quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Victor Hugo (Os Miseráveis)

Os Miseráveis, do escritor francês Victor Hugo, foi escrito em 1862 e é uma narração de caráter social em que o misticismo, a fantasia e a denúncia das injustiças formam uma trama complexa, onde descreve vividamente, ao tempo de condenação, a injustiça social da França do século XIX.

Os Miseráveis é uma obra grandiosa no estilo narrativo e descritivo de Hugo, que esbanja a elegância, a riqueza e o fausto do barroco. Mas o romântico autor transcende os floreios da linguagem recheando essa estrutura estilística de um conteúdo rico e psicologicamente profundo: os movimentos dramáticos da alma humana sacudida por um turbilhão de anseios, sentimentos e emoções. É também grandioso pelos personagens intensos e extremados, figuras humanas que como Jean Vayean e o próprio policial Javert, perseverante, obstinado e frio, vivem sob a égide inabalável de princípios e ideais, a ponto de serem quase que sufocados pelas conseqüências emocionais de seus próprios atos. Os personagens são dotados de uma humanidade que resvala, por vezes para o belo mas também para o bizarro. Os cenários são descritos com riqueza de detalhes que podemos visualizá-los e imaginar que estamos nas cidadelas da França do século XIX ou vivendo a Batalha de Waterloo.

O romance conta a triste história de um homem (Jean Valjean), que, por ver os irmãos passarem fome, rouba um pedaço de pão e é condenado a 5 anos de prisão. Devido às tentativas de fuga e mau comportamento na cadeia, acaba sofrendo outras condenações, pagando 19 anos de reclusão. O livro é uma denúncia contra as injustiças do poder judiciário que vem se repetindo em todas as épocas. Para o autor, o mundo é o terreno onde se defrontam os mitos, o bem e o mal, a bondade e a crueldade.

Jean Valjean - é um homem que vive uma situação de miserabilidade no mesmo período em que Napoleão III (Imperador da França, de 1852 a 1871) aumentara seus gastos com a política externa francesa em busca de glória política. A vida miserável leva-o ao crime, mas se reabilita socialmente quando consegue uma ajuda caridosa. Em certo sentido, Jean é a própria mancha social que os projetos urbanos de Haussmann (Prefeito em Sena, de 1853 a 1870) pretendiam jogar para a periferia, mas que insistia em invadir o centro em horários inoportunos, emergindo literalmente de dentro de si (metáfora dos esgotos de Paris).

Na descrição que Victor Hugo faz da vida do personagem Jean Valjean, podemos observar que há o cuidado de evidenciar as circunstâncias que o levaram ao crime e, portanto, mais do que uma questão de gosto ou preferência pessoal por uma vida irregular, tratava-se de uma situação social que deveria ser encarada francamente pela sociedade em geral e pelas autoridades políticas em particular:

Jean Valjean, de humilde origem camponesa, ficara órfão de pai e mãe ainda pequeno e foi recolhido por uma irmã mais velha, casada e com sete filhos. Enviuvando a irmã, passou a arrimo da família, e assim consumiu a mocidade em trabalhos rudes e mal remunerados (...). Num inverno especialmente rigoroso, perdeu o emprego, e a fome bateu à porta da miserável família. Desesperado, recorreu ao crime: quebrou a vitrina de uma padaria para roubar um pão. (...) Levado aos tribunais por crime de roubo e arrombamento, foi condenado a cinco anos de galés. (...) Mesmo na sua ignorância, tinha consciência de que o castigo que lhe fora imposto era duro demais para a natureza de sua falta e que o pão que roubara para matar a fome de uma família inteira não podia justificar os longos anos de prisão a que tinha sido condenado.

Nota: O clássico Os miseráveis foi chamado de "um dos maiores best-sellers de todos os tempos". Nas 24 horas seguintes à publicação da primeira edição de Paris (1862), as 7 mil cópias foram todas vendidas. O livro foi publicado simultaneamente em Bruxelas, Budapeste, Leipzig (na Alemanha), Madri, Rio de Janeiro, Rotterdam e Varsóvia. Depois, a obra foi traduzida para quase todas as línguas do mundo. No século XX, Os miseráveis se tornou filme e musical da Broadway.

Enredo

No início do século XIX, na França, Jean Valjean rouba um pedaço de pão para os sobrinhos famintos e é injustamente condenado a prisão e a marginalidade. Após cumprir 19 anos de prisão com trabalhos forçados, Jean Valjean é acolhido por um gentil bispo, que lhe dá comida e abrigo. Mas havia tanto rancor na sua alma que no meio da noite ele rouba a prataria e agride seu benfeitor, mas quando Valjean é preso pela polícia com toda aquela prata ele é levado até o bispo, que confirma a história de lhe ter dado a prataria e ainda pergunta por qual motivo ele esqueceu os castiçais, que devem valer pelo menos dois mil francos.

Este gesto extremamente nobre do religioso devolve a fé que aquele homem amargurado tinha perdido.

Após nove anos, com o nome de senhor Madeleine, ele se torna prefeito e principal empresário em uma pequena cidade, mas sua paz acaba quando Javert, um guarda da prisão que segue a lei inflexivelmente, tem praticamente certeza de que o prefeito é o ex-prisioneiro que nunca se apresentou para cumprir as exigências do livramento condicional. A penalidade para esta falta é prisão perpétua, mas ele não consegue provar que o prefeito e Jean Valjean são a mesma pessoa. Neste meio tempo uma das empregadas de Valjean (que tem uma filha que é cuidada por terceiros) é despedida, se vê obrigada a se prostituir e é presa. Seu ex-patrão descobre o que acontecera, usa sua autoridade para libertá-la e a acolhe em sua casa, pois ela está muito doente. Sentindo que ela pode morrer ele promete cuidar da filha, Cosette, mas antes de pegar a criança sente-se obrigado a revelar sua identidade para evitar que um prisioneiro, que acreditavam ser ele, não fosse preso no seu lugar. Deste momento em diante Javert volta a persegui-lo, a mãe da menina morre mas sua filha é resgatada por Valjean, que foge com a menina enquanto é perseguido através dos anos pelo implacável Javert.

O tempo passa e a menina Cosette se apaixona profundamente por Marius, um jovem e carismático revolucionário.

Em plena revolução de 1832, a busca incansável de Jean Valjean pela redenção alcança seu clímax quando ele escolhe sacrificar sua liberdade para salvar o grande amor de Cosette, até que um dia o confronto dos dois inimigos é inevitável, e só então, através da grandeza de seu ato, Jean Valjean se sente verdadeiramente livre da perseguição impiedosa do policial Javert. Valjean teve de lutar muito para mostrar que era um homem de bem e conseguir viver em paz.

Fragmentos do livro

Jean Valjean foi conduzido diante dos tribunais daquele tempo por "roubo e arrombamento durante uma noite numa casa habitada".

Jean Valjean foi declarado culpado. Os termos do código eram categóricos. Nossa civilização tem momentos terríveis: são os momentos em que uma sentença anuncia um naufrágio. Que minuto fúnebre este em que a sociedade se afasta e relega ao mais completo abandono um ser que raciocina!

Começou por julgar a si mesmo. Reconheceu não ser um inocente injustamente punido. Concordou que havia cometido uma ação desesperada e reprovável, que, talvez, se tivesse pedido, não lhe haveriam de recusar o que roubara, que, em último caso deveria confiar na caridade ou no próprio trabalho, que afinal, não era razão suficiente afirmar-se que não pode esperar quando se tem fome.

Era necessário, portanto, ter paciência... porque afinal era absurdo ele, infeliz e mesquinho como era, querer pegar toda uma sociedade pelo pescoço, e ter pensado que é pelo roubo que se foge à miséria, pois é impossível sair-se da miséria pela porta que leva à infâmia. Enfim, ele estava errado.

Depois deve ter perguntado a si mesmo:

Nessa história toda, o erro era só dele? Era igualmente grave o fato de ele, operário, não ter trabalho e não ter pão. Depois de a falta ter sido cometida e confessada, por acaso o castigo não foi por demais feroz e excessivo? Onde haveria mais abuso: da parte da lei, na pena, ou da parte do culpado, no crime? Não haveria excesso de peso em um dos pratos da balança, justamente naquele em que está a expiação? Por que o exagero da pena não apagava completamente o crime, quase que invertendo a situação, substituindo a falta do delinqüente pela da Justiça, fazendo do culpado a vítima, do devedor credor, pondo definitivamente o direito justamente do lado de quem cometeu o furto?

Pode a sociedade humana ter o direito de sacrificar seus membros, ora por sua incompreensível imprevidência, acorrentando indefinidamente um homem entre essa falta e esse excesso, falta de trabalho e excesso de castigo? Não era, talvez, exagero a sociedade tratar desse modo precisamente os seus membros mais mal dotados na repartição dos bens de fortuna, e, conseqüentemente, os mais dignos de atenção?

É próprio das sentenças em que domina a impiedade, isto é, a brutalidade, transformar pouco a pouco, por uma espécie de estúpida transfiguração, um homem em animal, às vezes até em animal feroz. As sucessivas e obstinadas tentativas de evasão, bastariam para provar o estranho trabalho feito pela lei sobre a alma humana. Jean Valjean renovou as fugas, tão inúteis e loucas, toda vez que se apresentou ocasião propícia, sem pensar um pouquinho nas conseqüências, nem nas vãs experiências já feitas. Escapava impiedosamente, como o lobo que encontra a jaula aberta. O instinto lhe dizia: "Salve-se". A razão lhe teria dito: "Fique"! Mas, diante de tentação tão violenta, o raciocínio desaparecia, ficando somente o instinto. Era o animal que agia. Quando era novamente preso, os novos castigos que lhe infligiam só serviam para torná-lo mais sobressaltado.

A história é sempre a mesma. Essas pobres criaturas, carecendo de apoio, de guia, de abrigo, ficam ao léu, quem sabe até, indo cada uma para seu lado, mergulhando na fria bruma que absorve tantos destinos solitários, mornas trevas onde, na sombria marcha do gênero humano desaparecem sucessivamente tantas cabeças desafortunadas.

Fonte:
www.passeiweb.com

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 6

XI

NOVENA

A primeira vez que Maria da Glória saiu da câmara para a varanda, foi uma festa em casa de Duarte de Morais.

Ninguém se cabia de contente com o regozijo de ver a menina outra vez restituída às alegrias da família.

De todos o que mostrava menos era Aires de Lucena, pois por instantes sua feição velava-se com uma nuvem melancólica; mas sabiam os outros que dentro d'alma ninguém maior, nem tamanho júbilo sentira, como ele; e sua tristeza naquele momento era a lembrança do que sofrera vendo a moça a expirar.

Aí estava entre outras pessoas da privança da casa, Antônio de Caminha que se houvera galhardamente na perseguição dos franceses, embora não lograsse capturar a presa a que dera caça.

Não escondia o moço o regozijo que sentia com o restabelecimento daquela a quem já tinha chorado, como perdida para sempre.

Nesse dia revelou Maria da Glória aos pais um segredo que escondia.

- É. tempo de saberem o pai e a mãe que fiz um voto a Nossa Senhora da Glória, e peço sua licença para o cumprir.

- Tu a tens! disse Úrsula.

- Fala; dize o que prometeste! acrescentou Duarte de Morais.

- Uma novena.

- O voto foi para te pôr boa? perguntou a mãe.

Corou a moça e confusa esquivou-se á resposta. Acudiu então Aires que até ali ouvira calado:

- Não se precisa saber o motivo; basta que o voto se fez, para se dever cumprir. Tomo sobre mim o que for preciso para a novena, e não consinto que ninguém mais se encarregue disso; estais ouvindo, Duarte de Morais?

Cuidou Aires desde logo nos aprestos da devoção, e para que se fizesse com o maior aparato, resolveu que a novena seria em uma capela do mosteiro, para a qual se transportaria de seu nicho da escuna a imagem de Nossa Senhora da Glória.

Diversas vezes foi ele com Maria da Glória e Úrsula a uma loja de capelista para se proverem de alfaias com que adornassem a sagrada imagem. O melhor ourives de São Sebastião incumbiu-se de fazer um novo resplendor cravejado de brilhantes, enquanto a menina com suas amigas recamava de alcachofras de ouro um rico manto de brocado verde.

Nestes preparativos consumiam-se os dias, e tão ocupado andava Aires com eles, que não pensava em outra cousa, nem já se lembrava do voto que fizera; passava as horas junto de Maria da Glória, entretendo-se com ela dos adereços da festa, satisfazendo-lhe as mínimas fantasias; essa doce tarefa o absorvia por modo que não lhe sobravam nem pensamentos para mais.

Afinal chegou o dia da novena, que celebrou-se com uma pompa ainda não vista na cidade de São Sebastião. Foi grande a concorrência de devotos que vieram de São Vicente e Itanhaem para assistir à festa.

A todos encantou a formosura de Maria da Glória, que tinha um vestido de riço azul com recamos de prata, e um colar de turquesas com arrecadas de safiras.

Mas suas jóias, de maior preço, as que mais a adornavam, eram as graças de seu meigo semblante que resplandecia com uma auréola celeste.

- Jesus!... exclamou uma velha beata. Podia-se tirar dali, e pô-la no altar que a gente havia de adorá-la como a própria imagem da Senhora da Glória.

Razão, pois, tinha Aires de Lucena, que toda a festa a esteve adorando, sem carecer de altar, e tão absorto, que de todo esqueceu o lugar onde se achava, e o fim que ali o trouxera.

Só quando, terminada a festa, ele saía com a família de Duarte de Morais, acudiu-lhe que não rezara na igreja, nem rendera graças à. Senhora da Glória por cuja milagrosa intercessão escapara a menina da cruel enfermidade.

Era tarde porém; e se passou-lhe pela mente a idéia de tornar à igreja para reparar seu esquecimento, o sorriso de Maria da Glória arrebatou-lhe de novo o espírito naquele enlevo, em que o tivera preso.

Depois da doença da menina dissipara-se o enleio que ela sentia na presença de Aires de Lucena. Agora com a chegada do corsário, em vez de acanhar~e, ao contrário expandia-se a flor de sua graça, e desabrochava em risos, embora roseados pelo pudor.

Uma tarde que passeavam os dous pela ribeira, em companhia de Duarte de Morais e Úrsula, Maria da Glória, vendo embalar-se airosamente sobre as ondas a escuna, soltou um suspiro e vo1tando-se para Lucena, disse-lhe:

- Agora tão cedo não vai ao mar!

- Por quê?

- Deve descansar.

- Somente por isso? perguntou Aires desconsolado.

- E também pelas saudades que deixa aos que lhe querem, e pelos cuidados que nos leva. O pai que diz? Não é assim?

- Certo, filha, que o nosso Aires de Lucena ia tem feito muito pela pátria e pela religião, para dar-nos também aos amigos alguma parte da sua existência.

- Toda vo-la darei doravante; ainda que tenha eu também saudades do mar, das noitadas de bordo, e daquele voar nas asas da borrasca, em que o homem acha-se face a face com a cólera do. céu. Mas, pois. assim o querem, seja feita a vossa vontade.

Estas últimas palavras proferiu-as Aires olhando para a menina.

- Não se pese disso, tornou-lhe ela; que em lhe apertando as saudades, embarcaremos todos na escuna, e iremos correr terras, onde nos levar a graça de Deus e de minha Madrinha.

XII

O MILAGRE

Correram meses, que Aires passou na doce intimidade da família de Duarte de Morais, e no enlevo de sua admiração por Maria da Glória.

Já não era o homem que fora; os prazeres em que outrora se engolfava, de presente os aborrecia, e tinha vergonha da vida dissipada que levara até ali.

Ninguém mais o via por tavolagens e folias, como nos tempos em que parecia sôfrego de consumir a existência.

Agora, se não estava em casa de Duarte de Morais, perto de Maria da Glória, andava pelas ruas a cismar.

Ardia o cavalheiro por abrir seu coração àquela que já era dele senhora, e muitas vezes fora com o propósito de falar-lhe do seu afeto.

Mas na presença da menina o desamparava a resolução que trazia; e sua voz afeita ao comando, e habituada a dominar o rumor da procela e o estrondo dos combates, balbuciava tímida e submissa uma breve saudação.

Era o receio de que a menina voltasse à esquivança de antes, e viesse a tratá-lo com a mesma reserva e acanhamento que tanto o magoava então.

Não se apagara de todo n'alma do corsário a suspeita de ser o afeto de Antônio de Caminha bem acolhido, se não já retribuído, por Maria da Glória.

É certo que a menina tratava agora o primo com afastamento e enleio, que mais se manifestava quando este a enchia de atenções e finezas.

Ora, Aires que se julgava aborrecido por merecer um tratamento semelhante, agora que todas as efusões da gentil menina eram para ele, desconfiava desse acanhamento, que podia encobrir um tímido afeto.

Assim é sempre o coração do homem, a revolver-se no constante ser e não ser em que se escoa a vida humana.

De sair ao mar, era cousa em que Aires já não tocava aos marujos da escuna, que mais ou menos andavam ao corrente do que havia. Se alguém lhes falava de fazerem-se ao largo, respondiam a rir, que o comandante encalhara n'água doce.

Muito tempo já era passado depois de sua última viagem, quando Aires de Lucena, querendo acabar com a incerteza em que vivia, animou-se a dizer à filha adotiva de Duarte de Morais, uma noite ao despedir-se dela:

- Maria da Glória, tenho um segredo para contar-lhe.

O lábio que proferiu estas palavras era trêmulo, e o olhar do cavalheiro retirou-se confuso do semblante da menina.

- Que. segredo é, Senhor Aires? respondeu Maria da Glória também perturba da.

- Amanhã lho direi.

- Olhe lá!

- Prometo.

No dia seguinte por tarde encaminhou-se o corsário para a casa de Duarte de Morais; ia resolvido a declarar-se com Maria da Glória e confessar-lhe o muito que a queria para sua esposa'. e companheira.

Levava o pensamento agitado e o coração inquieto como quem vai decidir de sua sorte. Às vezes apressava o passo, na sofreguidão de chegar; outras o retardava com receio do momento.

À Rua da Misericórdia encontrou-se com um ajuntamento, que o fez parar. No meio da gente via-se um homem idoso, com os cabelos já grisalhos da cabeça e da barba tão longos, que lhe desciam aos peitos e caiam sobre as espáduas.

Caminhava ele, ou antes se arrastava de joelhos, e levava em bandeja de metal um objeto, que tinha figura de mão cortada acima do punho.

Pensou Aires que era esta a cena, muito comum naqueles tempos, do cumprimento solene de uma promessa; e seguiu a procissão com olhar indiferente.

Ao aproximar-se porém o penitente, conheceu com horror que não era um ex-voto de cera, ou milagre, como o chamava o vulgo, o objeto posto em cima da salva; mas a própria mão cortada do braço direito do devoto, que às vezes levantava para o céu o coto mal cicatrizado ainda.

Inquiriu dos que o cercavam a explicação do estranho caso; e não faltou quem lha desse com particularidades que hoje fariam rir.

Tivera o penitente, que era mercador, um panarício na mão direita; e sobreveio-lhe grande inflamação de que resultou a gangrena. No risco de perder a mão, e talvez a vida, valeu-se o homem de São Miguel dos Santos, advogado contra os cancros e tumores,. e prometeu-lhe dar para sua festa o peso em prata do membro enfermo.

Exalçou o Santo a promessa, pois sem mais auxílio de mezinhas, veio o homem a ficar inteiramente são, e no perfeito uso da mão, quando no juízo do físico pelo menos devia ficar aleijado.

Restituído à saúde, o mercador que era muito agarrado ao dinheiro, espantou-se com o peso que lhe haviam tomado do braço enfermo; e achando salgada a quantia, resolveu de esperar pela decisão de certo negócio, de cujos lucros tencionava tirar o preciso para cumprir a promessa.

Um ano decorreu porém sem que o tal negócio se concluísse, e ao cabo desse tempo começou a mão do homem a mirrar, a mirrar, até que ficou de todo seca e rija, como se fora de pedra.

Conhecendo então o mercador que estava sendo castigado por não haver cumprido a promessa, levou sem mais detença a prata que devia ao Santo; mas este já não a quis receber, pois ao amanhecer do outro dia achou atirada à porta da igreja a oferenda que ficara sobre o altar.

O mesmo foi da segunda e terceira vez, até que o mercador vendo que era sem remissão a sua culpa e devia expiá-la, decepou a mão já seca e vinha trazê-la, não só como símbolo do milagre, mas como lembrança do castigo.

Eis o que referiram a Aires de Lucena.
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continua...

Silvinha Meirelles (Se Assim É, Assim Será?)

Tudo era bem normal lá em Santantônio da Lamparina.

As crianças iam para a escola enquanto os pais trabalhavam. Todos riam, se divertiam e às vezes ficavam bem tristes também. Tomavam banho, soltavam pum e tinham coceira no pé; como toda gente em qualquer parte.

Só tinha um detalhe, mínimo, insignificante, que deixava tudo com cara de esquisito e diferente: lá, o dia era escuro como a noite, e quando era noite era noite também.

Os moradores estavam acostumados. Viviam à sombra da Lua, estudavam à luz de abajur, sabiam brincadeiras de escuro: gato-mia; cabra-cega, detetive...

Os mais velhos diziam que lá sempre foi assim e que, se é assim, assim será até o fim; sentiam-se cansados de imaginar como seria viver num lugar claro e diferente. Os mais jovens sonhavam e diziam que conhecer o Sol era o maior desejo que tinham no mundo, no universo.

Um desejo infinito.

Por que ninguém pensava em se mudar dali? Porque lá havia o mais lindo luar e o mais delicioso banho de mar e um povo com um sonho em comum. Às vezes, coisas assim são suficientes para nos fazer ficar.

Num dia noite, chegou um, chegaram dois e mais três ou cinco equilibristas. Era uma família de artistas! Enquanto uns tocavam, os outros faziam lances incríveis, coisa de especialista!

Há muito tempo o vilarejo não recebia visita tão animada. Os equilibristas estavam acostumados a se apresentar até o Sol raiar e estranharam: já se sentiam cansados e nada de o dia clarear.

- O Sol não vai aparecer?

E foi assim que souberam que em Santantônio da Lamparina o dia era tão escuro como a noite e que já estavam acordados fazia dois dias e meio.

- Daí o nome da cidade?

- Daí o nome.

- Mas por que é assim?

- Diz meu avô que o avô dele dizia que o seu tataravô ensinou que é assim porque sempre foi assim e assim será até o fim!

Os artistas acharam aquela explicação meio fraquinha, de quem já cansou de procurar solução. Avisaram que por cinco dias escuros e quatro noites noites treinariam um novo número exclusivo e então voltariam para o espetáculo de despedida!

Voltaram.

Voltaram com o número mais arriscado e sensacional de equilíbrio, coragem e precisão já visto em toda a história da humanidade!

Precisaram de muita concentração. Foram subindo, um sobre o outro e sobre o outro e sobre o outro e o outro sobre ainda... Até que o menino equilibrista mais levinho e muito craque, com o braço bem esticado, atingiu o céu.

Com a ponta do dedo fez um picote. Um pequeno rasgo no céu, por onde passou um facho de luz.

Era mínimo, mas suficiente para iluminar de alegria e expectativa cada santantonio-lamparinense. Podiam saber como era o Sol, a luz e o calor que vinham do céu.

Devagar o rasgo foi aumentando, sozinho; como furo de meia velha, que vai crescendo até virar um rombo...

E um dia, Santantônio da Lamparina amanheceu toda e completamente iluminada! Os moradores, que nem tinham venezianas e cortinas, acordaram sobressaltados com tanta luz.

Festejaram até o Sol raiar outra vez.

Até hoje, não se cansam de ver o Sol nascer e depois o Sol se pôr e de novo o Sol nascer e mais uma vez o Sol se pôr. Acham graça, agradecidos.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Soares de Passos (Imitação do Islandês)

Um dia eu te dizia: – se roubada
Me fores, vem buscar-me – e tu não crias
Que eu pudesse abraçar-te inanimada,
Beijar teus olhos, tuas mãos já frias.

Mas eu não te amaria, se inconstante
Te pudesse esquecer na sepultura;
Desbotou-se o frescor de teu semblante,
Mas inda adoro tua imagem pura.

Apagou-se em teus lábios o ar da vida,
Mas um sopro imortal veio animar-te;
E tu inda és formosa, inda és querida
Ao que na terra começou a amar-te.

Não me deixes em mísero abandono;
Escuta ao longe, escuta a minha prece:
Quando uma noite a viração do outono
Gemer em nossas rochas, aparece!

E se a lua brilhar, se de passagem
Me estenderes a mão d'etérea alvura,
Eu surgirei por ver a tua imagem,
Por ouvir tua voz serena e pura.

Depois, anjo celeste, no meu seio
Repousa a fronte, aperta-me em teus braços;
Deixa que eu te acompanhe sem receio,
Desta existência desatando os laços.

Sobre a aurora do pólo arrebatados
Vamos, no seio d'imortais venturas,
Em nuvens d'ouro e púrpura embalados,
Cantar, sonhar, dormir nessas alturas.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Contos do Folclore Brasileiro (A Morte de Dom Ratinho)

Dom Ratinho morreu
 Dona Carochinha chorou
 A porta abriu e fechou
 A laranjeira desfolhou-se
 O passarinho depenou-se
 O cavalo perdeu o pelo
 O boi perdeu o chifre
 O rio secou a água
 O menino quebrou o pote
 E o mestre passou-lhe bolos
 O que tendes minha porta
 Perguntou a laranjeira
 Que estais abrindo e fechando?
 Pois não, minha laranjeira:
 Dom Ratinho morreu
 Dona Carochinha chorou
 A porta abriu e fechou...
 E responde a laranjeira:
 E eu também de sentimento
 Deixo cair minhas folhas
 Vem o passarinho e pergunta:
 O que tendes, laranjeira
 Que estais tão desfolhada?
 Pois não, meu passarinho
 Dom Ratinho morreu
 Dona Carochinha chorou
 A porta abriu e fechou
 E eu assim me desfolhei
 Respondeu o passarinho:
 E eu também de sentimento
 Deixarei as minhas penas
 Vem o cavalo e perguntou:
 O que tendes laranjeira
 Qu’inda ontem tão folhada
 E hoje tão desfolhada?
 E por que não, meu cavalo?
 Dom Ratinho morreu
 Dona Carochinha chorou
 A porta abriu e fechou
 A laranjeira desfolhou-se
 E o passarinho depenou-se
 Responde agora o cavalo:
 E eu também de sentimento
 Deixo cair o meu pelo
 Vem o boi e pergunta:
 O que tendes laranjeira
 Que estais tão desfolhada?
 E por que não, meu boi
 Dom Ratinho morreu
 Dona Carochinha chorou
 A porta abriu e fechou
 A laranjeira desfolhou-se
 E o passarinho depenou-se
 E o cavalo perdeu o pelo
 Respondeu então o boi:
 E eu também de sentimento
 Deixo cair o meu chifre
 Passa o rio e pergunta:
 O que tendes laranjeira
 Que estais tão desfolhada?
 E ela responde ao rio:
 Dom Ratinho morreu
 Dona Carochinha chorou
 A porta abriu e fechou
 A laranjeira desfolhou-se
 O passarinho depenou-se
 O cavalo perdeu o pelo
 E o boi perdeu o chifre
 Respondeu então o rio:
 E eu também de sentimento
 Secarei as minhas águas
 Vem o menino buscar água
 E não a vendo isto pergunta:
 O que tendes belo rio
 Que ainda ontem tão cheio
 E hoje assim tão sequinho?
 E o rio respondeu:
 Por que não, caro menino?
 Dom Ratinho morreu
 Dona Carochinha chorou
 A porta abriu e fechou
 A laranjeira desfolhou-se
 O passarinho depenou-se
 O cavalo perdeu o pelo
 O boi perdeu o chifre
 E o rio secou as águas
 Responde então o menino:
 E eu também de sentimento
 O meno pote vou quebrar
 Chega o menino à escola
 E não levando o pote d’água
 Por ele pergunta o mestre
 E o menino assim responde:
 Dom Ratinho morreu
 Dona Carochinha chorou
 A porta abriu e fechou
 A laranjeira desfolhou-se
 O passarinho depenou-se
 O cavalo perdeu o pelo
 O boi perdeu o chifre
 E o rio secou as águas
 E eu quebrei o meu pote
 Então respondeu o mestre
 Cheio de raiva e rancor:
 E eu também de sentimento
 Lasco-lhe as mãos de bolos

Fonte:
Costa, F. A. Pereira da. Folk-lore pernambucano. Recife, Arquivo Público Estadual, 1974.

Qorpo Santo (Um Parto)

Comédia em 3 atos.

PERSONAGENS

Cario
Florberta
Melquíades
Guindaste
Galante
Ruibarbo
Uma mulher
Uma criada
Uma voz


ATO PRIMEIRO

CENA I


Cário — (assentado a uma mesa, provando algumas leves comidinhas) O sábio o beija, o néscio arqueja! Por que será que isto se dá!? Eu sei: Aquele viveu em Deus, com Deus, por Deus e para Deus; este, no diabo, com o diabo, pelo diabo e para o diabo! Eu me explico. Um é observador e cumpridor da Lei que por aquele lhe foi dada, e por Nosso Senhor Jesus Cristo — acrescentada. O outro, é cruel perseguidor de seus sectários... Ou daqueles que fiéis a observam, respeitam, veneram. Eis porque, repito — quando Deus fala, o sábio se ri e se cala; o néscio teme e se abala. Ou, aquele se enche de prazer; este de medo vê-se tremer! Passando, porém da religião a estas cousas que agora como, não sei o que me parecem estas comidinhas. Dão-se fatos a seu respeito; uns que me encantam, outros que me admiram; alguns que me enojam, muitos que aborrecem, diversos ou vários que me repugnam, milhares que me indignam; inúmeros para os quais não há explicação nem qualificação exata, possível... Quantas cousas me falaram hoje, ora pelo sono, ora pela forma, ora pelo gosto, ora pela espécie, ora pela cor, e também pelo sabor! Vejo que (pegando em uma estrelinha de massa) ninguém deve comer estrelas, mas estrelas de carne ou de fogo! Como, porém estas são de massa, é de crer que mal me não façam (Come uma. Pegando em outra, tira uma dentada, e a deixa quase pelo meio; olhando para ela:) Parece-me uma coroa! Não comerei. Guardarei (Põe no prato.) Pelo gosto (provando outra), cheiro e sabor, dir-se-á que — envenenada está.
Poremos também a um lado. Acho esta bebida (bebendo um cálix de vinho), com quanto espírito, assaz fraca, ou como amolecida. É cousa que também não me agrada. Não beberei mais deste liquido: veremos algum mais forte, e por isso mesmo para mim — melhor. Quê! (pegando em outro pedacinho de massa) Isto é imagem de um turíbulo! Não comerei. Esta, de uma naveta, (pegando outra) também não quero! Provarei esta fatia. (Corta dois ou três pedacinhos, e come.) Que tal? É sempre igual.

(Levantando-se um pouco.) Eis a barretinha de um soldado, que ofendido ou maltratado em seus brios ou dignidade, na Vila Nova do velho Triunfo, por um seu capitão, em princípios da infausta, nefanda, prejudicial e mais que indigna revolução de 1835, teve a precisa coragem para salvar sua honra e dignidade; para dar um imitável exemplo a seus camaradas; para meter um dedo do pé no pinguelo da espingarda, encostar a boca desta no peito em frente ao coração, e disparar assim estrondoso tiro, que o transportou instantaneamente à presença do Eterno. Feliz soldado, era de um batalhão cujo título ou número não me lembro; suponho que paraense, e em o qual havia um capitão com o nome — Chaguinhas, de péssima fama — que julgo muito pouco tempo durou, bem como a maior parte desse corpo de infantaria, destruída quase toda — poucos dias depois pelos generais Neto e Canabarro. Estes corações (pegando em um coração) enchem-me de benções; não os quero; estou deles assaz farto. A estes gozos preferiria a companhia, que traz alegria... (Olhando com atenção para um sinal em uma mesa.) Este sinal é feito por um pingo de espermacete; isto, porém não é o que admiro: uma cabeça perfeita, um nariz afilado, com uma cara completa, queixo, barbas, um boné igual ao de um oficial francês ou alemão que há tempos vi, e até com um penacho — é o que realmente para mim não direi mais que admirável, mas algum tanto espantoso... Enfim, paremos com isto: são horas de dormir; vamos deitar-nos. (Levanta-se, dá alguns passos e encosta-se a um sofá, cama, ou cadeira de balanço.)

CENA II

Cário — (levantando-se.) Estou satisfazendo o desejo, ou cumprindo o projeto que fiz de ir viajar à Europa, e de lá, cheio de ciência, voltar a derramar sobre Os meus comprovincianos, compatriotas, e mais habitantes do Império Brasileiro. Está se servindo Deus de mim para punição de uns e prêmio de outros. Não me convém, não devo escrever sobre os mortos, ou fazer nênias. Convém-me mais passear, que estar em casa; passeando, me entretenho; me divirto; e fortifico; em casa me enfraqueço, e sempre apeteço... Fora, não necessito trabalhar, mas apenas conversar: em casa não posso deixar de o fazer sem cessar... Ao homem convém caminhar, falar, pular, dançar, palrar e o exercício de mais de um milhão de verbos acabados em ar, ar, ar, ar, etc. etc. etc. etc. Como é difícil, e tantas vezes impossível, a conciliação de interesses opostos! Sente-se uma necessidade; é-se instado por um desejo; procura-se satisfazê-lo; encontra-se uma dificuldade...
Alguém geme, alguém chora, que nos dói, que nos estorva. Mas por que lamentar? Se necessário, vençamos; ou sigamos os impulsos de nossa inteligência; os conselhos de nosso coração; ou os conselhos daquela, e os impulsos deste.
Façamos algum sacrifício, visto que ninguém (é de conjecturar) há que viva sem os fazer. É preciso fortalecermo-nos; é preciso não fraquecermo-nos. Se eu atendesse, direi neste momento, aos desejos que tive (depois de haver passeado e meditado algum tempo zangado), teria escangalhado, talvez destruído ou inutilizado um baluarte, cujas forças já me não convém conservar. Se, porém lhe presto muito atenção, se me penalizo de seu sofrer, do que se me representa à imaginação, terei de viver qual preso em cadeia. Enquanto, pois não tenho emprego, mais que o de compositor, preciso me é buscar por toda a parte, onde houver melhor, ou mais me agradar — aquilo que me falta e de que mais careço. (Olhando para o ar.) O baluarte sibila! Não prestar-te-ei pois mais atenção, enquanto de longe me falar teu coração! Assim triunfou (triunfarei eu também de ti) um de meus amigos — de igual impertinência — só útil n'aparência! (Pega o chapéu e sai.).

CENA III

Florberta — Que força tem o destino! Umas vezes cruel e destruidor como o raio ou a tempestade; em outras vezes tão benigno como o amor ou a saudade!

(Canta:)

Às vezes é tão cruel
O bárbaro, feroz destino,
Como horrosa tempestade,
Ou o raio destruidor

Em outras mais que fiel,
Tão amigo, tão benino,
Nos enche de flicidade,
De gratidão, e de amor.

Os malvados (atravessando o cenário depois que profere cada um período) estão sempre condenados. Quem estará por ai se assoando, que tanto me está enjoando! A Ciência, o ouro e a água são cousas que quanto mais abundam, menos param ou mais velozes necessitam correr. Quando sinto-me menos forte, ou temos destruição, ou é morte. Quando o Estado carece para sustentar-se ou progressar — de uma parte de nossos serviços é justo que lhes prestamos, bem como que este, uma parte de seus benefícios a nós quando d'Ele carecemos. É com esta reciprocidade de atenções, de benefícios, de amparo — que os Estados e os súditos seus — conservam e prosperam. Se eu tivesse disposição de escrever sobre relações naturais, diria que ainda hoje o chá que tomei levou-me à presença de alguém, de quem ouvi a mais tremenda descompostura!... Servir-me-á, se pudermos continuar a escrever comédias, para uma bela cena de algum dos Atos; mesmo para começo, parece excelente. Não foi nada menos que o seguinte: Bati por duas vezes em uma porta, ouvi mandar a pessoa a quem buscava abrir a porta; como se demorava o criado, empurrei-a, e entrei; a pessoa era muito minha conhecida, e de baixa esfera.
Quereis saber o que ouvi dela? Eis: A Sra. é muito atrevida! Teve a audácia de entrar em minha casa sem que eu fosse abrir-lhe a porta! Pensa que esta casa é casa de prostitutos? Está muito enganada! Retire-se; e se está louca, vá para a Caridade! Quereis saber o que lhe respondi? Eu vô-lo digo. Eis: "Não se incomode, Sr. Bem sabe que não é a primeira vez que eu venho à sua casa. Foi-me necessário á vir hoje; desculpe portanto: se a minha presença não lhe agrada, eu me retiro. E retirei-me, sem mais cumprimentos. Fui, entretanto, opostamente, recebida por pessoas da mesma casa, que para tal não tinha dever com o maior afeto possível; notando em seus semblantes o maior desprazer pela grosseria estúpida daquele que devia-me prestar atenção. Há de entretanto servir para algum fim útil.

CENA IV

Casto — (entrando) Que mania de mil diabos! Querem por força que eu viva amigado — sem que isso possa ser! Sim! Irra, irra! (Sacudindo os braços.) O diabo que satisfaça semelhante gente! Hei de mandar à olaria fazer de propósito uma mulher para com ela me ligar sem o preenchimento das formalidades religiosas... E, pobre, — não me serve! Há de ser rica, formosa, e asseada; senão, nem assim combino, me combino... Ou... Concubino! Tri, tri, tri...

(Faz duas ou três piroletas,tocando castanholas, e sai aos pulinhos...

Cário — (depois que entra) Como se transtornam as cousas deste mundo! Quando  pensaria eu que indo à casa de um médico fazer uma ligeira visita, havia de transtornar uma comédia!? Quanto é preciso ao homem que se dedica a composições intelectuais, ter regime certo ou invariável! Uma visita transtornou uma comédia; qualquer ação obsta à conclusão do mais importante trabalho. Quão bem foi começada esta comédia, e quão mal acabada vai! Já nem posso chamar a isto mais comédia... Enfim, vereis se posso concertar minhas idéias, e prosseguir então.

(Sai.)

ATO SEGUNDO

Quarto de estudantes

CENA I
Melquíades, Guindaste, Galante e Ruibarbo.

Melquíades — (deitado) Fiu! fiu! (Assoviando.) Não está: tão cedo já sairia a passeio!? Quem sabe! Talvez; pode muito bem ser. (Torna a chamar:) — Maria! Joana! Teresa! Antônia! Joaquina! Michatas! (Pausa.) Que diabo! Não aparece nenhuma das criadas. Ainda estarão dormindo. Que judias! São (abrindo o relógio) nove horas do dia, cinco da tarde, duas da noite, seis da madrugada, e ainda dormem!

— É muito, muitíssimo grande, (figurando com as mãos o tamanho) grandíssimo dormir! — Manuel! Antônio! Mercúrio! Ninguém fala; está tudo em silêncio... Em silêncio profundo!... Profundíssimo! Pois — Résquiés d'impace nas catacumbas do cemitério do Corpo-santo na cidade do Porto, Portugal dos portugueses — para vocês todos! Que os levem 30.000 diabos e demônios para os mais fundos infernos lá do outro mundo: pois cá nos deste ainda vocês me poderiam incomodar!

Guindaste — (calçando as meias) Há três dias que ando incomodado; ora do estômago, ora dos intestinos, ora das barrigas... Ah! São duas, é plural — das pernas e da cabeça; e ainda esta noite passei uma noite horrível. Não sei que é isto! Até as águas-da-colônia que sempre me serviram de remédio para estes males, desgraçadamente hoje parece que hão produzido os efeitos contrários!...

Galante — Que diabo terei eu nestas cabeças (Tirando o barrete com que havia dormido.) Parece que tem espinhos! Ora picam-me as pernas, ora as coxas e até na cintura me importunam, ou me ferem. Safa! (Tirando a calça.) O que havia de ser? (Pegando em um carrapicho e mostrando.) Um carrapicho!... Malditas lavadeiras, que parece de propósito para o mais lanoso entretimento dos néscios fregueses — porem na roupa estes espinhos! (Atirando-o.) Lá vai, lavadeira de roupa, vê se o engoles pelo nariz.

Ruibarbo — (andando) Como as lavadeiras não te hão de fazer dessas, se tu não lhes pagas a lavagem e o engomado da roupa — como elas desejam!

Galante — Essa é boa! Essa é bem boa! Essa ainda é melhor!... Ainda ontem paguei seis mil e tantos réis, e dizes que eu não pago!?

Ruibarbo — Mas não é assim que elas querem!...

Galante — Pois de outro modo, não sei. Não o entendo. Eu sou inglês, e inglês de muito boas raças! Portanto não vivo... Vivo de mistérios.

Ruibarbo — Pois és um tolo. Estuda a lavadeira, faz- lhe elogios, mostra-te a ela afeiçoado, e verás como ela te trata, te lava, te goma admiravelmente!

Melquíades — (para Galante) Que hei de eu estudar hoje?

Galante — Estuda disciplina.

Melquíades — Assim eu sou tolo!

Ruibarbo — Pois ainda pensas em estudos, depois de velho, com a prática dos homens, e mesmo das mulheres!?

Melquíades — Que queres? Nasci mais para estudar que para vadiar!

Galante — És um pateta! Com as disciplinas escangalhavas tudo. Triunfavas dos amigos e dos inimigos! Sem elas, não sei como te haverás; quer com uns, quer com outros! Enfim tu lá sabes.

Melquíades — Estou me resolvendo um dia a atirar com os livros ás ventas dos mestres. Com os temas às dos lentes! E finalmente, com as botas às dos criados!
(Pega nestas, atira nos companheiros e sai.)

Guindaste — É bem atrevido este meu sogro!

Galante — (para Guindaste) Pois tu és casado!? Ainda agora é que sei! Pois o Melquíades já tinha filhas moças!? Ainda mais esta — estudante casado e com filhos!

Guindaste — Se o não sou, ainda hei de ser. Se as não tem, ainda há de ter. E por isso se ainda o não sou, em breve hei de ser, e posso, portanto desde já il~o tratando de sogro.

Galante — És o primeiro calculista do Mundo!

Ruibarbo — Vocês querem passar o dia de hoje em conversa!? Não querem estudar, pensar, meditar sobre o que há de extraordinário da Revolução Francesa, livro mais que todos apreciável pela grande exemplar lição que transmite à humanidade!

Melquíades — (chegando à porta do dormitório com boa porção de livras em baixo do braço esquerdo, muito apressado.) Vamos para as aulas! São horas! Se se demoram, perdem a lição de hoje! Andem! Andem! Saiam! Venham!

(Guindaste e Galante pegam em vários livros, dão duas voltas e saem.)

Guindaste — (arrumando a cama) Vão indo que eu já vou!

Galante — Não te demores, que eu preciso de ti!

Ruibarbo — Sim; sim. Vão indo; eu lá irei logo! (Saem.) Estes meus colegas são o diabo em figura de homens, ou de rapazes! Tudo desarrumam! É preciso uma... não: paciência de Jó, ou de algum outro Santo para aturá-los! Enfim, (depois de todo o quarto arrumado) é preciso aturá-los! É melhor que andar com eles aos tombos, puxões ou cabeçadas.
(Pega em um livro.) São horas, vou às minhas lições de Retórica! E logo continuarei a escrever a minha encantadora comédia — a Ilustríssima Senhora Dona Anália de Campos Leão Carolina dos Santos Beltrão Josefina Maria Leitão História das Dores Patão, ou Bulhão, etc. etc. Dizem os médicos, e confirmam os lógicos: As cousas que têm de trabalhar, apertadas, não poderão fazer tão bom serviço como — desembaraçadas; e eu o creio pia e firmemente. Exemplifiquemos com os próprios homens e seus órgãos. Suponha-se que estão a trabalhar em uma sala vinte pessoas, e que na mesma não o podem fazer livre ou desembaraçadamente mais que dez ou doze. Pergunto: seu serviço, obra, ou trabalho, sairá tão perfeito, como se trabalhassem aqueles que — bem — só o podiam fazer? É de crer que não. Outro: Temos órgãos — da vista, do ouvido, do olfato, que por certo oprimidos, ninguém dirá que — bem funcionam. Assim, pois devem ser os do nosso estômago, intestinos, etc. Apertados, não poderão funcionar, transformar ou digerir os alimentos ou cousas de que nos alimentamos, com aquela facilidade com que o fazem ou devem fazer não opressos ou desembaraçados. Se aperto os meus dedos, não posso escrever, nem com a mão cousa alguma fazer! Se, porém esta está desembaraçada, com ela faço o que quero, ou o que posso. Logo — não convém a opressão; se se quer trabalho abundante e perfeito!

CENA II

Melquíades — (entrando, atrás Guindaste, e após este, Galante. O primeiro com muito desembaraço, e atirando com os livros com estouvamento, quer de gesto, quer de palavras) Ó Ruibarbo, não foste hoje à lição!? És o diabo em figura de estudante! Pois sabe que eu fui, vim e estou aqui! Pus por terra todos os troianos! Foi o lado que hoje perdeu nas sabatinas o mais vergonhosamente que é possível. Nem a batalha que inutilizou Napoleão I; nem as melhores vencidas por Alexandre o Grande; nem finalmente a em que César destruiu Pompeu — se podem comparar à que hoje venci dos nossos amigos Paraguaios!

Ruibarbo — Pois eu declaro-vos que não fui à aula! E se quiserem saber o porquê, dir-vos-ei: — Primeiro, porque não quis. Segundo, porque estou ocupado com algumas lições de Medicina. Terceiro, porque vocês são pouco cuidadosos de nosso quarto, e eu não posso tolerar porcaria, desarrumação, etc. Quarto, porque...

Melquíades — (com muita desenvoltura, assentando-se em outro lugar, ou mudando de assunto) Já sei, já sei. Tu és um estudante privilegiado. Tens até um breve do Papa. Quando te apertam fora da Igreja, entras para a Igreja, e quando te aborreces muito desta, safas-te com a maior sem-cerimônia! (Batendo-lhe no ombro.) És muito feliz, felicíssimo mesmo. (Os outros: cada qual acomoda seus livros e senta-se).

Melquíades — (pegando em um papel, em que Ruibarbo havia escrito) Oh! Este Ruibarbo, quanto mais estuda, menos aprende! Pois ele ainda suprime letras quando escreve!

Ruibarbo — Doutor! Você não vê que quando assim procedo faço um grande bem ao Estado!?

Melquíades — Geral bem!?

Galante — São cousas do Ruibarbo! Tudo quanto ele faz diferente de outros homens, sempre protesta ser por fazer bem, ou por conveniência do Estado. Não é mau modo de se fazer o que se quer! É uma capa maior que a de Satanás! É uma espécie de Céu que ele tem, com que costuma abrir a terra!

Ruibarbo — Eu me explico: Quando escrevo, penso, e procuro conhecer o que é necessário, e o que não é; e assim como, quando me é necessário gastar cinco, por exemplo, não gasto seis, nem duas vezes cinco; assim também quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império do Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um por cima do outro!? Que homem, duas calças!? Quem põe dois chapéus para cobrir uma só cabeça!? Quem usará ou que militar trará à cinta duas espadas! Eis por que também muitas vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a razão é — assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos importemos com as origens!

Melquíades — Enquanto passares bem assim, continua; mas logo que te deres mal, é melhor seguir a opinião geral. (Ouve-se tocar a sineta, que convida a jantar; aos saltos; pondo as mãos na cabeça; e outras extravagâncias.) São horas! São horas!
(Puxa Ruibarbo.) Vamos! (Este se deixa estar assentado. Puxa outro; convida; salta; pula; pega em um rebenque.) Ah! Vocês até para comer têm preguiça!? (Dá uma pancada com o chicote sobre urna mesa, os outros saltam ligeiramente à porta; e saem todos.).

Ruibarbo (atrás.) O Melquíades hoje está limpo, lavado, engomado, escovado, e penteado!

Galante — Ele triunfou dos Paraguaios! É preciso obedecê-lo!

Guindaste — Eu o faço para tal fim, com muito prazer!

ATO TERCEIRO

CENA I


Uma Mulher — (muito atenta, ouvindo alguns gemidos) Quem gemera? Quem estará doente? Será minha avó, ou meu avô!? Sabe-o Deus; eu apenas desconfio, e nada posso afirmar! Entretanto, convém indagar. (Aproxima-se de uma porta, escuta, e volta.) Ah! Quem há de ser? (Arrastando.) É a cabritinha de minha avó, tia, e irmã, que acaba de parir três cabritos. Ei-los (Atira-os ao cenário.)

Melquíades — (entrando.) Oh! Que espetáculo é este! Cabritos em meu quarto de dormir! Oh! Mulher, donde veio isto!?

A Mulher — Ora, de onde havia de vir! Boa pergunta! O Sr. não sabe que seus avós têm o luxo de criar cabras!? E que criando-as por força hão de parir!?

Melquíades — Que têm parido, e hão de parir, sei eu muito bem! Mas o que me espanta é que a parição, parto, ou como quiserem chamar, tivesse lugar em meu quarto de dormir! É isto o que assaz me admira!

A Mulher — Não foi aqui; mas eu ouvi gemer, e cuidei que era sua avó ou seu avô; fui ver; encontrei-os; trouxe-os; e aqui estão!

Melquíades — Pois bem; agora vá preparar um para a ceia.

A Mulher — (cheia de nojo) Eu, fazer? Deus me livre! Isto tem um cheiro... Seria preciso, para se poder comer, pôr de molho três dias em alho, cebola, vinagre e cuentro.

Melquíades — Pois então, (muito zangado) tire-me daqui estas porcarias, que já me estão causando nojo! Anda! Anda! Tira isto daqui!

Uma Criada — (puxando a cabra pelos chifres) Vem, vem, vem cá, cabritinha, cabritinha!

Melquíades — Isto está demorando muito! (Dá um pontapé na cabra, que a atira; os cabritos esforçam-se por correr, ele pega em um, e esfrega na cara da criada.) Que tal, Sra. D. Nojenta! Cheira ou fede?

Criada — Nunca gostei destas graças! (Larga a cabra e sai.)

CENA II

(Entram Ruibarbo,Galante e Guindaste)

Ruibarbo — Isto é admirável! Gatos ensopados pelo soalho derramados!

Galante — Ensopados! (Reparando com muita atenção.) Só se o foram na barriga da mãe! Oh! E não me enganei; ei-la (Apontando para a cabra.)

Guindaste — Vocês são os mais extravagantes estudantes que eu tenho conhecido. Se fôssemos de Medicina, que bom estava para desenojar, mas somos de Direito, não nos pode aproveitar! O que é mais interessante é a lembrança de que estavam ensopados, achando-se em pé, e em estado de perfeição.

Ruibarbo — Não admira! Bem perfeitos são os animais, e as aves cheias, entretanto não estão vivas.

Guindaste — Mas não se diz que crê que foram ensopadas.

Ruibarbo — Sim, Sr... Mas quem não poderia dizer que estivessem assados?

Galante — Ainda vocês ignoram uma cousa: Sabem o que é? É que o nosso amigo Melquíades deu esta lição à criada, que tão pacificamente e bem sempre nos serve — esfregou-lhe com um destes cabritos: cara, boca, nariz, olhos, e não sei que mais — saiu daqui tão enjoada, que não corria; qual águia; voava; ou ia qual avestruz avoada!

Melquíades — Sabem o que mais?... Eu não quero estar vendo aqui estas imundícies! (Chamando.) Rigoleto! Rigoleto!

Uma Voz — Não está! Peguem vocês cada uma no seu, e os ponham longe daqui!

Guindaste — (para os outros) É mesmo, isto é muito enjoativo! Nem eu posso abrir um livro com eles diante de mim. Pega no teu, Galante! Ruibarbo, leva o outro!
(Pega cada um no seu e os põe fora de cena).

Ruibarbo — (para os outros) Não há remédio, senão aturá-los.

Melquíades — E eu que o diga! Mas, que faremos nós aqui metidos? Não era melhor que fôssemos passear, ver as moças, e também algumas velhas? Hem? Hem? Falem, que estou desesperado! Come-me hoje este corpo; sinto nele tal coisa... Certo prurido... E não sei que mais — que não posso estar parado um momento!

Ruibarbo — Cruzes! Contigo, Melquíades.

Melquíades — Comigo — não quero cruzes! Mas, se for algum cruzeiro, ainda poderei aceitar. Quanto a cruzes, bastam estas (apontando para os livros) que aqui vedes.

Galante — Pois eu quero tudo: cruzes, cruzeiros, cruzados, cruzinhas, cruzadas, e tudo o mais que me oferecem, e que eu posso gozar sem perder!

Guindaste — Sem perder, não, Galante. Sem padecer ou sofrer, sim! Por força que gozando…

Galante — Não sabes o que dizes: há homens que quanto mais gozam, mais ganham! Portanto, avancei uma proposição as mais das vezes verdadeira, inda que algumas vezes falível.

Melquíades — Sabem o que convém — e me entretém? Passear, conversar, ver as moças. (Pegando o chapéu.) Os que me quiserem acompanhar, sigam-me! Vamos, vamos todos! (Puxa um, puxa outro; nenhum quer sair; ele pega na bengala e sai.).

Guindaste (para Galante:) Este Melquíades mudou completamente! Passou de estudante ao mais extravagante do seu século. Cruzes! Abrenúncio! Está atrevido como o diabo!

Ruibarbo — Isto é porque ele fez anos hoje! Amanhã…

Guindaste — Então diga-me isso! Eu logo vi.

Melquíades — (entrando, passados alguns minutos) Já sabem, rapazes — que passeei, andei, virei, mexi, e revolvi. E que nada resolvi sobre o que buscava e o que vi! Pois é verdade, e tão certo como o Carneiro de Cão estar com os olhos abertos. (Aponta para Galante.) E apenas duas cousas aprendi, ou dois pensamentos colhi! Primeiro, que há dois modos de viver em sociedade; um de que só se freqüenta mulheres de certa classe, a casas de jogo, etc.; outro em que olha–se com grande indiferença para tudo isto, e até muitas vezes com repugnância e só se freqüenta casas de família, ou gente de classe mais alta, ou mais distinta! Há também esta diferença, e é que os que querem ser verdadeiros constitucionais, e não têm família, isto é — não são casados, ou sendo não vivem com suas mulheres, são forçados a freqüentar aquelas; e os que nenhum caso fazem da Constituição, e os que mais e melhor gozam! Já vêem, portanto que não perdi o tempo.

Guindaste — (para Galante e Ruibarbo:) Sempre o nosso Pai dá provas de que ainda é estudante! Sempre nos traz alguma cousa... Descobertas de cousas que ignorávamos colhidas de suas experiências filosóficas! E com isso faz também de Lente, pois leciona-nos.

Melquíades — A outra verdade, ou o outro fato, é que muitas vezes isto provém de comermos dos hotéis, ou de mandarmos fazer as comidas em nossas próprias casas! Aquelas nos conduzem às primeiras; ordinariamente estas as mais das vezes às segundas! Contudo, há nesta regra numerosas exceções, e é também conforme são os hotéis. Notai bem que muitas vezes se observa uma verdadeira confusão. O que, porém é indubitável, é que as comidas e as bebidas nos conduzem a este ou àquele trabalho, a esta ou àquela casa, a este ou àquele indivíduo, a este ou àquele negócio! Podem até conduzir-nos a um crime! Como o podem fazer, e muitas vezes o fazem, a um ato de virtude, a uma ação heróica, a uma ação vil ou indigna.
(Continuando.) Sinto às vezes certo estreitamento no canal que conduz ao estômago. Tenho querido atribuir à falta de certo ato... Mas ao mesmo tempo lembra-me que as crianças, os velhos, as velhas, os doentes, os que viajam pelas campanhas, os que estão em guerra — não praticam tais atos, entretanto sei de muitos que padecem igual incômodo. Consequentemente devemos crer que a razão principal não é essa. Talvez provenha das qualidades dos próprios líquidos e das carnes de que nos alimentamos, e até das casas em que moramos, e mesmo das pessoas que nos servem, ou a quem mais praticamos. Meninos! Quero contar-vos mais uma verdade médica por mim descoberta hoje; e é — que é sempre um mal que incomoda, sair por cima o que deve sair por baixo! Se soubésseis quanto me...
Que desagradável efeito me produz algumas vezes o cuspir! Se ao menos eqüivaler ao que escrevo, ou ser substituído pelos pensamentos! Mas quê! Tenho experimentado, e sempre acho desagrado. — Outra descoberta: Certa pessoa até certo tempo — não podia passar, quando comia ou bebia alguma cousa, sem procurar uma pessoa, que se parecesse com o objeto ou cousa, de que se servia; entretanto em um dia — o que havia de pensar, de que se havia de convencer: — que devia proceder de modo diametralmente oposto, isto é, que quando tomasse chá, por exemplo, não devia para isso como antes procurar pessoas que tivessem essa cor: e assim a outros preceitos! Acho, porém bonito que pratiquemos, ou procedamos — se isso nos não causar algum desgosto — conforme esta nos aconselham; ainda que só espiritualmente, o que se faz de milhares de modos.
Meninos! Vou descansar! (Deita-se; e enrola-se no cobertor. Para os companheiros
de quarto:) Se alguém me procurar, dizei-lhe que durmo!

Ruibarbo — Galante, que te parece o nosso Pai Melquíades!? É um homem divino! É o maior sábio do Universo! Valente como os mais valentes, ativo como o sol, amável como a mais amável Princesa, interessante como o firmamento, bom como o melhor dos Pais.

Galante — Tu não te enganas, mas esqueceste acrescentar — extravagante e desenvolto, às vezes, como uma provocadora cobrinha!

Guindaste — E para prova de tudo isto, vejam o que ele fez hoje: saltou; pulou; dançou; fez o diabo, como estudante! Depois aconselhou, ensinou, pregou, fez-se santo, como Filósofo! Ultimamente, relampagou, iluminou como rei! E agora, como acabam de ver, atirou-se naquela cama, como um cansado estudante; ou qualquer outro ente de vida pouco séria, e bruscamente no cobertor se enrolou.

Melquíades — (levantando-se rapidamente e atirando o cobertor à cara dos companheiros e discípulos) Nem todos os momentos podem ser agradáveis: deitei–me; procurou alguém por ventura por mim?... Estava em um tão agradável sonho... Quando de repente senti um movimento em meu cérebro que assaz me contristou. Levantem-se, rapazes! Vocês são a Quinta-essência dos preguiçosos!

Todos — (levantando-se) Que é isto, Melquíades!? Estás desassisado?

Melquíades — Ó diabo, pois vocês que faziam assentados!? (Gritando.) Vamos! São horas de escola! Caminhem, saiam! Saiam! (Os outros levantam-se, e ele os faz sair rapidamente caindo livros de uns; outros de chinelos; enfim, é uma desordem completa entre os quatro; como se um incêndio, ou alguma cobra venenosa se visse no quarto.)

(E assim parece dever terminar este Ato — com as seguintes palavras de Melquíades) Se eu não espanto estes madraços — nem para o chá ganhariam hoje!

Porto Alegre, Junho 16 de 1866.

FIM

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br