domingo, 18 de novembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 24 de dezembro: A Véspera do Natal


Estamos na véspera do Natal.

À meia-noite começa esta festa campestre, a mais linda e a mais graciosa da religião cristã. Vítor Hugo confessa que não há nada tão poético como esta legenda das Mil e Uma Noites escrita no Evangelho.

Com efeito, tudo é encantador nesta solenidade da igreja, nesses símbolos que comemoram a poética tradição do nascimento de um menino sobre a palha de uma manjedoura. A missa do galo à meia noite, os presepes de Belém, as cantigas singelas que dizem a história desse nascimento humilde e obscuro, tudo isto desperta no espírito uma idéia ao mesmo tempo risonha e grave.

Não é porém, na cidade que se pode gozar deste idílio suave da nossa religião. Censurem-me embora de um lirismo exagerado; mas afinal de contas hão de confessar comigo que no meio do prosaísmo clássico da cidade, entre essas ruas enlameadas, de envolta com o rumor das seges e das carroças, a festa perde todo o seu encanto, todo esse misterioso recolhimento que inspira a legenda bíblica.

É no campo, no silêncio das horas mortas, quando as auras apenas suspiram entre as folhas das árvores, quando a natureza respira o hálito perfumado das flores, que o coração estremece docemente, ouvindo ao longe o tanger alegre de um sinozinho de  aldeia, que vem quebrar a calada da noite.

Daí a pouco, luz das estrelas, no meio dessa sombra mal esclarecida, distinguem-se os ranchos de moças, que se encaminham para a igrejinha rindo, gracejando, cochichando, bisbilhotando, como um bando de passarinhos a chilrear em tarde de outono.

A porta da capelinha está aberta de par em par; e a luz avermelhada dos círios, os vapores perfumados do incenso, os sons plangentes do órgão, o murmúrio das preces recitadas à meia voz, enchem todo o corpo do templo. De vez em quando um rumor do campo, o esvoaçar de alguma andorinha despertada de sobressalto pela claridade, vêm interromper alegremente a calma e placidez da festa.

Se quereis tomar o meu conselho, minha amável leitora, não ide à missa do galo nas igrejas da cidade.. Escolhei algumas capelinhas dos arrabaldes, a beira do mar, como a São Cristóvão, cercada de árvores, como a do Engenho Velho, ou colocada  nalguma eminência, como a igrejinha de Nossa Senhora da Glória, tão linda com as suas arcadas e o seu vasto terraço.

Ouvi a vossa missa devotamente, isto é, olhando apenas uma meia dúzia de vezes para os lados, e estou certo que voltareis com a alma cheia das mais suaves e mais risonhas inspirações. Sentireis que o culto da religião, quando verdadeiro e sincero, é uma fonte rica de emoções doces, e não traz os dissabores deste outro culto do amor, no qual vós sois algumas vezes o anjo, e muitas a serpente do paraíso.

Bem entendido, se vos dou este conselho, é persuadido que não aspirais aos foros da alta fashion, porque neste caso deveis ficar na cidade e ir ouvir missa nalguma igreja bem quente e bem abafada, para pilhardes uma boa constipação na saída.

A diretoria do Teatro Lírico, que tem o bom gosto de conservar o teatro aberto neste tempo, não devia deixar de dar algum espetáculo na noite de hoje, a fim de vos preparar por um banho russiano, para a visita das estufas nas igrejas.

É pena que não se lembrassem de repetir o Roberto do Diabo que acaba justamente às 2 horas, tempo em que cantam os galos. 

Tudo neste mundo depende das ocasiões, disse-me um dilettante que vós conheceis: - Se a diretoria tivesse sabido aproveitar a noite de hoje, o Roberto do Diabo estaria apenas no purgatório donde naturalmente o conseguiria tirar algum artigo hieroglífico, maçônico ou brâmine, escrito unicamente para os espíritos sublimes. Então não se veria na dura necessidade de conservar o teatro aberto, recordando atrasados e obrigando os acionistas e os assinantes a pagarem as diabruras, não do Roberto, mas de algum São Bartholomeu que não conhecemos.

Eu não concordo com esta opinião. Julguei a princípio que convinha interromper-se os espetáculos por um mês, ao menos, porém hoje estou convencido que o teatro presta uma tão grande utilidade a esta corte, que a polícia devia intervir para que houvesse representação todas as noites. Se duvidam, vou enumerar-lhes as enormes vantagens econômicas, higiênicas, políticas e morais que resultam do teatro.

Em primeiro lugar, cura constipações pelo sistema homeopático, alivia o reumatismo dos velhos, e dá às mocinhas do tom uma cor baça e amarela, do melhor efeito, a qual os poetas têm convencionado chamar – a palidez romântica. No fim de uma semana ou quinze dias, uma bela menina, viva e rosada, começa a definhar; desmaiam-lhes as cores, os olhos tornam-se febricitantes, o corpo toma um ar de lânguida morbidez.

Para o médico, homem positivo, isto é o sintoma funesto de alguma consunção; mas o poeta, espírito elevado, que tem a pretensão de viver de ar como os camaleões, extasia-se em face desse rosto macerado pelas vigílias satisfeito por achar uma ocasião de aplicar a sublime comparação do pálido lírio languidamente reclinado sobre a haste delicada.

No fim de contas, o médico faz um diagnóstico importante; o poeta escreve algumas centenas de versos no estilo de Byron, ou do Alfredo de Musset. O boticário avia receitas sobre receitas; e o tipógrafo tira duas edições do volume de poesias. Faz-se uma consulta de médicos, enquanto os folhetins e as revistas críticas dissecam e fazem a autópsia dos versos novamente dados à luz. Trava-se a discussão, e no momento justo em que os médicos enchem de cáusticos e cataplasmas a heroína do romance, o país atônito reconhece que surgiu alfim o seu Petrarca, seu Dante, o seu Tasso.

Eis aí, o Teatro Provisório concorrendo para o desenvolvimento literário, e fazendo aprofundar o estudo da medicina. Isto, porém, não é tudo. A diretoria, que empreendeu a regeneração da nossa ópera lírica, visa também a outros resultados mais reais e positivos.

A Charton é a cantora predileta do público, é o rouxinol das belas noites pintadas por Bragaldi, é a rosa perfumada em cujo cálice bubul fez o seu ninho  gracioso, e onde se reclina soltando nos ares as ricas melodias de suas notas. Pois bem, a Chaarton continuará a representar pelo verão, sem ter nem sequer um mês de descanso; bubul cantará todo o estio como uma cigarra importuna; a flor se fanará exposta ao tempo, sem sombra e sem abrigo.

Um belo dia a Charton ficará com a voz cansada como a Zecchini; e este público caprichoso e exigente ficará ensinado, e aceitará aí qualquer comprimária que lhe queiram impingir na qualidade de cantora de cartelo.

Então, como a guerra do Oriente e a exposição de Paris não permitirão novos engajamentos na Europa, a empresa, livre de reclamações exageradas, poderá fazer importantes economias, contratando nesta corte algumas cantoras de modinhas para coristas, e promovendo por antiguidade as coristas e comprimárias e as primas-donas: teremos neste caso espetáculos baratos, a pataca e a quinhentos réis. O público tomará o seu banho de vapor pela quinta parte do que paga hoje.

Pouco tempo depois que a diretoria tiver obtido este grande resultado, o público se convencerá que se a música (do teatro lírico), como disse alguém, é o mais suportável dos barulhos, o teatro é o mais insuportável dos suadores.

Os espetáculos, pois, serão abandonados, o dilettante começará a ser uma espécie de mastodonte anti-robertiano, objeto do estudo dos arqueólogos e antiquários, e o barracão terá um destino muito semelhante ao que tem hoje, e ficará sendo uma dependência do Museu.  

Não se pode, portanto, deixar de tributar todos os elogios a quem empreendeu e trata de executar com tanta habilidade a útil empresa de desacreditar a era italiana e de nos fazer aborrecer o teatro lírico. Todo o público desta corte deve auxiliar este projeto, por todas as razões, até mesmo porque é de melhor gosto, e mais elegante, nestas noites de calma ir suar no Provisório, do que tomar fresco no Passeio Público.

No teatro olha-se para um camarote, procura-se uma feição mimosa e acetinada, umas faces que são de suave cor-de-rosa, um colo alvo de jaspe, e tem-se o desprazer de ver um rosto  açodado, vermelho, mudando de cores, um seio arfando dificilmente sem aquelas doces palpitações que lhe dão tanta graça e tanta sedução; vê-se enfim um belo quadro, uma tela amarrotada cheia de dobras.

Ao contrário, no Passeio Público o quadro realça com a luz do gás, que, ao longe, entre as árvores, semelha um pouco a claridade da luz; todas as noites, mas especialmente nos domingos, a concorrência é numerosíssima. Às nove horas a multidão se retira, o passeio torna-se mais agradável, e começa-se a encontrar-se de espaço a espaço uma ou outra família conhecida, das que freqüentam ordinariamente os nossos salões.

Não nos enganamos, pois, quando dizíamos há tempo que a iluminação a gás concorreria muito para a concorrência do Passeio, e daria ao público desta corte um ponto agradável de reunião. Resta, porém, que se trate de outros  melhoramentos, como de reparar ao menos as grades da rua principal, de ceder-se aos dois pavilhões do terraço para neles se estabelecerem cafés decentes que possam servir às famílias, e de fazer-se com que haja música aos domingos, das oito até às dez horas.

Faça-se isto, faça-se alguma coisa mais que or conveniente; e todas as noites em que houver espetáculo lírico, durante a força do verão, eu terei o prazer de ver os mais entusiásticos dilettanti sentados nos bancos de pedra do círculo que forma a rua principal do Passeio, vendo, como eu, passarem os grupos das lindas passeadoras, enquanto apenas um ou outro melomaníaco, com os cabelos pregados na testa, contemplará heroicamente o holocausto lírico da voz da Charton, do Bouché e do Gentile, condenados à rouquidão para assegurar o futuro da ópera italiana, que ficara comprometida nesta corte, se não se cantar nos meses de dezembro e janeiro.

O natal, o teatro, o passeio me iam fazendo esquecer das questões sérias que este ano se guardaram para o tempo das festas, justamente para não deixarem nem um dia de férias ao jornalista. O livro do Sr. De Angelis sobre o Amazonas e ultima,mente o decreto do governo sobre as sociedades comanditárias vieram agitar a imprensa da corte, e fazê-la sair da rotina editorial. Sobre a primeira questão deveis ter lido não só a obra do Sr. P. de Angelis, como os artigos que publicou nesta folha um nosso patrício, conhecido pelo seu talento. Quanto à segunda, esperai mais alguns dias, e vereis sob que aspecto importante ela vai apresentar-se; não vos falo mais largamente a respeito, porque deveis saber que os advogados estão de férias, mais felizes nisso do que os folhetinistas, que não as têm.

Finalmente vou  dar-vos uma boa nova. Como a festa é tempo de muita indigestão, podeis contar já com mais trinta e dois médicos, que no dia 18 deste mês receberam o seu grau na Academia Militar, em presença de SS. MM. e de um brilhante e numeroso concurso de pessoas gradas desta corte. O digno diretor da escola recitou um belo discurso e um dos doutorandos, designado pelos seus colegas, agradeceu em nome deles o grau que acabavam de receber, fazendo nesta ocasião acertadas considerações sobre o estudo da anatomia e da fisiologia.

Terminando a sua carreira, vão dar agora o primeiro passo no mundo, e trabalhar para um futuro que a esperança, companheira inseparável da mocidade, lhes aponta tão risonho e tão feliz. Deus os fade bem por interesse seu e da humanidade; e possam um dia, repassando na memória esta primeira página de sua vida, sentirem essas doces recordações do homem feliz que se revive no seu passado. 

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 730)


Uma Trova de Ademar  

Trabalho só é bacana 
se tiver, por sua vez: 
uma folga por semana 
e férias de mês em mês! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

"A onça entrou no terreiro
e sua mulher tá lá!"...
Responde o peão, matreiro:
"deixa onça se daná!"... 
–Alba Christina C. Netto/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Uma nasce pra titia, 
outra varre os assoalhos; 
mulher feia e ventania 
só servem pra quebra galhos... 
–Fabiano Wanderlei/RN– 

Uma Trova Premiada  

1997   -   Ribeirão Preto/SP 
Tema   -   BICHO   -   14º Lugar 

Fim de semana eu capricho,
trabalho muito e não minto:
Meu salário vem do "bicho",
sempre do primeiro ao quinto...
–Antônio Colavite Filho/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Na avareza em que vivia 
não tentava nem loteca; 
pois, sua mão não abria 
nem para jogar peteca! 
–Florestan Japiassú Maia/RJ– 

U m a P o e s i a  

Sou um matuto assumido
digo “pruquê” e “prumode”,
minha calça é pega bode,
meu linguajar é sortido,
adoro milho cozido 

ninguém queira se atrever;
digo “bassoura” e “barrer”,
traz o ponche esse menino;
quanto mais sou nordestino
mais sinto orgulho de ser! 
–Hélio Crisanto/RN– 

Soneto do Dia  

A MISSA DO COMPADRE. 
–Edmar Japiassú Maia/RJ– 

Ia vivendo meio aposentado, 
celibatário que era por vontade, 
por ter sofrido, em plena mocidade, 
uma desilusão de amor frustrado... 

Porém, um dia, foi comunicado 
da morte do compadre na cidade, 
e este fato lhe trouxe, na verdade, 
a esperança deixada no passado... 

O infausto passamento deu-lhe o ensejo 
de sentir despertado um só desejo, 
que trazia no peito adormecido... 

E foi durante a missa do compadre, 
que, amparando em seus braços a comadre, 
baixinho, agradeceu ao falecido!

Jornais e Revistas no Brasil (A Nação)


Período disponível: 1872 a 1876 

Local: Rio de Janeiro, RJ 

Continuação de: 
Jornal da Tarde

Houve vários jornais no Rio de Janeiro com o título A Nação. O primeiro deles, a julgar pelas informações contidas na História da imprensa, de Nélson Werneck Sodré, foi fundado por Antônio Ferreira Viana e Andrade Figueira e tinha tendências republicanas.

 Este A Nação, que começou a circular em 3 de julho de 1872, veio a substituir um certo Jornal da Tarde, que havia sido fundado dois anos antes por Angelo Thomaz do Amaral e Eduardo Augusto de Oliveira. O proprietário era João Juvêncio Ferreira de Aguiar, que inicialmente apresentou sua publicação como um “jornal politico, commercial e litterario”, logo depois, em 29 de novembro de 1872, como “folha politica, commercial e litteraria”, a partir de 3 de julho de1873, como “jornal politico e commercial” e, a partir de 15 de novembro de 1875, como “jornal politico, commercial e litterario”.

 Circulava diariamente, exceto aos domingos. Foi lançado com quatro páginas divididas em seções de temas e títulos variados, como “A Nação”, “Folhetim da Nação”, “Gazetilha”, “Exterior”, “Rio de janeiro”, “Publicações a Pedidos” (cobrava-se do interessado em publicar algo 120 réis a linha), “Declarações”, “Commercio”, “Avisos Marítimos” e “Anúncios” (80 réis a linha). Outras seções foram criadas com o passar do tempo, como, por exemplo, a “Echo dos Jornaes” (a partir do número 176, de 1873), que apresentava um resumo das notícias publicadas em outros periódicos.

 A assinatura de A Nação podia ser anual (12$000 para a Corte, 16$000 para outras províncias), semestral (6$000 e 8$000, respectivamente) ou trimestral (3$000 e 4$000). O exemplar avulso custava 40 réis. O segundo número traz o aviso de que o jornal não seria vendido pelas ruas, mas em agências localizadas em diversos pontos da cidade.

 Impresso em formato standard na Typografia Americana, situada na rua do Ouvidor nº 19, tinha como redatores, entre outros, o político João Juvêncio de Aguiar, o escritor Cirilo Eloi Pessoa de Barros, o ministro José Maria da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco, e o político abolicionista Francisco Leopoldino de Gusmão Lobo.

 A Biblioteca Nacional dispõe de 153 edições de A Nação referentes a 1872, 277 de 1873, 286 de 1874, 282 de 1875 e 77 edições de 1876 – todas disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira.

Fonte:
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/nação

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 729)



Uma Trova de Ademar  

Para os sem fé, os tristonhos, 
a vida deles termina 
sem sequer colher os sonhos 
que a própria fé nos ensina... 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

A silhueta da lua 
na janela se reflete, 
brilha como a pele tua 
e aos meus sonhos me remete. 
–Maria Cristina Fervier/ARG– 

Uma Trova Potiguar  

Nem o mais raro brilhante 
cintila com tanto brilho 
como o meigo e fulgurante 
olhar de mãe para um filho. 
–Tarcício Fernandes/RN– 

Uma Trova Premiada  

2010   -   TrovaUneVersos/RN 
Tema   -   SILHUETA   -   1º Lugar 

Nas noites claras de lua, 
no desenho da calçada, 
vejo a silhueta tua 
a minha sombra abraçada. 
–Olympio Coutinho/MG– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Gotas de amargas vivências, 
ou de alegria incontida, 
lágrimas são reticências 
no texto frio da vida... 
–Waldir Neves/RJ– 

U m a P o e s i a  

Trovas, sonetos... Enfim 
qualquer forma de poesia 
para mim é um lenitivo, 
é calmante que alivia 
toda dor que me persegue 
e alegra o meu dia-a-dia. 
–Thalma Tavares/SP– 

Soneto do Dia  

A BELEZA DA VIDA. 
–João Justiniano da Fonseca/BA–

A beleza da vida está na própria vida,
nas flores do jardim, no fruto do pomar.
No amanhecer do dia, o sol vindo do mar,
ou da várzea, da serra - eterno na subida.

A beleza da vida está no conjugar
os rios, a floresta, e a comprida avenida...
Pista e velocidade, os pneus a rolar!
Ou, no espinho e na rosa? Ou na idade vivida?

A beleza da vida – o homem no trabalho,
no campo ou na cidade. A enxada. A pena. O malho.
Mover de sonho e fé, de luz, de cabedais.

A beleza da vida – o todo na impulsão
de tudo que se move. O amor, o coração...
O destino da paz, a paz. A íntima paz!

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Raquel Ordones (Novo Horizonte)



Fonte:
A Poetisa

Aparecido Raimundo de Souza / ES (Magia do Amor)


MOMENTO MÁGICO

Gosto de pensar em nós
em tudo o que fazemos a dois...
Quando lhe pego sob os lençóis
esqueço o agora e o depois.

SUPLÍCIO

Quando o celular toca
penso logo: “é a mulher que eu amo!”
A saudade, porém, me sufoca
na ligação... foi engano.

SONHO UTÓPICO

Se eu fosse um passarinho
e pudesse, enfim, voar,
construiria meu ninho
no jardim do seu olhar.

IMPOSSÍVEL

Se eu pudesse, um dia
olhar pra trás e ter você,
Meu Deus, que alegria
deixaria de sofrer.

Fonte:
O Autor
 Contatos: aparecidoraimundodesouza@gmail.com

Marina Colasanti (Como se fosse)


De nada adiantou a couraça contra o fio da espada. O sangue jorrou entre as frestas metálicas e o jovem rei morreu no campo de batalha. Tão jovem, que não deixava descendente adulto para ocupar o trono. Apenas, da sua linhagem, um filho menino. 

Antes mesmo que a tumba fosse fechada, já os seus fiéis capitães se reuniam. A escolha de um novo rei não podia esperar. E determinaram que o menino haveria de reinar, pois a coroa lhe cabia de direito. Que começassem os preparativos para colocá-la sobre sua cabeça.

Aprontavam-se as festas de coroação, enquanto os capitães instruíam o menino quanto ao seu futuro. Mas porque o rei seu pai havia sido muito amado pelo povo e temido pelos inimigos, e porque o rosto do menino era tão docemente infantil, uma decisão sem precedentes foi tomada. 

No dia da grande festa, antes que a coroa fosse pousada sobre os cachos do novo rei, a rainha sua mãe avançou e, diante de toda a corte, prendeu sobre seu rosto uma máscara com a figura do pai. Assim, ele haveria de ser coroado, assim ele haveria de governar. E os sinos tocaram em todo o reino.

Muitos anos se passaram, muitas batalhas. O menino rei não era mais um menino. Era um homem. Acima da máscara, seus cabelos começavam a branquear. Seu reino também havia crescido. As fronteiras, agora longas, exigiam constante defesa. 

E, na batalha em que defendia a fronteira do Norte, perseguido pelos inimigos, o rei foi abatido no fundo de uma ravina, sem que de nada lhe valesse a couraça.

Antes que fechasse os olhos, acercaram-se dele seus capitães. Retiraram o elmo. O sangue escorria da cabeça. O rei ofegava, parecia murmurar algo. Com um punhal, cortaram as tiras de couro que prendiam a máscara. Soltou-se pela primeira vez aquele rosto pintado ao qual todos se haviam acostumado como se fosse carne e pele. Mas o rosto que surgiu por baixo dele não era um rosto de homem. A boca de criança movia-se ainda sobre mudas palavras, os olhos do rei faziam-se baços num rosto de menino. 

Fonte:
Revista Nova Escola

Antonio Alvares (A Dama e o Vagabundo)


Também pode acontecer
A duas pessoas nesse mundo
Repetir a bela paixão
Da Dama e o Vagabundo
Pois nessa história de amor
A Disney soube impor
À nobreza, um giramundo...

Para os níveis sociais
Uma social convenção
Podendo ser aplainada
Ao nivelar da paixão
De dois corações atingidos
Pelas flechas de dois cupidos
Numa profética repetição...

Do alto da tua redoma
O teu espírito percebeu
Que lá embaixo bate forte
O coração de um Romeu
Que entende tua condição
Mas por ti sentiu paixão
Teu espírito abraçou o meu...

Eu sinto que tu sentes
Algo difícil de explicar
O enigma de um anelo
De força tão sublimar
São sépalas abertas
De flores antes cobertas
Num renovado desabrochar 

Tão rara conquista
Prófuga não há de ser
Imagino tantos próceres
Paraísos te oferecer
Que tu achaste procaz
Pois nenhum foi capaz
De teu espírito envolver...

Da crisólita ao diamante
Para ti é grassa oferta
Na senda pro teu coração
Não existe cancela aberta
Já desanimastes investidas
Dissimuladas, tão atrevidas...
Que deixaram tu'alma alerta!
  
Eis que surge um ser
De um universo paralelo
No teu mundo refinado
Em volta do teu castelo
Deus salve a rainha...
Uma paixão tão minha
Encanta, um sonhar tão belo!

La Belle qui est distant
Faz-me prazeroso sonhar
Je te sens proche de moi
No dormir e no acordar
Sendo operário do labor,
Mas vagabundo do amor...
Atrevo-me a te conquistar!

Entrega-se ao destino
Um desejo tão profundo
Conspirando o universo
Aconteceria nesse mundo
Um encontro inusitado
Do virtual materializado...
A Dama e o Vagabundo!

Fonte:
Colaboração do autor 

Charles Dickens (Manuscrito de um Louco)


“Sim, de um louco! Como essa palavra teria afligido o meu coração muito tempo atrás! Como teria despertado o terror que costumava me assolar algumas vezes, lançando o sangue a zunir e formigar pelas minhas veias, até o suor frio de medo estagnar em grandes gotas sobre a minha pele e os meus joelhos baterem um no outro de pavor! Agora, no entanto eu gosto dela. É uma boa denominação. Apresente-me o monarca cuja carranca zangada foi alguma vez tão temida como o olhar penetrante de um louco – cujo machado e a forca foram quase tão infalíveis quanto as mãos fatais de um louco. Rá! Rá! É uma coisa formidável ser louco! Ser espiado como um leão selvagem através das barras de ferro – ranger os dentes e uivar, por toda a longa e calma noite, ao alegre tilintar de uma corrente pesada – e rolar e se enroscar na palha, transportado por música tão feroz. Viva o hospício. Ah! É um lugar fora do comum.

“Eu me lembro dos dias que eu tinha medo de ser louco; quando eu costumava ter sobressaltos durante o sono, cair de joelhos e rezar para ser poupado da maldição da minha raça; quando eu fugia de uma aparência de felicidade e divertimento para me esconder em algum lugar solitário e passava as horas cansativas observando a febre que consumiria meu cérebro aumentar. Eu sabia que a loucura estava misturada com meu próprio sangue e com o tutano dos meus ossos. Que uma geração havia falecido sem que a peste aparecesse entre eles e eu seria o primeiro na qual ela ressuscitaria. Eu sabia que devia ser assim; sempre tinha sido assim, e quando eu me encolhia em algum canto sombrio de um quarto cheio de gente e via homens sussurrar, apontar e olhar em minha direção, sabia que eles estavam falando sobre o louco condenado. Em resposta, eu me retirava às escondidas para me deprimir na solidão.

“Fiz isso por anos; longos anos foram aqueles. As noites aqui são longas às vezes – muito longas, mas elas não são nada perto daquelas noites inquietas, e sonhos terríveis eu tinha naquela época. Eu me arrepio só de lembra-las. Formas grandes e sombrias com rostos maliciosos e zombeteiros agachavam-se nos cantos do quarto e curvavam-se sobre minha cama à noite, instigando-me a loucura. Elas me contam em sussurros fracos que o cão da velha casa da qual o pai do meu pai morreu fora manchado por seu próprio sangue, derramado por sua própria mão em loucura enfurecida. Pressionei meus ouvidos com os dedos, mas elas gritaram dentro da minha cabeça até o quarto ressoar com isto: que na geração anterior a ele, a loucura estava adormecida, mas que seu avô tinha vivido por anos com as mãos acorrentadas ao solo, para impedi-lo de cortar-se em pedaços. Eu sabia que elas falavam a verdade – eu bem sabia disso. Eu havia descoberto a anos, apesar de tentarem esconder isso de mim. Mas…arrá! Eu era muito esperto para eles, mesmo louco como eles me julgavam ser.

“Finalmente, ela tomou conta de mim e eu me perguntei como pude temê-la. Poderia percorrer o mundo agora e rir e gritar com o melhor deles. Eu sabia que era louco, mas eles nem suspeitavam. Como eu costumava me abraçar com deleite quando pensava na bela peça que estava lhes pregando em razão de outrora ficarem apontando para mim e me olhando de soslaio, quando eu não era louco, mas apenas temia que um dia me tornasse um! E como eu costumava rir de alegria quando estava sozinho e pensava como guardei bem o meu segredo e o quão rápido meus gentis amigos teriam me abandonado se soubessem da verdade. Eu poderia ter gritado com êxtase quando jantei a sós com algum bom camarada barulhento, pensando no quão pálido ele ficaria e veloz ele correria, se soubesse que o amigo querido sentado perto dele afiando uma faca luminosa e brilhante, era um louco com todo o poder, e um tanto de vontade, de cravá-la no seu coração. Ah! Era uma vida divertida.

“Riquezas tornaram-se minhas, uma fortuna aflui sobre mim e eu me deliciava com prazeres intensificados mil vezes mais pela consciência do meu segredo bem guardado. Herdei uma propriedade, a lei – a própria lei de vista aguçada – tinha sido lograda e entregara milhares de libras disputadas por outros nas mãos de um louco. Onde estava o juízo dos homens perspicazes e de mentes sadias? Onde estava a destreza dos advogados, ávidos por descobrir uma falha? A astúcia do louco tinha enganado a todos.

“Eu tinha dinheiro. Como eu era cortejado! Eu gastei com abundância. Como eu era elogiado! Como aqueles três presunçosos e arrogantes irmãos se humilhavam à minha frente! O velho pai de cabeça branca também – tamanha consideração – tamanho respeito – tamanha amizade devotada – ele me idolatrava! O velho tinha uma filha, e os jovens, uma irmã, e todos os cinco eram pobres. Eu era rico, e quando casei com a moça, vi um sorriso de triunfo aparecer de leve nos rostos dos parentes necessitados dela, enquanto eles pensavam no seu esquema bem planejado e no seu belo prêmio. Era eu quem devia estar sorrindo. Sorrir! Dar gargalhadas, arrancar os cabelos e rolar no chão com guinchos de divertimento. Eles nem desconfiavam que a tinham casado com um louco.

“Espere! Se souberem disso, será que eles a teriam salvado? A felicidade de uma irmã contra o ouro de seu marido. A mais leve pluma eu sopro para o ar, em oposição à corrente vistosa que adorna meu corpo. Em uma coisa eu fui enganado, mesmo com toda a minha astúcia. Se eu não tivesse enlouquecido- pois apesar de nós loucos sermos inteligentes o bastante, nós ficamos confusos às vezes – eu deveria saber que a moça preferia ter sido colocada dura e gelada num simples caixão de chumbo, a ser levada como noiva invejada para minha rica e resplandecente casa. Eu deveria saber que o seu coração era do rapaz de olhos escuros, cujo nome uma vez eu a ouvi murmurar em seu sono perturbado, e que ela tinha sido sacrificada para mim, a fim de aliviar a pobreza do velho de cabeça branca e dos irmãos presunçosos.

“Eu não lembro de formas e rostos agora, mas eu sei que a moça era bonita. Eu sei que ela era, porque nas noites claras de luar, quando acordo de modo brusco do meu sono e tudo que está quieto à minha volta, eu vejo, em pé, silencioso e imóvel, em um dos cantos desta cela, um frágil e debilitado vulto, de cabelo preto e comprido que se derrama pelas suas costas e se movimenta mesmo quando não está ventando, e olhos que me encaram e nem piscam, nem fecham. Silencio! O sangue esfria no coração enquanto escrevo – aquela forma é dela; o rosto está muito pálido, e os olhos tem um brilho vítreo, mas eu os conheço bem. Aquele vulto nunca se move, nunca franze a testa, nem mexe os lábios como os outros que ocupam este lugar algumas vezes o fazem; mas ela é muito mais apavorante para mim, até mais do que os espíritos que me provocam há tantos anos- ela me vem fresca do túmulo e é tão cadavérica.

“Por quase um ano, eu vi aquele rosto ficar cada vez mais pálido; por quase um ano, eu vi as lagrimas vertendo, furtivas, pelas bochechas tristes, e nunca soube a causa. Contudo, finalmente descobri. Eles não poderiam me esconder aquilo por muito tempo. Ela nunca tinha gostado de mim, eu nunca pensei que gostasse, ela desprezava minha fortuna e odiava o esplendor em que eu vivia, mas eu não contava com isto: ela amava outro. Isso eu nunca tinha pensado. Estranhos sentimentos tomaram conta de mim, e o pensamento, invadindo-me à força por meu cérebro. Eu não a odiava, apesar de odiar o rapaz por quem ela não parava de chorar. Eu tinha pena – sim, eu tinha pena – da vida deprimente a qual seus parentes frios e egoístas a tinham condenado. Eu sabia que ela não poderia viver por muito tempo, mas o pensamento de que, antes de sua morte, ela poderia dar a luz a algum ser infeliz, destinado a transmitir loucura à sua prole, fez eu me decidir. Resolvi matá-la.

“Por muitas semanas, pensei em veneno, e depois em afogamento, e depois em incêndio. Uma bela visão: a casa impotente em chamas e a esposa do louco ardendo lentamente, virando cinzas. Pense também na graça de uma boa recompensa e em algum homem são balançando ao vento por um ato que nunca cometeu, e tudo isso por meio da astúcia de um louco. Eu pensei inúmeras vezes sobre isso, mas por fim, desisti. Ah! O prazer de afiar a navalha dia após dia, sentindo o fio cortante e pensando no talho que a lamina fina e reluzente faria com um só golpe.

“Enfim, os velhos espíritos, que antes estiveram comigo por tantas vezes, sussurraram no meu ouvido que a hora chegara e jogaram a navalha aberta na minha mão, levantei suavemente da cama e me inclinei sobre minha esposa adormecida. Seu rosto estava enterrado nas mãos. Eu as retirei suavemente, e elas caíram indiferentes no peito. Ela estivera chorando, pois os rastros de lagrimas ainda estavam molhados nas bochechas. Seu rosto estava calmo e sereno, e enquanto eu o observava, um sorriso, tranquilo iluminou suas feições pálidas. Eu pousei minha mão suavemente no seu ombro. Ela se sobressaltou – era apenas um sonho passageiro. Eu me inclinei para a frente mais uma vez, ela gritou e acordou.

“Um movimento da minha mão e ela nunca mais emitiria um grito ou som. Mas eu fiquei assustado e recuei. Seus olhos estavam fixos nos meus. Não sei como foi, mas eles me intimidavam e me davam medo, e eu fraquejei sob aquele olhar. Ela levantou da cama, ainda me encarando firme e fixamente. Eu tremi; a navalha estava na minha mão, mas eu não consegui me mexer. Ela foi em direção à porta. Quando chegou perto da porta, ela se virou e desviou o olhar do meu rosto. O feitiço estava quebrado. Eu saltei à frente e a agarrei pelo braço. Emitindo guinchos em cima de guinchos, ela sucumbiu e foi ao chão. Naquele momento, eu poderia tê-la matado sem esforço, mas a casa fora alarmada. Eu ouvi o ruído de passos na escada. Recoloquei a navalha na gaveta de costume, abri a porta e gritei por auxilio.

“Eles vieram e a levantaram, colocando-a na cama. Ela ficou ali, desmaiada por horas, e quanto a vida, o olhar e a fala retornaram, seu juízo a tinha abandonado; e ela delirou, de modo selvagem e furioso. Médicos foram chamados – grandes homens que chegavam a minha porta em carruagens confortáveis, com belos cavalos e vistosos criados. Por semanas, eles ficaram à beira de seu leito. Fizeram uma junta médica e trocaram ideias em voz baixa, muito solenes, em um outro quarto. Um deles, o mais inteligente e o mais célebre do grupo, conversou comigo à parte e pediu-me que me preparasse para o pior e falou ( para mim, o loco ) que minha esposa estava louca. Ele se parou próximo, a mim, junto a uma janela aberta, seu olhar observando a minha expressão, sua mão no meu braço. Com um só empurrão, eu poderia tê-lo arremessado na rua lá em baixo. Teria sido um passatempo raro fazê-lo, mas o meu segredo estava em jogo, eu o deixei ir. Poucos dias depois, eles me falaram que eu devia mantê-la sob algum tipo de contenção: eu deveria providenciar um enfermeiro para ela. Eu! Eu fui para o campo aberto, onde ninguém podia me ouvir, e ri até a atmosfera ressoar com meus gritos.

“Ela morreu no dia seguinte. O velho de cabeça branca juntou-se a ela na morte, e os irmãos arrogantes derramaram uma única lagrima sobre o cadáver insensível da irmã, aquela cujos sofrimentos eles tinham assistido, no decorrer de sua vida, com músculos de ferro. Tudo isso era alimento para a minha secreta alegria, e eu ri, por trás do lenço branco que eu segurava na frente do rosto, na carruagem, enquanto nós íamos para casa, até as lagrimas surgirem nos meus olhos.

“Mas, apesar de ter realizado o meu objetivo e de tê-la matado, eu estava inquieto e transtornado, e senti, que em breve, meu segredo seria revelado. Eu não conseguiria esconder a alegria selvagem e a felicidade que ficavam dentro de mim e que, quando estava sozinho em casa, me fazia dar pulos e bater palmas e dançar e rodopiar e rugir em voz alta. Quando eu saia e via as multidões de pessoas ocupadas, andando apressadas pela rua, ou ia ao teatro e ouvia sons de notas musicais, e observava as pessoas dançando, eu sentia tamanha exultação que poderia ter avançado entre eles; e eu os cortaria em pedaços, desmembrando-os, braço por braço, perna por perna, e eu teria uivado em êxtase. Mas eu rilhava meus dentes e fincava os pés no chão e enterrava minhas unhas afiadas nas palmas das mãos. Eu me controlei, e ninguém sabia, que eu era louco.

“Eu me lembro – apesar de uma das ultimas coisas que consigo lembrar ( por hora confundo a realidade com os meus sonhos e, tento tanto o que fazer, e sendo continuamente apressado aqui fico sem tempo para pensar uma coisa ou outra, porque tem alguma estranha confusão na qual uma e outra ficam envolvidas) – lembro de como eu, enfim, trouxe o assunto à tona. Rá, rá, rá! Acho que eu vejo os seus olhares assustados agora e sinto a desenvoltura com a qual eu os atirei para longe de mim e arremessei o meu punho fechado bem no meio das suas caras brancas e então voei como o vento e os deixei berrando e gritando, lá atrás. A força de um gigante toma conta de mim quando penso nisso. Eis aí – vejam como esta barra de ferro se dobra com a força da minha torção. Eu podia quebrar essa barra de ferro como se fosse um graveto, mas tem corredores compridos aqui, com muitas portas e, mesmo se encontrasse a saída tem um portão de ferro lá embaixo, que eles mantém trancados e travados com barras de ferro. Eles sabem o louco inteligente que eu tenho sido e estão orgulhosos de me manterem aqui, só para se exibirem.

“Deixem-me ver: sim, eu fui descoberto. Era tarde da noite quando cheguei em casa e encontrei o mais orgulhoso dos três irmãos esperando por mim- negócios urgentes, foi o que ele disse, disso eu me recordo bem. Eu odiava aquele homem com todo o ódio de um louco. Muitas e muitas vezes os meus dedos ansiavam por fazê-lo em pedaços. Me avisaram que ele estava me esperando. Corri prontamente para o andar superior. Ele queria conversar comigo. Eu dispensei os criados. Era tarde – e nós ficamos a sós, pela primeira vez.

“Mantive meu olhar cuidadosamente desviado do dele a princípio, pois eu sabia que ele nem se quer desconfiava – eu me sentia envaidecido de saber que ele não sabia – que nos meus olhos cintilava como fogo a voz da loucura. Nos sentamos em silencio por alguns minutos. Enfim, ele falou. Meu recente desregramento e meus estranhos comentários, feitos tão cedo após a morte de sua irmã, eram um insulto a sua memória. Fazendo a associação entre muitas circunstâncias que, a princípio, haviam escapado de suas observação, ele concluiu que eu não havia a tratado bem. Ele desejava saber se estava certo em inferir que eu pretendia manchar a memória de sua irmã e desrespeitar a família. Era esperto dele, em razão do uniforme que vestia, exigia essa explicação.

“Esse homem tinha um cargo no exército – um cargo comprado com o meu dinheiro e com o sofrimento de sua irmão! Era o homem que tinha sido elemento-chave no plano de me enganar e se apoderar de minha fortuna. Esse era o homem que tinha sido o principal instrumento em forçar sua irmã a se casar comigo, sabendo muito bem que o coração dela pertencia aquele rapaz choramingão. Esperava uma explicação em razão do seu uniforme! A libré de degradação! Eu virei o olhar na direção dele, não pude evitar, mas não disse uma palavra.

“Percebi uma mudança súbita na sua postura sob meu olhar fixo. Ele era um homem corajoso, mas empalideceu e foi para trás da cadeira. Arrastei a minha mais para perto dele e, enquanto ria, eu estava muito feliz naquela hora-, eu o vi estremecer. Senti a loucura crescendo dentro de mim. Ele estava com medo de mim.

“- Você gostava muito de sua irmã quando ela era viva. – eu disse. – Muito!

“Ele olhou preocupado ao seu redor, e eu vi sua mão agarrando o encosto da cadeira, mas ele não disse nada.

“- Seu canalha – eu disse – eu desmascarei você, eu descobri seus planos diabólicos contra mim, eu sei que o coração dela estava ligado a outro antes de vocês obriga-la a se casar comigo. Eu sei! Eu sei!

“Ele pulou de repente da sua cadeira, sacudindo-a no ar, e me pediu que recuasse; porque eu tinha tratado de me aproximar dele cada vez mais enquanto ia falando.

“Eu mais gritava do que falava, pois sentia emoções tumultuadas passando em turbilhão pelas minhas veias, e os velhos espíritos sussurrando e me incitando a arrancar o coração dele fora.

“- Dane-se você – eu disse, me levantando e avançando sobre ele – eu matei sua irmã. Eu sou louco. Eu vou acabar com você. Sangue! Sangue! Quero sangue!

“De um golpe só, atirei para o lado da cadeira que ele jogou em mim, movido pelo terror, e me atraquei nele, e com um encontrão violento, rolamos os dois no chão.Foi uma bela luta aquela, pois ele era um homem alto e forte, brigando por sua vida, e eu, um louco poderoso, sedento por destruí-lo. Eu sabia que nenhuma força poderia se comparar a minha e eu estava certo. Certo de novo, apesar de ser louco! Os golpes dele foram enfraquecendo. Eu me ajoelhei sobre seu peito e apertei firme seu pescoço musculoso com as duas mãos. Seu rosto ficou roxo, seus olhos estavam saltando da cabeça, e com a língua de fora, ele parecia estar zombando de mim. Apertei mais forte. De repente a porta se abriu com um tremendo barulho, e uma multidão entrou correndo, gritando uns para os outros para que segurassem o louco.

“Meu segredo estava exposto, e minha única luta agora era para que me deixassem livre. Consegui ficar de pé antes que pusessem as mãos em mim, me atirei entre meus agressores e abri caminho com meu berro forte, como se estivesse empunhando uma machadinha, e derrubei-os diante de mim. Consegui alcançar a porta, escorreguei corrimão abaixo, e num instante estava na rua.

“Reto e rápido eu corri, e ninguém se atreveu a me deter. Ouvi o barulho de passos atrás de mim e redobrei a velocidade. O barulho foi se desvanecendo na distancia, e por fim , evaporou por completo. Mas eu continuei correndo e saltando, por pântano e riacho, sobre cercas e muros, com uma gritaria selvagem que era imitada por estranhas criaturas que foram se juntando em bando ao meu redor, intensificando a barulheira até que ela perfurasse o próprio ar. Alcei voo nos braços de demônios que se deixavam levar pelo vento e pelo caminho iam devastando cercas vivas e taludes e que me faziam girar e gritar com um zunido e com uma velocidade que fez minha cabeça flutuar, até que por fim, arremessaram-me para longe com um golpe violento e eu desabei pesadamente na terra. Quando acordei, estava aqui – aqui nesta cela cinzenta, onde a luz do dia raramente aparece, e a lua, furtiva, penetra em raios que apenas servem para mostrar as sombras escuras que cercar aquele vulto silencioso no seu canto de sempre. Quando eu me deito e não consigo dormir, às vezes escuto estranhos guinchos e gritos de partes distantes deste vasto lugar. O que são, eu não sei, mas eles não vem daquela figura pálida, nem ela se importa com eles. Porque, desde as primeiras sombras do crepúsculo até a primeira luz da manhã, ela fica parada, imóvel, sempre no mesmo lugar, escutando a música da minha corrente de ferro e assistindo às minhas cambalhotas na minha cama de palha.

Teatro de Ontem e de Hoje (Bella Ciao)


Dirigida pelo argentino Néstor Monasterio, radicado em Porto Alegre, Bella Ciao é uma das mais premiadas montagens do teatro gaúcho. O texto do dramaturgo paulista Luís Alberto de Abreu mostra a saga de uma família de imigrantes italianos, no decorrer de quase 40 anos, desde sua chegada ao Brasil até a luta pela democratização do país no período do Estado Novo. 

A história, centrada na figura do patriarca Giovanni Baracheta, interpretado por Carlos Cunha Filho, além de traçar um painel político e comportamental do período, mostra os dilemas da família, com base no conflito de opiniões entre o pai anarquista, o filho que adere ao comunismo e a jovem que renega o namorado por causa de sua militância revolucionária.

Monasterio, responsável também pela elogiada montagem gaúcha de Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho, em 1984, explica em entrevista, a escolha do texto: "Bella Ciao juntava tudo o que eu penso sobre teatro. É um texto generoso, saboroso, brilhante. Tem um motivo muito forte de estar ali. Vai recuperando a dignidade do ser humano. Vai dizendo o que é um ser humano que luta, que não desiste nunca. Que tem uma ideia".[1]

O elenco ensaia durante um ano e estreia no Centro de Cultura de Novo Hamburgo, em abril de 1989. A seguir faz uma temporada na região da Serra Gaúcha, fortemente marcada pela colonização italiana. Só então inicia sua temporada no Teatro Renascença, em Porto Alegre.

Apesar de cobrirem um longo período de tempo, as sessenta cenas que compõem o espetáculo se sucedem sem o recurso do black out. Um grande painel serve de cenário único em que os ambientes e a dramaticidade das cenas são sublinhados pelo jogo de luzes, especialmente em lilás e vermelho. Nas cenas iniciais, em que a família Baracheta deixa sua terra rumo ao Brasil, os atores falam em italiano. "No entanto, as dificuldades de compreensão idiomática são compensadas pela boa performance dos atores que, com gestos e expressões peculiares ao comportamento latino, estabelecem uma eficiente comunicação com a plateia. Além disso, à medida que transcorre a ação, os personagens vão mesclando os idiomas, permitindo maior clareza no entendimento do texto",[2] observa a crítica Maria Luiza Khaled, no Jornal do Comércio.

O espetáculo cai no gosto do público e da crítica, a ponto de permanecer dois anos em cartaz e viajar por outros estados e pelo interior do Rio Grande do Sul. Para o crítico Cláudio Heemann, "com o pitoresco linguajar italiano e as explosões temperamentais de latinidade, o texto encontra humor para desenhar seus personagens. Produz efeito do realismo e humanidade sem deixar esquecido o painel e retrato coletivo".[3] O crítico Décio Presser destaca que "o quarteto central, responsável pelos elementos da família, coloca uma sinceridade nos personagens que torna-se difícil ao espectador não ser envolvido pelas emoções".[4] 

Bella Ciao recebe o Prêmio Açorianos de melhor espetáculo, diretor, trilha sonora original, para Néstor Monasterio e Paulo Campos; atriz, para Lurdes Eloy; atriz coadjuvante, para Heloísa Palaoro; e ator coadjuvante, para Fernando Waschburger. Ganha, ainda, o Prêmio Quero-Quero de melhor espetáculo e direção; ator, para Carlos Cunha Filho; e atriz, para Lurdes Eloy. A peça é premiada também no Festival de São José do Rio Preto, São Paulo, nas categorias de melhor espetáculo, direção, ator, atriz coadjuvante e ator coadjuvante.

Notas
1. ALABARSE, Luciano (Org.). Alguns diretores & muita conversa: entrevistas com diretores de teatro que trabalham em Porto Alegre. Porto Alegre: SMC, 2000.
2. KHALED, Maria Luiza. Com tempero latino. Jornal do Comércio, 26 jun. 1989.
3. HEEMANN, Cláudio. Bella Ciao. Zero Hora, Porto Alegre, 6 jun. 1979.
4. PRESSER, Décio. Jornal da Paraíba, 1991.

Fonte:

André Rosa (Plano de Aula: Realismo fantástico: o que está por trás destas histórias?)


Ajude a turma a entender o que é o realismo fantástico - também conhecido como realismo mágico ou maravilhoso - e peça que escrevam um texto neste gênero

Conteúdos

 - Realismo fantástico (também chamado de realismo mágico ou realismo maravilhoso)
 - Literatura 

Objetivos

 - Apresentar as origens da literatura fantástica
 - Perceber a constituição do realismo fantástico a partir de elementos incomuns
 - Escrever uma narrativa fantástica

Anos

 Ensino Médio

Tempo estimado

 Duas aulas

 Materiais necessários:

 - Cópias da reportagem "Deixe-se enganar" (Veja, 2294, 7 de novembro de 2012)
 - Trechos selecionados de "A divina comédia - Inferno" (Dante Aleghieri); "Odisseia" (Homero); "Cem anos de solidão" (Gabriel García Marquez); "O último voo do flamingo" (Mia Couto) e da obra de Julio Cortázar e Murilo Mendes.
- Leia mais - Para ficção, realidade é só cenário
- Leia mais - Investigue as relações entre textos literários e realidade

Flexibilização

Para alunos com deficiência visual
 Se houver algum aluno com deficiência visual na sala, a sugestão é utilizar esculturas e outros objetos com formas exageradas como bonecos com cabeças e pernas desproporcionais, réplicas de insetos ou figuras que misturem características humanas e animais, entre outros. Em contato com essas formas, os alunos poderão iniciar o reconhecimento do fantástico de forma materializada, auxiliando não só aos deficientes visuais, mas a todos os alunos.

Introdução

 A reportagem "Deixe-se enganar", publicada em Veja, fala sobre o fascínio que a obra do escritor japonês Haruki Murakami vem exercendo sobre a crítica especializada e em leitores de várias origens. Sua trilogia, "1Q84", tornou-se um best-seller no mundo todo ao utilizar elementos e citações da realidade cotidiana atrelados a acontecimentos e situações anormais. Tudo isso para gerar um conflito, na melhor tradição da literatura fantástica. 

 Utilize a reportagem como ponto de partida para uma aula que explique o que é o realismo fantástico e oriente seus alunos a escreverem uma narração nesse modelo.  

Desenvolvimento

1º etapa 

 Conte aos estudantes que nas próximas aulas eles vão estudar um gênero literário muito interessante: o realismo fantástico (também conhecido como realismo mágico ou realismo maravilhoso). 

 Comece questionando a turma sobre o que significa o adjetivo "fantástico". Anote as respostas no quadro e aproveite o gancho para explicar que a narrativa fantástica é cultivada desde as origens da literatura. Ela pode ser definida como a descrição de um acontecimento insólito que produz um estranhamento ou rompimento com a realidade habitual e leva personagens e leitores a uma outra realidade, em parte inexplicável, onde o conflito é resolvido por meios não convencionais.
  
 Essa literatura não deve ser vista como mera alegoria, mas como uma expressão de uma realidade incomum. Isto é, nem sempre é apenas uma criação ficcional, mas fundamentalmente uma tentativa de propor interpretações não convencionais aos problemas reais. Indique aos alunos que essas características estão presentes tanto em obras recentes quanto antigas. É possível encontrar nos clássicos da literatura ocidental a origem de elementos fantásticos. Na Odisseia de Homero há muitos acontecimentos incomuns como o encontro do herói Odisseu com as Sereias (entes mitológicos antropófagos, que detinham o poder de encantamento e sedução) e o ardil utilizado pelo herói para vencer o ciclope Polifemo. 

 Outro autor clássico cuja obra influenciou  a literatura ocidental foi o poeta Dante Alighieri (1265-1321). O épico "A divina comédia" é marcado pelo estranho encontro do autor com a alma do poeta latino Virgílio (70 a.C. - 19 a.C.), que serve de guia às regiões infernais e ao Purgatório, locais em que o poeta florentino testemunha toda série de martírios destinados às almas condenadas. Na viagem, os poetas encontram personagens como o barqueiro Caronte, responsável por conduzir as almas pelo rio Aqueronte; o cão Cérbero, monstro de três cabeças responsável por vigiar as almas dos glutões; além de outros seres mitológicos, como as Hidras, os Centauros, as Hárpias e o gigante Gerião - personagens da mitologia clássica utilizados como parte da alegoria dos horrores descritos por Dante em sua viagem fantástica ao mundo dos mortos.

 A literatura dos viajantes, feita entre os séculos 15 e 17, também foi marcada pela descrição de espaços, seres e situações que, para a realidade europeia recém-saída da Idade Média, eram manifestações próximas aos mitos e lendas do passado. A literatura contemporânea deu sequência à tradição do fantástico. No século 20, vários autores fizeram do chamado "realismo fantástico" o mote de sua obra: Kafka, Edgar Allan Poe, José Saramago, Mia Couto, Murilo Rubião, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar são alguns deles.

2º etapa

 Retome a definição de realismo fantástico para que os alunos consigam responder se gostam deste tipo de história e deem exemplos. Conte que a transgressão realizada pela literatura fantástica se traduz pelo aparecimento do absurdo e do choque entre a realidade como conhecemos e uma outra, criada pelo escritor, que podemos chamar de "supra-realidade". Pergunte aos estudantes se conhecem ou se interessam por obras consideradas fantásticas. Em caso positivo, peça que citem obras de sua preferência. Não tenha preconceitos: é possível que sejam obras populares, filmes de ficção ou jogos. O importante é estabelecer um elo entre as características literárias e aquelas que forem identificadas pelos adolescentes. Além disso, é interessante observar que o fantástico está presente em muitos tipos de textos: nas lendas e contos de fada, nos mitos antigos, na literatura, nas histórias em quadrinhos e até nos heróis dos filmes de ficção científica e terror.

 Distribua  cópias do texto "Deixe-se enganar", publicado em Veja. Oriente a leitura e observe que o próprio título da reportagem já oferece uma possibilidade interpretativa da literatura fantástica: o leitor deve se deixar "enganar" pelo que parece irreal ou espantoso para fazer uma leitura profunda da obra. 

3º etapa

 A seguir, apresente alguns autores para a turma e leia trechos previamente selecionados por você de algumas dessas obras. Peça aos alunos que participem com comentários! Abaixo algumas sugestões de escritores que podem ser trabalhados com a turma:

Escritores "fantásticos" 
 O escritor moçambicano Mia Couto é um deles. Sua obra é marcada pela interpretação dos acontecimentos marcantes de seu país a partir de um viés fantástico. Livros como os romances "A varanda do frangipani" e "O último voo do flamingo" são bons exemplos. No primeiro, o fantasma de um velho carpinteiro luta contra a tentativa do governo revolucionário em torná-lo herói nacional. No segundo, o incomum acontece a partir da presença de soldados das Forças de Paz da ONU durante o período do pós-guerra: sem qualquer explicação aparente, os soldados de capacete azul simplesmente começam a explodir. Em ambos os romances, a presença de lendas e mitos africanos é utilizada como contraponto à realidade habitual, e os acontecimentos inusitados recebem explicações plausíveis a partir da compreensão desses mitos. 

 A literatura latino-americana do século 20 foi profícua na produção de narrativas vinculadas ao realismo-mágico ou realismo fantástico. A obra máxima de Gabriel García Marquez, "Cem anos de solidão", é sem dúvida das mais marcantes narrativas do continente. Por meio de um enredo considerado fantástico, o escritor colombiano fala sobre a origem e o declínio de uma família tradicional e faz uma crítica acentuada ao engessamento da sociedade no continente.

 O argentino Julio Cortázar escreveu livros em que a ambigüidade e a fragmentação surgem para criar enredos alegóricos, em que a realidade cotidiana é abalada pelo surgimento de um acontecimento quase inexplicável. Seus contos e novelas são marcados pela presença de uma temporalidade não linear nem progressiva, e também pela ideia do "duplo", do contrário e do outro como elemento de tensão. O conto "As babas do diabo" deu origem ao filme "Blow-up", do cineasta Michelangelo Antonioni. 

 Outro exemplo que você pode mostrar à turma é o brasileiro Murilo Rubião, um dos mais importantes autores do realismo mágico em nossa literatura. Contos como "O ex-mágico da Taberna de Minhota", "Teleco, o coelhinho" ou "O pirotécnico Zacarias" apresentam elementos inverossímeis que acabam por trazer reflexões profundas sobre a realidade e os sentimentos das pessoas, sempre dosados com ironia sutil. 


Indique aos alunos a leitura de ao menos um conto completo de um dos autores citados - escolha, por exemplo, um dos contos curtos de Julio Cortázar ou Murilo Rubião. Peça que pesquisem e tragam anotados outros exemplos de autores e as características principais da obra. 

4º etapa

 Peça aos estudantes que comentem os contos lidos e as pesquisas. Pergunte o que mais chamou a atenção deles: o que diferencia estas histórias das mais realistas? Por que  acreditam que a literatura fantástica possa atrair tantos leitores?

 A seguir, proponha que escrevam uma história com as características da literatura fantástica. O trabalho pode ser individual ou em equipes. Os alunos podem escolher se preferem uma lenda, uma história de terror ou até um texto bem humorado. Lembre à turma que um acontecimento absurdo é o que traz a surpresa para uma narrativa fantástica. Muitas vezes uma história que começa de forma aparentemente linear, "normal", acaba oferecendo um elemento-surpresa que a transforma numa narrativa fantástica. Quando os estudantes terminarem, peça que compartilhem suas produções. 

 Avaliação

 Tomando como referência os textos produzidos e os debates feitos em sala, observe se os alunos entenderam o que é o realismo fantástico e se conseguem distinguir uma história com estas características.

 –––––––––––-

André Rosa é  Professor de Literatura e Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)

Fonte:

Arthur Nestrovski (Os Bêbados e os Sonâmbulos)


“Nada nele era aparente. Não mostrava nada”, diz o narrador, com o amante agonizando nos braços. É quase o contrário do que poderia ter dito sobre o novo romance de Bernardo Carvalho, onde tudo se expõe, tudo é aparência, mas nada também se revela, exceto em momentos privilegiados, epifanias que explodem ao longo da narrativa. Em seu terceiro livro, depois do bem acolhido Aberração (1994) e dos contos de Onze (1995), Bernardo Carvalho vem nos propor riscos ainda maiores, nessa ficção disposta, praticamente contra si mesma, a testemunhar as aberrações absolutas do amor e da morte.

 Nada mais difícil para um autor tão consciente das possibilidades e ainda mais das impossibilidades do seu meio. Sua desconfiança traduz-se, desde logo, numa linguagem quase sem pathos, numa profusão de pequenas histórias narradas em registro neutro. Mas essa neutralidade é ainda mais suspeita para um autor que, apesar de tudo, está sempre do lado da experiência. Sua condição, nada invejável, mas que ele compartilha com alguns dos melhores escritores da atualidade, é precisamente a de reconhecer a natureza do afeto e do sofrimento, sem que a empatia descambe em identificação. O resultado é um romance duplo, onde melodrama e testemunho vão se mascarando e revelando um ao outro.

 A duplicidade, aliás, é a alma fugidia desta seqüência de histórias dentro de histórias, onde autor e narrador se confundem, pensadamente, com homônimos e narradores de narradores; onde as vozes dividem-se entre países e continentes; e onde a vontade de “não mais ser o que eu era” ressoa como um bordão do início ao fim. E a duplicidade – com ecos demoníacos de Shakespeare e Poe – assume aqui também caráter de gênero, neste romance assumidamente homossexual. Cabe apontar, quanto a isto, a atualidade de um contexto internacional mais amplo, no qual se enquadram escritores como Aldo Busi, Reynaldo Arenas, Alan Hollinghurst e Edmund White, e à luz do qual um romance desses será forçosamente lido. Bernardo tem ambições menos programáticas que a de outros autores brasileiros como Alberto Guzik e Jean-Claude Bernardet; têm também ambições mais altas, nem sempre ao alcance do livro.

 Fica difícil recontar ordenadamente o xadrez refinado da forma sem estragar as surpresas de quem não leu. Uma simples lista será o suficiente para sugerir os seus cenários. Há o caso da operação de tumor cerebral da mãe – homenageada traiçoeiramente na dedicatória (verdadeira ou falsa?), como fonte sigilosa da história que não se deveria contar. Há o caso da testemunha acidental, que viu uma mulher sair, com uma criança no colo, das águas da baía, no Rio, depois de um desastre de avião. Há o caso dos pintores cariocas da virada do século, que pintavam uns aos outros como “modelos vivos”, depois de mortos. Há o estranho caso do emissário do Museu Metropolitan, que veio tratar desses quadros no Brasil e o caso ainda mais estranho, retomado ao longo dos anos, desse emissário com o narrador. Há o caso do executivo americano, aparentemente seqüestrado durante uma festa no Rio de Janeiro em 1969, e da sua mulher, que ficou. Há o caso do “repatriamento sanitário” do psicólogo louco, encontrado em Los Angeles, Chile (a Paris, Texas do livro). Há o caso do narrador que contou todos esses casos e que domina a segunda parte, supostamente verdadeira, e o caso de como esses casos se ligam, admiravelmente dobrados e redobrados em si.

 A habilidade narrativa pode ser o maior trunfo ao autor, mas não é sua maior cartada. Todo o seu esforço é o de não se deixar vencer pelas histórias. O excesso mesmo desses casos, multiplicados em outros tantos episódios parentéticos, sugere que o que interessa está noutro lugar – no inatingível reino que as histórias parecem ocultar. “A consciência é uma armadilha”, diz o psicólogo louco, autor de uma série de diagnósticos “como pequenas fábulas”. Em seus momentos mais frágeis, porém, é o próprio romance que, inversamente, ameaça se transformar numa série de fábulas como pequenos diagnósticos.

 Que o controle das aparências seja calculado para a explosão das paixões – como se a vida toda fosse uma placa sísmica, perpetuamente ameaçada por tremores e erupções – é algo que funciona melhor como instrumento de ritmo do que como lição. E mesmo esse ritmo tende a se tornar insistente demais, uma alegoria do recalcado. O livro, porém, é mais forte que as suas falências e essas imagens recuperadas acabam descrevendo uma outra figura, no limite apenas da compreensão, lá onde o que se sabe ecoa incompreensivelmente. “Os poetas estavam lá antes de nós”, escreveu Freud; e Bernardo Carvalho, à sua maneira, chegou antes de nós no terreno do trauma e do testemunho, questões candentes da literatura e da teoria literária contemporânea – mas não (até agora) entre nós.

 Neste domínio, não é mais possível afirmar, como Jean-Claude Bernardet em A Doença, uma Experiência, que a ironia é “um valor acima de qualquer outro”; e Bernardo é mesmo um escritor sobriamente feroz, indisponível para as alegrias. Sua literatura é mais do jejum que da festa, mais do magro consolo que da reconciliação. As inúmeras coincidências que vão dirigindo a narrativa tem menos de humor do que de paranóia e a tensão da voz só relaxa, artificiosamente, em quase piadas sobre o poder antecipatório da literatura, ou na presença fugaz dos coadjuvantes Henry Kissinger e Emma Thompson, ou em um ou outro registro da comédia (mais geralmente o transe, ou apuro) sexual.

 A ferocidade tem sua dose de sentimentalismo, por certo, mas o melodrama, aqui, foi roubado do melos, que só ressoa inaudivelmente, em tudo o que não foi dito. E nos dois momentos de clímax, no final da primeira parte e em seu espelho parcial, no fim, quando o autor, virtuosisticamente chegado até lá, abdica então do controle e deixa que a literatura – ou que outro nome se dá para o que não é nem bebedeira, nem sonambulismo – tenha a palavra, e seja capaz, afinal, de dizer o que importa.

 Nestes momentos, Bernardo Carvalho transcende os limites que ele mesmo se criou, nessas narrativas tão ensimesmadas e obsessivas. Daqui para a frente, como diz um narrador, tudo é verdade e o livro completa um retrato do morto que fica fora daquelas pinturas cariocas. É um morto que o livro traz de volta à vida: o último duplo, testemunha e objeto, sobre cujo rosto o romance vem desenhar, com a força de uma compulsão, as feições amorosas e aberratórias de cada leitor.

Fonte:
Revista USP, n. 36, fev./1998.

Arthur Nestrovski (1959)


Arthur Nestrovski nasceu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 1959. Formou-se em música na Universidade de York, na Inglaterra, e doutorou-se em literatura e música na Universidade do Iowa, nos Estados Unidos. É articulista da Folha de S.Paulo, editor da série Folha explica (Publifolha) e professor titular de Literatura na Puc de São Paulo, ensaísta e autor de livros infantis premiados. 

Dedicado a complexos temas culturais, autor de livros eruditos como Ironias da Modernidade (1996), um estudo sobre a linguagem irônica na literatura e na música do modernismo, e organizador de obras como Figuras do Brasil (2002), onde se encontram reunidos textos de 80 das mais representativas personalidades da cultura brasileira, Arthur Nestrovski é também um dos mais sensíveis e criativos autores da literatura infantil brasileira. 

Depois de receber o prêmio Jabuti como autor-revelação por Debussy e Poe (1986), Arthur lançou, em 1998, Histórias de Avô e Avó (1998), um livro infantil, de cunho autobiográfico, onde ele reconta as histórias que ouviu dos avós, imigrantes judeus, como quem coloca um ladrilho indispensável ao imenso mosaico da diversidade étnica brasileira. Em seguida, foi a vez do violinista Arthur contar para crianças sua história de amor com a música, desde o primeiro concerto a que assistiu. Em O Livro da Música (2000), o autor vai de reminiscência em reminiscência, explicando os termos e as coisas do mundo da música. Nestrovski também empresta seu ouvido privilegiado de músico aos leitores de Barulho, Barulhinho, Barulhão e ensina a ouvir os sons que nos rodeiam, do barulhinho da latinha de refrigerante que se abre ao barulhão do avião que risca o céu.

Em Coisas Que Eu Queria Ser (2003), o escritor mostra que, além de ouvido, também tem olhos e coração para perceber as possibilidades de vida em objetos que cercam nosso dia-a-dia, como um simples lápis, ou naqueles que sonhamos, como uma máquina de exterminar chatos. Dando novas respostas à eterna pergunta “o que você vai ser quando crescer?”, o livro leva o leitor à aventura de experimentar outras maneiras de viver.

Essa liberdade de trafegar entre o real e o imaginário é a matéria com que o autor constrói o consagrado Bichos Que Existem e Bichos Que Não Existem (2002). Trazendo para o universo infantil a idéia do escritor francês Francis Ponge, que explorou poeticamente as coisas e objetos do mundo, o autor apresenta, com muito humor, bichos reais, de todos os tipos, e animais fantásticos que habitam os mitos gregos e o folclore nacional. E mergulhar na fantasia das lendas brasileiras é coisa que Nestrovski faz com fôlego de boto, como se vê também em A Iara (2002), a serei de água doce que, nesse livro, encanta não só o protagonista, mas também todos os leitores.

Algumas Obras

Infantil & Juvenil

- Histórias de Avô e Avó (il. Mª Eugênia) – 1998, Cia. das Letrinhas
- O Livro da Música (il. Marcelo Cipis) – 2000, Cia das Letrinhas
- A Iara – 2002, FTD 
- Bichos que Existem & Bichos que Não Existem (il. Mª Eugênia) – 2002, Cosac & Naify 
- Coisas Que Eu Queria Ser (il. Mª Eugênia) – 2003, Cosac & Naify
- Barulho, Barulhinho, Barulhão – (il. Marcelo Cipis) – 2004, Cosac & Naify

Fonte: