quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Qorpo Santo (Um Parto)

Comédia em 3 atos.

PERSONAGENS

Cario
Florberta
Melquíades
Guindaste
Galante
Ruibarbo
Uma mulher
Uma criada
Uma voz


ATO PRIMEIRO

CENA I


Cário — (assentado a uma mesa, provando algumas leves comidinhas) O sábio o beija, o néscio arqueja! Por que será que isto se dá!? Eu sei: Aquele viveu em Deus, com Deus, por Deus e para Deus; este, no diabo, com o diabo, pelo diabo e para o diabo! Eu me explico. Um é observador e cumpridor da Lei que por aquele lhe foi dada, e por Nosso Senhor Jesus Cristo — acrescentada. O outro, é cruel perseguidor de seus sectários... Ou daqueles que fiéis a observam, respeitam, veneram. Eis porque, repito — quando Deus fala, o sábio se ri e se cala; o néscio teme e se abala. Ou, aquele se enche de prazer; este de medo vê-se tremer! Passando, porém da religião a estas cousas que agora como, não sei o que me parecem estas comidinhas. Dão-se fatos a seu respeito; uns que me encantam, outros que me admiram; alguns que me enojam, muitos que aborrecem, diversos ou vários que me repugnam, milhares que me indignam; inúmeros para os quais não há explicação nem qualificação exata, possível... Quantas cousas me falaram hoje, ora pelo sono, ora pela forma, ora pelo gosto, ora pela espécie, ora pela cor, e também pelo sabor! Vejo que (pegando em uma estrelinha de massa) ninguém deve comer estrelas, mas estrelas de carne ou de fogo! Como, porém estas são de massa, é de crer que mal me não façam (Come uma. Pegando em outra, tira uma dentada, e a deixa quase pelo meio; olhando para ela:) Parece-me uma coroa! Não comerei. Guardarei (Põe no prato.) Pelo gosto (provando outra), cheiro e sabor, dir-se-á que — envenenada está.
Poremos também a um lado. Acho esta bebida (bebendo um cálix de vinho), com quanto espírito, assaz fraca, ou como amolecida. É cousa que também não me agrada. Não beberei mais deste liquido: veremos algum mais forte, e por isso mesmo para mim — melhor. Quê! (pegando em outro pedacinho de massa) Isto é imagem de um turíbulo! Não comerei. Esta, de uma naveta, (pegando outra) também não quero! Provarei esta fatia. (Corta dois ou três pedacinhos, e come.) Que tal? É sempre igual.

(Levantando-se um pouco.) Eis a barretinha de um soldado, que ofendido ou maltratado em seus brios ou dignidade, na Vila Nova do velho Triunfo, por um seu capitão, em princípios da infausta, nefanda, prejudicial e mais que indigna revolução de 1835, teve a precisa coragem para salvar sua honra e dignidade; para dar um imitável exemplo a seus camaradas; para meter um dedo do pé no pinguelo da espingarda, encostar a boca desta no peito em frente ao coração, e disparar assim estrondoso tiro, que o transportou instantaneamente à presença do Eterno. Feliz soldado, era de um batalhão cujo título ou número não me lembro; suponho que paraense, e em o qual havia um capitão com o nome — Chaguinhas, de péssima fama — que julgo muito pouco tempo durou, bem como a maior parte desse corpo de infantaria, destruída quase toda — poucos dias depois pelos generais Neto e Canabarro. Estes corações (pegando em um coração) enchem-me de benções; não os quero; estou deles assaz farto. A estes gozos preferiria a companhia, que traz alegria... (Olhando com atenção para um sinal em uma mesa.) Este sinal é feito por um pingo de espermacete; isto, porém não é o que admiro: uma cabeça perfeita, um nariz afilado, com uma cara completa, queixo, barbas, um boné igual ao de um oficial francês ou alemão que há tempos vi, e até com um penacho — é o que realmente para mim não direi mais que admirável, mas algum tanto espantoso... Enfim, paremos com isto: são horas de dormir; vamos deitar-nos. (Levanta-se, dá alguns passos e encosta-se a um sofá, cama, ou cadeira de balanço.)

CENA II

Cário — (levantando-se.) Estou satisfazendo o desejo, ou cumprindo o projeto que fiz de ir viajar à Europa, e de lá, cheio de ciência, voltar a derramar sobre Os meus comprovincianos, compatriotas, e mais habitantes do Império Brasileiro. Está se servindo Deus de mim para punição de uns e prêmio de outros. Não me convém, não devo escrever sobre os mortos, ou fazer nênias. Convém-me mais passear, que estar em casa; passeando, me entretenho; me divirto; e fortifico; em casa me enfraqueço, e sempre apeteço... Fora, não necessito trabalhar, mas apenas conversar: em casa não posso deixar de o fazer sem cessar... Ao homem convém caminhar, falar, pular, dançar, palrar e o exercício de mais de um milhão de verbos acabados em ar, ar, ar, ar, etc. etc. etc. etc. Como é difícil, e tantas vezes impossível, a conciliação de interesses opostos! Sente-se uma necessidade; é-se instado por um desejo; procura-se satisfazê-lo; encontra-se uma dificuldade...
Alguém geme, alguém chora, que nos dói, que nos estorva. Mas por que lamentar? Se necessário, vençamos; ou sigamos os impulsos de nossa inteligência; os conselhos de nosso coração; ou os conselhos daquela, e os impulsos deste.
Façamos algum sacrifício, visto que ninguém (é de conjecturar) há que viva sem os fazer. É preciso fortalecermo-nos; é preciso não fraquecermo-nos. Se eu atendesse, direi neste momento, aos desejos que tive (depois de haver passeado e meditado algum tempo zangado), teria escangalhado, talvez destruído ou inutilizado um baluarte, cujas forças já me não convém conservar. Se, porém lhe presto muito atenção, se me penalizo de seu sofrer, do que se me representa à imaginação, terei de viver qual preso em cadeia. Enquanto, pois não tenho emprego, mais que o de compositor, preciso me é buscar por toda a parte, onde houver melhor, ou mais me agradar — aquilo que me falta e de que mais careço. (Olhando para o ar.) O baluarte sibila! Não prestar-te-ei pois mais atenção, enquanto de longe me falar teu coração! Assim triunfou (triunfarei eu também de ti) um de meus amigos — de igual impertinência — só útil n'aparência! (Pega o chapéu e sai.).

CENA III

Florberta — Que força tem o destino! Umas vezes cruel e destruidor como o raio ou a tempestade; em outras vezes tão benigno como o amor ou a saudade!

(Canta:)

Às vezes é tão cruel
O bárbaro, feroz destino,
Como horrosa tempestade,
Ou o raio destruidor

Em outras mais que fiel,
Tão amigo, tão benino,
Nos enche de flicidade,
De gratidão, e de amor.

Os malvados (atravessando o cenário depois que profere cada um período) estão sempre condenados. Quem estará por ai se assoando, que tanto me está enjoando! A Ciência, o ouro e a água são cousas que quanto mais abundam, menos param ou mais velozes necessitam correr. Quando sinto-me menos forte, ou temos destruição, ou é morte. Quando o Estado carece para sustentar-se ou progressar — de uma parte de nossos serviços é justo que lhes prestamos, bem como que este, uma parte de seus benefícios a nós quando d'Ele carecemos. É com esta reciprocidade de atenções, de benefícios, de amparo — que os Estados e os súditos seus — conservam e prosperam. Se eu tivesse disposição de escrever sobre relações naturais, diria que ainda hoje o chá que tomei levou-me à presença de alguém, de quem ouvi a mais tremenda descompostura!... Servir-me-á, se pudermos continuar a escrever comédias, para uma bela cena de algum dos Atos; mesmo para começo, parece excelente. Não foi nada menos que o seguinte: Bati por duas vezes em uma porta, ouvi mandar a pessoa a quem buscava abrir a porta; como se demorava o criado, empurrei-a, e entrei; a pessoa era muito minha conhecida, e de baixa esfera.
Quereis saber o que ouvi dela? Eis: A Sra. é muito atrevida! Teve a audácia de entrar em minha casa sem que eu fosse abrir-lhe a porta! Pensa que esta casa é casa de prostitutos? Está muito enganada! Retire-se; e se está louca, vá para a Caridade! Quereis saber o que lhe respondi? Eu vô-lo digo. Eis: "Não se incomode, Sr. Bem sabe que não é a primeira vez que eu venho à sua casa. Foi-me necessário á vir hoje; desculpe portanto: se a minha presença não lhe agrada, eu me retiro. E retirei-me, sem mais cumprimentos. Fui, entretanto, opostamente, recebida por pessoas da mesma casa, que para tal não tinha dever com o maior afeto possível; notando em seus semblantes o maior desprazer pela grosseria estúpida daquele que devia-me prestar atenção. Há de entretanto servir para algum fim útil.

CENA IV

Casto — (entrando) Que mania de mil diabos! Querem por força que eu viva amigado — sem que isso possa ser! Sim! Irra, irra! (Sacudindo os braços.) O diabo que satisfaça semelhante gente! Hei de mandar à olaria fazer de propósito uma mulher para com ela me ligar sem o preenchimento das formalidades religiosas... E, pobre, — não me serve! Há de ser rica, formosa, e asseada; senão, nem assim combino, me combino... Ou... Concubino! Tri, tri, tri...

(Faz duas ou três piroletas,tocando castanholas, e sai aos pulinhos...

Cário — (depois que entra) Como se transtornam as cousas deste mundo! Quando  pensaria eu que indo à casa de um médico fazer uma ligeira visita, havia de transtornar uma comédia!? Quanto é preciso ao homem que se dedica a composições intelectuais, ter regime certo ou invariável! Uma visita transtornou uma comédia; qualquer ação obsta à conclusão do mais importante trabalho. Quão bem foi começada esta comédia, e quão mal acabada vai! Já nem posso chamar a isto mais comédia... Enfim, vereis se posso concertar minhas idéias, e prosseguir então.

(Sai.)

ATO SEGUNDO

Quarto de estudantes

CENA I
Melquíades, Guindaste, Galante e Ruibarbo.

Melquíades — (deitado) Fiu! fiu! (Assoviando.) Não está: tão cedo já sairia a passeio!? Quem sabe! Talvez; pode muito bem ser. (Torna a chamar:) — Maria! Joana! Teresa! Antônia! Joaquina! Michatas! (Pausa.) Que diabo! Não aparece nenhuma das criadas. Ainda estarão dormindo. Que judias! São (abrindo o relógio) nove horas do dia, cinco da tarde, duas da noite, seis da madrugada, e ainda dormem!

— É muito, muitíssimo grande, (figurando com as mãos o tamanho) grandíssimo dormir! — Manuel! Antônio! Mercúrio! Ninguém fala; está tudo em silêncio... Em silêncio profundo!... Profundíssimo! Pois — Résquiés d'impace nas catacumbas do cemitério do Corpo-santo na cidade do Porto, Portugal dos portugueses — para vocês todos! Que os levem 30.000 diabos e demônios para os mais fundos infernos lá do outro mundo: pois cá nos deste ainda vocês me poderiam incomodar!

Guindaste — (calçando as meias) Há três dias que ando incomodado; ora do estômago, ora dos intestinos, ora das barrigas... Ah! São duas, é plural — das pernas e da cabeça; e ainda esta noite passei uma noite horrível. Não sei que é isto! Até as águas-da-colônia que sempre me serviram de remédio para estes males, desgraçadamente hoje parece que hão produzido os efeitos contrários!...

Galante — Que diabo terei eu nestas cabeças (Tirando o barrete com que havia dormido.) Parece que tem espinhos! Ora picam-me as pernas, ora as coxas e até na cintura me importunam, ou me ferem. Safa! (Tirando a calça.) O que havia de ser? (Pegando em um carrapicho e mostrando.) Um carrapicho!... Malditas lavadeiras, que parece de propósito para o mais lanoso entretimento dos néscios fregueses — porem na roupa estes espinhos! (Atirando-o.) Lá vai, lavadeira de roupa, vê se o engoles pelo nariz.

Ruibarbo — (andando) Como as lavadeiras não te hão de fazer dessas, se tu não lhes pagas a lavagem e o engomado da roupa — como elas desejam!

Galante — Essa é boa! Essa é bem boa! Essa ainda é melhor!... Ainda ontem paguei seis mil e tantos réis, e dizes que eu não pago!?

Ruibarbo — Mas não é assim que elas querem!...

Galante — Pois de outro modo, não sei. Não o entendo. Eu sou inglês, e inglês de muito boas raças! Portanto não vivo... Vivo de mistérios.

Ruibarbo — Pois és um tolo. Estuda a lavadeira, faz- lhe elogios, mostra-te a ela afeiçoado, e verás como ela te trata, te lava, te goma admiravelmente!

Melquíades — (para Galante) Que hei de eu estudar hoje?

Galante — Estuda disciplina.

Melquíades — Assim eu sou tolo!

Ruibarbo — Pois ainda pensas em estudos, depois de velho, com a prática dos homens, e mesmo das mulheres!?

Melquíades — Que queres? Nasci mais para estudar que para vadiar!

Galante — És um pateta! Com as disciplinas escangalhavas tudo. Triunfavas dos amigos e dos inimigos! Sem elas, não sei como te haverás; quer com uns, quer com outros! Enfim tu lá sabes.

Melquíades — Estou me resolvendo um dia a atirar com os livros ás ventas dos mestres. Com os temas às dos lentes! E finalmente, com as botas às dos criados!
(Pega nestas, atira nos companheiros e sai.)

Guindaste — É bem atrevido este meu sogro!

Galante — (para Guindaste) Pois tu és casado!? Ainda agora é que sei! Pois o Melquíades já tinha filhas moças!? Ainda mais esta — estudante casado e com filhos!

Guindaste — Se o não sou, ainda hei de ser. Se as não tem, ainda há de ter. E por isso se ainda o não sou, em breve hei de ser, e posso, portanto desde já il~o tratando de sogro.

Galante — És o primeiro calculista do Mundo!

Ruibarbo — Vocês querem passar o dia de hoje em conversa!? Não querem estudar, pensar, meditar sobre o que há de extraordinário da Revolução Francesa, livro mais que todos apreciável pela grande exemplar lição que transmite à humanidade!

Melquíades — (chegando à porta do dormitório com boa porção de livras em baixo do braço esquerdo, muito apressado.) Vamos para as aulas! São horas! Se se demoram, perdem a lição de hoje! Andem! Andem! Saiam! Venham!

(Guindaste e Galante pegam em vários livros, dão duas voltas e saem.)

Guindaste — (arrumando a cama) Vão indo que eu já vou!

Galante — Não te demores, que eu preciso de ti!

Ruibarbo — Sim; sim. Vão indo; eu lá irei logo! (Saem.) Estes meus colegas são o diabo em figura de homens, ou de rapazes! Tudo desarrumam! É preciso uma... não: paciência de Jó, ou de algum outro Santo para aturá-los! Enfim, (depois de todo o quarto arrumado) é preciso aturá-los! É melhor que andar com eles aos tombos, puxões ou cabeçadas.
(Pega em um livro.) São horas, vou às minhas lições de Retórica! E logo continuarei a escrever a minha encantadora comédia — a Ilustríssima Senhora Dona Anália de Campos Leão Carolina dos Santos Beltrão Josefina Maria Leitão História das Dores Patão, ou Bulhão, etc. etc. Dizem os médicos, e confirmam os lógicos: As cousas que têm de trabalhar, apertadas, não poderão fazer tão bom serviço como — desembaraçadas; e eu o creio pia e firmemente. Exemplifiquemos com os próprios homens e seus órgãos. Suponha-se que estão a trabalhar em uma sala vinte pessoas, e que na mesma não o podem fazer livre ou desembaraçadamente mais que dez ou doze. Pergunto: seu serviço, obra, ou trabalho, sairá tão perfeito, como se trabalhassem aqueles que — bem — só o podiam fazer? É de crer que não. Outro: Temos órgãos — da vista, do ouvido, do olfato, que por certo oprimidos, ninguém dirá que — bem funcionam. Assim, pois devem ser os do nosso estômago, intestinos, etc. Apertados, não poderão funcionar, transformar ou digerir os alimentos ou cousas de que nos alimentamos, com aquela facilidade com que o fazem ou devem fazer não opressos ou desembaraçados. Se aperto os meus dedos, não posso escrever, nem com a mão cousa alguma fazer! Se, porém esta está desembaraçada, com ela faço o que quero, ou o que posso. Logo — não convém a opressão; se se quer trabalho abundante e perfeito!

CENA II

Melquíades — (entrando, atrás Guindaste, e após este, Galante. O primeiro com muito desembaraço, e atirando com os livros com estouvamento, quer de gesto, quer de palavras) Ó Ruibarbo, não foste hoje à lição!? És o diabo em figura de estudante! Pois sabe que eu fui, vim e estou aqui! Pus por terra todos os troianos! Foi o lado que hoje perdeu nas sabatinas o mais vergonhosamente que é possível. Nem a batalha que inutilizou Napoleão I; nem as melhores vencidas por Alexandre o Grande; nem finalmente a em que César destruiu Pompeu — se podem comparar à que hoje venci dos nossos amigos Paraguaios!

Ruibarbo — Pois eu declaro-vos que não fui à aula! E se quiserem saber o porquê, dir-vos-ei: — Primeiro, porque não quis. Segundo, porque estou ocupado com algumas lições de Medicina. Terceiro, porque vocês são pouco cuidadosos de nosso quarto, e eu não posso tolerar porcaria, desarrumação, etc. Quarto, porque...

Melquíades — (com muita desenvoltura, assentando-se em outro lugar, ou mudando de assunto) Já sei, já sei. Tu és um estudante privilegiado. Tens até um breve do Papa. Quando te apertam fora da Igreja, entras para a Igreja, e quando te aborreces muito desta, safas-te com a maior sem-cerimônia! (Batendo-lhe no ombro.) És muito feliz, felicíssimo mesmo. (Os outros: cada qual acomoda seus livros e senta-se).

Melquíades — (pegando em um papel, em que Ruibarbo havia escrito) Oh! Este Ruibarbo, quanto mais estuda, menos aprende! Pois ele ainda suprime letras quando escreve!

Ruibarbo — Doutor! Você não vê que quando assim procedo faço um grande bem ao Estado!?

Melquíades — Geral bem!?

Galante — São cousas do Ruibarbo! Tudo quanto ele faz diferente de outros homens, sempre protesta ser por fazer bem, ou por conveniência do Estado. Não é mau modo de se fazer o que se quer! É uma capa maior que a de Satanás! É uma espécie de Céu que ele tem, com que costuma abrir a terra!

Ruibarbo — Eu me explico: Quando escrevo, penso, e procuro conhecer o que é necessário, e o que não é; e assim como, quando me é necessário gastar cinco, por exemplo, não gasto seis, nem duas vezes cinco; assim também quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império do Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um por cima do outro!? Que homem, duas calças!? Quem põe dois chapéus para cobrir uma só cabeça!? Quem usará ou que militar trará à cinta duas espadas! Eis por que também muitas vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a razão é — assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos importemos com as origens!

Melquíades — Enquanto passares bem assim, continua; mas logo que te deres mal, é melhor seguir a opinião geral. (Ouve-se tocar a sineta, que convida a jantar; aos saltos; pondo as mãos na cabeça; e outras extravagâncias.) São horas! São horas!
(Puxa Ruibarbo.) Vamos! (Este se deixa estar assentado. Puxa outro; convida; salta; pula; pega em um rebenque.) Ah! Vocês até para comer têm preguiça!? (Dá uma pancada com o chicote sobre urna mesa, os outros saltam ligeiramente à porta; e saem todos.).

Ruibarbo (atrás.) O Melquíades hoje está limpo, lavado, engomado, escovado, e penteado!

Galante — Ele triunfou dos Paraguaios! É preciso obedecê-lo!

Guindaste — Eu o faço para tal fim, com muito prazer!

ATO TERCEIRO

CENA I


Uma Mulher — (muito atenta, ouvindo alguns gemidos) Quem gemera? Quem estará doente? Será minha avó, ou meu avô!? Sabe-o Deus; eu apenas desconfio, e nada posso afirmar! Entretanto, convém indagar. (Aproxima-se de uma porta, escuta, e volta.) Ah! Quem há de ser? (Arrastando.) É a cabritinha de minha avó, tia, e irmã, que acaba de parir três cabritos. Ei-los (Atira-os ao cenário.)

Melquíades — (entrando.) Oh! Que espetáculo é este! Cabritos em meu quarto de dormir! Oh! Mulher, donde veio isto!?

A Mulher — Ora, de onde havia de vir! Boa pergunta! O Sr. não sabe que seus avós têm o luxo de criar cabras!? E que criando-as por força hão de parir!?

Melquíades — Que têm parido, e hão de parir, sei eu muito bem! Mas o que me espanta é que a parição, parto, ou como quiserem chamar, tivesse lugar em meu quarto de dormir! É isto o que assaz me admira!

A Mulher — Não foi aqui; mas eu ouvi gemer, e cuidei que era sua avó ou seu avô; fui ver; encontrei-os; trouxe-os; e aqui estão!

Melquíades — Pois bem; agora vá preparar um para a ceia.

A Mulher — (cheia de nojo) Eu, fazer? Deus me livre! Isto tem um cheiro... Seria preciso, para se poder comer, pôr de molho três dias em alho, cebola, vinagre e cuentro.

Melquíades — Pois então, (muito zangado) tire-me daqui estas porcarias, que já me estão causando nojo! Anda! Anda! Tira isto daqui!

Uma Criada — (puxando a cabra pelos chifres) Vem, vem, vem cá, cabritinha, cabritinha!

Melquíades — Isto está demorando muito! (Dá um pontapé na cabra, que a atira; os cabritos esforçam-se por correr, ele pega em um, e esfrega na cara da criada.) Que tal, Sra. D. Nojenta! Cheira ou fede?

Criada — Nunca gostei destas graças! (Larga a cabra e sai.)

CENA II

(Entram Ruibarbo,Galante e Guindaste)

Ruibarbo — Isto é admirável! Gatos ensopados pelo soalho derramados!

Galante — Ensopados! (Reparando com muita atenção.) Só se o foram na barriga da mãe! Oh! E não me enganei; ei-la (Apontando para a cabra.)

Guindaste — Vocês são os mais extravagantes estudantes que eu tenho conhecido. Se fôssemos de Medicina, que bom estava para desenojar, mas somos de Direito, não nos pode aproveitar! O que é mais interessante é a lembrança de que estavam ensopados, achando-se em pé, e em estado de perfeição.

Ruibarbo — Não admira! Bem perfeitos são os animais, e as aves cheias, entretanto não estão vivas.

Guindaste — Mas não se diz que crê que foram ensopadas.

Ruibarbo — Sim, Sr... Mas quem não poderia dizer que estivessem assados?

Galante — Ainda vocês ignoram uma cousa: Sabem o que é? É que o nosso amigo Melquíades deu esta lição à criada, que tão pacificamente e bem sempre nos serve — esfregou-lhe com um destes cabritos: cara, boca, nariz, olhos, e não sei que mais — saiu daqui tão enjoada, que não corria; qual águia; voava; ou ia qual avestruz avoada!

Melquíades — Sabem o que mais?... Eu não quero estar vendo aqui estas imundícies! (Chamando.) Rigoleto! Rigoleto!

Uma Voz — Não está! Peguem vocês cada uma no seu, e os ponham longe daqui!

Guindaste — (para os outros) É mesmo, isto é muito enjoativo! Nem eu posso abrir um livro com eles diante de mim. Pega no teu, Galante! Ruibarbo, leva o outro!
(Pega cada um no seu e os põe fora de cena).

Ruibarbo — (para os outros) Não há remédio, senão aturá-los.

Melquíades — E eu que o diga! Mas, que faremos nós aqui metidos? Não era melhor que fôssemos passear, ver as moças, e também algumas velhas? Hem? Hem? Falem, que estou desesperado! Come-me hoje este corpo; sinto nele tal coisa... Certo prurido... E não sei que mais — que não posso estar parado um momento!

Ruibarbo — Cruzes! Contigo, Melquíades.

Melquíades — Comigo — não quero cruzes! Mas, se for algum cruzeiro, ainda poderei aceitar. Quanto a cruzes, bastam estas (apontando para os livros) que aqui vedes.

Galante — Pois eu quero tudo: cruzes, cruzeiros, cruzados, cruzinhas, cruzadas, e tudo o mais que me oferecem, e que eu posso gozar sem perder!

Guindaste — Sem perder, não, Galante. Sem padecer ou sofrer, sim! Por força que gozando…

Galante — Não sabes o que dizes: há homens que quanto mais gozam, mais ganham! Portanto, avancei uma proposição as mais das vezes verdadeira, inda que algumas vezes falível.

Melquíades — Sabem o que convém — e me entretém? Passear, conversar, ver as moças. (Pegando o chapéu.) Os que me quiserem acompanhar, sigam-me! Vamos, vamos todos! (Puxa um, puxa outro; nenhum quer sair; ele pega na bengala e sai.).

Guindaste (para Galante:) Este Melquíades mudou completamente! Passou de estudante ao mais extravagante do seu século. Cruzes! Abrenúncio! Está atrevido como o diabo!

Ruibarbo — Isto é porque ele fez anos hoje! Amanhã…

Guindaste — Então diga-me isso! Eu logo vi.

Melquíades — (entrando, passados alguns minutos) Já sabem, rapazes — que passeei, andei, virei, mexi, e revolvi. E que nada resolvi sobre o que buscava e o que vi! Pois é verdade, e tão certo como o Carneiro de Cão estar com os olhos abertos. (Aponta para Galante.) E apenas duas cousas aprendi, ou dois pensamentos colhi! Primeiro, que há dois modos de viver em sociedade; um de que só se freqüenta mulheres de certa classe, a casas de jogo, etc.; outro em que olha–se com grande indiferença para tudo isto, e até muitas vezes com repugnância e só se freqüenta casas de família, ou gente de classe mais alta, ou mais distinta! Há também esta diferença, e é que os que querem ser verdadeiros constitucionais, e não têm família, isto é — não são casados, ou sendo não vivem com suas mulheres, são forçados a freqüentar aquelas; e os que nenhum caso fazem da Constituição, e os que mais e melhor gozam! Já vêem, portanto que não perdi o tempo.

Guindaste — (para Galante e Ruibarbo:) Sempre o nosso Pai dá provas de que ainda é estudante! Sempre nos traz alguma cousa... Descobertas de cousas que ignorávamos colhidas de suas experiências filosóficas! E com isso faz também de Lente, pois leciona-nos.

Melquíades — A outra verdade, ou o outro fato, é que muitas vezes isto provém de comermos dos hotéis, ou de mandarmos fazer as comidas em nossas próprias casas! Aquelas nos conduzem às primeiras; ordinariamente estas as mais das vezes às segundas! Contudo, há nesta regra numerosas exceções, e é também conforme são os hotéis. Notai bem que muitas vezes se observa uma verdadeira confusão. O que, porém é indubitável, é que as comidas e as bebidas nos conduzem a este ou àquele trabalho, a esta ou àquela casa, a este ou àquele indivíduo, a este ou àquele negócio! Podem até conduzir-nos a um crime! Como o podem fazer, e muitas vezes o fazem, a um ato de virtude, a uma ação heróica, a uma ação vil ou indigna.
(Continuando.) Sinto às vezes certo estreitamento no canal que conduz ao estômago. Tenho querido atribuir à falta de certo ato... Mas ao mesmo tempo lembra-me que as crianças, os velhos, as velhas, os doentes, os que viajam pelas campanhas, os que estão em guerra — não praticam tais atos, entretanto sei de muitos que padecem igual incômodo. Consequentemente devemos crer que a razão principal não é essa. Talvez provenha das qualidades dos próprios líquidos e das carnes de que nos alimentamos, e até das casas em que moramos, e mesmo das pessoas que nos servem, ou a quem mais praticamos. Meninos! Quero contar-vos mais uma verdade médica por mim descoberta hoje; e é — que é sempre um mal que incomoda, sair por cima o que deve sair por baixo! Se soubésseis quanto me...
Que desagradável efeito me produz algumas vezes o cuspir! Se ao menos eqüivaler ao que escrevo, ou ser substituído pelos pensamentos! Mas quê! Tenho experimentado, e sempre acho desagrado. — Outra descoberta: Certa pessoa até certo tempo — não podia passar, quando comia ou bebia alguma cousa, sem procurar uma pessoa, que se parecesse com o objeto ou cousa, de que se servia; entretanto em um dia — o que havia de pensar, de que se havia de convencer: — que devia proceder de modo diametralmente oposto, isto é, que quando tomasse chá, por exemplo, não devia para isso como antes procurar pessoas que tivessem essa cor: e assim a outros preceitos! Acho, porém bonito que pratiquemos, ou procedamos — se isso nos não causar algum desgosto — conforme esta nos aconselham; ainda que só espiritualmente, o que se faz de milhares de modos.
Meninos! Vou descansar! (Deita-se; e enrola-se no cobertor. Para os companheiros
de quarto:) Se alguém me procurar, dizei-lhe que durmo!

Ruibarbo — Galante, que te parece o nosso Pai Melquíades!? É um homem divino! É o maior sábio do Universo! Valente como os mais valentes, ativo como o sol, amável como a mais amável Princesa, interessante como o firmamento, bom como o melhor dos Pais.

Galante — Tu não te enganas, mas esqueceste acrescentar — extravagante e desenvolto, às vezes, como uma provocadora cobrinha!

Guindaste — E para prova de tudo isto, vejam o que ele fez hoje: saltou; pulou; dançou; fez o diabo, como estudante! Depois aconselhou, ensinou, pregou, fez-se santo, como Filósofo! Ultimamente, relampagou, iluminou como rei! E agora, como acabam de ver, atirou-se naquela cama, como um cansado estudante; ou qualquer outro ente de vida pouco séria, e bruscamente no cobertor se enrolou.

Melquíades — (levantando-se rapidamente e atirando o cobertor à cara dos companheiros e discípulos) Nem todos os momentos podem ser agradáveis: deitei–me; procurou alguém por ventura por mim?... Estava em um tão agradável sonho... Quando de repente senti um movimento em meu cérebro que assaz me contristou. Levantem-se, rapazes! Vocês são a Quinta-essência dos preguiçosos!

Todos — (levantando-se) Que é isto, Melquíades!? Estás desassisado?

Melquíades — Ó diabo, pois vocês que faziam assentados!? (Gritando.) Vamos! São horas de escola! Caminhem, saiam! Saiam! (Os outros levantam-se, e ele os faz sair rapidamente caindo livros de uns; outros de chinelos; enfim, é uma desordem completa entre os quatro; como se um incêndio, ou alguma cobra venenosa se visse no quarto.)

(E assim parece dever terminar este Ato — com as seguintes palavras de Melquíades) Se eu não espanto estes madraços — nem para o chá ganhariam hoje!

Porto Alegre, Junho 16 de 1866.

FIM

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Adonias Filho (O Largo da Palma) 6. A Pedra

 Aspectos regionais:
garimpo, Jacobina.

 O enriquecimento gera a migração para a capital.

Foco narrativo
Narrativa em terceira pessoa, centralizada em Cícero e Zefa.

Espaços
Largo e Igreja da Palma, e o bordel onde Flor trabalha.

Linguagem - Inversão:
“Maior que a peste, de verdade, só o medo”; “E tinha os seus dengues, Flor!”; “Farta estava cheia de tantas mentiras e malandragens”.

Personagens
Cícero Amaro, Zefa, Flor.

Enredo
A ingenuidade de Cícero, a exploração, as mulheres, o empobrecimento.

Desfecho –
“E no largo, ao ver a igreja bem defronte, (Cícero) pôs-se a andar, cabisbaixo, como perdido em profunda meditação. A ingratidão de Zefa, o desprezo de Flor, chô, o mundo era mesmo uma boa merda”.
 (p.101) “Grandes, porém, eram os olhos de Deus. Todos pagariam semelhante na própria terra.”
 E procura arranjar um pouco dinheiro para voltar à sua vida de garimpeiro em Jacobina.

RESUMO

A igreja, mais velha do que as árvores dali, acompanhou o que era um capinzal no topo da ladeira se transformar em Largo da Palma ao longo dos anos. Apesar de muita coisa ter mudado, um terreno sempre ficou abandonado e o fizeram de depósito de lixo. Após a praga invadir a cidade e a caça aos ratos começar, tacaram fogo ao lixo e então proibiram que se deixasse terreno baldio. Como a construção de casas havia ficado mais cara por conta da libertação dos escravos, quem não tivesse dinheiro para construir que vendesse suas terras. E foi então que um especulador português construiu uma casinha ali no terreno para vender. Quem comprou a casa foi Cícero Amaro e sua esposa, Zefa.

Cícero era um garimpeiro de Jacobina que não fazia nada e de vez em quando gostava de tomar uma pinga. Sua mulher, porém, era uma negra dura que trabalhava muito e, sabendo do marido que tinha, tratava de economizar um dinheiro para construir uma quitanda. Apesar de gritar com o marido dizendo que um dia o abandonaria por ser tão preguiçoso, no fundo ela acreditava nas desculpas dele de que vida de garimpeiro era assim e sabia que um dia chegaria a hora em que ele apareceria com um diamante.

Até que um dia, em uma das raras garimpadas dele, Cícero topou com uma pedra do tamanho de uma azeitona. Falou-se disso o dia inteiro em Jacobina e todos perguntavam o que ele iria fazer com tanto dinheiro que conseguiria com a venda da pedra. Depois de muita discussão, fechou negócio com Salviano e, com o dinheiro no bolso, fez o que todo homem faria e entrou no primeiro botequim e já começou a gastar. No caminho de volta, nem pensou duas vezes e já comprou roupas novas para ele e para a mulher. Ao chegar em casa, Zefa fez um café bem forte para Cícero e só depois que a bebedeira passou ela falou de comprar uma quitanda em Salvador.

Foram os dois de trem para a Capital e em coisa de dez dias compraram a casa já mobiliada, pois não eram mais gente para ficar em casa de aluguel. A quitanda, que era mais um pequeno armazém do que uma quitanda, ficava logo ali na própria Ladeira da Palma, perto da casa. Tudo foi pago à vista e posto no nome de Zefa.

Enquanto Zefa cuidava da quitanda e de sua vida, Cícero passava as tardes a queimar seu dinheiro. Já era popular nos botecos e no fim da tarde pagava bebida para todos. Até que um dia a consciência apertou e ele resolveu ver quanto de dinheiro que havia sobrado. Cícero só tinha cerca da metade do dinheiro que conseguiu com a venda do diamante.

No dia seguinte, todo bem vestido saiu para andar e foi para a Rua Chile sonhando com as belas moças da Bahia. Entrou em uma das casas atraído pelo som da valsa tocada no piano desafinado e mal sentou na mesa e pediu uma bebida, veio uma bela moça de nome Flor se juntar a ele. E de riso em riso, palavra em palavra, Cícero acabou se apaixonando por Flor. Ele se perguntava como poderia ter ficado tanto tempo com a negra Zefa. Porém, essa paixão não durou nem sete dias. No primeiro ela exigiu uma pulseira de ouro, no segundo nada pediu, no terceiro foi um par de brincos e dinheiro. No quarto, sem nem que Flor pedisse, ela ganhou três belos vestidos de seda. No quinto ela pediu um anel. No sexto, como já tinha o que queria, pediu mais dinheiro e assim ela descobriu que Cícero já quase não tinha mais dinheiro algum. Então ela o mandou embora.

Chegando em casa foi recebido por Zefa de cara amarrada. Ela já iria mais tolerar as mentiras e a folga dele, e muito menos que ele comesse todo o lucro da quitanda. Cheia de tanta mentira e malandragem, Zefa o mandou embora.

Assim, Cícero deixou a mulher falando sozinha e foi-se embora com a roupa já toda suja e gasta. Foi andando pela rua pensando na ingratidão de Zefa e no desprezo de Flor, pensava que todos iriam pagar por tremenda maldade. E aí pensou em como conseguir dinheiro. Não muito, apenas o suficiente para voltar a Jacobina e voltar à vida de garimpeiro.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/o_largo_da_palma
http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/largo-palma-resumo-obra-adonias-filho-701985.shtml

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 20

Dilamar Machado
(Dilamar Valls Machado)
(São Luiz Gonzaga/RS, 27 outubro 1935 – Porto Alegre/RS, 27 agosto 2001)

" ROSA DE MAIO "


Rosa de Maio, linda flor de outono,
jóia escondida num jardim divino,
tu, que és a doce flor de meu destino
e a imagem santa que me enfeita o sono,

dá que esse olhar ardente e peregrino
de um país tão distante, cor de outono,
agora que me deixas no abandono
acalme a dor a que me predestino,

pois, já se uniram, para mágoa minha
o minha flor de Maio, em cruel engenho
que o destino criou pra meu sofrer,

esta paixão ardente que ainda tinha,
a incerteza mesquinha que hoje tenho
e a saudade cruel que eu hei de ter.
––––––––––

Dionísio Vilarinho,
(Amarante/PI, 1921 – Alegrete/RS, 1947).

" DESENLACE "


Foste sincera em revelar, querida,
que não me queres mais. Muito obrigado:
já não serás por mim mais iludida,
já não serei por ti mais enganado.

Eu também já vivia amargurado
de suportar essa paixão fingida,
sabendo que não era mais amado
e que não eras mais a preferida.

Hoje, quebrando os derradeiros elos
que te traziam presa aos meus desejos,
que me traziam preso aos teus anelos,

troquemos, sem tristeza, o último adeus:
tu, sem saudade alguma dos meus beijos,
eu, sem pensar sequer nos beijos teus...

" REGRESSO "

- Voltaste? É tarde, mas, entra no entanto...
já não encontrarás do mesmo jeito
aquele amor que escarneceste tanto
por outro amor, dos sonhos teus eleito.

O tempo, a dor e o corrosivo efeito
da saudade, das mágoas e do pranto,
fizeram da alameda do meu peito
um fúnebre e tristonho campo santo.

Quando partiste, bela, há tantos anos,
nunca pensei que havias de voltar
assim cheia de mágoa e desenganos...

Regressaste, contudo, ao ninho agreste . . .
E eu já não tenho mais para te dar
senão os desenganos que me deste…
==================

Djalma de Andrade
(Congonhas do Campo/MG, 3 dezembro 1893 – Belo Horizonte/MG, 13 maio 1975)

" GLORIOSA "


Há mulheres que vencem pela graça,
vencem, dominam de uma tal maneira,
que o coração viril, por mais que faça,
nunca mais tem a liberdade inteira.

Em outras, a ternura nos enlaça,
uma ternura doce e verdadeira:
são corações de arminho, almas sem jaça,
de sombra acolhedora e hospitaleira.

Eu sei que as há, bem vejo claro e exulto,
mas não me ofusca a forte claridade,
mas não lhes rendo meu fervor, meu culto,

pois nenhuma, por certo, se avizinha,
na graça, na ternura, na bondade,
daquela que nasceu para ser minha.
================

Domingos Carvalho da Silva
(Vila Nova de Gaia/ Portugal, 21 junho 1915 – São Paulo/SP, 2004)

" NÁUFRAGOS "


Somos dois sobre um mar de misteriosas
praias de sonho e vagas florescendo
em algas. Deliramos percorrendo
dias ébrios de luz e tenebrosas

noites de desespero. Vejo rosas
em torno de tuas ancas. Vão crescendo
pássaros em teus seios. Sobre o horrendo
e frio abismo, estrelas-mariposas

procuram os teus olhos. Pirilampos
se apagam no horizonte ou no infinito.
As artérias cavalgam hipocampos

no mar. Cinjo teu corpo, enfim, e o Norte
e o Sul do mundo ouvem teu nome. E um grito
de espasmo ecoa entre o prazer e a morte.

Fonte:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Lima Barreto (O Filho de Gabriela)

A Antônio Noronha Santos

"Chaque progrès, au fond, est un avortement
Mais l'échec même sert".
Guyau

Absolutamente não pode continuar assim... Já passa... É todo o dia! Arre! — Mas é meu filho, minh'ama.

E que tem isso? Os filhos de vocês agora têm tanto luxo. Antigamente,
criavam-se à toa; hoje, é um deus-nos-acuda; exigem cuidados, têm moléstias... Fique sabendo: não pode ir amanhã!

— Ele vai melhorando, Dona Laura; e o doutor disse que não deixasse de
levá-lo lá, amanhã...

— Não pode, não pode, já lhe disse! O conselheiro precisa chegar cedo à
escola; há exames e tem que almoçar cedo... Não vai, não senhora! A gente tem criados pra que? Não vai, não!

— Vou, e vou sim!... Que bobagem!... Quer matar o pequeno, não é? Pois
sim... Está-se "ninando"...

— O que é que você disse, heim

— É isso mesmo: vou e vou!

— Atrevida.

— Atrevida é você, sua... Pensa que não sei...

Em seguida as duas mulheres se puseram caladas durante um instante: a
patroa — uma alta senhora, ainda moça, de uma beleza suave e marmórea — com os lábios finos muito descorados e entreabertos, deixando ver os dentes aperolados, muito iguais, cerrados de cólera; a criada agitada, transformada, com faiscações desusadas nos olhos pardos e tristes. A patroa não se demorou assim muito tempo. Violentamente contraída naquele segundo a sua fisionomia repentinamente se abriu num choro convulsivo.

A injúria da criada, decepções matrimoniais, amarguras do seu ideal amoroso, fatalidades de temperamento, todo aquele obscuro drama de sua alma, feito de uma porção de coisas que não chegava bem a colher, mas nas malhas das quais se sentia presa e sacudida, subiu-lhe de repente à consciência, e ela chorou.

Na sua simplicidade popular, a criada também se pôs a chorar, enternecida pelo sofrimento que ela mesma provocara na ama.

E ambas, pelo fim dessa transfiguração inopinada, entreolharam-se surpreendidas, pensando que se acabavam de conhecer naquele instante, tendo até ali vagas notícias uma da outra, como se vivessem longe, tão longe, que só agora haviam distinguido bem nitidamente o tom de voz próprio a cada uma delas.

No entendimento peculiar de uma e de outra, sentiram-se irmãs na desoladora mesquinhez da nossa natureza e iguais, como frágeis conseqüências de um misterioso encadear de acontecimentos, cuja ligação e fim lhes escapavam completamente, inteiramente...

A dona da casa, à cabeceira da mesa de jantar, manteve-se silenciosa, correndo, de quando em quando, o olhar ainda úmido pelas ramagens do atoalhado, indo, às vezes, com ele até à bandeira da porta defronte, donde pendia a gaiola do canário, que se sacudia na prisão niquelada.

De pé, a criada avançou algumas palavras. Desculpou-se inábil e despediu-se humilde.

— Deixe-se disso, Gabriela, disse Dona Laura. Já passou tudo; eu não guardo rancor; fique! Leve o pequeno amanhã... Que vai você fazer por esse mundo afora?

— Não senhora... Não posso... É que...

E de um hausto falou com tremuras na voz:

— Não posso, não minh'ama; vou-me embora!

Durante um mês, Gabriela andou de bairro em bairro, à procura de aluguel.

Pedia lessem-lhe anúncios, corria, seguindo as indicações, a casas de gente de toda a espécie. Sabe cozinhar? Perguntavam. — Sim, senhora, o trivial. — Bem e lavar? Serve de ama? — Sim, senhora; mas se fizer uma coisa, não quero fazer outra. — Então, não me serve, concluía a dona da casa. É um luxo... Depois queixam-se que não têm aonde se empreguem...

Procurava outras casas; mas nesta já estavam servidas, naquela o salário era pequeno e naquela outra queriam que dormisse em casa e não trouxesse o filho.

A criança, durante esse mês, viveu relegada a um canto da casa de uma conhecida da mãe. Um pobre quarto de estalagem, úmido que nem uma masmorra.

De manhã, via a mãe sair; à tarde, quase à boca da noite, via-a entrar desconfortada. Pelo dia em fora, ficava num abandono de enternecer. A hóspede, de longe em longe, olhava-o cheia de raiva. Se chorava aplicava-lhe palmadas e gritava colérica: " Arre diabo! A vagabunda de tua mãe anda saracoteando... Cala a boca, demônio! Quem te fez, que te ature..."

Aos poucos, a criança torrou-se de medo; nada pedia, sofria fome, sede,
calado. Enlanguescia a olhos vistos e sua mãe, na caça de aluguel, não tinha tempo para levá-lo ao doutor do posto médico. Baço, amarelado, tinha as pernas que nem palitos e o ventre como o de um batráquio. A mãe notava-lhe o enfraquecimento, os progressos da moléstia e desesperava, não sabendo que alvitre tomar. Um dia pelos outros, chegava em casa semi — embriagada, escorraçando o filho e trazendo algum dinheiro. Não confessava a ninguém a origem dele; em outros mal entrava, beijava muito o pequeno, abraçava-o. E assim corria a cidade. Numa destas correrias passou pela porta do conselheiro, que era o marido de Dona Laura. Estava no portão, a lavadeira, parou e falou-lhe; nisto, viu aparecer a sua antiga patroa numa janela lateral. " — Bom dia minh'ama," — "Bom dia, Gabriela. Entre." Entrou.

A esposa do conselheiro perguntou-lhe se já tinha emprego; respondeu-lhe que não.

"Pois olha, disse-lhe a senhora, eu ainda não arranjei cozinheira, se tu queres..."

Gabriela quis recusar, mas Dona Laura insistiu.

Entre elas, parecia que havia agora certo acordo íntimo, um quê de mútua proteção e simpatia. Uma tarde em que Dona Laura voltava da cidade, o filho da Gabriela, que estava no portão, correu imediatamente para a moça e disse-lhe, estendendo a mão: "a bênção" Havia tanta tristeza no seu gesto, tanta simpatia e sofrimento, que aquela alta senhora não lhe pôde negar a esmola de um afago, de uma carícia sincera. Nesse dia, a cozinheira notou que ela estava triste e, no dia
seguinte, não foi sem surpresa que Gabriela se ouviu chamar.

— O Gabriela!

— Minh'ama.

— Vem cá.

Gabriela concertou-se um pouco e correu à sala de jantar, onde estava a
ama.

— Já batizaste o teu pequeno? Perguntou-lhe ela ao entrar.

— Ainda não.

— Porque? Com quatro anos!

— Porque? Porque ainda não houve ocasião...

— Já tens padrinhos?

— Não, senhora.

— Bem; eu e o conselheiro vamos batizá-lo. Aceitas?

Gabriela não sabia como responder, balbuciou alguns agradecimentos e voltou ao fogão com lágrimas nos olhos.

O conselheiro condescendeu e cuidadosamente começou a procurar um nome adequado. Pensou em Huáscar, Ataliba, Guatemozim; consultou dicionários, procurou nomes históricos, afinal resolveu-se por "Horácio", sem saber por quê.

Assim se chamou e cresceu. Conquanto tivesse recebido um tratamento médico regular e a sua vida na casa do conselheiro fosse relativamente confortável, o pequeno Horácio não perdeu nem a reserva nem o enfezado dos seus primeiros anos de vida. A proporção que crescia, os traços se desenhavam, alguns finos: o corte da testa, límpida e reta; o olhar doce e triste, como o da mãe, onde havia, porém, alguma coisa a mais — um fulgor, certas expressões particulares, principalmente quando calado e concentrado. Não obstante, era feio, embora simpático e bom de ver.

Pelos seis anos, mostrava-se taciturno, reservado e tímido, olhando interrogativamente as pessoas e coisas, sem articular uma pergunta. Lá vinha um dia, porém, que o Horácio rompia numa alegria ruidosa; punha-se a correr, a brincar, a cantarolar, pela casa toda, indo do quintal para as salas, satisfeito, contente, sem motivo e sem causa.

A madrinha espantava-se com esses bruscos saltos de humor, queria entendê-los, explicá-los e começou por se interessar pelos seus trejeitos. Um dia, vendo o afilhado a cantar, a brincar, muito contente, depois de uma porção de horas de silêncio e calma, correu ao piano e acompanhou-lhe a cantiga, depois, emendou com uma ária qualquer. O menino calou-se, sentou-se no chão e pôs-se a olhar, com olhos tranqüilos e calmos, a madrinha, inteiramente delido nos sons que saíam dos seus dedos. E quando o piano parou, ele ainda ficou algum tempo esquecido naquela postura, com o olhar perdido numa cisma sem fim. A atitude imaterial do menino tocou a madrinha, que o tomou ao colo, abraçando-o e beijando-o, num afluxo de ternura, a que não eram estranhos os desastres de sua vida sentimental.

Pouco depois a mãe lhe morria. Até então vivia numa semidomesticidade. Daí em diante, porém, entrou completamente na família do Conselheiro Calaça. Isso, entretanto, não lhe retirou a taciturnidade e a reserva; ao contrário, fechou — se em si e nunca mais teve crises de alegria.

Com sua mãe ainda tinha abandonos de amizade, efusões de carícias e abraços. Morta que ela foi, não encontrou naquele mundo tão diferente, pessoa a quem se pudesse abandonar completamente, embora pela madrinha continuasse a manter uma respeitosa e distante amizade, raramente aproximada por uma carícia, por um afago. Ia para o colégio calado, taciturno, quase carrancudo, e, se, pelo recreio, o contágio obrigava-o a entregar-se à alegria e aos folguedos, bem cedo se arrependia, encolhia-se e sentava-se, vexado, a um canto. Voltava do colégio como fora, sem brincar pelas ruas, sem traquinadas, severo e insensível. Tendo uma vez brigado com um colega, a professora o repreendeu severamente, mas o conselheiro, seu padrinho, ao saber do caso, disse com rispidez: "Não continue, heim? O senhor não pode brigar — está ouvindo?"

E era assim sempre o seu padrinho, duro, desdenhoso, severo em demasia com o pequeno, de quem não gostava, suportando-o unicamente em atenção à mulher — maluquices da Laura, dizia ele. Por vontade dele, tinha-o posto logo num asilo de menores, ao morrer-lhe a mãe; mas a madrinha não quis e chegou até a conseguir que o marido o colocasse num estabelecimento oficial de instrução secundária, quando acabou com brilho o curso primário.

Não foi sem resistência que ele acedeu, mas os rogos da mulher, que agora juntava à afeição pelo pequeno uma secreta esperança no seu talento, tanto fizeram que o conselheiro se empenhou e obteve.

Em começo, aquela adoção fora um simples capricho de Dona Laura; mas, com o tempo, os seus sentimentos pelo menino foram ganhando importância e ficando profundos, embora exteriormente o tratasse com um pouco de cerimônia.

Havia nela mais medo da opinião, das sentenças do conselheiro, do que mesmo necessidade de disfarçar o que realmente sentia, e pensava.

Quem a conheceu solteira, muito bonita, não a julgaria capaz de tal afeição; mas, casada, sem filhos, não encontrando no casamento nada que sonhara, nem mesmo o marido, sentiu o vazio da existência, a insanidade dos seus sonhos, o pouco alcance da nossa vontade; e, por uma reviravolta muito comum, começou a compreender confusamente todas as vidas e almas, a compadecer-se e a amar tudo, sem amar bem coisa alguma. Era uma parada de sentimento e a corrente que se acumulara nela, perdendo-se do seu leito natural, extravasara e inundara tudo.

Tinha um amante e já tivera outros, mas não era bem a parte mística do amor que procurara neles. Essa, ela tinha certeza que jamais podia encontrar; era a parte dos sentidos tão exuberantes e exaltados depois das suas contrariedades morais.

Pelo tempo em que o seu afilhado entrara para o colégio secundário, o amante rompera com ela; e isto a fazia sofrer, tinha medo de não possuir mais beleza suficiente para arranjar um outro como "aquele". e a esse desastre sentimental não foi estranha a energia dos seus rogos junto ao marido para admissão do Horácio no estabelecimento oficial.

O conselheiro, homem de mais de sessenta anos, continuava superiormente
frio, egoísta e fechado, sonhando sempre uma posição mais alta ou que julgava mais alta. Casara-se por necessidade decorativa. Um homem de sua posição não podia continuar viúvo; atiraram-lhe aquela menina pelos olhos, ela o aceitou por ambição e ele por conveniência. No mais, lia os jornais, o câmbio especialmente, e, de manhã passava os olhos nas apostilas de sua cadeira — apostilas por ele organizadas, há quase trinta anos, quando dera as suas primeiras lições, moço, de vinte e cinco anos, genial nas aprovações e nos prêmios.

Horácio, toda a manhã, ao sair para o colégio, lá avistava o padrinho atarraxado na cadeira de balanço a ler atentamente o jornal: " A bênção, meu padrinho! " — "Deus te abençoe", dizia ele, sem menear a cabeça do espaldar e no mesmo tom de voz com que pediria os chinelos à criada.

Em geral, a madrinha estava deitada ainda e o menino saía para o ambiente ingrato da escola, sem um adeus, sem dar um beijo, sem ter quem lhe reparasse familiarmente o paletó. Lá ia. A viagem de bonde, ele a fazia humilde, espremido a um canto do veículo, medroso que seu paletó roçasse as sedas de uma rechonchuda senhora ou que seus livros tocassem nas calças de um esquelético capitão de uma milícia qualquer. Pelo caminho, arquitetava fantasias; seu espírito divagava sem nexo. À passagem de um oficial a cavalo, imaginava-se na guerra, feito general, voltando vencedor, vitorioso de ingleses, de alemães, de americanos e entrando pela Rua do Ouvidor aclamado como nunca se fora aqui. Na sua cabeça ainda infantil, em que a fraqueza de afetos próximos concentrava o pensamento, a imaginação palpitava, tinha uma grande atividade, criando toda a espécie de fantasmagorias que lhe apareciam como fatos possíveis, virtuais.

Eram-lhe as horas de aula um bem triste momento. Não que fosse vadio, estudava o seu bocado, mas o espetáculo do saber, por um lado grandioso e apoteótico, pela boca dos professores, chegava-lhe tisnado e um quê desarticulado. Não conseguia ligar bem umas coisas às outras, além do que tudo aquilo lhe aparecia solene, carrancudo e feroz. Um teorema tinha o ar autoritário de um régulo selvagem; e aquela gramática cheia de regrinhas, de exceções, uma coisa cabalística, caprichosa e sem aplicação útil.

O mundo parecia-lhe uma coisa dura, cheia de arestas cortantes, governado por uma porção de regrinhas de três linhas, cujo segredo e aplicação estavam entregues a uma casta de senhores, tratáveis uns, secos outros, mas todos velhos e indiferentes.

Aos seus exames ninguém assistia, nem por eles alguém se interessava; contudo. foi sempre regularmente aprovado.

Quando voltava do colégio, procurava a madrinha e contava-lhe o que se dera nas aulas. Narrava-lhe pequenas particularidades do dia, as notas que obtivera e as travessuras dos colegas.

Uma tarde, quando isso ia fazer, encontrou Dona Laura atendendo a uma visita. Vendo-o entrar e falar à dona da casa, tomando-lhe a bênção a senhora estranha perguntou: "Quem é este pequeno?" — "E meu afilhado", disse-lhe DonaLaura. "Teu afilhado? Ah! sim! É o filho da Gabriela..."

Horácio ainda esteve um instante calado, estatelado e depois chorou nervosamente.

Quando se retirou observou a visita à madrinha:

— Você está criando mal esta criança. Faz-lhe muitos mimos, está lhe dando nervos...

— Não faz mal. Podem levá-lo longe.

E assim corria a vida do menino em casa do conselheiro.

Um domingo ou outro, só ou com um companheiro, vagava pelas praias, pelos bondes ou pelos jardins. O Jardim Botânico era-lhe preferido. Ele e o seu constante amigo Salvador sentavam-se a um banco, conversavam sobre os estudos comuns, maldiziam este ou aquele professor. Por fim, a conversa vinha a enfraquecer; os dois se calavam instantes. Horácio deixava-se penetrar pela flutuante poesia das coisas, das árvores, dos céus, das nuvens; acariciava com o olhar as angustiadas colunas das montanhas, simpatizava com o arremesso dos píncaros, depois deixava-se ficar, ao chilreio do passaredo, cismando vazio, sem que a cisma lhe fizesse ver coisa definida, palpável pela inteligência. Ao fim, sentia-
se como que liqüefeito, vaporizado nas coisas era como se perdesse o feitio humano e se integrasse naquele verde escuro da mata ou naquela mancha faiscante de prata que a água a correr deixava na encosta da montanha. Com que volúpia, em tais momentos, ele se via dissolvido na natureza, em estado de fragmentos, em átomos, sem sofrimento, sem pensamento, sem dor! Depois de ter ido ao indefinido, apavorava-se com o aniquilamento e voltava a si, aos seus desejos, às suas preocupações com pressa e medo. — Salvador, de que gostas mais, do inglês ou francês? — Eu do francês; e tu? — Do inglês. — Por que? Porque pouca gente o sabe.

A confidência saía-lhe a contragosto, era dita sem querer. Temeu que o amigo o supusesse vaidoso. Não era bem esse sentimento que o animava; era uma vontade de distinção, de reforçar a sua individualidade, que ele sentia muito diminuída pelas circunstâncias ambientes. O amigo não entrava na natureza do seu sentimento e despreocupadamente perguntou: — Horácio, já assististe uma festa de São João? — Nunca. — Queres assistir uma? Quero, onde ? — Na ilha, em casa de meu tio.

Pela época, a madrinha consentiu. Era um espetáculo novo; era um outro mundo que se abria aos seus olhos. Aquelas longas curvas das praias, que perspectivas novas não abriam em seu espírito! Ele se ia todo nas cristas brancas das ondas e nos largos horizontes que descortinava.

Em chegando a noite, afastou-se da sala. Não entendia aqueles folguedos, aquele dançar sôfrego, sem pausa, sem alegria, como se fosse um castigo. Sentado a um banco do lado de fora, pôs-se a apreciar a noite, isolado, oculto, fugido, solitário, que se sentia ser no ruído da vida. Do seu canto escuro, via tudo mergulhado numa vaga semi luz. No céu negro, a luz pálida das estrelas; na cidade defronte, o revérbero da iluminação; luz, na fogueira votiva, nos balões ao alto, nos foguetes que espoucavam, nos fogaréus das proximidades e das distâncias — luzes contínuas, instantâneas, pálidas, fortes; e todas no conjunto pareciam representar um esforço enorme para espancar as trevas daquela noite de mistérios.

No seio daquela bruma iluminada, as formas das árvores boiavam como espectros; o murmúrio do mar tinha alguma coisa de penalizado diante do esforço dos homens e dos astros para clarear as trevas. Havia naquele instante, em todas as almas, um louco desejo de decifrar o mistério que nos cerca; e as fantasias trabalhavam para idear meios que nos fizessem comunicar com o Ignorado, com o Invisível. Pelos cantos sombrios da chácara pessoas deslizavam. Iam ao poço ver a sombra — sinal de que viveriam o ano; iam disputar galhos de arruda ao diabo; pelas janelas, deixavam copos com ovos partidos para que o sereno, no dia seguinte, trouxesse as mensagens do Futuro.

O menino, sentindo-se arrastado por aquele frêmito de augúrio e feitiçaria, percebeu bem como vivia envolvido, mergulhado, no indistinto, no indecifrável; e uma onda de pavor, imensa e aterradora, cobriu-lhe o sentimento.

Dolorosos foram os dias que se seguiram. O espírito sacolejou-lhe o corpo violentamente. Com afinco estudava, lia os compêndios; mas não compreendia, nada retinha. O seu entendimento como que vazava. Voltava, lia, lia e lia e, em seguida, virava as folhas sofregamente, nervosamente, como se quisesse descobrir debaixo delas um outro mundo cheio de bondade e satisfação. Horas havia que ele desejava abandonar aqueles livros, aquela lenta aquisição de noções e idéias, reduzir-se e anular-se; horas havia, porém, que um desejo ardente lhe vinha de saturar-se de saber, de absorver todo o conjunto das ciências e das artes. Ia de um sentimento para outro; e foi vã a agitação. Não encontrava solução, saída; a desordem das idéias e a incoerência das sensações não lhe podiam dar uma e cavavam-lhe a saúde. Tornou-se mais flébil, fatigava-se facilmente. Amanhecia cansado de dormir e dormia cansado de estar em vigília. Vivia irritado, raivoso, não sabia contra quem.

Certa manhã, ao entrar na sala de jantar, deu com o padrinho a ler os jornais, segundo o seu hábito querido.

— Horácio, você passe na casa do Guedes e traga-me a roupa que mandei consertar.

— Mande outra pessoa buscar.

— O que?

— Não trago.

— Ingrato! Era de esperar...

E o menino ficou admirado diante de si mesmo, daquela saída de sua habitual timidez.

Não sabia onde tinha ido buscar aquele desaforo imerecido, aquela tola má-criação; saiu-lhe como uma coisa soprada por outro e que ele unicamente pronunciasse.

A madrinha interveio, aplainou as dificuldades; e, com a agilidade de espírito peculiar ao sexo, compreendeu o estado d'alma do rapaz. Reconstituiu-o com os gestos, com os olhares, com as meias palavras, que percebera em tempos diversos e cuja significação lhe escapara no momento, mas que aquele ato, desusadamente brusco e violento, aclarava por completo. Viu-lhe o sofrimento de viver à parte, a transplantação violenta, a falta de simpatia, o princípio de ruptura que existia em sua alma, e que o fazia passar aos extremos das sensações e dos atos.

Disse-lhe coisas doces, ralhou-o, aconselhou-o, acenou-lhe com a fortuna, a glória e o nome.

Foi Horácio para o colégio abatido, preso de um estranho sentimento de
repulsa, de nojo por si mesmo. Fora ingrato, de fato; era um monstro. Os padrinhos lhe tinham dado tudo, educado, instruído. Fora sem querer, fora sem pensar; e sentia bem que a sua reflexão não entrara em nada naquela resposta que dera ao padrinho. Em todo o caso, as palavras foram suas, foram ditas com sua voz e a sua boca, e se lhe nasceram do íntimo sem a colaboração da inteligência, devia acusar-se de ser fundamentalmente mau...

Pela segunda aula, pediu licença. Sentia-se doente, doía-lhe a cabeça e
parecia que lhe passavam um archote fumegante pelo rosto.

— Já, Horácio? Perguntou-lhe a madrinha, vendo-o entrar.

— Estou doente.

E dirigiu-se para o quarto. A madrinha seguiu-o. Chegado que foi, atirou-se à cama, ainda meio-vestido.

— Que é que você tem, meu filho?

— Dores de cabeça... um calor...

A madrinha tomou-lhe o pulso, assentou as costas da mão na testa e disse-lhe ainda algumas palavras de consolação: que aquilo não era nada; que o padrinho não lhe tinha rancor; que sossegasse.

O rapaz, deitado, com os olhos semicerrados, parecia não ouvir; voltava-se de um lado para outro; passava a mão pelo rosto, arquejava e debatia-se. Um instante pareceu sossegar; ergueu-se sobre o travesseiro e chegou a mão aos olhos, no gesto de quem quer avistar alguma coisa ao longe. A estranheza do gesto assustou a madrinha.

— Horácio!... Horácio!...

— Estou dividido... Não sai sangue...

— Horácio, Horácio, meu filho !

— Faz sol... Que sol !... Queima...Árvores enormes... Elefantes...

— Horácio, que é isso? Olha; é tua madrinha!

— Homens negros... Fogueiras... Um se estorce... Chi! Que coisa!... O meu pedaço dança...

— Horácio! Genoveva, traga água de flor... Depressa, um médico... Vá
chamar, Genoveva!

— Já não é o mesmo... É outro... Lugar, mudou... Uma casinha branca...
Carros de bois... Nozes... Figos... Lenços...

— Acalma-te, meu filho!

— Ué! Chi! Os dois brigam...

Daí em diante a prostração tomou-o inteiramente. As últimas palavras não saíam perfeitamente articuladas. Pareceu sossegar. O médico entrou, tomou a temperatura, examinou-o e disse com a máxima segurança:

— Não se assuste, minha senhora. É delírio febril, simplesmente. Dê-lhe o purgante, depois as cápsulas, que, em breve, estará bom.

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 5

IX

PECADO


Ia agora Aires de Lucena todos os dias á casa de Duarte de Morais, quando de outras vezes apenas lá aparecia de longe em longe.

Havia ai um encanto que o atraía, e este, pensava o corsário não ser outro senão o afeto de irmão que votava a Maria da Glória, e crescera agora com as graças e prendas da formosa menina.
Mui freqüente era encontrá-la Aires a folgar em companhia do primo Caminha, mas á sua chegada ficava ela toda confusa e atada, sem ânimo de erguer os olhos do chão ou proferir palavra.

Uma vez, em que mais notou essa mudança, não se pôde conter Aires que não observasse:

- Estou vendo, Maria da Glória, que lhe meto medo?

- A mim, Senhor Aires? balbuciou ai menina.

- A quem mais?

- Não me dirá por quê?

- Esta sempre alegre, mas é ver-me e fechar-se como agora nesse modo triste e...

- Eu sou sempre assim.

- Não; com os outros não é, tornou Aires fitando os olhos em Caminha.

Mas logo tomando um tom galhofeiro continuou:

- Sem dúvida lhe disseram que os corsários são uns demônios!...

- O que eles são, não sei, acudiu Antônio de Caminha; mas aqui estou eu, que no mar não lhes quero ver nem a sombra.

- No mar têm seu risco; mas em seco não fazem mal; são como os tubarões, replicou Aires.

Nesse dia, deixando a casa de Duarte de Morais, conheceu Aires de Lucena que amava a Maria da Glória e com amor que não era de irmão.

A dor que sentira pensando que ela pudesse querer a outrem. que não ele, e ele somente, lhe revelou a veemência dessa paixão que se tinha imbuído em seu coração e ai crescera até que de todo o absorveu.

Um mês não era passado, que apareceram franceses na costa e com tamanha audácia que por vezes investiram a barra, chegando até a ilhota da Laje, apesar do Forte de São João na Praia Vermelha.

Aires de Lucena, que em outra ocasião fora dos primeiros a sair contra o inimigo, desta vez mostrou-se tíbio e indiferente.

Enquanto outros navios se aprestavam para o combate, a escuna Maria da Glória se embalava tranqüilamente nas águas da baía, desamparada pelo comandante, que a maruja inquieta esperava debalde, desde o primeiro rebate.

Uma cadeia oculta prendia Aires à terra, mas sobretudo à casa onde morava Maria da Glória, a quem ele ia ver todos os dias, pesando-lhe que o não pudesse a cada instante.

Para calar a voz da pátria, que ás vezes bradava-lhe na consciência, consigo encarecia a necessidade de ficar para a defensão da cidade, no caso de algum assalto, sobretudo quando saía a perseguir os corsários, o melhor de sua gente de armas.

Sucedeu porém que Antônio de Caminha, mancebo de muitos brios, teve o comando de um navio de corso, armado por alguns mercadores de São Sebastião; do que mal o soube, Aires, sem mais detença foi se a bordo da escuna, que desfraldou as velas fazendo-se ao mar.

Não tardou que se não avistassem os três navios franceses, pairando ao largo. Galharda e ligeira, com as velas apojadas pela brisa e sua bateria pronta, correu a Mana da Glória a bordo sobre o inimigo.

Desde que fora batizado o navio, nenhuma empresa arriscada se tentava, nenhum lance de perigo se afrontava, sem que a maruja com o comandante à frente, invocasse a proteção de Nossa Senhora da Glória.

Para isso desciam todos a câmara da proa, já preparada como uma capela. A imagem que olhava o horizonte como a rainha dos mares, girando na peanha voltava-se para dentro, a fim de receber a oração.

Naquele dia foi Aires presa de estranha alucinação, quando rezava de joelhos, ante o nicho da Senhora. Na sagrada imagem da Virgem Santíssima, não via ele senão o formoso vulto de Maria da Glória, em cuja contemplação se enlevava sua alma.

Por vezes tentou recobrar-se dessa alheação dos sentidos e não o conseguiu. Foi-lhe impossível arrancar d'alma a doce visão que a cingia como um regaço de amor. Não era a Mãe de Deus, a Rainha Celestial que ele adorava nesse momento, mas a loura virgem que tinha um altar em seu coração.

Achava-se ímpio nessa idolatria, e abrigava-se em sua devoção por Nossa Senhora da Glória; mas ai estava seu maior pecado, que era nessa mesma fé tão pura, que seu espírito se desvairava, transformando em amor terrestre o culto divino.

Cerca de um mês Aires de Lucena esteve no mar, já combatendo os corsários e levando-os sempre de vencida, já dando caça aos que tinham escapado e castigando o atrevimento de ameaçarem a colônia portuguesa.

Durante esse tempo, sempre que ao entrar em combate, a equipagem da escuna invocava o patrocínio de sua madrinha, Nossa Senhora da Glória, era o comandante presa da mesma alucinação que já sentira, e erguia-se da oração com um remorso, que lhe pungia o coração pressago de algum infortúnio.

Pressentia o castigo de sua impiedade, e se arrojava na peleja receoso de que o desamparasse enfim a proteção da Senhora agravada; mas por isso não lhe minguava a bravura, senão que o desespero lhe ministrava maior furor e novas forças.

X

O VOTO


Ao cabo do seu cruzeiro, tornara Aires ao Rio de Janeiro onde entrou à noite calada, quando já toda a cidade dormia.

Havia tempos que soara no mosteiro o toque de completas; já todos os fogos estavam apagados, e não se ouvia outro rumor a não ser o ruído das ondas na praia, ou o canto dos galos, despertados pela claridade da lua ao nascer.

Cortando a flor das ondas alisadas, que se aljofravam como os brilhantes reçumos da espuma irisada pelos raios da lua, veio a escuna dar fundo em frente ao Largo da Polé.

No momento em que ao fisgar da âncora arfava o lindo navio, como um corcel brioso sofreado pela mão do ginete, quebrou o silêncio da noite um dobre fúnebre.

Era o sino da Igreja de Nossa Senhora do Ó que tangia o toque da agonia Teve Aires, como toda a equipagem, um aperto de coração ao ouvir o lúgubre anúncio. Não faltou entre os marujos quem tomasse por mau agouro a circunstância de ter a escuna fundeado no momento em que começara o dobre.

Logo após abicava à ribeira o batel conduzindo Aires de Lucena, que saltou em terra ainda com o mesmo soçobro, e a alma cheia de inquietação.

Era tarde da noite para ver Duarte de Morais; mas não quis Aires recolher sem passar-lhe pela porta, e avistar-se com a casa onde habitava a dama de seus pensamentos.

Alvoroçaram-se os sustos de sua alma já aflita, encontrando aberta àquela hora adiantada a porta da casa, e as frestas das janelas esclarecidas pelas réstias de luz interior.

De dentro saía um rumor soturno como de lamentos, entremeados com reza

Quando deu por si, achava-se Aires, conduzido pelo som do pranto, em uma câmara iluminada por quatro círios colocados nos cantos de um leito mortuário. Sobre os lençóis e mais lívida que eles, via-se a estátua inanimada, mas sempre formosa, de Maria da Glória.

A nívea cambraia que lhe cobria o seio mimoso, afiava com um movimento quase imperceptível, mostrando que ainda não se extinguira de todo nesse corpo gentil o hálito vital.

Ao ver Aires, Úrsula, o marido e as mulheres que rodeavam o leito, ergueram para ele as mãos como um gesto de desespero e redobraram o pranto

Não os percebia porém o corsário; seu olhar baço e morno se fitara no vulto da moça e parecia entornar sobre ela toda sua alma, como uma luz que bruxuleia.

Um momento, as pálpebras da menina se ergueram a custo, e os olhos azuis, coalhados em um pasmo glacial, volvendo para o nicho de jacarandá suspenso na parede, cravaram-se na imagem de Nossa Senhora da Glória, mas cerraram-se logo.

Estremeceu Aires, e ficou um instante como alheio a si, e ao que passava em torno.

Lembrava-se do pecado de render ímpia adoração a Maria na imagem de Nossa Senhora da Glória, e via na enfermidade que lhe arrebatava a menina, um castigo de sua culpa.

Pendeu-lhe a cabeça acabrunhada, como se vergasse ao peso da cólera celeste; mas de chofre a ergueu com a resolução de ânimo que o arrojava ao combate, e por sua vez pondo os olhos na imagem de Nossa Senhora da Glória, caiu de joelhos com as mãos erguidas.

- Pequei, Mãe Santíssima, murmurou do fundo d'alma; mas vossa misericórdia é infinita. Salvai-a; por penitência de meu pecado andarei o ano inteiro no mar para não a ver; e quanto trouxer há de ser para as alfaias de vossa capela.

Não- eram proferidas estas palavras, quando estremeceu com um sobressalto nervoso o corpo de Maria da Glória. Entreabriu ela as pálpebras e exalou dos lábios fundo e longo suspiro.

Todos os olhos se fitaram ansiosos no formoso semblante, que ia se corando com uma tênue aura de vida.

- Torna a si! exclamaram as vozes a um tempo.

Ergueu Aires a fronte, duvidando do que ouvia. Os meigos olhos da menina ainda embotados pelas sombras da morte que os tinham roçado, fitaram-se nele; e um sorriso angélico enflorou a rosa desses lábios que pareciam selados para sempre.

- Maria da Glória! bradou o corsário arrastando-se de joelhos para a cabeceira do leito.

Demorou a menina um instante nele o olhar e o sorriso, depois volvendo-os ao nicho, cruzou as mãos ao peito, e balbuciou flebilmente algumas palavras de que apenas se ouviram estas:

- Eu vos rendo graças, minha celeste Madrinha, minha Mãe Santíssima, por me terdes ouvido...

Expirou-lhe a voz nos lábios; outra vez cerraram-se as pálpebras, e descaiu-lhe a cabeça nas almofadas. A donzela dormia um sono plácido e sereno. Passara a crise da enfermidade. Estava salva a menina.
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continua...

Contos do Folclore Brasileiro (A Bota)

 Meus senhores, eu sou a bota
 Meus senhores, eu sou a bota
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou a porta
 Meus senhores, eu sou a porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou a corda
 Meus senhores, eu sou a corda
 Que marre a bota e botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o sebo
 Meus senhores, eu sou o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o rato
 Meus senhores, eu sou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o gato
 Meus senhores, eu sou o gato
 Que comeu o rato, que roeu o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o cachorro
 Meus senhores, eu sou o cachorro
 Que comeu o gato, que matou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o pau
 Meus senhores, eu sou o pau
 Que matou o cachorro, que comeu o gato
 Que matou o rato, que roeu o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o facão
 Meus senhores, eu sou o facão
 Que cortô o pau, que mata o cachorro
 Que comeu o gato, que matou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou a mulher
 Meus senhores, eu sou a mulher
 Que pega o facão, que cortô o pau
 Que matou o cachorro, que comeu o gato
 Que matou o rato, que roeu o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o homem
 Meus senhores, eu sou o homem
 Que vou dar na mulher, que pegou o facão
 Que corto o pau, que mato o cachorro
 Que comeu o gato, que matou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

Fonte:
Lima, Rossini Tavares de. Abecê do folclore. 4ª ed. São Paulo, Ricordi, sd.