados pela seiva haurida de raízes comuns aprofundadas no seu chão, nasceu a ideia da publicação que hoje se apresenta, limitada pelo condicionalismo do meio mas aberta pelo espírito generoso dos seus colaboradores, vindos das tendências mais díspares mas unidos pelo ideal comum que da revista é signo: — uma condição cabo-verdiana, africana e de cidadania do Mundo; uma autenticidade nascida da liberdade dessa condição; uma independência assente nas comuns RAÍZES».

A novidade está em que o ideário de Raízes se cumpre na isotopia de uma longa jornada já nossa conhecida: Claridade, Certeza, Suplemento Cultural, «Sèló». Os cabo-verdianos que neste número se inscrevem, com excepção para Tacalhe e Jorge Carlos da Fonseca, foram colaboradores de uma ou de outra daquelas publicações. Neste espaço breve diremos, em jeito de síntese que, tudo quanto enunciámos, de um modo geral se confirma em relação aos autores agora presentes em Raízes (e de novo chamamos a atenção para Arménio Vieira e Mário Fonseca).

Que a Revolução, obviamente, é enunciado de muitos textos. Que Ovídio Martins, atento à mudança da «situação de discurso», transfere a prática poética, que se centrava no contexto violentado e repressivo, para a reconstrução nacional («Devagar a reconstrução nacional avança. Ilha a ilha. Dor a dor. Amor a amor») na opção de uma prática pedagógica (Guillén do após a revolução cubana é o nome que nos ocorre). Que Osvaldo Alcântara nos parece ter agora a seu lado um companheiro de jornada (estética): Jorge Carlos da Fonseca, pelo menos um certo Osvaldo Alcântara e um certo J. Carlos da Fonseca. Que um novo poeta se anuncia: Pedro Duarte, e um novo narrador se vai confirmando: Osvaldo Osório. Que o drama continua à espera de dramaturgos. Que dos vinte e três poemas publicados, apenas um é em crioulo. Que Raízes, sendo um acto de qualidade e inteligência é, também, uma decisão revolucionária.

* Chega-nos às mãos em cima da revisão das provas deste trabalho. Editada na cidade da Praia, ilha de Santiago, dirigida por Arnaldo França, tem como colaboradores: ensaio — Mário de Andrade e Arnaldo França, Jaime de Figueiredo; ficção — António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes, Oswaldo Alcântara, Ovídio Martins, Corsino Fortes, Mário Fonseca, Tacalhe, Arménio Vieira, Jorge Carlos da Fonseca, Pedro Duarte e Jorge Miranda Alfama. Ilustração de Manuel Figueira e Osvaldo Azevedo. Capa de Pedro Gregório.
––––––––––-
Notas:
98 Jaime de Figueiredo, Terra de sôdade — argumento para bailado folclórico em quatro quadros, in Atlântico, nova série, n.° 3. Lisboa, 1946, pp. 24-42.

99    Eugênio Tavares, Mornas — cantigas crioulas, 1932, p. 27.

100    Pedro Cardoso, Folclore caboverdiano, 1933, p. 71.

101    Os principais trabalhos de autores cabo-verdianos sobre o dialecto  crioulo  são:  Baltasar Lopes:  «Uma experiência românica nos trópicos», I e II in Claridade, n.° 4, 1947, pp. 15-22, e n.° 5, 1947, pp. 1-10; O dialecto crioulo de Cabo Verde, 1957; Maria Dulce de Oliveira Almada; Cabo Verde — Contribuição
para o estudo do dialecto falado no seu Arquipélago, 1961.

102    Após a independência, nos dois actuais jornais cabo-verdianos: Voz di Vovô (Santiago) e Nossa Terra (Fogo), para além de inúmeros versos em dialecto, vêm sendo publicados vários   textos   em   prosa,   deixando-nos   a   impressão   de subscritos, uns e outros, na generalidade, por quem pela primeira vez experimenta a mão. De qualquer modo, o facto surpreende    e    exige    ser    acompanhado    com    atenção. Surpreende, mas relativamente, claro. Deverá ter-se em conta a circunstância de anteriormente à independência, o mensário Repique do Sino (ilha da Brava) ter sido durante muito tempo repositório de textos dialectais, sobretudo em verso.


Continua…

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Ademar Macedo/RN (Hermoclydes S. Franco - In Memoriam)


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 633)

Uma Trova de Ademar 

Hermoclydes disse Adeus
e, envolto num lindo véu,
foi conduzido por Deus
pra fazer Trovas no Céu!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Quando um amor nos inflama
a razão pede – cautela !
o vento que atiça a chama
é o mesmo que apaga a vela.
–Rita Mourão/SP–

Uma Trova Potiguar 


Lembranças são velhas garças,
vindas da luta henrida,
tais como velhas barcaças,
singrando os rios da vida.
–Rodrigues Neto/RN–

Uma Trova Premiada 


2010  -  Curitiba/PR
Tema  -  MADRUGADA  -  M/E

Eu me lembro com saudade
das madrugadas de outrora...
Mamãe, na extrema bondade:
- “Filha, acorda, está na hora”.
–Dáguima Verônica/MG–

...E Suas Trovas Ficaram 


Quando o tempo em seu abraço
quebra meu corpo e tem pena,
quanto mais me despedaço
mais fico inteira e serena.
–Cecília Meirelles/RJ–

Uma  Poesia 


Tirando a minha poesia,
tiram de mim um pedaço;
ela é a dona de tudo,
do meu corpo, meu espaço;
e a poesia me conduz
a um encontro com Jesus
em cada verso que faço!
–Ademar Macedo/RN–

Soneto do Dia 

HINO DE DOR.
–Martinho Ferreira de Lima/PB–


Há uma sombra em meu olhar impuro,
onde minh'alma exangue é consumida;
já nem consigo me achar, não me procuro,
nem há resquício de paz em minha vida.

Ante meus olhos, há um imenso muro,
como cortina no céu, pra mim erguida,
negando a réstia de luz, ficando escuro,
pois só mágoa a meu ser é permitida.

Estou no mundo talvez, por mero acaso.
Deus é profundo, eu sei, mas eu sou raso,
e só as trevas pra mim são abissais.

Num cântico triste dor, que é meu hino;
bebendo a taça de fel do meu destino,
eu vou caindo, e caindo... E nada mais.

Vássia Silveira (Pássaros Nasceram para Voar)

O mundo sempre me pareceu um grande mistério. Lembro que ainda pequena, eu devia ter uns seis ou sete anos, vi minha irmã mais velha abater um passarinho para depois, com a ajuda de alguns amigos, dissecá-lo como a um sapo de laboratório familiar. Não arrisco explicar, aos olhos daquela menina, todo o sentimento que a cena lhe trouxe. Mas desconfio que deva ter sido algo aterrador, pois desde então, e observe que já se passaram muitos anos, passei a sentir a vida como uma eterna sucessão de enganos. Eu não cabia na família, na escola, no trabalho e, de resto, nem em mim mesma.

De início, achavam que se tratava apenas de timidez. Depois, os suores nas mãos e o silêncio que podia durar uma festa inteira, passou a ser visto pelos outros como arrogância. ‘Sofia, você precisa aprender a controlar suas emoções’, diziam-me os amigos mais próximos. No meio em que convivia, tornei-me o laboratório ideal para as frustrações alheias. E de tanto ouvir conselhos e repreendas, acabei por ter a sensação de que me dissecavam como àquele passarinho morto por minha irmã.

Primeiro arrancaram-me as pernas. Disseram-me que elas não me levavam na direção correta e que, portanto, não me eram úteis. Em seguida, analisaram e descartaram, um a um, os componentes desse pobre corpo. Foi quando descobri que ao invés de músculos, eu possuía raízes que se entrelaçavam e que pareciam expressar as mais longínquas memórias. E que no lugar de sangue, meus corredores vertiam um líquido gelatinoso e branco, uma seiva de vida que encerra um susto qualquer.

A simples idéia de que tal segredo pudesse vir a ser desvendado por algum de meus perscrutadores, congelava-me a alma. Pobre de mim. Como se não bastasse ter emprestado a esse mundo pernas, bocas e gestos aceitáveis, tinha ainda que esforçar-me para trocar com o ambiente externo, sentimentos corriqueiros, enxaquecas plausíveis, preocupações banais e um choro compreensível aqui e acolá.

Foi agarrada a essa indiscutível certeza que procurei encenar, neste grande palco, um medíocre, porém razoável, papel. Fiz-me mulher e deixei que rasgassem, dentro de mim, as mais finas veias. Como um acrobata, lancei-me em mãos e teias de palavras vilipendiosas. Deixei-me sugar até a última gota e derramei intranqüilas lágrimas em lençóis que nunca envelheciam. Ao final de cada espetáculo, retornava sozinha para o camarim. E ali ficava, ora imóvel — perturbada pelas ondas que me engoliam na mansidão do nada —, ora debatendo-me nas paredes invisíveis que me serviam de prisão.


Com o tempo, desisti de procurar aceitação. Percebi que de alguma forma não merecia ser amada, nem tampouco compreendida. Agarrei-me aos galhos que cresciam silenciosamente em meu mundo, adubando, no frescor das noites insones, algumas poucas lembranças que me pudessem ser úteis. Deixei que transbordasse nas veias partidas pelos inúmeros erros que cometi, aquilo que outrora era líquido e que não sei por qual motivo específico, tornara-se uma gosma pegajosa. Na solidão e na ausência, preguei em cada parede um retrato do que poderia ter sido minha existência e lancei-me aos ventos, experimentando a liberdade do pássaro que desconhece o momento exato da morte. E é feliz por existir na inocência de que está sempre pronto para o abate.

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Vássia Silveira nasceu em Belém (PA), em 1971. É jornalista, mãe de Clara e Anaís e autora do site "Ana e suas mulheres". Foi editora da revista "outraspalavras", no Acre. Atualmente mora em Fortaleza e tem textos publicados nos sites Cronópios e Bestiário, entre outros. Assina também o blog "Gavetas e Janelas". Em julho de 2007 lançou seu primeiro livro, "Braboletas e Ciúminsetos" (literatura infantil), pela Editora Letras Brasileiras, com ilustrações de Marcelo Vaz.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_vassia_passaros.asp