quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Luiz Vilela (Fazendo a Barba)

 O barbeiro acabou de ajeitar-lhe a toalha ao redor do pescoço. Encostou a mão:

 — Ele está quente ainda...

 — Que hora que foi? — perguntou o rapazinho.

 O barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o barbeiro olhou para ele.

 — Que hora que ele morreu? — o rapazinho tornou a perguntar.

 — De madrugada — disse o barbeiro; — ele morreu de madrugada. Estendeu a mão:

 — O pincel e o creme.

 O rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a mezinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até fazer espuma.

 O rapazinho era sempre rápido no serviço mas àquela hora sua rapidez parecia acompanhada de algum nervosismo: o pincel acabou escapulindo de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado junto à cama. Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais descontrolado ainda.

 — Não foi nada — disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça; — isso acontece...

 O rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco, e então entregou a vasilhinha ao barbeiro, que ainda deu uma mexida.

 Antes de começar o serviço, o barbeiro olhou para o rapaz:

 — Você acharia melhor esperar lá fora? — perguntou, de um modo muito educado.

 — Não, senhor.

 — A morte não é um espetáculo agradável para os jovens — disse. Aliás, para ninguém...

 Começou a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava cerrada.

 Através da porta fechada vinha um murmúrio abafado de vozes rezando um terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava pela janela aberta do quarto.

 O barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a navalha e o afiador na mão: entregou-os ao barbeiro e pôs na mesa a vasilhinha com o pincel.

 O barbeiro afiava a navalha. No salão, era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres de música clássica, que ele ia assobiando. Ali, no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento: alguém poderia quase deduzir que ele, em sua cabeça, assobiava uma marcha fúnebre.

 — É tão esquisito — disse o rapazinho.

 — Esquisito? — o barbeiro parou de afiar.

 — A gente fazer a barba dele...

 O barbeiro olhou para o morto:

 — O que não é esquisito? — disse. — Ele, nós, a morte, a vida, o que não é esquisito?

 Começou a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda, e com a direita ia raspando.

 — Deus me ajude a morrer com a barba feita — disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. — Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. E tão esquisito...

 O barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o rosto do morto — mas não tinha nada a ver com a observação do rapaz; estava apenas olhando como ia o seu trabalho.

 — Será que ele está vendo a gente de algum lugar? — perguntou o rapazinho.

 Olhou para o alto — o teto ainda de luz acesa —, como se a alma do morto estivesse por ali, observando-os; não viu nada, mas sentia como se a alma estivesse por ali.

 A navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a barba, ele agora parecia mais um morto.

 — Por que a gente morre? — perguntou. — Por que a gente tem de morrer?

 O barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha e fechou-a, deixando-a na beirada da cama.

 — Me dá a outra toalha — pediu; — e molhe o paninho.

 O rapaz molhou o paninho na jarra; apertou-o para escorrer, e então entregou ao barbeiro, junto com a toalha.

 O barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto. Com a ponta do pano, tirou um pouco de espuma que tinha entrado no ouvido.

 — Por que será que a gente não acostuma com a morte? — perguntou o rapazinho. — A gente não tem de morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma?

 O barbeiro fixou-o um segundo:

 — É — disse, e se voltou para o morto. Começou a fazer o bigode.

 — Não é esquisito? — perguntou o rapazinho. — Eu não entendo.

 — Há muita coisa que a gente não entende — disse o barbeiro.

 Estendeu a mão:

 — A tesourinha.

 Na casa, o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na rua, caminhando no ar fresco da manhã.

 — O pente — disse o barbeiro. — Pode ir guardando as coisas.

 Quando acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o rosto do morto.

 — A tesourinha de novo — pediu.

 O rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha.

 O barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode. Os dois ficaram olhando.

 — A morte é uma coisa muito estranha — disse o barbeiro.

 Lá fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola, carros passando.

 Os dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um boteco, o barbeiro parou:

 — Vamos tomar uma pinguinha?

 O rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, e não sabia o que responder.

 — Uma pinguinha é bom para retemperar os nervos — disse o barbeiro, olhando-o com um sorriso bondoso.

 — Bem... — disse o rapaz.

 O barbeiro pôs a mão em seu ombro, e os dois entraram no boteco.

Fonte:
Ítalo Moriconi (seleção). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000.

Aníbal Lopes (O Amor é Natural)

A nostalgia de uma geração
que tanto cultivou a afeição,
sente-se hoje hostilizada
pelos génios da modernidade
que fabricam a felicidade
que vendem devidamente esterilizada.

Nascidos na sombra do engano
acabam por causar dano
com os seus valores fabricados.
Com falsos juízos de valor
dão outro sentido ao amor
sem a expressão pura dos apaixonados.

Tudo surge como fruto de pecado
e querem fazer-te culpado
da rua rebeldia de sentimentos.
Mas a sua existência frustrada
só pode ser ignorada
por tão ausente de fundamentos.

A sua tão frágil concepção
do que diz respeito ao coração,
parece-me irónica decadência.
O amor é simplesmente natural
tal como um alimento essencial,
mas o amor não é uma ciência.

Fonte:
Poema enviado por Lino Mendes/Portugal

Carina Isabel M. Cardoso (Luzia)

Por aqueles corredores com pisos soltos, paredes encardidas e descascadas, Luzia transitava todos os dias, vendo sua vida passar sem perceber o dia lá fora.

Mulher magra e muito alva, com aparência cansada e desleixada de quem tem pouco tempo para si, mas ainda mostrando-se bela, apenas descuidada, ela segue mais uma vez para o quarto da mãe doente e moribunda. Luzia cuida da mãe com todo o zelo que uma filha pode dispor à sua progenitora, apesar de seus olhos não esconderem o desprezo por aquela mulher que apesar de velha e doente ainda consegue ser tão cruel, com uma língua tão ferina.

Apesar de religiosa, D. Matilde não tinha nem de longe um coração puro, tinha um olhar que só passava frustração, mágoa e inveja a quem o fitasse. Nada de bom se aprendia com aqueles olhos negros e fundos, mesmo sendo tão experientes e sábios.

D. Matilde sempre foi uma mulher ligada à igreja, querida pelos que compartilhavam sua fé, tão caridosa, tão solicita aos necessitados que a comunidade ajudava, mas, dentro de casa sempre levou a família com mãos de ferro, nunca dando a menor mostra de carinho e afeição pela única filha e nem ao marido que sempre fez de tudo para agradá-la, bancando todos os seus caprichos, até mesmo concordando que Luzia, por ser a única filha, não deveria se casar enquanto os dois ainda estivessem vivos, que ela deveria era cuidar dos pais e da casa, pois eles não tinham mais ninguém por eles, e mesmo que ela se casasse e morasse perto não seria suficiente, teria que morar sempre com eles, até o fim.

Quando o pai faleceu, Luzia perdeu sua única alegria de estar ali, pois o pai era um homem muito gentil, e apesar de fraco, nunca retrucou uma palavra maldosa de sua esposa, mesmo assim sua relação com ele era muito boa, ela procurou aceitar que o pai agia dessa maneira para manter as coisas em harmonia.

Agora que estavam sós, apenas as duas vivendo na casa, as coisas eram levadas na base da diplomacia entre elas, e ao entrar naquele quarto escuro, fétido e triste ela se preparava para ouvir qualquer coisa de sua mãe, e quando entrava aquela troca de olhares, o ódio com que aqueles olhos negros e profundos das duas se encontravam, chegava a doer na alma. E, D. Matilde não aceitava o fato de estar tão doente, sempre colocando a culpa na filha, pois se não a tivesse parido com certeza sua saúde estaria muito melhor, não teria perdido tanto tempo cuidando de uma criança e sim de si mesma, e não precisaria de ajuda de ninguém.  Era inaceitável para ela ter que ser guiada até o banheiro, tomar banho na cama, mas Luzia mesmo com tantos motivos para odiar sua mãe, não conseguia apenas se sentia muito pequena diante daquela mulher na cama, emagrecida e doente. Queria apenas um pouco de respeito, afinal ela se abandonou completamente para estar ali, não amou, não estudou, não viveu nada além daqueles corredores com pisos soltos e paredes encardidas, ouvindo as amigas de sua mãe dizer o quanto ela era boa e generosa, o quanto ela deveria ser grata por ter nascido em um lar tão abençoado, e aquelas palavras acabavam por diminuir ainda mais sua esperança de respeito, apesar de seu tamanho, ela se imaginava quase invisível aos olhos negros, profundos e cheios de rancor com os quais sua mãe a fitava entrando no quarto trazendo sua comida, esperando até que ela desse a última garfada e para limpar a boca da mãe.

Rezava todas as noites para que aquela fosse a última de sua sina, já não aguenta mais, não o trabalho a ser feito, mas sim o desprezo, mas então outro dia recomeçava e com ele a sina que parecia não ter fim, e a cada dia que passava ficava mais difícil encarar aqueles olhos, aquele rancor. E então, aquela menina que tanto lutou para não ter aqueles olhos, os viu no espelho quando refletia a sua imagem e não a dela; viu a mesma amargura, o mesmo mal, sem saber de onde veio o dela; sabia exatamente o quando e o porquê seus olhos se tornaram brilhantes como duas pedras de ônix; mas o brilho não era bom, não era agradável, e então ela soube que era hora de acabar com sua sina, foi até o seu algoz e com toda a coragem que o mundo poderia lhe dar naquele momento, em uma última tentativa de viver bem, abraçou sua mãe, disse que a amava e que iram ter novas regras em casa a partir daquele momento; não suportaria mais aquelas palavras cruéis, os olhares de desdém, o rancor e a culpa, tomaria as rédeas da situação e que a mãe pensasse o que quisesse daquilo. Foi então que viu sua mãe chorar pela primeira vez em sua vida de quarenta e dois anos, um choro verdadeiro e sentido, vindo da alma, como se descarregasse o peso acumulado a vida inteira, mas nunca explicou o porquê daquele choro tão dolorido, mas a partir daí as coisas ficaram diferentes, Luzia conheceu o amor e casou-se, teve filhos e ninguém mais soube de D. Matilde, o que houve com ela só a filha sabe, e o motivo daquele choro também não foi revelado...

Luzia nunca mais pisou naquela casa de pisos soltos e paredes encardidas…

Fonte:
Clic – Palavra de Mulher
http://sorocult.com/palavrademulher/escritora.php?codigo=53

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 639)

Uma Trova de Ademar 

Ganhei diversos troféus
mas me falta um na lista:
ganhar o reino dos céus...
A derradeira conquista!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Prá não cometer deslizes
afirmo, sem hesitar...
Seu poema CICATRIZES!
“Marcou” – Vou sempre lembrar!
–Décio Rodrigues Lopes/SP–

Uma Trova Potiguar 


Não me tire dessa lista
não cabe a mim essa cova,
pois poeta cordelista
também aprecia trova.
–José Acaci/RN–

Uma Trova Premiada 


2011  -  CTS-Caicó/RN
Tema  -  PEGADA  -  12º Lugar


Deus me cobre de bonanças
e me guia estrada além
porque, nas minhas andanças,
sigo as pegadas do Bem.
–Antônio Juraci Siqueira/PA–

...E Suas Trovas Ficaram 


A primavera aos oitenta
só não está mais vazia,
porque a saudade a sustenta
e é seu pão de cada dia.
–Miguel Russowsky/SC–

Uma Poesia 


Só o presente me diz
tudo que fiz no passado,
caminho certo ou errado,
nas caminhadas que fiz,
só mesmo o destino quis
modificar minha mente,
o corpo velho e doente
mantém as rugas da cara.
A saudade não separa
o passado do presente.
Zé Vicente/PB–

Soneto do Dia 

ANJO NEGRO.
–Divenei Boseli/SP–


Tentando em vão ouvir a voz do sino
sepulto nas sepultas pedras brutas,
eu perguntei ao mar: - com que permutas
o som que eu tento ouvir com desatino?

Assim foi quando eu quis, do meu destino,
sondar os socavãos das próprias grutas
que guardam até hoje, hostis e astutas,
meu barco sem timão: meu próprio tino.

Mas, vendo entardecer o meu desgosto,
a lua branca e o sol, já quase posto,
descerram do mistério o denso véu

e um anjo cor da noite, abrindo a trilha,
levou-me ao céu recôndito da Ilha
e eu cavalguei o mar dentro do céu!

Fonte:
Seleção por Ademar Macedo

Márcia Tiburi (1970)

Márcia Angelita Tiburi (Vacaria/RS, 6 de abril de 1970)

Graduada em filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1990), e em artes plásticas, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996); mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1994) e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999) com ênfase em Filosofia Contemporânea.

Seus principais temas são ética, estética e filosofia do conhecimento.

Publicou diversos livros de filosofia, entre elas as antologias As Mulheres e a Filosofia (Editora Unisinos, 2002),  O Corpo Torturado (Ed. Escritos, 2004), e Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero (2008, Edunisc), Seis Leituras sobre a Dialética do Esclarecimento (2009, UNIJUí).

 Publicou também os ensaios: Crítica da Razão e Mímesis no pensamento de Theodor Adorno (EDIPUCRS, 1995),Uma outra história da razão (Ed. Unisinos, 2003), Diálogo sobre o Corpo (Escritos, 2004), Filosofia Cinza - a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (Escritos, 2004) e Metamorfoses do Conceito (ed. UFRGS, 2005). 

 Em 2008 publicou Filosofia em Comum - para ler junto (Record). Publicou em 2009 em parceria com Denise Mattar o livro Maria Tomaselli, sobre a artista homônima.

 Em 2010 publicou o infantil Filosofia Brincante (Record) e Diálogo/Desenho (ed. SENAC). Publicou em 2011 Olho de Vidro, a televisão e o estado de exceção da imagem (Record).

 Publicou os romances Magnólia em 2005 indicado em 2006 ao Jabuti de melhor romance e o segundo volume da série Trilogia Íntima chamado A Mulher de Costas em 2006 (ambos pela Ed. Bertrand Brasil). Em 2009 finalizou com o romance O Manto(pela Ed. Record), a série intitulada Trilogia Íntima.

 Em 2012 publica o romance Era Meu esse Rosto pela Editora Record. Ainda no prelo encontram-se os livros Diálogo/Dança e Diálogo/Fotografia pela editora do SENAC-SP.

 Como escritora, já participou de diversos eventos literários, entre eles a Jornada Literária de Passo Fundo, a Fliporto, o Festival da Mantiqueira, a Tarrafa Literária de Santos, as Bienais do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais, as feiras de Ribeirão Preto, de Porto Alegre, de Santa Maria, a Panamazônica de Belém, e diversas outras.

 Escreveu para várias revistas e jornais e desde 2008 é colunista da Revista Cult.

 É professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, professora convidada da Fundação Dom Cabral. Realiza palestras sobre filosofia, ética e educação e temas relacionados.

Fontes:
http://www.marciatiburi.com.br/curriculo.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Márcia_Tiburi

Marcia Tiburi (O Desejo do Tempo)

 Os antigos gregos tinham em Chronos, deus do tempo, a imagem do pai todo poderoso devorador dos filhos. Ele criava, ele mesmo aniquilava. O tempo cronológico é apenas o tempo que passa. Mas a experiência do tempo não passa tão simplesmente, somos nós que passamos por ela. Nos constituímos, em nossa interioridade, a partir dela. Como dizia Santo Agostinho, o tempo é algo complexo demais, sendo muito difícil para cada um explicá-lo. Tanto quanto é fácil de entender, pois estamos nele desde sempre. O tempo nos possui e não o contrário.

UM DIA DE CADA VEZ

É melhor viver um dia de cada vez? É provável que ouçamos ou pronunciemos esta frase em vários momentos da vida. Quando incertezas e desesperanças se põem em cena é a reflexão sobre o tempo (seja ele dito na forma dos dias, das horas, do tempo ao tempo) que sustenta nossas ponderações. Ou na básica ansiedade que move o cotidiano, quando não compreendemos as próprias direções, quando, sem perspectiva ou foco, parece que não buscamos nada. Ansiosos quando queremos muito, nem sempre sabemos bem o que queremos. E nos angustiamos porque estamos no tempo, medido, e não na eternidade, desmedida. A vida exige solução, mas o tempo é o limite de toda vontade. Por isso, ele também é possibilidade.

A frase traz uma sabedoria básica na forma de um conselho sobre o uso e a compreensão do tempo, do qual depende o desejo, nome que se dá ao modo de nos relacionarmos ao futuro, o nosso e o que compomos junto de outros. A frase nos diz sobre um modo de tratar com a frustração comum na sociedade de hoje: a da ausência do desejo que diz respeito a uma incapacidade de criar projeto de vida. Ou seja, o que fazer da vida dentro de seu limite. “Um dia de cada vez” significa: “vá com calma, aproveite o tempo presente”, mas por outro lado, também diz “esqueça a totalidade da vida”. Aí conhecemos o conflito com a “temporalidade” sobre o qual vivemos cegos. Se pensarmos em termos de vantagens, talvez não seja frutífero ter em mente a vida inteira, o todo do que podemos fazer com o tempo que dispomos, pois não há certeza sobre o que virá. Porém, sem pensar no todo da vida, que é o tempo que temos para viver, talvez fique difícil orientar-se dentro dela. Sem sabermos do nosso tempo, estamos perdidos de nós mesmos, sem futuro. A dimensão do tempo é mais que psicológica e metafísica, ela é também prática. Põe-nos diante de nossa liberdade de decisão, define o destino, ou o tempo, que devemos construir.

 A experiência do tempo pode ser uma experiência de angústia, de que algo desconhecido nos espreita. Só o desejo é a cura desta sensação de opacidade da vida. O desejo não é tormento, mas o caminho para sair dele. Ela não vem do nada. Nasce do tempo experimentado em seu limite, do fato de que há a consciência perturbadora da existência que é a morte. Enquanto esperamos seguimos a “viver um dia de cada vez”. No tempo que é sempre medida, a soma dos dias, compõe o sentido da vida, o valor da eternidade.

OS LIMITES DA EXPERIÊNCIA

Assim como damos “limites” às crianças para que possam orientar seus desejos, seus quereres e poderes, nós, mesmo adultos, deveríamos nos reorientar no nosso limite com a vida, a que chamamos tempo. O tempo, todavia, não é a mera duração da vida. A duração é só o tempo do relógio, ela se parece mais com o espaço que percorrem os ponteiros no mostrador. Nosso modo de compreender o tempo é o que nos orienta na vida: o tempo do trabalho, o tempo do lazer, o tempo do conhecimento, do amor, o tempo interior, o tempo domesticado pela vida orientada e administrada que vivemos. O tempo é um radar que nos ensina aonde ir, nossas urgências, os caminhos que precisamos escolher diante da impossibilidade de seguir todos.

 A frase sobre o dia a dia a ser vivido de um em um, nos serve de antídoto quando vivemos esta frustração tão específica que é a do tempo que não aprendemos a experimentar em seus dois pólos, o do todo fora de nós (a família, a sociedade, a história, o planeta) e o do que se elabora em nossa interioridade. De um lado, vivemos o nosso tempo pessoal, o tempo de cada individualidade, de cada um que experimenta seu corpo, seu sentimento, medos, anseios, possibilidades, e sua noção de morte. O tempo individual é sempre o tempo da insegurança. Buscamos os outros: filhos, maridos, amigos, trabalho, para participarmos do tempo coletivo onde, ao partilharmos a insegurança com as demais individualidades, a eliminamos. Para tudo isso é preciso sempre muita atenção sobre o que estamos vivendo.

A AVAREZA DO TEMPO

Por outro lado, todos aqueles que sabem o valor do tempo, costumam pensá-lo em analogia com o dinheiro: tempo é dinheiro. Quem dispensa tempo, dispensa dinheiro ou, em termos mais técnicos, dispensa lucro. Mas o que é o lucro senão a vantagem que temos em relação aos outros, ao trabalho, à vida? O lucro é um “a mais”, mas a vida não vai nos dar mais tempo. Logo, tempo não é necessariamente dinheiro, mas justamente o que nos logra se a vida não foi bem vivida. Se o avaro economiza dinheiro, quem economizar tempo não poderá ser avarento, a rigor, o tempo é algo que sempre se multiplica. O tempo se multiplica na generosidade. É uma questão de organização. O desejo só surge como mensagem na garrafa àquele que entendeu a função de seu tempo próprio no tempo coletivo.

Fonte:
Revista Vida Simples. Janeiro de 2007. Ed. 49. P. 56-57.
http://www.marciatiburi.com.br/textos/odesejodotempo.htm

Marcia Tiburi (Entre a Ficção e a Filosofia)

A escritora Márcia Tiburi participa de dois eventos em Curitiba em que discute sua produção literária e sua relação com a leitura   

Como muitos escritores brasileiros, a gaúcha Márcia Tiburi divide sua produção literária com atividades acadêmicas. Ela é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, em São Paulo. Para ela, porém, não há uma distinção clara entre a filosofia e a literatura. “Embora sejam coisas diferentes, uma ensina a outra. Quando eu faço filosofia, eu trabalho com conceitos, e quando eu faço literatura, trabalho com a imaginação. A descoberta da literatura ajuda a minha filosofia, e vice-versa”, explica em entrevista por telefone à Gazeta do Povo.

A escritora chega hoje a Curitiba para dois eventos, em que discute mais a fundo as relações de sua produção artística: primeiro, conversa com o músico Heitor Humberto, da Banda Gentileza, às 20 horas, no Teatro Sesi durante o Sesi Zoom Cultural, evento voltado ao público jovem que reúne artistas de diferentes áreas. Depois, na quarta-feira, às 20 horas, Márcia bate um papo com o público sobre sua obra e a importância da leitura, no do projeto Paiol Literário, promovido pelo jornal Rascunho, em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep, no Teatro do Paiol.

A escritora, autora dos romances Magnólia (2005), A Mulher de Costas (2006) e, mais recentemente, Era Meu Esse Rosto (2012), entre outros, foi comentarista semanal do talk show feminino Saia Justa, exibido pelo canal pago GNT, junto com Luana Piovani, Monica Waldvogel e Maitê Proença, e afirma que falar com o público é um exercício constante. “Meu trabalho como professora e escritora é articular com alunos, jornalistas, leitores, e não há muita diferença para mim. Mas percebo como meus leitores, quando conversam comigo em encontros literários, preferem falar de filosofia, que é uma experiência construída unicamente da reflexão, e não exige o conhecimento de uma narrativa.”

Atualmente, a escritora vai além do romance e do texto acadêmico. Colunista da revista Cult desde 2008 e cronista do site Vida Breve, ela explica como os diferentes gêneros são parte fundamental de sua vida: “Quando eu escrevo literatura, há um outro esforço, o da estética escrita. Eu entro no reino das sensações, das imagens, tudo bem diferente do território da razão filosófica. E eu gosto das duas coisas. Já pensei se deveria largar uma, mas percebi que não passo sem elas. E sei que não estou sozinha, porque sei de outros que seguiram pelo mesmo caminho, como Camus, Sartre e Simone de Beauvoir.”

Fonte:
Gazeta do Povo. Caderno G. 16 de agosto de 2012.

Rosângela Boyd de Carvalho (O Negro na Literatura Brasileira: a necessidade de um novo paradigma de crítica social e literária)

A história da África e seus habitantes, especialmente os que foram trazidos para o Brasil como escravos e seus descendentes, ou seja, todos nós, transformou-se, ainda que tardiamente, em componente curricular obrigatório. Talvez não a obrigatoriedade mas o privilégio de saber sobre o continente africano devesse nos impulsionar a descobrir mais sobre uma terra tão íntima e ao mesmo tempo estranha, próxima e distanciada.

Há mesmo quem chegue a pensar que a África é um país e não um continente. E normalmente esse país é pensado como um lugar onde habitam povos “primitivos” que vivem em tribos em meio à floresta cheia de animais selvagens. (ADINOLFI, 2005: p.1)

Estes e outros estereótipos encontram-se amplamente divulgados pelos meios de comunicação e pelo próprio sistema educacional, ainda representando extensões do pensamento europeu do final do século XIX, até então considerado científico, mas que veiculou informações menos científicas do que ideológicas sobre o continente africano, a fim de justificar o sistema de dominação colonial.

Forjou-se um conceito de raças humanas pressupondo uma hierarquia em cujo topo estava, evidentemente, o branco (caucasiano). Na base estariam os povos africanos e outros de pele escura, como os aborígenes australianos, vistos como “incapazes”, “preguiçosos”, “atrasados”, “selvagens” que só poderiam ser salvos pela ação da colonização européia. (Idem, Ibdem)

O outro lado da moeda que estampa o africano incapaz e atrasado revela o branco superior e desenvolvido. A teia de conceitos confunde ciência com ideologia, individualidades com estereótipos, verdades com vontades, onde se tece uma outra forma de cativeiro: a escravidão simbólica que irá castigar incansavelmente a auto-estima dos afrodescendentes.

O texto literário do século XIX, ansioso por configurar nossa identidade nacional, deixa escapar as contradições de uma sociedade que deseja acompanhar os modelos da modernização européia, beneficiando-se ainda da herança nefasta da escravidão.(SCHWARZ, 1990) A literatura oficial brasileira, acompanhando o modelo social hierarquizado, teria desprestigiado as atuações das etnias diferenciadas até o início do século XX, à exceção de Lima Barreto e Solano Lopes que, mesmo assim, só bem mais tarde receberam algum reconhecimento. A representação dos negros na literatura ficaria restrita a alguns estereótipos, entre os quais, aqueles do negro dócil, castigado, submisso, ou, por outro lado, bestial, instintivo, carnal. Assim, ocorreu um processo que substituiu a invisibilidade por uma visibilidade estereotipada, que felizmente existiu para que pudesse ser desmentida, tal como aparece em Solano Trindade ao revelar o homem negro como um ser humano em sua complexidade, sujeito de uma escritura:

    Eu tenho orgulho de ser filho de escravo…
    Tronco, senzala, chicote,
    Gritos, choros, gemidos,
    Oh! que ritmos suaves,
    Oh! Como essas coisas soam bem
    nos meus ouvidos…
    Eu tenho orgulho em ser filho de escravo.


No entanto, a literatura encontra-se povoada por estereótipos de todas as cores: desde o Gaúcho de Alencar, que cavalgava pelos pampas sem subjetividade, à donzela pálida e assexuada, passando pelo índio homenageado por bom comportamento, o português rústico, o sertanejo jeca ou o nordestino retirante. Quanto à representação do negro, identificam-se dois grupos de autores: um deles representando os personagens negros a partir de estereótipos que apenas reproduziriam o modelo social hierarquizante; e um outro que busca subverter essa representação. Porém, talvez seja impróprio compará-los e, principalmente, cobrar dos primeiros o amadurecimento de uma consciência étnica e crítica que se construiu a partir de um processo histórico e estético que apenas o segundo grupo vivenciou.

Então, podemos indagar: Quando os negros participam da produção literária em forma de estereótipo, não seria possível encontrar do outro lado dessa moeda desvalorizada o branco também preso ao seu próprio estereótipo? Ah! Mas aí seria um estereótipo positivo, já que o europeu seria representado como o Senhor, como aquele que segura o cabo do chicote. No entanto, se compreendemos essa representação como “positiva”, não estaríamos compartilhando o mesmo ideário, a mesma concepção eurocêntrica que preparou tais dicotomias? Será que a concepção da negritude é uma capacidade epitelial?

Talvez esse sentimento dependa menos da origem do que da capacidade de duvidar de verdades construídas para proteger interesses, ou da vontade de verdade ocidental, que engendrou conceitos como raça, pureza, desenvolvimento etc. (NIETZSCHE, 1992) No entanto, reproduzir a ideologia dominante não caracterizaria necessariamente uma literatura não-negra, mas uma literatura não-crítica. Mas isso é igualmente uma classificação imprópria, principalmente se levarmos em consideração que os silêncios do texto também significam algo; que nós podemos detectar o que foi silenciado, como detectamos o silenciamento dos personagens negros, de seu aprisionamento em estereótipos, do mesmo modo que podemos observar o sacrifício e o sofrimento de Peri e Iracema, por mais que Alencar desejasse afirmar a harmonia do encontro entre o colonizador e o índio, ou tapar o sol com a peneira, como diz o ditado popular.

Uma outra personagem feminina, desta vez não uma índia mas uma mulata, teria recebido um tratamento inadequado pelo poeta Gregório de Matos. É em relação ao tratamento dispensado à mulher que o poeta estabelece uma nítida distinção entre as raças. Assim, ele retrata a mulher branca como um ser angelical – anjo no nome, angélica na cara – para deixar patente a sua inacessibilidade como ser superior, enquanto a visão que projeta da mulher negra corre em direção contrária, de modo que o rebaixamento no seu tratamento contrasta com a divinização emprestada à mulher branca. Daí, enquanto Maria é definida como santa, anjo ou deusa, à personagem Jelu não seria dispensado tratamento semelhante, restando-lhe os atributos que pertenceriam ao “sórdido”, “impuro” ou “bestial”

Assim, em contraste com a visão de amor platônico retratada no soneto que Gregório dedica a Maria, Jelu é transfigurada, sem a menor cerimônia, em gata dissoluta.(NASCIMENTO, 2006:p.59) Portanto, o poeta seiscentista ainda não transgride uma concepção de mundo baseada em dicotomias e hierarquias. No entanto, observando isso, poderíamos nos perguntar se tal paradigma classificativo é facilmente superável.

Afinal, quando um determinado paradigma de escolha nos incomoda – carnal em vez de espiritual, pureza em vez de luxúria, bestial em vez de humano, puta em vez de santa –, isso significa que ainda estamos operando nos termos de seu modelo dicotômico e hierarquizante, ou seja, que não superamos ainda a velha cartilha do pensamento ocidental que classificou os africanos como inferiores, incapazes e feios, enquanto ressaltava a inteligência, a beleza e a superioridade do europeu.

No fundo, o que efetivamente nos incomoda é a possibilidade de sermos identificados como pertencentes aos “impuros” ou “inferiores”, mas não propriamente a existência do modelo cultural que opera com dicotomias. Ora, pensando ou sentindo nesses termos, embora não conscientemente, o trabalho de crítica não está livre de reproduzir a mesma concepção de mundo daqueles que, antes de escravizarem os africanos, escravizaram os paradigmas de verdade e autoproclamaram-se modelos de excelência cultural, social ou racial.

Referências

ADINOLFI, Maria Paula Fernandes. “Africanidade: diversidade e unidade nas sociedades africanas”. In Cartilha do Museu Afro-brasileiro. Salvador: CEAO/UFBA, 2005. p.1

NASCIMENTO, Giselda Melo. O negro como objeto e sujeito de uma escrita. Londrina: UEL, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas cidades, 1990.
–––––––––––––
* ROSÂNGELA BOYD DE CARVALHO é Mestre em Literatura Brasileira pela UFF; Pós-Graduada em Cultura e Literatura Africana pela UCB; Profª. Titular de Literaturas na Faetec e Feuduc.

Fonte:
Artigo enviado poe Antonio Ozaí da Silva, da Revista Espaço Acadêmico, da Universidade Estadual de Maringá, n76, setembro de 2007, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/076/76carvalho.htm

Cristovão Tezza (O Território do Escritor)

A língua é o espaço que forma o escritor. Tentar compreendê-la (essa tarefa impossível) será, portanto, um bom caminho para compreender a atividade da literatura. A questão é que há tantas línguas - e isso no universo do mesmo idioma - quanto há escritores. Quando falo de língua, não se trata apenas do simples depósito de palavras que circulam em uma comunidade, nem de um sistema gramatical normativo às vezes mais, às vezes menos estável numa sociedade, numa estação do ano, num sexo, numa região, numa família ou em parte dela, num lugarejo, numa classe social, naquela rua, num determinado dia, num livro - e quase nunca num país inteiro.

A língua em que circula o escritor jamais é uma entidade unitária. Não pode ser, em caso algum, uma ordem unida. Porque a matéria da literatura não é um sistema abstrato de regras e relações, uma análise combinatória de fonemas ou um conjunto de universais semânticos - como tem sido a língua para uma corrente considerável dos cientistas da língua. Justamente por serem abstratos, justamente por serem apenas fonemas e justamente por serem universais, esses elementos primeiros são desprovidos de significado - servindo a todos, não servem a ninguém. De fato, não chegam a se constituir em "língua", uma vez que deles se suprimiu a outra parte indispensável da palavra: o falante.
 
O falante - o homem que tem a palavra - é portanto o verdadeiro território do escritor: a língua real e concreta é ele. E em que sentido ele pode ser considerado uma entidade universal? Isso interessa, porque no exato momento em que uma palavra ganha vida, na voz do falante, ela ganha também o seu limite: o pé no chão, que não é qualquer chão, o espaço, que é esse espaço, e não outro, o ar que se respira, o tempo, o dia, a hora, toda a soma das intenções muito específicas convertidas no impulso da palavra; e, é claro, a ninguém interessa o que a palavra quer dizer de velha (isso até o dicionário sabe), mas o que ela quer dizer de nova, isto é, o que é novo e surpreendente no que se diz. Esse espetáculo das vozes que falam sem parar no mundo em torno, ou nesse mundo em torno, nesse exato momento, é a vida indispensável de quem escreve. É nessa diversidade imensa e imediata que se move quem escreve, o ouvido atento.

Mas há ainda um terceiro complicador na palavra, além da sua matéria mesma e além daquele que fala. Porque, se desdobramos a palavra, descobrimos que quem lhe dá vida não é exatamente o falante. Ninguém no mundo fala sozinho. Mesmo que, numa redução ao absurdo, isso fosse possível - ou seja, uma palavra que dispensasse os outros para fazer sentido - ela seria uma palavra natimorta, um objeto opaco à espera de um criptólogo que lhe rompesse o isolamento, como um Champollion diante de uma pedra no meio do caminho, mas então a suposta pureza original auto-suficiente estaria destruída.
 
Assim, surge outro território essencial de quem escreve: o território de quem ouve, a força da linguagem alheia, dos outros, num sentido duplo - interessa tanto o que os outros nos dizem (e somos nós que damos vida a essas palavras que vêm de lá, antes mesmo de se tornarem voz), quanto o que nós dizemos (e são eles, os outros, que dão vida ao que dizemos, antes mesmo de a gente abrir a boca). Para a palavra e para tudo que significa, os outros não são uma escolha, mas parte inseparável. Mesmo solitários, de olhos e ouvidos fechados, isolados na mais remota ilha do mais remoto oceano, no fundo de uma caverna escura e silenciosa, mesmo lá ouviríamos, em cada palavra apenas sonhada, a gritaria interminável dos que nos ouvem.

Enquanto isso, é sempre bom lembrar que nesse trançado infinito de vozes o que trocamos não são símbolos e códigos neutros; nem sinais de computador, nem mensagens unilaterais; a vida da linguagem está no fato de que não ouvimos ou lemos apenas sons ou letras, mas desejos, medos, ordens, confissões; de que não falamos ou escrevemos sinais, mas intenções, pontos de vista, sonhos, acusações, defesas, indiferenças. Ninguém entende a linguagem como certa ou errada (exceto nos cadernos escolares), mas como verdadeira, mentirosa, bela, nojenta, comovente, delirante, horrível, ofensiva, carinhosa... É exatamente nesse pântano inseguro dos valores que se move o escritor. E é apenas nesse terreno de valores que a forma da palavra pode ganhar seu estatuto estético, a sua dignidade poética, historicamente flutuante.

A língua do escritor é uma entidade necessariamente impura, contaminada, suja de intenções, povoada previamente de muitas outras línguas (do mesmo idioma ou fora dele), de milhões de vozes. Se nessa diversidade essencial está a riqueza de quem escreve, nela também está a sua fronteira necessária, e, em última instância, a sua ética. Para formar a minha palavra, eu preciso da palavra do outro compartilhando com ela a força e o valor de origem - esse o meu limite. A palavra que eu tomo em minhas mãos, como ensina Bakhtin, não é nunca um objeto inerte - há sempre um coração alheio batendo nela, uma outra intenção, uma vida diferente da minha vida, com a qual eu preciso me entender, se pretendo significar. Assim, a minha liberdade de criação, a minha palavra, tem na autonomia da voz do outro o seu limite. O que parece a natureza mesma da linguagem, o seu duplo, talvez possa se transformar, para o escritor, na sua ética.

Para encerrar, voltamos à questão primeira: se tudo que significa, significa aqui e agora, na urgência do tempo da vida e no limite do espaço dos nossos passos, em que sentido a língua é uma entidade universal? Entre a língua que falam os brasileiros e a que falam os franceses e os americanos e os nigerianos e os esquimós e os tupis, e dentro de cada uma delas, entre os que são a e os que são b, há uma relação universal de sinais ou uma relação muito específica de força? Só vejo uma resposta: de força, é claro, mas pode se tornar universal, desde que a universalidade se entenda como uma escolha, uma penosa construção da cultura e nunca como uma dádiva dos deuses, uma imposição política ou uma essência mesma da linguagem. O desejo da comunhão universal será sempre, também, matéria prima do escritor, porque a arte, ao contrário dos homens, ou é generosa ou não existe - mas isso, mais uma vez, é outra história.

Fonte:
coletânea Do músculo da Boca - Textos do Encontro "Galego no Mundo" - Santiago de Compostela, 2000. Disponível em http://www.cristovaotezza.com.br/textos/contos/p_territorio.htm

Nilton Manoel (Didática da Trova) Parte 6

2.2 ORIENTAÇÕES E CUIDADOS QUE AJUDAM

Acreditamos que, o texto a seguir seja oportuno para quem lê, recita ou declama um poema:

“Aprender a pontuar não é aprender um conjunto de regras transmitidas através de um discurso sobre o que são e para o que servem os sinais de pontuação.
Aprender a pontuar é aprender um conteúdo procedimental de natureza complexa. E como todo conhecimento procedimental, pontuar se aprende pelo uso.

O sistema de pontuação não é composto apenas pelos sinais que conhecemos – ponto final,dois pontos, travessão, virgulas etc.... Dele fazem parte os brancos que centralizam o título, o branco que indica parágrafo, a letra maiúscula, os sublinhados, negritos, itálicos etc.

A função da pontuação no texto escrito não é indicar pausas para respirar. Sua função é separar, traçar as “fronteiras que” vão indicar ao leitor como o texto deve ser lido.

A pontuação é um atributo do texto e recurso da textualidade e não um elemento da frase.

Textualidade é aqui entendida como conjunto de relações que se estabelecem à partir da coesão e coerência.
( CENP, Letra e Vida, 2005, Mod.III, M3U6T8, p.1-2)

É necessário e importante conhecer rimas; porém, não podemos empregar uma rima que não combine a mensagem que está sendo desenvolvida no poema.

Rima é a repetição de sons semelhantes no final de um verso. Pode ser consoante (mesmo som a partir da vogal  tônica) ou toante (rima com a vogal tônica do verso). Na trova, as rimas são. Esquema ABAB.

O poeta deve ser paciente; ler, reler, declamar e trabalhar o poema até que fique pronto. Não devemos nos preocupar com o tempo gasto na feitura de um poema, mas com o seu produto final. O trovador Adelmar Tavares deu-nos a avaliação de fácil e difícil e Olavo Bilac no poema Profissão de Fé. A construção do saber é constante. Começamos lendo com os olhos e depois com todos os órgãos dos sentidos. As conclusões ocorrem à medida que desenvolvemos a aprendizagem poético-literária. Nos dicionários modernos todas palavras estão separadas em sílabas. O verso é feito com sílabas  (poéticas) e, isto leva a aprofundar os conhecimentos. O alfabeto é composto de 5 vogais e as demais são consoantes. Lembremos que o H tem o som da vogal e junta-se na métrica com a sílaba anterior. Cada vez que abrimos a boca, falamos um pedacinho de uma palavra e isto recebe o nome de sílaba. Na forma fixa o poeta  tem que ser exímio metrificador. As silabas gramaticais são apresentadas nos dicionários modernos, facilitando professor e aluno na docência e na aprendizagem. Os encontros de vogais são chamados vocálicos e os encontros de consoantes, consonantais. A palavra dia tem um encontro vocálico, porém  num verso metrificado é separada por ser um hiato. Com relação aos encontros consonantais, devemos atentar-nos na ocorrência do “suarabact”.  Quanto a pronúncia da sílaba forte, oxítona,na última (boné), paroxítona, penúltima (telefone), proparoxítona, antepenúltima ( bombástico). O acento agudo, serve para indicar que a sílaba é tônica e que a vogal têm som aberto. O acento circunflexo, serve para indicar  que a sílaba é tônica e tem o som fechado. A sílaba tônica é  vida  na forma poética. Diversos poetas têm produções com rimas em sons abertos e fechados. Já assinalamos em trovas anteriores esta ocorrência.  Quanto a classificação das palavras quanto a sílabas tônicas, citamos boné,telefone e bombástico. Quanto aos ditongos (encontro de duas vogais pronunciadas em uma mesma sílaba) tem  força na escrita  de um verso. O Decálogo de Metrificação  exemplifica-nos a importância. O hiato tem deixado muita trova sem premiação. As palavras dissílabas – lua, rua, tua; as trissílabas – poeta, miolo, saúde; as polissílabas  são menos  freqüentes nos versos heptassílabos.

Convém não esquecer  que verso é cada linha de um poema. Em algumas regiões do Leste e do Nordeste, por verso, é conhecida a quadra  popular sob a  influência das cantigas de roda.

Luiz Vieira, trovador e cantor de sucesso, visitando o marco zero de Ribeirão Preto, lendo as trovas que contornavam a Fonte Luminosa da Praça XV, assim escreveu, em 17/5/85:

Quando eu pude aqui chegar,
vi tanto amor, tanta graça
que resolvi vir plantar
um verso meu nesta praça.

Luiz Vieira, hoje cidadão ribeirão-pretano, homenageia a capital do Interior paulista, com a Cantiga pra Ribeirão, de onde extraímos estes versos:
nas praças pardais trovadores...
minha Ribeirão da Poesia,
minha capital do saber

Na metrificação de um verso, as sílabas são contadas até a última sílaba tônica. O que vimos neste capítulo reforça a estrutura da Trova, revê os conceitos dicionarizados e prepara-nos para a prática pedagógica da trova.

Continua… prática da trova em sala de aula

Fonte:
Nilton Manoel. A Didática da Trova. Batatais, 2008.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Hermoclydes S. Franco (Album de Recordações) n.5


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 638)

Uma Trova de Ademar 
Amores na mocidade
sempre deixam cicatrizes,
marcas de dor e saudade
no peito dos infelizes...
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Fim de tarde, sol já posto...
Chega a noite enluarada,
satisfazendo o meu gosto,
consagrando a madrugada!
–Vânia Maria Souza Ennes/PR–

Uma Trova Potiguar 


Nas cortinas descerradas...
cada máscara aparente,
são cenas representadas
da própria vida da gente!
–Francisco Macedo/RN–

...E Suas Trovas Ficaram 


Das mensagens que mandaste
o tempo apagou as linhas,
mas lembranças que deixaste:
jamais se apagam, são minhas...
–Graziela Lydia Monteiro/MG–

Uma Trova Premiada 

2009  -  Nova Friburgo/RJ
Tema  -  SAUDADE  -  4º Lugar


Saudade é um velho barquinho
que vence o tempo e a distância
e recolhe, no caminho,
os pedacinhos da infância …
–Ercy Mª Marques de Faria/SP–

U m a P o e s i a 


Apesar de sabedor
do que fiz desde menino,
todo dia aos céus eu peço
a proteção do divino
pra seguir a diretriz
de ser eterno aprendiz
na busca do meu destino.
–Hélio Pedro/RN–

Soneto do Dia 
LAR.
–Héron Patrício/SP–


O meu lar, não me invejem os senhores
- e as senhoras desculpem-me, também -
é mais do que um castelo de esplendores,
maior do que um palácio...muito além!

O meu lar - onde estão os meus amores
e a espécie humana, a quem eu quero bem,
adorna-se de luzes e de cores
se a inspiração, de súbito, me vem.

Meu lar fica no imenso e azul diamante
que, iluminado, vai, nas noites quietas,
a vagar pelo cosmo, sempre adiante...

Meu lar - mundo de artistas e de estetas -
é todo este planeta azul, brilhante,
onde vivem e sonham os Poetas!

Fonte :
seleção e imagem por Ademar Macedo

Raquel Ordones/MG (Meu Mar de Amar)


Nilton Manoel (Didática da Trova) Parte 5

  2.1 SOBRE A DEFINIÇÃO DE TROVA

 “É uma composição monostrófica, formada de 4 versos que condensam todo o pensamento ou emoção. É a forma preferida pela lírica popular, mas também cultivada largamente por poetas de renome.
Mas o que é uma trova? É apenas um pequeno poema, de 4 versos, medindo cada verso 7 sílabas. Eis uma forma que se fixou pela consagração popular. Há quadras com qualquer número de sílabas, de 1 a 12. Não são trovas, entretanto. A trova é uma redondilha maior, ou seja, em versos de 7 sílabas. ( TAVARES,1974, p 309)
             
A definição está nos parâmetros da UBT, e não podemos  considerar trova, mas quadra, esta produção de Laurindo Rabelo:

Cabeça! Que desconsolo!
Cabeça! Força é dizê-lo:
- Por fora, não tem cabelo;
por dentro, não tem miolo.
(CRUZ,1966, p.369):


                 Exige-se que na moderna trova, as rimas estejam dispostas em ABAB. Essa “quadra” tem as rimas ABBA e, apesar da mensagem completa e de perfeição métrica, não é trova literária.Os exemplos que apresentamos se concorrentes a certames literários, seria na pré-seleção, excluída

Mal de amor raro se perde;
é como nódoa de amora:
Só com outra amora verde
A nódoa se vai embora.
Frederico Brito, português
-
Chamaste-me a tua vida;
E eu tua alma quero ser;
A vida acaba côa morte;
A alma não ode morrer.
Tomás Antônio Gonzaga  (CRUZ,1966,p.362)


Na primeira há,  as rimas “perde” - “verde”  e na segunda seu esquema é ABCB. Diversos outros fatores técnicos pesam na feitura de uma trova, como GOLDSTEIN  nos revela:

1- A Unidade do Poema - “Como  toda obra de arte, o poema tem uma unidade, fruto de características que lhe são próprias.

2  O Ritmo do Poema – “Toda atividade humana se desenvolve  dentro de certo ritmo.(...) O rítmo aparece também na produção artística do homem. De um modo especial, na poesia’. (...) ‘A poesia tem um caráter de oralidade muito importante: ela é feita para ser falada, recitada”.   

 3- O rítmo como criação do poeta:- “ As noções de “metro, verso e ritmo” estão estreitamente  ligadas em nossa tradição literária”. (GOLDSTEIN,1991, p.5-7-11)

O poeta J.G. de Araújo Jorge, na introdução de Trovas,  editado  pela Vecchi, dá conotação didática a  esta trova de Lilinha Fernandes:

É  a trova em seu natural
mordaz, alegre ou dolente,
lindo trecho musical
de quatro notas somente.

Os poetas J.G. de Araújo Jorge e Luiz Otávio implantaram os  Jogos Florais Brasileiros. O que são Jogos Florais?

 Os Jogos Florais não tiveram suas origens na Idade Média; em verdade, nasceram  na  Antiga Roma como grandes festas populares em homenagem a Flora, deusa das flores. Flora era mãe da Primavera e as festas acabaram se transformando em concursos poéticos onde os vencedores recebiam coroas de flores.
 
 Em 1323, na França, mais especificamente em Toulouse, sete  poetas organizaram a Academia dos Jogos Florais de Toulouse. O primeiro concurso poético deu como prêmio ao vencedor uma violeta de ouro, isto em 1º de maio de 1324. Estes Jogos Florais se tornaram anuais e os vencedores recebiam como prêmio jóias em forma de flores. 

Daí as duas versões sobre Jogos Florais:

-concursos poéticos em homenagem a Flora;

-concursos poéticos cujos prêmios tinham a forma de flores.
 
 Em 1363, D. João I  de Aragão criou, em Barcelona, um Consistório que realizou os I Jogos Florais de Barcelona,onde, pela primeira vez, foi escolhida a Rainha da Festa. 

Em 1964, os Jogos Florais, na França, tinham o patrocínio da Academia de Belas Artes.
 No Brasil houve os Jogos Florais de Santos (SP) em 1914,1915 e 3 1.916,promovidos pelo Liceu Feminino de Santista, com gêneros poéticos que não a Trova.
 
Em 1958, J.G. de Araújo Jorge e Luiz  Otávio foram vencedores de um concurso da Casa da Bahia,no Rio de Janeiro,tendo como prêmio uma viagem a Salvador. Na volta surgiu a idéia de realizar  Jogos Florais no Brasil,exclusivamente de Trovas, e que os primeiros seriam em Nova Friburgo. E foi assim em 1960, sob o tema Amor; e o primeiro lugar coube ao trovador Rodrigues Crespo.
 
Logo em seguida,em 1961, foi a vez de Pouso Alegre (MG) realizar seus primeiros Jogos Florais,com o tema Esperança e, o 1º lugar coube a José Maria Machado de Araújo , trovador de inúmeras premiações, falecido recentemente, no Rio de Janeiro (RJ) onde residia. (Texto do Boletim Informativo da UBT- Nacional,nº 440,2005,p.3)

Os Jogos Florais tem como sustentáculo a Trova e, as festividades são desenvolvidas com atividades variadas, durante três dias; palestras e premiação solene, a Missa em Trovas de A. A . Assis, são pontos referenciais. O papa João Paulo II prestou significativa homenagem ao autor que é de Maringá (PR)

 Os XXII Jogos Florais de Ribeirão Preto e Nova Friburgo têm já divulgados os temas para 2009.

A Câmara Municipal de Nova Lisboa, Serviços Culturais, editou o Boletim Cultural de Huambo, nº 29, agosto de 1974, onde à página 5, ressalta os XXV Jogos Florais de Nova Lisboa, na ocasião comemorando 62 anos de criação da cidade de Huambo, a partir de 1928 designada Nova Lisboa. Nas festividades comemorativas ao aniversário, os Jogos Florais que, anualmente, desde 1.948, realiza a aproximação dos povos irmãos de Angola, Portugal e Brasil. Neste evento, bastante concorrido tivemos  dez trovas premiadas dentro dos parâmetros internacionais da promoção. Vamos aqui nos prender a três delas que, de algum modo nos lembra outros trovadores aqui citados;                                                       

Ei-las,

Devido à gente apressada
quantas vidas se  consomem!
o homem constrói a estrada
e a estrada destrói o homem.
Dimas Lopes de Almeida

Em seu labor, a Vaidade
e o guarda-sol são iguais.
toda a sua actividade
é por na sombra os demais.
Luiz Santos Costa

 A  União Brasileira de Trovadores (U.B.T) foi fundada a 21 de agosto de 1966, na cidade do Rio de Janeiro, e teve três presidentes nacionais: Luiz Otávio,      (1967 -1969), Carlos Guimarães (1970-1995), João Freire Filho (1996-2003) e atualmente, em Pouso Alegre-MG., desde 2004, Eduardo Toledo.

São finalidades da UBT: o estudo, cultivo, divulgação da trova e congraçamento entre os trovadores. (artº 3º) no § 1º  Sem desconsiderar como trova “ a composição poética de quatro versos setissílabos rimando pelo menos, o 2º com o 4º e com sentido completo”, a UBT determina como trova, para Concursos,

 “a composição poética de quatro versos setissílabos rimando o 1º com o 3º, o 2º com o 4º e com sentido completo”; § 2º Para efeito no disposto neste artigo, considera-se trovador o autor da trova.
( Estatuto Nacional da UBT, 2005, p. 8)
                Os trovadores são afilhados de São Francisco e seu poema é a “oração do trovador”. O Hino dos Jogos Florais, letra e música de Luiz Otávio, em sua I parte é envolvente:

Salve os Jogos Florais Brasileiros!
a cidade se enfeita de flores!
corações batem forte, fagueiros,
a saudar meus irmãos trovadores!


               Os trovadores, têm, também, Hino do Trovador e o Hino da UBT, todos apresentados em reuniões administrativas ou festividades literárias. Os trovadores são irmãos na trova, inspirados em Meus Irmãos,os Trovadores.
             
 Na sua estrutura, a trova tem quatro versos de sete silabas poéticas que perfazem 28 silabas. O poeta-trovador deve conhecer versificação. Na internet, em sítios de busca, encontramos o Tratado de Versificação de Olavo Bilac e Guimarães Passos, RJ, 1905, considerado de primordial grandeza didático-histórica. As noções  primárias de versificação são encontradas em livros de língua portuguesa e as figuras de linguagem, na Minigramática de Cegalla, ofertada aos alunos pelo MEC-FNDE em 2005.
             
  A UBT realizou pesquisas sobre metrificação. O ensaio  de Luiz Otávio, consagra-se específico como forma de orientação técnica. A medida dos versos, preocupa os poetas através dos séculos. Na trova de Castilho, constatamos isto na escansão de cada  linha poética;

A/qui/, sim/, no/ meu/can/ti/nho,
1   2       3     4    5    6   7
ven/do/ rir/-me o /can/de/ei/ro,
1    2    3      4      5    6  7  
go/zo o / bem /de es/tar/ so/zi/nho
1    2       3        4     5    6  7
e es/que/cer/ o / mun/do in/tei/ro.
1      2    3    4     5      6    7
(FERREIRA, 1964, p.XXXI)

    O estudo de Luiz Otávio, confirma que as sílabas são contadas até a última tônica de cada  verso. As pontuações não impedem as junções silábicas. 
               
continua...

Fonte:
Nilton Manoel. A Didática da Trova. Batatais, 2008.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Hermoclydes S. Franco (Album de Recordações) n.4


Giuseppe Artidoro Ghiaroni (Poesias Escolhidas)

A MÁQUINA DE ESCREVER

Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.

Vende esse rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.

Vende , além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.

Vende meus olhos a um judeu qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher !

Vende tudo, ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva !

Pode vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo!

Mas, poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas, tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical!

Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma!

Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas teclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura!

Deixa-a morrer também quando eu morrer;
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar!

AS ÁRVORES CORTADAS

Deceparam as árvores da rua!
Sem troncos hirtos na calcada fria,
a rua fica inexpressiva e nua;
fica uma rua sem fisionomia.

0 sol, com sua rústica bondade,
aquece até ferir, até matar.
E a rua, a rir sem personalidade,
não da mais sombras aos que não tem lar.

As árvores, ao vento desgrenhadas,
não lastimam a peia das raízes:
Olvidam sua, dores, concentradas
no sofrimento de outros infelizes.

Eu penso, quando à frente dos casais
vem sentar-se um mendigo meio-morto,
que uma fronde se inclina um pouco mais,
para lhe dar mais sombra e mais conforto.

Sem elas, fica a triste perspectiva
de uns muros esfolados, muito antigos,
que se unem na distância inexpressiva
como se unem dois trôpegos mendigos.

Quando vier com o seu farnel de lona,
arrimar-se à sua árvore querida,
o ceguinho de gaita e de sanfona
será capaz de maldizer a vida.

E aquela magra e tremula viuva
que anda a esmolar com filhos seminus,
quando o tempo mudar, chegando a chuva,
dirá que dela se esqueceu Jesus!...

Meu Deus, seja qual for o meu destino,
mesmo que a dor meu coração destrua,
não me faças traidor, nem assassino,
nem cortador de arvores da rua!

DENTRO DA NOITE

Dentro da noite, quando vem, de cima,
o ar que o espírito respira, o clima
que o Deus da Sombra esconde numa urna;
num silêncio de túmulo e de rocha,
a alma oculta dos homens desabrocha
como uma flor noturna.

Dentro da noite há todos os segredos:
pensamentos que são pontas de dedos
pousando em epidermes proibidas.
Corações que se vão, alados de ânsias,
errando além de todas as distâncias,
em busca de outras vidas.

Arrastam-se, morosos, os instantes;
batem sofrendo os corações amantes;
franzem-se as testas que ninguém afaga.
E a alma dos seres se volatiliza,
buscando o céu e o mar, tremendo à brisa
como uma ânsia vaga.

Passemos pelo bar. Estranha festa
de gente que ama e gente que detesta,
buscando alívio na noite impura.
O bar é um copo a transbordar de Vida!
Meus amigos, que cheiro de bebida!
Que cheiro de amargura!

Falai comigo quando, à luz da lua,
eu vou com minha sombra pela rua,
sou vagabundo e vivo!

A noite é a Pátria espiritual do triste,
do homem que insiste em ser maior, que insiste
em garimpar as margens da matéria.
Nela tudo trepida de incerteza.
O pobre tem um pouco de riqueza
    e o rico, de miséria!

Ambiciosos que gastam a existência
numa intrigante e cega concorrência,
quando anoitece, olham-se espantados.
E trocando seus sonhos e seus planos,
Sabem sorrir, subitamente humanos,
como ressuscitados!

Dentro da noite, os homens embuçados'
levam consigo os sonhos e os pecados,
levam consigo o mundo de amanhã.
E floresce o Ideal, forma impoluta;
floresce sobre tanta coisa bruta
e tanta coisa vã!

Conheço uma beldade mutilada
que so na noite lúgubre, gelada,
se aventura a sair com seu desgosto.
E sai, ligeira como um diabo astuto,
tendo o corpo de luto, a alma de luto
e um negro véu no rosto.

Essa figura fascinante e horrenda
é como tudo o mais que se desvenda
para vibrar no potencial da sombra.
Como a angustia do povo, o sonho, o estudo
a revolta dos mártires e tudo
que nos fascina e assombra!

Porque nas trevas tremem os tiranos
vendo marchar os corações humanos
como grandes exércitos de horror.
Vendo marchar milhoes de heróis sem nome,
unificados pela eterna fome
que é um eterno amor!

Oh, Noite! Oh, mãe das minhas tristes obras?
Vejo surgirem sois das negras dobras
do teu manto de dor gerando lutes?
És um ventre sem fim: quando te inclinas,
nascem impérios, nascem guilhotinas,
nascem Cristos a Cruzes?

O MENOR ESFORÇO
Ferreiro e filho de ferreiro,
um dia visitei meu vizinho carpinteiro.
E ao ver quanto a madeira era macia
em relação ao ferro que eu batia,
deixei de ser ferreiro.

Tornei-me carpinteiro e, vendo o oleiro
modelando o seu barro molemente,
cobicei seu oficio de indolente
e larguei meu formão de carpinteiro.

Mas fui depois a casa do barbeiro,
que alisava uns cabelos de menina.
E achando aquela profissão mais fina,
deixei de ser oleiro.

Um dia, em minha casa de barbeiro
entrou um poeta de cabelo ao vento.
E ao ver quanto era livre e sobranceiro,
troquei minha navalha e meu dinheiro
por sua profissão de encantamento...

Meu Deus! Por que deixei de ser ferreiro ?

Fonte:
JORGE, J. G. de Araújo.  Antologia da Nova Poesia Brasileira. Ed. Vecchi, 1948.