sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 4

Análise da Obra
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2012/04/eca-de-queiros-o-mandarim.html

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Eu revoltava-me contra este pedantismo retórico de pedagogo rígido: erguia alto a fronte, gritava-lhe numa arrogância desesperada:

– Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? O teu grande nome de Consciência não me assusta! És apenas uma perversão da sensibilidade nervosa. Posso eliminar-te com flor de laranja!

E imediatamente sentia passar-me na alma, com uma lentidão de brisa, um rumor humilde de murmurações irónicas:

– Bem, então come, dorme, banha-te e ama... Eu assim fazia. Mas logo os próprios lençóis de bretanha do meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os tons lívidos de uma mortalha; a água perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pele, com a sensação espessa de um sangue que coalha: e os peitos nus das minhas amantes entristeciam-me, como lápides de mármore que encerram um corpo morto.

Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que Ti Chin-Fu tinha decerto uma vasta família, netos, bisnetos tenros, que, despojados da herança que eu comia à farta em pratos de Sèvres, numa pompa de sultão perdulário, iam atravessando na China todos os infernos tradicionais da miséria humana – os dias sem arroz, o corpo sem agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...

Compreendi então porque me perseguia a figura obesa do velho letrado; e dos seus lábios recobertos pelos longos pêlos brancos do seu bigode de sombra, parecia-me sair agora esta acusação desolada: «Eu não me lamento a mim, forma meio morta que era; choro os tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio fresco das tuas amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados num grupo expirante, entre leprosos e ladrões, na Ponte dos Mendigos, ao pé dos terraços do Templo do Céu!»

Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chinesa! Não podia levar à boca um pedaço de pão sem imaginar imediatamente o bando faminto de criancinhas, a descendência de Ti Chin-Fu, penando, como passarinhos implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho abandonado; se me abafava no meu paletó, era logo a visão de desgraçadas senhoras, mimosas outrora de tépido conforto chinês, hoje roxas de frio, sob andrajos de velhas sedas, por uma manhã de neve; o tecto de ébano do meu palacete lembrava-me a família do Mandarim, dormindo à beira dos canais, farejada pelos cães; e o meu coupé bem forrado fazia-me arrepiar à ideia das longas caminhadas errantes, por estradas encharcadas, sob um duro Inverno asiático...

O que eu sofria! – E era o tempo em que a populaça invejosa vinha pasmar para o meu palacete, comentando as felicidades inacessíveis que lá deviam habitar!

Enfim, reconhecendo que a Consciência era dentro em mim como uma serpente irritada – decidi implorar o auxílio d'Aquele que dizem ser superior à Consciência porque dispõe da Graça.

Infelizmente eu não acreditava n'Ele... Recorri pois à minha antiga divindade particular, ao meu dilecto ídolo, padroeira da minha família, Nossa Senhora das Dores. E, regiamente pago, um povo de curas e cónegos, pelas catedrais de cidades e pelas capelas de aldeia, foi pedindo a Nossa Senhora das Dores que voltasse os seus olhos piedosos para o meu mal interior... Mas nenhum alívio desceu desses Céus inclementes, para onde há milhares de anos debalde sobe o calor da miséria humana.

Então eu próprio me abismei em práticas piedosas – e Lisboa assistiu a este espectáculo extraordinário: um ricaço, um nababo, prostrando-se humildemente ao pé dos altares, balbuciando de mãos postas frases da salve-rainha, como se visse na Oração e no Reino do Céu, que ela conquista, outra coisa mais que uma consolação fictícia que os que possuem tudo inventaram para contentar os que não possuem nada... Eu pertenço à burguesia; e sei que se ela mostra à plebe desprovida um Paraíso distante, gozos inefáveis a alcançar – é para lhe afastar a atenção dos seus cofres repletos e da abundância das suas searas.

Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e cantadas, para satisfazer a alma errante de Ti Chin-Fu. Pueril desvario de um cérebro peninsular! O velho Mandarim, na sua classe de letrado, de membro da Academia dos Han-Lin, colaborador provável do grande tratado «Khu Tsuane-Chu», que já tem setenta e oito mil e setecentos e trinta volumes, era certamente um sectário da doutrina, da moral positiva de Confúcio... Nunca ele, sequer, queimara mechas perfumadas em honra de Buda: e os cerimoniais do sacrifício místico deviam parecer à sua abominável alma de gramático e de céptico como as pantomimas dos palhaços no teatro de Hong-Tung!

Então prelados astutos, com experiência católica, deram-me um conselho subtil – captar a benevolência de Nossa Senhora das Dores com presentes, flores, brocados e jóias, como se quisesse alcançar os favores de Aspásia: e à maneira de um banqueiro obeso, que obtém as complacências de uma dançarina dando-lhe um cottage entre árvores – eu, por uma sugestão sacerdotal, tentei peitar a doce Mãe dos Homens, erguendo-lhe uma catedral toda de mármore branco. A abundância das flores punha entre os pilares lavrados perspectivas de paraísos: a multiplicidade dos lumes lembrava uma magnificência sideral... Despesas vãs! O fino e erudito cardeal Nani veio de Roma consagrar a igreja; mas, quando eu nesse dia entrei a visitar a minha hóspeda divina, o que vi, para além das calvas dos celebrantes, entre a mística névoa dos incensos, não foi a Rainha da Graça, loira, na sua túnica azul – foi o velho malandro com o seu olho oblíquo e o seu papagaio nos braços! Era a ele, ao seu branco bigode tártaro, à sua pança cor de oca, que todo um sacerdócio recamado de oiro estava oferecendo, ao roncar do órgão, a Eternidade dos louvores!...

Então, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia, era favorável ao desenvolvimento destas imaginações – parti, viajei sobriamente, sem pompa, com um baú e um lacaio.

Visitei, na sua ordem clássica, Paris, a banal Suíça, Londres, os lagos taciturnos da Escócia; ergui a minha tenda diante das muralhas evangélicas de Jerusalém; e de Alexandria a Tebas, fui ao comprido desse longo Egipto monumental e triste como o corredor de um mausoléu. Conheci o enjoo dos paquetes, a monotonia das ruínas, a melancolia das multidões desconhecidas, as desilusões do bulevar: e o meu mal interior ia crescendo.

Agora já não era só a amargura de ter despojado uma família venerável: assaltava-me o remorso mais vasto de ter privado toda uma sociedade de um personagem fundamental, um letrado experiente, coluna da Ordem, esteio de instituições. Não se pode arrancar assim a um Estado uma personalidade do valor de cento e seis mil contos, sem lhe perturbar o equilíbrio... Esta ideia pungia-me acerbamente. Ansiei por saber se na verdade a desaparição de Ti Chin-Fu fora funesta à decrépita China: li todos os jornais de Hong-Kong e de Xangai, velei a noite sobre histórias de viagens, consultei sábios missionários: – e artigos, homens, livros, tudo me falava da decadência do Império do Meio, províncias arruinadas, cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebeliões, templos aluindo-se, leis perdendo a autoridade, a decomposição de um mundo, como uma nau encalhada que a vaga desfaz tábua a tábua!...

E eu atribuía-me estas desgraças da sociedade chinesa! No meu espírito doente Ti Chin-Fu tomara então o valor desproporcionado de um César, um Moisés, um desses seres providenciais que são a força de uma raça. Eu matara-o; e com ele desaparecera a vitalidade da sua pátria! O seu vasto cérebro poderia talvez ter salvado, a rasgos geniais, aquela velha monarquia asiática – e eu imobilizara-lhe a acção criadora! A sua fortuna concorreria a refazer a grandeza do Erário – e eu estava-a dissipando a oferecer pêssegos em Janeiro às messalinas do Helder!...

– Amigos, conheci o remorso colossal de ter arruinado um império!

Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me à orgia. Instalei-me num palacete da Avenida dos Campos Elísios – e foi medonho. Dava festas à Trimalcião: e, nas horas mais ásperas de fúria libertina, quando das charangas, na estridência brutal dos cobres, rompiam os cancãs; quando prostitutas, de seio desbragado, ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados boémios, ateus de cervejaria, injuriavam Deus, com a taça de champanhe erguida – eu, tomado subitamente como Heliogábalo de um furor de bestialidade, de um ódio contra o Pensante e o Consciente, atirava-me ao chão a quatro patas e zurrava formidavelmente de burro...

Depois quis ir mais baixo, ao deboche da plebe, às torpezas alcoólicas do «Assommoir»: e quantas vezes, vestido de blusa, com o casquete para a nuca, de braço dado com «Mes-Bottes» ou «Bibi-la-Gaillarde», num tropel avinhado, fui cambaleando pelos bulevares exteriores, a uivar, entre arrotos:

Allons, enfants de la patrie-e-e!...
Le jour de gloire est arrivé...

Foi uma manhã, depois de um destes excessos, à hora em que nas trevas da alma do debochado se ergue uma vaga aurora espiritual – que me nasceu, de repente, a ideia de partir para a China! E, como soldados em acampamento adormecido, que ao som do clarim se erguem, e um a um se vão juntando e formando coluna – outras ideias se foram reunindo no meu espírito, alinhando-se, completando um plano formidável... Partiria para Pequim; descobriria a família de Ti Chin-Fu; esposando uma das senhoras, legitimaria a posse dos meus milhões; daria àquela casa letrada a antiga prosperidade; celebraria funerais pomposos ao Mandarim, para lhe acalmar o espírito irritado; iria pelas províncias miseráveis fazendo colossais distribuições de arroz; e, obtendo do imperador o botão de cristal de mandarim, acesso fácil a um bacharel, substituir-me-ia à personalidade desaparecida de Ti Chin-Fu – e poderia assim restituir legalmente à sua pátria, se não a autoridade do seu saber, ao menos a força do seu oiro.

Tudo isto, por vezes, me aparecia como um programa indefinido, nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo desta aventura original e épica me envolvera; e eu ia, arrebatado por ele, como uma folha seca numa rajada.

Anelei, suspirei por pisar a terra da China! – Depois de altos preparativos, apressados a punhados de ouro, uma noite parti enfim para Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o «Ceilão». E na manhã seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o voo branco das gaivotas, quando os primeiros raios do sol ruborizavam as torres de Nossa Senhora da Guarda, sobre o seu rochedo escuro – pus a proa ao Oriente.

IV

O «Ceilão» teve uma viagem calma e monótona até Xangai.

Daí subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin num pequeno steamer da Companhia Russel. Eu não vinha visitar a China numa curiosidade ociosa de touriste: toda a paisagem dessa província, que se assemelha à dos vasos de porcelana, de um tom azulado e vaporoso, com colinazinhas calvas e de longe a longe um arbusto bracejante, me deixou sombriamente indiferente.

Quando o capitão do steamer, um yunkee impudente de focinho de chibo, ao passarmos à altura de Nanquim, me propôs parar ir percorrer as ruínas monumentais da velha cidade de porcelana, – eu recusei, com um movimento seco de cabeça, sem mesmo desviar os olhos tristes da corrente barrenta do rio.

Que pesados e soturnos me pareceram os dias de navegação de Tien-Tsin a Tung-Chu, em barcos chatos que o cheiro dos remadores chineses empestava; ora através de terras baixas inundadas pelo Pei-Hó, ora ao longo de pálidos e infindáveis arrozais; passando aqui uma lúgubre aldeia de lama negra, além um campo coberto de esquifes amarelos; topando a cada momento com cadáveres de mendigos, inchados e esverdeados, que desciam ao fio de água, sob um céu fusco e baixo!

Em Tung-Chu fiquei surpreendido, ao dar com uma escolta de cossacos que mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, heróico oficial das campanhas da Ásia Central, e então embaixador da Rússia em Pequim. Eu vinha-lhe recomendado como um ser precioso e raro: e o verboso intérprete Sá-Tó, que ele punha ao meu serviço, explicou-me que as cartas de selo imperial, avisando-o da minha chegada, recebera-as ele, havia semanas, pelos correios da Chancelaria que atravessam a Sibéria em trenó, descem a dorso de camelo até à Grande Muralha tártara, e entregam aí a mala a esses corredores mongólicos, vestidos de couro escarlate, que dia e noite galopam sobre Pequim.

Camilloff enviava-me um pónei da Manchúria, ajaezado de seda, e um cartão de visita, com estas palavras traçadas a lápis sob o seu nome: «Saúde! O animal é doce de boca!»

Montei o pónei: e a um hurra dos cossacos, num agitar heróico de lanças, partimos à desfilada pela poeirenta planície – porque já a tarde declinava, e as portas de Pequim fecham-se mal o último raio de sol deixa as torres do Templo do Céu. Ao princípio seguimos uma estrada, caminho batido do trânsito das caravanas, atravancado de enormes lajes de mármore dessoldadas da antiga Via Imperial. Depois passámos a ponte de Pa Li-Kao, toda de mármore branco, flanqueada de dragões arrogantes. Vamos correndo então à beira de canais de água negra: começam a aparecer pomares, aqui e além uma aldeia de cor azulada, aninhada ao pé de um pagode: – de repente, a um cotovelo do caminho, paro assombrado...

Pequim está diante de mim! E uma vasta muralha, monumental e bárbara, de um negro baço, estendendo-se a perder de vista, e destacando, com as arquitecturas babilónicas das suas portas de tectos recurvos, sobre um fundo de poente de púrpura ensanguentada...

Ao longe, para o norte, num vago de vapor roxo, esbatem-se, como suspensas no ar, as montanhas da Mongólia...

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Continua…
Fonte:
http://leituradiaria.com

Revista Machado de Assis recebe obras voltadas para crianças e jovens

Até 20 de janeiro, estão abertas as inscrições para a terceira edição da Revista Machado de Assis – Literatura Brasileira em Tradução, que será dedicada exclusivamente à literatura para crianças e jovens. O objetivo é estimular a publicação internacional de autores brasileiros com obras nesse segmento. O lançamento ocorrerá em março, na Feira do Livro para Crianças de Bolonha, que homenageará o Brasil em 2014.

O conteúdo da revista da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), trimestral na versão online, encontra-se disponível no endereço www.machadodeassismagazine.bn.br. O terceiro número será publicado no site. A revista tem duas edições impressas por ano, que se baseiam nas versões online, e a primeira foi lançada em outubro, na Feira do Livro de Frankfurt. Participam do projeto o Itaú Cultural, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e o Itamaraty.

São aceitas inscrições de traduções para o inglês ou o espanhol de trechos de obras já publicadas no Brasil. Os textos devem ter no máximo 15 mil caracteres (sem contar os espaços) e formato Word. Além disso, será necessário enviar uma amostra de pelo menos três páginas escaneadas do texto visual, quando houver.

Deve vir junto uma declaração de liberação de direito de autor do original traduzido e do tradutor para a revista de circulação internacional (em formato impresso, digital e no site da publicação). É obrigatório indicar o título da obra original em português, sua editora e o ano de lançamento. Os autores dos textos visuais que enviarem material para a terceira edição também deverão autorizar a publicação na revista em diferentes formatos. Para participar da seleção, as liberações precisam ser assinadas pelos responsáveis e postadas por email, escaneadas, à FBN.

Em caso de aprovação, será necessário enviar pelo correio os documentos originais de liberação de direito de autor e tradutor à FBN (o endereço será divulgado aos selecionados). Também será necessário preencher um formulário de informações sobre a obra no idioma utilizado para a tradução do trecho (inglês ou espanhol). O autor do texto visual selecionado deverá enviar o trabalho completo, em formato a ser divulgado na ocasião.

Serão selecionados 20 trechos por um Conselho Consultor especializado na literatura para crianças e jovens, indicado pelos membros do Conselho Editorial da revista, designado pela FBN. O projeto envolve parceiros que participam do projeto tendo como base o edital de coedições de publicações da FBN (15/5/2012 – D.O.U.). Suas atribuições são as seguintes: o Itamaraty é responsável pela distribuição internacional; a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo cuida da impressão; e o Itaú Cultural, que sugeriu o projeto à FBN, realiza a edição e alimenta o site da publicação. A revista tem circulação internacional, voltada sobretudo para agentes literários e editores.

Nem a FBN, nem os demais envolvidos no projeto da revista terão algum tipo de ganho financeiro em caso de contratação da obra por editora estrangeira. Todas as traduções serão submetidas à revisão e poderão sofrer alterações de acordo com o critério dos editores. Não será exigida das traduções uma qualidade literária final. Em caso de contratação da obra por editora estrangeira, esta irá decidir o nome do tradutor definitivo, a ser escolhido sem o envolvimento da FBN ou demais participantes do projeto da revista.

Os textos e os documentos escaneados precisam ser dirigidos para o e-mail do Centro Internacional do Livro, o órgão da FBN responsável pelo projeto (cil@bn.br). Em caso de dúvidas, favor escrever para o mesmo email (cil@bn.br) ou telefonar para 5521-2220-2057 ou 5521 2220-1994.
Fontes:
http://www.bn.br/portal/index.jsp?nu_padrao_apresentacao=25&nu_item_conteudo=2120&nu_pagina=1
Http://concursos-literarios.blogspot.com

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Oswald de Andrade (Poesia, pois é, Poesia)

Fonte:

http://cartunistasolda.blogspot.com/

Nilto Maciel (Poemas Escolhidos 2)

MINHA CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra não tem nada,
palmeiras nem sabiás.

Minha terra é feia, é triste,
como tristes são seus filhos.

Minha terra tem ruelas,
por onde não passam carros.

Minha terra tem subidas,
tem calvários, tem descidas.

Minha terra é tão distante,
que nem sei onde ela fica.

Minha terra não tem nada,
a não ser minha saudade.

CANTIGA DO POEMA PERDIDO

O verso que não escrevi,
levado em bolhas pelo vento,
coitado do meu pensamento!

O poema que se perdeu,
desbaratado pela fome
do despeito qualquer, sem nome.

Apenas pedaços de mim,
instantes fugidios, vãos,
mero abanar de minhas mãos.

Um verso a menos, nada mais,
poema desaparecido,
palavra sem nenhum sentido.

Serei o mesmo sonhador,
do mesmo jeito morrerei,
com a mesma dimensão irei.

Se o verso tal não rabisquei,
vivi o instante, o tempo, a vida
– e ela pra mim não foi perdida.

Ninguém nada perdeu com isso,
se o verso desapareceu
– coitado dele que morreu!

E quando eu desaparecer,
levado em bolhas pelo vento,
coitado do meu pensamento!

ACALANTO

Teus olhos me espreitam vazios
pelos punhos puídos da rede
- são aranhas tecendo teias
para o pesadelo de minha sede.

O range-range deste balanço
não me vem do pêndulo do corpo
- é teu desastre indo e vindo
no galho da velha mangueira.

E o medo que me acalanta
corre o espaço de tua loucura
- da cozinha, da fúria e da faca
ao sol de intensa brancura.

Em teus ombros cobertos de anos
pousavam as mesmas luzes
que te desenhavam gigante
ao chão repleto de cruzes,

e em tuas roupas esfarrapadas
o vento zunia o mapa e as eras
da terra dos antepassados,
das tribos, das matas e das feras.

És espantalho de muitas feições:
há das moscas da morte o rasto
enquanto voam por tua coroa
os nunca esperados urubus do repasto.

Primeiro a faca e a fúria comuns
com que iniciaste a terrível balada
- e já eras o predestinado que vai
para além da corda comprada.

Era uma faca de muito tamanho
com que se cortava o osso
da sopa de após o banho
e o mato que cobria o quintal.

E o peito que incendiaste
com ódios tão inclementes
era o mesmo que amamentava
o choro de teus descendentes.

Depois foi tua vez chegada
- a cozinha já não te cabia,
a faca já não te servia,
a fúria para ti se voltava.

A corda de fibra tesa
dos que morrem serenamente
- a alma como fogueira acesa
queimando os campos de junho.

E as mãos que a sustentavam
as mesmas das frutas colhidas
- a disposição de só se cansarem
depois de as forças perdidas.

Despedida nenhuma nos bolsos
pois que de fins sabias somente
o lado pobre e selvagem
- matar e morrer impunemente.

Agora me acordas e embalas
com teus olhos sanguinolentos
- as mãos rompendo os nós e os calos;
o corpo um pêndulo podre.

NAVEGADOR

Meus olhos cegos, que não veem naves,
navegam pelos mares das tormentas
– perdidos barcos, rotos, sem timão.

Meus olhos mudos só vislumbram vagas,
doida babel de tempestades feita,
monstros marinhos, oceano largo.

Meus olhos surdos só conseguem ver
cantos de dor, de morte e solidão,
a minha própria imensidão de ser.

SAUDADES

Tudo passa, tudo passa.
Até as paredes largas,
as janelas e as portas.

Passam porteiras, portais,
altas portas de madeira
e as calçadas cimentadas.

Escadas de musgo feitas,
de escorregadio verde,
lembranças de chuvas, ventos.

Passa a lâmpada na praça,
e o busto do herói exposto
ao sol e à solidão.

Jardins, flores e beleza,
margaridas, açucenas,
rosas vermelhas - perfumes.

Tudo passa, tudo passa.
Tempo de medo e espanto,
de crescer, ser gente grande.

Passa até essa tristeza,
passa até essa saudade
– quando eu nem sequer passava.

IMAGENS

Eu olhava para a Lua
e via São Jorge
e um dragão em luta.
Faz tanto tempo aquilo
que ate penso
ser nova a lua de agora.

Olho de novo para o céu.
Ha nuvens, muitas nuvens,
como se fosse desabar
uma tempestade.
E faz frio, muito frio,
ao meu redor.

É como se a lua fosse
uma imagem
dentro de outra imagem.
E eu a imagem
da grande imagem
de mim mesmo.

ASTRONOMIA


E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença.
Augusto dos Anjos


Morreu meu derradeiro sonho vão
naqueles olhos cor de tempestade,
naquele adeus que naufragou meu ser.

Minha ilusão partiu pela janela
e se perdeu nos céus da escuridão,
fugido pássaro de si criado,
anjo talvez, noturna sombra informe.

Agora sou apenas cidadão,
mero sujeito do objeto mundo,
olhos abertos para me viver.

Porém, persiste ao meu redor a noite
– escuro céu, estrelas apagadas –
e um som de dor ou de loucura vibra
nos meus ouvidos, sem nenhum sentido.

TESTAMENTO

Deixo meus teres, meus haveres todos,
minhas migalhas, trastes, bugigangas
para os museus de minha terra pobre.

Deixo meus livros, meus cadernos velhos
para as crianças, quem quiser viver
as emoções que a vida me ofertou.

Deixo meus versos, minhas rimas pobres
pros namorados mais apaixonados
e pros desesperados mais sinistros.

Deixo meu próprio desespero inútil
para abalar o dia-a-dia fútil
dos sossegados mais amordaçados.

Deixo o amor mais amoroso e puro
para a mulher mais bela e mais difícil
– a ninfa branca de meu bosque escuro.

Minha amargura deixo repartida
em cada taça reluzente ou baça
dos tristes seres que jamais gargalham.

A solidão mais minha deixo dada
para os que nunca sós viveram, foram;
para a ciranda, a festa, o carnaval.

Minha descrença lego piamente
aos pobres e iludidos pela santa
igreja madre do menino-deus.

E finalmente deixo minha vida
para os mortais iguais a mim, e aos vermes
– a doce vida amarga que adorei.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Navegador. Poemas. Brasília/DF: Ed. Códice, 1996.

Monteiro Lobato (O Herdeiro de Si Mesmo)

O povo de Dois Rios não cessava de comentar a inconcebível “sorte” do coronel Lupércio Moura, o grande milionário local. Um homem que saíra do nada. Que começara modesto menino de escritório dos que mal ganham para os sapatos, mas cuja vida, dura até aos 36 anos, fora daí por diante a mais espantosa subida pela escada do dinheiro, a ponto de aos 60 ver-se montado numa hipopotâmica fortuna de 60 mil contos de réis.

Não houve o que Lupércio não conseguisse da sorte – até o posto de coronel, apesar de já extinta a pitoresca instituição dos coronéis. A nossa velha Guarda Nacional era uma milícia meramente decorativa, com os galões de capitão, major e coronel reservados para coroamento das vidas felizes em negócios. Em todas as cidades havia sempre um coronel: o homem de mais posses. Quando Lupércio chegou aos 20 mil contos, agente de Dois Rios sentiu-se acanhado de tratá-lo apenas de “senhor Lupércio”. Era pouquíssimo. Era absurdo que um detentor de tanto dinheiro ainda se conservasse! “soldado raso” – e por consenso unânime promoveram-no, com muita justiça, a coronel, o posto mais alto da extinta milícia.

Criaturas há que nascem com misteriosa aptidão para monopolizar dinheiro. Lembram ímãs humanos. Atraem a moeda com a mesma inexplicável força com que o ímã atrai a limalha. Lupércio tornara-se ímã. O dinheiro procurava-o de todos os lados, e uma vez aderido não o largava mais toda gente faz negócios em que ora ganha, ora perde. Ficam ricos os que ganham mais do que perdem e empobrecem os que perdem mais do que ganham. Mas caso de homem de mil negócios sem uma só falha, existia no mundo apenas um – o do coronel Lupércio.

Até aos 36 anos ganhou dinheiro de modo normal, e conservou-o à força da mais acirrada economia. Juntou um pecúlio de 45:500$000 como juntam todos os forretas. Foi por essas alturas que sua vida mudou. A sorte “encostou-se” nele, dizia o povo. Houve aquela tacada inicial de santos e a partir daí todos os seus negócios foram tacada prodigiosas. Evidentemente, uma força misteriosa passara a portegê-lo.
Que tacada inicial fora essa? Vale a pena recordá-lo.

Certo dia, inopidanadamente, Lupércio apareceu com a idéia, absurda para seu caráter, de uma estação de veraneio em Santos. Todo mundo se espantou. Pensar em veraneio, flanar, botar dinheiro fora, aquela criatura que nem sequer fumava para economia dos níqueis que custam os maços de cigarros? E quando o interpelaram, deu uma resposta esquisita:

- Não sei. Uma coisa me empurra para lá...

Lupércio foi para Santos. Arrastado, sim, mas foi. E lá se hospedou no hotelzinho mais barato, sempre atento a uma só coisa: o saldo que ficaria dos 500 mil réis que destinara à “maluquice”. Nem banhos de mar tomou, apesar da grande vontade, para economia dos 20 mil réis de roupa de banho. Contentava-se com ver o mar.

Que enlevo d’alma lhe vinha da imensidão líquida, eternamente a aflar em ondas e a refletir os tons do céu! Lupércio extasiava-se diante de tamanha beleza.

- Quanto sal! Quantos milhões de toneladas de sal! – dizia lá consigo, e seus olhos, em êxtase, ficavam a ver pilhas imensas de sacas amontoadas por toda a extensão das praias.

Também gostava de assistir à puxada das redes dos pescadores, enlevando-se no cálculo do valor da massa de peixes recolhida. Seu cérebro era a mais perfeita máquina de calcular que o mundo ainda produzira.

Num desses passeios afastou-se mais que de costume e foi ter à praia grande. Um enorme trambolho ferrugento semi-enterrado na areia chamou-lhe a atenção.

- Que é aquilo? – indagou dum passante.

Soube tratar-se dum cargueiro inglês que vinte anos antes dera à costa naquele ponto. Uma tempestade arremessara-o à praia onde encalhara e ficara a afundar-se lentissimamente. No começo o grande caso aparecia quase todo de fora – “mas ainda acaba engolido pela areia” – concluiu o informante.

 Certas criaturas nunca sabem o que fazem, o que são, nem o que leva a isto e não àquilo. Lupércio era assim. Ou andava assim agora, depois do “encostamento” da força. Essa força o puxava às vezes como cabreiro puxa para a feira um cabrito – arrastando-o. Lupércio veio para santos arrastado. 

Chegara até aquele casco arrastado – e era a contragosto que permanecia diante dele, porque o sol estava terrível e Lupércio detestava o calor. Travava-se dentro dele uma luta. A força obrigava-o a atentar no casco, e calcular o volume daquela massa de ferro, o número de quilos, o valor do metal, o custo do desmantelamento – mas Lupércio resistia. Queria sombra, queria escapar ao calor terrível. Por fim, venceu. Não calculou coisa nenhuma – e fez-se de volta para o hotelzinho com cara de quem brigou com a namorada – evidentemente amuado.

Nessa noite todos os seus sonhos giraram em torno do casco velho. A força insistia para que ele calculasse a ferralha, mas mesmo em sonhos Lupércio resistia, alegava o calor reinante – e os pernilongos. Oh, como havia pernilongos em Santos! Como calcular qualquer coisa com o termômetro perto de 40 graus e aquela infernal música anofélica? Lupércio amanheceu de mau humor, amuado. Amuado com a força.

Foi quando ocorreu o caso mais inexplicável de sua vida:

O casual encontro de um corretor de negócios que seduziu de maneira estranha. Começaram a conversar bobagens e gostaram-se. Almoçaram juntos. Encontraram-se de novo à tarde para o jantar. Jantaram juntos e depois... a farrinha!

A princípio, a idéia da farra tinha assustado Lupércio. Significava desperdício de dinheiro – um absurdo. Mas como o homem lhe pagara o almoço e o jantar, era bem possível que também custeasse a farrinha. Essa hipótese fez que Lupércio não repelisse de pronto o convite, e o corretor, como se lhe adivinhasse o pensamento, acudiu logo:

- Não pense em despesas. Estou cheio de “massa”. Como o negocião que fiz ontem, posso torrar um conto sem que meu bolso dê por isso.

A farra acabou diante de uma garrafa de whisky, bebida cara que só naquele momento Lupércio veio a conhecer. Uma, duas, três doses. Qualquer coisa levitante começou a desabrochar dentro dele. Riu-se à larga. Contou casos cômicos. Referiu cem fatos de sua vida e depois, oh, oh, oh, falou em dinheiro e confessou quantos contos possuía no banco!

- Pois é! Quarenta e cinco contos – ali na batata!

O corretor passou o lenço pela testa suada. Uf! Até que enfim descobrira o peso metálico daquele homem. A confissão dos 45 contos era algo absolutamente aberrante na psicologia de Lupércio. Artes do whisky, porque em estado normal ninguém nunca lhe arrancaria semelhante confissão. Um dos seus princípios instintivos era não deixar que ninguém lhe conhecesse “ao certo” o valor monetário. Habilmente despistava os curiosos, dando a uns a impressão de possuir mais, e a outros a de possuir menos do que realmente possuía. Mas in whisky, diz o latim – e ele estava com quatro boas doses no sangue.

O que se passou dali até a madrugada Lupércio nunca o soube com clareza. Vagamente se lembrava de um estranhíssimo negócio em que entravam o velho casco do cargueiro inglês e uma companhia de seguros marítimos.

Ao despertar no dia seguinte, ao meio-dia, numa ressaca horrorosa, tentou reconstruir o embrulho da véspera. A princípio, nada; tudo confusão. De repente, empalideceu.

Sua memória começava a abrir-se.

- Será possível?

Fora possível, sim. O corretor havia “roubado” os seus 45 contos! Como? Vendendo-lhe o ferro-velho. Esse corretor era agente da companhia que pagara o seguro do cargueiro naufragado e ficara dona do casco. Havia muitos anos que recebera a incumbência de apurar qualquer coisa daquilo – mas nunca obtivera nada, nem 5, nem 3 nem 2 contos – e agora o vendera àquele imbecil por 45!

A entrada triunfal do corretor no escritório da companhia, vibrando no ar o cheque! Os abraços, os parabéns dos companheiros tomados de inveja...

O diretor da sucursal fê-lo vir ao escritório.

- Quero que receba o meu abraço – disse. – A sua façanha vem pô-lo em primeiro lugar entre os nossos agentes.

O senhor acaba de tornar-se a grande estrela da companhia.

Enquanto isso, lá no hotelzinho, Lupércio amarfanhava o travesseiro desesperadamente. Pensou na polícia. Pensou em contratar o melhor advogado de Santos. Pensou em dar tiro – um tiro na barriga do infame ladrão; na barriga, sim, por causa da peritonite. Mas nada pôde fazer. A força lá dentro o inibia. Impedia-o de agir neste ou naquele sentido. Forçava-o a esperar.

- Mas esperar que coisa?

Ele não sabia, não compreendia, mas sentia aquela impulsão tremenda que o forçava a esperar. Por fim, exausto da luta, ficou de corpo largado – vencido. Sim, esperaria. Não faria nada – nem polícia, nem advogado, nem peritonite, apesar de ser um caso de escroqueria pura, desses que a lei pune.

E como não tivesse ânimo de regressar a Dois Rios, deixou-se ficar em Santos num empreguinho dos mais modestos – esperando... não sabia o quê.

Não esperou muito. Dois meses depois rebentava a Grande Guerra, e a tremenda alta dos metais não demorou a sobrevir. No ano seguinte Lupércio revendeu o casco do “Sparrow’ por 320 contos de réis. A notícia encheu Santos – e o corretor-estrela foi tocado da companhia de seguros quase a pontapés. O mesmo diretor que o promovera ao “estrelato” despediu-o com palavras ferozes;

- Imbecil! Esteve anos e anos com o “Sparrow” e vai vendê-lo por uma ninharia justamente nas vésperas da valorização. Rua! Faça-me o favor de nunca mais me pôr os pés aqui, seu coisa!

Lupércio voltou para Dois Rios com 320 contos no bolso e perfeitamente reconciliado com a força. Daí por diante nunca mais houve amuos, nem hiatos na sua ascensão ao milionarismo. Lupércio dava idéia do demônio. Enxergava no mais escuro de todos os negócios. Adivinhava. Recusava muitos que todos refugavam – e o que inevitavelmente sucedia era o fracasso desses negócios da china e a vitória dos de todos refugiados.

No jogo dos marcos alemães o mundo inteiro perdeu – menos Lupércio. Um belo dia deliberou “embarcar nos marcos”, contra o conselho de todos os prudentes locais. A moeda alemã estava a 50 réis. Lupércio comprou milhoões e mais milhões, empatou nela todas as suas possibilidades. E com espanto geral, o marco principiou a subir. Foi a 60, a 70, a 100 réis. O entusiasmo pelo negócio tornou-se imenso. Iria a 200, a 300 réis, diziam todos – e não houve quem não se atirasse à compra daquilo.

Quando a cotação chegou a 110 réis, Lupércio foi à capital consultar um banqueiro das suas relações, verdadeiro oráculo em finanças internacionais – o “infalível”, como diziam nas rodas bancárias.

- Não venda – foi o conselho do homem. – A moeda alemã está firmíssima, vai a 200, pode chegar mesmo a 300 – e só será o momento de vender.

As razões que o banqueiro deu para demonstrar matematicamente o asserto eram de perfeita solidez; eram a própria evidência materializada do raciocínio.

Lupércio ficou absolutamente convencido daquela matemática – mas, arrastado pela força, encaminhou-se para o banco onde tinha os seus marcos – arrastado como o cabritinho que o cabreiro conduz à feira – e lá, em voz sumida, submisso, envergonhado, deu ordens para a venda imediata dos seus milhões.

- Mas, o coronel – objetou o empregado a quem se dirigiu -, não acha que é erro vender agora que a alta está em vertigem? Todos os prognósticos são unânimes em garantir que teremos o marco a 200, a 300, e isso antes de um mês...

- Acho, sim, que é isso mesmo – respondeu Lupércio, como que agarrado pela garganta. – Mas quero, sou “forçado” a vender. Venda já, já, hoje mesmo.

- Olhe, olhe... – disse ainda o empregado. – não se precipite. Deixe essa resolução para amanhã. Durma sobre o caso.

A força quase estrangulou Lupércio, que com os últimos restos de voz apenas pôde dizer:

- É verdade, tem razão – mas venda, e hoje mesmo...

No dia seguinte começou a degringolada final dos marcos alemães, na descida vertiginosa que os levou ao zero absoluto.

Lupércio, comprador a 50 réis, vendera-os pelo máximo da cotação alcançada – e justamente na véspera de débâcle! O seu lucro foi milhares de contos.

Os contos de Lupércio foram vindo aos milhares, mas também lhe vieram vindo aos anos, até que um dia se convenceu de estar velho e inevitavelmente próximo do fim. Dores aqui e ali – doencinhas insistentes, crônicas. Seu organismo evidentemente de caía à proporção que a fortuna aumentava. Ao completar os 60 anos Lupércio tomou-se de uma sensação nova, de pavor – o pavor de ter de largar a maravilhosa fortuna reunida. Tão integrado estava no dinheiro, que a idéia de separar-se dos milhões lhe parecia uma aberração da natureza. Morrer! Teria então de morrer, ele que era diferente dos outros homens? Ele que viera ao mundo com a missão de chamar a si quanto dinheiro houvesse?

Ele que era o ímã atrator da limalha?

O que foi a sua luta com a idéia de inevitabilidade da morte não cabe em descrição nenhuma. Exigiria volumes. Sua vida ensombreceu. Os dias iam se passando e o problema se tornava cada vez mais augustioso. A morte é um fato universal. Até aquela data não lhe constava que ninguém houvesse deixado de morrer. Ele, portanto, morreria também – era o inevitável.

O mais que poderia fazer era prolongar a sua vida até os 70, até 80. Poderia mesmo chegar a quase 100, como o rockefeller – mas ao cabo teria de ir-se, e então? Quem ficaria com 200 ou 300 mil contos que deveria ter por essa época?

Aquela história de herdeiros era o absurdo dos absurdos para um celibatário de sua marca. Se a fortuna era dele, só dele, como deixá-la quem quer que fosse? Não... Tinha de descobrir um jeito de não morrer ou... Lupércio interrompeu-se no meio do raciocínio, tomado de súbita idéia. Uma idéia tremenda, que por minutos o deixou de cérebro paralisado. Depois, sorriu.

- Sim, sim... quem sabe? E seu rosto iluminou-se de uma luz nova. As grandes idéias emitem luz...

Desde esse momento Lupércio revelou-se outro, com preucupações que nunca tivera antes. Não houve em Dois Rios quem o não notasse.

- O homem mudou completamente – diziam. – está se espiritualizando. Compreendeu que a morte vem mesmo e começa a arrepender-se da sua feroz materialidade.

Lupércio fez-se espiritualista. Comprou livros, leu-os, meditou-os. Passou a freqüentar o centro espírita local e ao ouvir com a maior atenção as vozes do além, transmitida pelo Chico vira, o famoso médium da zona.

- Quem havia de dizer! – era o comentário geral. – Esse usuário que passou a vida inteira só pensando em dinheiro e nunca foi capaz de dar um tostão de esmola, está virando santo. E vão ver que faz como o Rockfeller: deixa toda a fortuna para o asilo de mendigos...

Lupércio, que nunca lera coisa nenhuma, estava agora se tornando um sábio, a avaliar pelo número de livros que adquiria. Entrou a estudar a fundo. Sua casa fez-se centro de reuniões de quanto médium aparecia por lá – e muitos de fora vieram Dois Rios a convite seu. Geralmente hospedava-os, pagava-lhes a conta do hotel – coisa inteiramente aberrante dos seus princípios financeiros. O assombrado da população não tinha limites.

Mas o dr. Dunga, diretor do centro espírita, começou a estranhar uma coisa: o interesse do coronel Lupércio pela metapsíquica centrava-se num só ponto – a reencarnação. Só isso o preucupava realmente. Pelo resto passava como gato por brasas.

- Escute, irmão – disse ele um dia ao dr. Dunga. – há na teoria da reencarnação um ponto para mim obscuro e que no entanto me apaixona. Por mais autores que eu leia, não consigo firmar as idéias.

- Que ponto é esse? – indagou o dr. Dunga.

- Vou dizer. Já não tenho duvídas sobre a reencarnação. Estou plenamente convencido de que a alma, depois da morte do corpo, volta – reencarna-se em outro ser. Mas em quem?

- Como em quem?

- Em quem, sim. Meu ponto é saber se a alma do desencarnado pode escolher o corpo em que vai novamente encarnar-se.

- Está claro que escolhe.

Até aí vou eu. Sei que escolhe. Mas “quando” escolhe?

O dr. Dunga não percebia o alcance da pergunta.

- Escolhe quando chega o momento de escolher – respondeu.

A resposta não contentou o coronel. O momento de escolher! Bolas! Mas que momento é esse?

- Meu ponto é o seguinte: saber se a alma de um vivo pode antecipadamente escolher a criatura em que vai futuramente encarnar-se.
O dr. Dunga estava tonto. Fez cara de não entender nada.

- Sim – continuou Lupércio. – Quero saber, por exemplo, se a alma de um vivo pode, antes de morrer, marcar a mulher que vai ter um filho em que essa alma se encarne.

A perplexidade do dr. Dunga recrescia.

- Meu caro – disse por fim Lupércio - , estou disposto a pagar até cem contos por uma informação segura – seguríssima. Quero saber se a alma de um vivo pode antes de desencarnar-se escolher o corpo da sua futura reencarnação.

- Antes de morrer?

- Sim...

- Em vida ainda?

- Está claro...

O dr. Dunga quedou-se pensativo. Estava ali uma hipótese em que jamais refletia sobre o que nada lera.

- Não sei, coronel. Só vendo, só consultando os autores – e as autoridades. Nós aqui somos bem poucos neste assunto, mas há mestres na Europa e nos Estados Unidos.

Podemos consultá-los.

- Pois faça-me o favor. Não olhe as despesas. Darei cem contos, e até mais, em troca de uma informação segura.

- Sei. Quer saber se ainda em vida do corpo podemos escolher a criatura em que vamos reencarnar-nos.

- Exatamente.

- E por que isso?

- Maluquices de velho. Como ando a estudar as teorias da reencarnação, lógico que me interessa pelos pontos obscuros. Os pontos claros esses já os conheço. Não acha natural a minha atitude?

O dr. Dunga teve de achar naturalíssima aquela atitude.

Enquanto as cartas de consulta cruzaram o oceano, endereçada às mais famosas sociedades psíquicas do mundo, o estado de saúde do coronel Lupércio agravou-se – e concomitantemente se agravou sua pressa pela solução do problema. Chegou a autorizar pedido de resposta pelo telégrafo – custasse o que custasse.

Certo dia, o dr. Dunga, tomado de vaga desconfiança, foi procurá-lo em casa.

Encontrou-o mal, respirando c esforço.

- Nada ainda, coronel. Mas a minha visita tem outro fim. Quero que o amigo fale claro, abra esse coração! Quero que me explique a verdadeira causa do seu interesse pela consulta. Francamente, não acho natural isso. Sinto, percebo, que o coronel tem uma idéia secreta na cabeça.

Lupércio olhou-o de revés, desconfiado. Mas resistiu. Alegou que era apenas curiosidade. Como nos seus estudos sobre a reencarnação nada vira sobre aquele ponto, viera-lhe a lembrança de esclarecê-lo. Só isso...

O dr. Dunga não se satisfaz. Insistiu:

- Não, coronel, não é isso, não. Eu sinto, eu vejo, que o senhor tem uma idéia oculta na cabeça. Seja franco. Bem sabe que sou seu amigo.

Lupércio resistiu ainda por algum tempo. Por fim confessou, com relutância.

- É que estou no fim, meu caro – tenho de fazer o testamento...

Não disse mais, nem foi preciso. Um clarão iluminou o espírito do dr. Dunga. O coronel Lupércio, a mais pura encarnação humana do dinheiro, não admitia a idéia de morrer e deixar a fortuna aos parentes. Não se conformando com a hipótese de separar-se dos 60 mil contos, pensava em fazer-se o herdeiro de si mesmo em outra reencarnação... seria isso?

Dunga olhou-o firmamente, sem dizer palavra. Lupércio leu-lhe o pensamento leu-lhe o pensamento nos olhos inquisitores. Corou –pela primeira vez na vida. E, baixando a cabeça. Abriu o coração.

- Sim, Dunga, é isso. Quero que vocês me descubram a mulher em que vou nascer de novo – para fazê-la em meu testamento, a depositária de minha fortuna.

Fonte:

Luís Vaz de Camões (Redondilhas)

AMOR QUE EM MEU PENSAMENTO (1595)

Glosa

a este moto seu (acróstico):
A morte, pois que sou vosso,
não na quero, mas se vem,
[h]a-de ser todo meu bem.

–––––
Amor, que em meu pensamento
com tanta fé se fundou,
me tem dado um regimento
que, quando vir meu tormento,
me salve com cujo sou.

E com esta defensão,
com que tudo vencer posso,
diz a causa ao coração:
não tem em mim jurisdição
A morte, pois que sou vosso.

Por experimentar um dia
Amor se me achava forte
nesta fé, como dizia,
me convidou com a morte,
só por ver se a tomaria.

E, como ele seja a cousa
onde está todo o meu bem,
respondi-lhe (como quem
quer dizer mais, e não ousa):
não na quero, mas se vem...

Não disse mais, porque então
entendeu quanto me toca;
e se tinha dito o não,
muitas vezes diz a boca
o que nega o coração.

Toda a cousa defendida
em mais estima se tem:
por isso é cousa sabida
que perder por vós a vida
ha-de ser todo meu bem.

AQUELA CATIVA (1595)

a uma cativa com quem andava de amores na Índia, chamada Bárbora
––––––––-
Aquela cativa,
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas,
me parecem belas
como os meus amores.

Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.

Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.

Leda mansidão
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas Bárbora não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela enfim descansa
toda a minha pena.

Esta é a cativa
que me tem cativo,
e, pois nela vivo,
é força que viva.

CAMPOS CHEIOS DE PRAZER (1595)
Glosa

a este mato alheio:
Campos bem-aventurados,
tornai-vos agora tristes,
que os dias em que me vistes
alegre são já passados.

––––––––––––
Campos cheios de prazer,
vós, que estais reverdecendo,
já me alegrei com vos ver;
agora venho a temer
que entristeçais em me vendo.

E, pois a vista alegrais
dos olhos desesperados,
não quero que me vejais,
para que sempre sejais
campos bem-aventurados.

Porém, se por acidente,
vos pesar de meu tormento,
sabereis que Amor consente
que tudo me descontente,
senão descontentamento.

Por isso vós, arvoredos,
que já nos meus olhos vistes
mais alegrias que medos,
se mos quereis fazer ledos,
tornai-vos agora tristes.

Já me vistes ledo ser,
mas depois que o falso Amor
tão triste me fez viver, .
ledos folgo de vos ver,
porque me dobreis a dor.

E se este gosto sobejo
de minha dor me sentistes,
julgai quanto mais desejo
as horas que vos não vejo
que os dias em que me vistes.

O tempo, que é desigual,
de secos, verdes vos tem;
porque em vosso natural
se muda o mal para o bem,
mas o meu para mor mal.

Se perguntais, verdes prados,
pelos tempos diferentes
que de Amor me foram dados,
tristes, aqui são presentes,
alegres, já são passados.

CORRE SEM VELA E SEM LEME (1595)

Corre sem vela e sem leme
o tempo desordenado,
dum grande vento levado;
o que perigo não teme
é de pouco experimentado.

As rédeas trazem na mão
os que rédeas não tiveram:
vendo quando mal fizeram
a cobiça e ambição
disfarçados se acolheram.

A nau que se vai perder
destrói mil esperanças;
vejo o mau que vem a ter;
vejo perigos correr
quem não cuida que há mudanças.

Os que nunca sem sela andaram
na sela postos se vêm:
de fazer mal não deixaram;
de demônio hábito têm
os que o justo profanaram.

Que poderá vir a ser
o mal nunca refreado?
Anda, por certo, enganado
aquele que quer valer,
levando o caminho errado.

É para os bons confusão
ver que os maus prevaleceram;
posto que se detiveram
com esta simulação,
sempre castigos tiveram.

Não porque governe o leme
em mar envolto e turbado,
quem tem seu rumo mudado,
se perece, grita e geme
em tempo desordenado.

Terem justo galardão
e dor dos que mereceram,
sempre castigos tiveram
sem nenhuma redenção,
posto que se detiveram.

Na tormenta, se vier,
desespere na bonança
quem manhas não sabe ter.
Sem que lhe valha gemer
verá falsear a balança.

Os que nunca trabalharam,
tendo o que lhes não convém,
se ao inocente enganaram
perderão o eterno bem
se do mal não se apartaram.

Fonte:
Portal São Francisco

Nilto Maciel (Como me Tornei Imortal)

A grande maioria dos seres humanos acredita na imortalidade. Cada um deles se diz constituído de corpo e alma. Aquele morre, se desfaz, vira pó. Esta permanece intacta – a pensar e sentir – e, após a morte de sua metade, voa para o céu, o paraíso, onde está Deus, ou para o inferno ou sabe-se lá para onde. Essa grande maioria é resignada, vive rindo, brincando, feito eternas crianças, por se crer regida por Deus ou o Destino. Mesmo quando choram – diante do corpo sem vida de filhos, pais, irmãos, amigos, ídolos – parecem rir: Deus quis assim, Deus quis agora.

A pequena minoria dos seres humanos ou desacredita na imortalidade ou desconfia dessa possibilidade. Cada um deles assim sofisma: Se não sou imortal, se meu corpo é minha única morada, só me resta inventar outra eternidade. E assim surgiram as agremiações de letras e artes.

Para alguns escritores há duas maneiras de se alcançar a duração perpétua: pelo ingresso numa dessas corporações ou com a publicação de suas obras por uma grande editora. Se as duas portas se abrirem, melhor ainda: A vida eterna estará garantida. Para os mais presumidos só serve a Academia Brasileira de Letras. Os institutos menores (estaduais) ficariam para os escritores impúberes ou mais pequenos. Os minúsculos (municipais) se reservariam aos escritores insignificantes. Há, porém, ainda outras distinções: A entidade paulista seria quase equipolente à federal; a acreana, a amapaense, a sergipana, por exemplo, se equivaleriam a sociedades municipais; a paulistana valeria por uma filial da ABL; a baturiteense não poderia se comparar à santista. Empossados nesta ou naquela academia, todos alcançariam a imortalidade, no final, embora alguns, logo após a morte do corpo, teriam a alma conduzida imediatamente ao céu, enquanto outros dilatariam a interminável fila que conduz ao ponto derradeiro do destino literário.

Publicar livros por grandes editoras é mais fácil do que ingressar numa casa de acadêmicos. Basta o sujeito ser famoso ou amigo (bajulador, dizem) de autoridades federais, de outros entes famosos, ter muito dinheiro, etc. Por editora se entenda empresa que edita livros, vende-os a livrarias, divulga-os para os meios de comunicação de massa e paga direitos autorais.

Lá pelo início de minha adolescência, compreendi que não tenho alma e, portanto, sou mortal. Consciente disso, mais me pus a ler e escrever. E mais cônscio fiquei de que não tenho alma e sou mortal. Apesar disso, passei a acreditar em mim mesmo, em poder ser lembrado por mais um tempinho após minha morte, se escrevesse bem. Minhas filhas, meus netos e seus contemporâneos poderiam se lembrar de mim e ler minhas histórias. Passei mais muitos dias a ler e escrever. Fui morar em Brasília, cidade de muitos imortais, a capital do futuro. Publiquei uns livrinhos por pequenas editoras, ganhei alguns prêmios literários, de pouca monta (nada comparado aos prêmios das loterias) e tinha sido um dos criadores da revista O Saco (que me dava certo prestígio no mundo das letras). Tudo isso junto deve ter atiçado a luxúria de alguns imortais da capital. Que certamente cochichavam, enquanto cochilavam, frases obscenas, quando me viam: A esse só falta ingressar na nossa hoste. Pois eis que no meio do caminho desta vida (eu deveria ter uns quarenta anos, supondo que viverei até os oitenta), me apareceu um desses seres eternos. Chamava-se Almeida Fischer, que queria ser mais imortal do que era, pois pertencia à Academia Brasiliense de Letras. Não se apresentou em corpo e alma, para não se fazer tão objetivo; mandou um seu colega me fazer comunicado quase letal: Eu fora escolhido para constituir a nova casa federal de letras, a Academia de Letras do Brasil. Tomei susto, mas não morri. Ora, eu não queria vestir fardão. Muito menos farda, que abominava e abomino militares. Bastavam-me calça e camisa. Recuperado do susto, ouvi o complemento da fala do emissário do futuro presidente do sodalício (assim eles, os imortais, gostam de chamar suas agremiações): Iria me visitar noutro dia, para melhores esclarecimentos. E foi. Era um sábado de muita preguiça (minha), depois de ter passado a noite em bebedeira, a ouvir chorinhos. Alcançou-me de chinelos e calção. Renovou os elogios a mim, explicou os motivos da nova arcádia, como se me fizesse grande louvor e favor. Mal o deixei concluir o discurso. Agradeci os gabos e disse duas ou três frases indecorosas: Não me sentia acadêmico, sabia-me em fase de crescimento (embora tardio, a arcádia dentária ainda em formação), despreparado para a vida (literária) adulta e não via nenhuma necessidade de novos institutos de letras. Ele parecia não acreditar no que ouvia. Talvez eu estivesse brincando. Ou delirando: Você bebeu muito ontem? Certamente me ocorria um surto de loucura. Ora, quem não quer ser imortal, quem não se sente excepcionalmente envaidecido (e comovido) de ser convidado a ingressar no círculo restrito dos imortais? Prometi escrever carta a Fischer. Explicaria as razões de minha recusa ao convite. O mensageiro saiu de minha casa como quem sai de um cinema de horror. Escrevi a carta-bomba e a enviei ao morubixaba. Dias depois eu soube da tragédia: O homem se tinha morrido. Ou tinha deixado de ser vivo. Eu continuei mortal.

Fortaleza, abril de 2010.

Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/59
Foto: http://literaturasemfronteiras.blogspot.com

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão VI)

Ninguém se lembrou, até agora, de que transcorre neste mês de novembro o aniversário dos 30 anos do lançamento de Os Tambores de São Luís. Publicado em 1975, pela Editora José Olympio, este livro é um romance em duas marchas. Numa delas, a acelerada, o escritor Josué Montello tenta retratar os vários ciclos da História do Maranhão. Na outra marcha, a mais lenta, é que transcorre o texto em si: uma história que conta a saga do negro e o seu martírio sob a escravidão no Brasil. É, portanto, um extraordinário romance humano, ao estilo de uma impressionante novela de mistério, que começa com um episódio imprevisto – o encontro de um negro assassinado dentro de um bar, numa velha noite de 1915.

A partir daí, a narrativa avança como um vasto mural onde Josué Montello dispõe seu glorioso bando de filhos do povo. Damião, Benigna, Barão, o Padre Tracajá, Santinha, Genoveva Pia, Mestre Ambrósio, dona Calu, dona Bembém, a Comadre Ludovina, o Maneco Ourives – seres vivos da família literária de Montello, juntamente com as quatro centenas de personagens, nos quais o romancista procurou insuflar o alento da vida, como seres reais. Os Tambores de São Luís está consagrado como uma das grandes obras da ficção nacional. É um romance histórico que contextualiza, do ponto de vista social, cultural e político, o universo em que se desenvolveu a sociedade escravagista brasileira.

Aos 58 anos de idade, quando lançou o seu grande romance, Josué Montello procurou, com Os Tambores de São Luís, fixar sobretudo o problema do negro. Do negro e de suas lutas. Do negro e de suas tragédias. Do negro e de sua vagarosa ascensão social. Do ponto de vista técnico, no plano meramente narrativo, o romancista maranhense cruzou duas linhas básicas. Uma, representada pelo romance objetivo, que se resume no espaço de uma única noite, tendo como episódio central a caminhada de um negro de 80 anos. É quando surge Damião atravessando a cidade a pé (por não ter encontrado um carro que o levasse ao outro lado de São Luís), para conhecer o trineto que acabara de nascer. Essa caminhada é feita com o acompanhamento simbólico do bater dos tambores rituais, na Casa das Minas.

Com 483 páginas, Os Tambores de São Luís é a crônica de uma época, sem deixar de ser obra de ficção; é um relato romanesco de ordem histórica, onde também avultam os sobradões de azulejos, os portais de pedra, os mirantes, os balcões sobre a calçada de cantaria, as sacadas de ferro, o velho casario, as ruas, as praças, os becos da cidade. Nos seus Diários o próprio Montello confessa que, com Os Tambores de São Luís, conseguiu compor a sua maior obra, aquela que efetivamente sintetiza o seu talento e a sua operosidade de romancista. São palavras do escritor: De quantos romances escrevi até hoje, nesta minha língua transparente e objetiva, foram Os Tambores de São Luís, na sua concepção geral e na sua urdidura, aquele que me obrigou a uma atenção maior, como pesquisa, como rigor técnico, dada a circunstância de que nele a ficção se acha amalgamada à matéria rigorosamente histórica.

Numa das passagens do Diário do Entardecer, Montello revela que, ao escrever Os Tambores de São Luís, concentrou o melhor de si mesmo, como processo técnico e como linguagem, além de ter pago uma velha dívida para com a raça negra. Recompus-lhe o martírio, como talvez não o pudesse fazer um escritor negro, e demarquei-lhe a ascensão vertical, com a figura central de um preto de gênio, capaz de ombrear-se com um Teodoro Sampaio, um Cruz e Souza, um Juliano Moreira ou um Nascimento Moraes.


Embora sua ação romanesca componha uma jornada que se inicia às 22 horas de uma noite de 1915 para fechar-se às 9 horas da manhã seguinte, o relato retrocede aos vários ciclos da História maranhense, misturando presente e passado, com mais de 400 personagens, entre bispos, padres, governadores, boêmios, raparigas, estudantes, professores, oradores populares, negros de ganho, artistas, tipos de rua, tentando reconstituir toda a complexa vida de uma cidade.

O escritor Jorge Amado (1912-2001), autor de Gabriela Cravo e Canela, retrata em muitos de seus romances os negros do Recôncavo Baiano. Josué Montello dedicou Os Tambores de São Luís aos negros do Maranhão. À luz da experiência escravista brasileira, ele focaliza o árduo trabalho dos negros no campo, de manhã à noite, e que só se atenuava quando estrondavam as grandes chuvas.

Na amplidão de seu livro monumental, Montello retrata ainda o cenário, o ambiente cultural, o sistema político-econômico, o dia-a-dia das fazendas, as tensões e os enfrentamentos que marcaram as relações entre senhores e escravos. É um romance que evoca imagens dos tempos do cativeiro reconstituídas de maneira formidável pela imaginação do romancista.

Obra-prima - Tal é a identificação do autor com a sua obra maior que, num de seus artigos, Montello conta que, de início, ao compor a linha mestra de Os Tambores de São Luís, havia pensado num conjunto de oito romances, a que se consagraria pelo resto da vida, todos eles com um personagem negro central, com o mesmo nome, Damião, de modo a compor uma dinastia, sintetizando a mesma luta, a mesma comunhão fraterna, a mesma operosidade construtiva, a mesma dignidade exemplar, sem esquecer o espírito mágico que abre ao negro um caminho peculiar, como símbolo e síntese, na seqüência das narrativas conjugadas. Ocorre, porém, que ninguém sabe o limite da própria vida, e eu pretendia ressarcir uma dívida, no limite natural de minhas possibilidades. Daí ter preferido concentrar-me num único romance, denso, compacto, o quanto possível fiel à verdade dos fatos, dada a compreensão de que todo romance é história, sempre que se ajusta à moldura do tempo em que decorre a sua ação fundamental. Portanto, o mais longo romance de Josué Montello, Os Tambores de São Luís, passa-se, todo ele, numa noite, e é nessa noite que aparecem cerca de 400 personagens, condensando os três séculos da saga romanesca da escravidão no Brasil.

Dividido em 58 capítulos, o romance, nos seus lances fundamentais, recompõe episódios marcantes recolhidos no terreno dos usos e costumes do Maranhão. Em cenas capitais da narrativa, aparecem o famoso crime da Baronesa de Grajaú, de tanta repercussão na sociedade maranhense do tempo do Império; a paixão doentia do desembargador Pontes Visgueiro por sua amante Mariquinhas; os conflitos entre senhores e escravos; os rompantes de Donana Jansen, os voduns, as noviches e as nochês – Mãe Hosana, Mãe Maria Quirina e Mãe Andresa – da Casa das Minas, e Dom Cosme Bento das Chagas, tutor e imperador das liberdades bem-te-vis.

O escritor Dunshee de Abranches, autor de O cativeiro, livro inteiramente consagrado à escravidão maranhense, também entra como personagem do romance: é o João Moura (como ele se assinava), que aparece ao lado de Damião, nos comícios populares em favor da abolição.

Pouco antes da derradeira página do romance, o último capítulo do livro se volta para o adeus ao poeta Joaquim de Sousa Andrade, em cujo enterro avulta o ataúde envolto na bandeira do Estado, idealizada pelo próprio Sousândrade, com as listas branca, vermelha e negra, simbolizando a fusão das raças na formação do povo brasileiro, e mais a estrela branca sobre campo azul, representativa da unidade autônoma do Maranhão.

Antes de Montello, outro ficcionista maranhense, Coelho Neto (1864-1934), teve igual propósito, com O rei negro, considerado o seu melhor romance. Entretanto, Coelho Neto focalizou apenas um episódio do cativeiro. Montello entendeu que o tema comportava horizonte mais vasto, que abarcasse a escravidão no seu conjunto, com a luta, o instinto da raça, a singularidade, a discussão nacional em torno do problema, a superação dos argumentos de ordem econômica e a busca da prevalência dos ideais e princípios fundamentais da dignidade humana. À luz da interpretação do romancista maranhense, Os Tambores de São Luís faz sobressair a atuação dos jovens na campanha abolicionista, ressalta a participação dos militares e conclui a obra salientando a Abolição como a grande festa do povo unido e vitorioso.

Num romance como Os Tambores de São Luís, Montello quis infundir a verdade história – a partir de seu ponto de vista – como a própria substância ficcional. Também é importante ressaltar a narrativa em que o escritor procura fixar o outro lado do painel que compõe Os Tambores de São Luís. Ou seja: o esplendor e a decadência da aristocracia local, tanto no seu aspecto simbólico, como resumo de todo o processo de declínio da camada superior da sociedade brasileira, no tempo do Império, quanto no seu rigor histórico, baseado no testemunho dos depoimentos, nos textos escritos, na tradição maranhense.

Com Os Tambores de São Luís, confirma-se que Montello é uma das mais importantes figuras da ficção em Língua Portuguesa surgidas na primeira metade do século XX. E confirma-se, também, que as grandes obras literárias serão sempre fonte de deleite, conhecimento e de vida:

São Luís está coberta pelo negro manto de suas noites estreladas, sibila o vento nas ruas em ladeira, chiam os bicos de gás nos lampiões vigilantes, um carro estronda as rodas nas pedras do calçamento, enquanto retinem as ferraduras dos cavalos espicaçados pela taca do cocheiro, e eis que ressoam os tambores do querebetã da Rua de São Pantaleão, graves, nervosos, compassados, guardando intacto o seu batuque primitivo, e que hoje reúne os negros livres como outrora reunia os negros escravos. Sobretudo os negros escravos. E estes vinham aos dois, aos três, ou sozinhos, protegidos pelas sombras das ruas desertas, e ali reencontravam seus deuses, seus cantos e seus irmãos. Esqueciam-se do cativeiro, não tinham mais senhores nem feitores, e sim voduns, que os habitavam e protegiam. Pouco importava que trouxessem no corpo as marcas das cangas, dos libambos, dos vira-mundos, das gonilhas e das gargalheiras. Ou que ali entrassem com as mordaças e as máscaras de flandres. Os tambores retumbavam, e eles, os cativos, eram novamente os donos de suas horas, senhores de suas vontades.

Damião a ouvir o bater de tambores rituais, com a sua peregrinação pelos quatro cantos da cidade na companhia daqueles tantantãs compassados, tocados por mãos de negros. Era o mesmo batecum inconfundível, que todos os ouvidos podem ouvir, mas que só os negros realmente escutam, com as vivências nostálgicas de sua origem africana.

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
Edição 120. 20 de janeiro de 2006

Nilton da Costa Teixeira (Ano Novo, Acenos Novos)

Nilton da Costa Teixeira (Monte Alto/SP, 3 de maio de 1920 – Ribeirão Preto/SP, 5 de novembro de 1983) 
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Ano novo chegou,
o ano velho partiu,
a fé que vicejou
aonde a dor existiu.
doze meses se foram,
alegres, talvez não,
uns riem, outros choram,
dias que foram, que vão,
no fim de ano o espetáculo
da folhinha termina,
consulto o meu oráculo
E ele não desanima;
promete-me venturas,
dinheiro, amor, saúde,
O progresso, as farturas,
nada disso me ilude,
pois o último dia do ano,
passei em casa sozinho,
contando os desenganos,
pondo-os num papelzinho,
vi tantos e a última hora,
de contá-los demovo,
rezo à Nossa Senhora,
não os quero de novo;
e agora o ano se foi,
só espero o porvir,
pois, o passado dói,
com o futuro a sorrir...
alguém bate na janela,
levanto e vou abrir,
eu pensei que fosse ela,
vejo o vento a bramir;
hoje, do ano, primeiro,
deixo os meus desenganos,
estou fazendo planos,
que eu farei o ano inteiro,
a casa para morar,
boa saúde, animação,
são planos a exaltar,
constante o coração,
eu quero uma cabocla,
singela e recatada
que me tire a ânsia louca,
na louca caminhada;
pois a vida oferece
sonhos acolhedores,
quem seu caminho esquece,
magoado terá dores.
Eu indago o horizonte,
confio na imensidão,
encontro numa ponte,
vazio, desolação...
são os anos que passaram
na vida de cada um,
os sonhos que vicejaram,
sem proveito nenhum,
por isso começo o ano,
com o meu plano estudado,
não quero os desenganos,
iguais do ano passado.

Fonte:
Nilton Manoel