sexta-feira, 15 de março de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 19. Boa Prosa

Boa prosa, o Antônio Palhares. É curioso como há indivíduos inteligentes, perspícuos e engraçados, perdidos na multidão que não aparecem nas crônicas impressas, nem nas volantes e sonantes da gente que se conhece. De repente, surde-nos um da obscuridade e da indeterminação do vasto mundo que desdenhamos e ignoramos, e é um bicho de compreensividade, de senso, de espírito! Palhares é assim.

Conversei com ele hoje pela manhã, e nem sei dizer como me divertiu. Valeu por um livro novo que eu abrisse e folheasse, vendo as gravuras, o índice, os títulos de alguns capítulos, alguns relances de páginas. Quanta novidade, quanta frescura, quanto inesperado, e também quanto sabor de sinceridade libérrima e despreocupada, nos seus dizeres de homem sem galeria presente nem futura!

Queixei-me a Palhares dos inconvenientes da notoriedade. Não por mim, que sou um obscuro chapado e contente, mas por um amigo meu, que é uma espécie de terça parte minha, o qual muito tem sofrido por via desse flagelo. O rapaz não pode mais isolar-se, meter-se consigo, perder-se na fecunda anonímia multitudinária que lhe permitiria o descanso, o recolhimento, a respiração livre, a remodelação dos hábitos, a cura das feridas sempre abertas pela esfregação mundana: é um escravo aflito e amarfanhado das relações, das amizades, dos compromissos, das idéias que outros formaram a seu respeito, das solicitações e dos estímulos que por isso lhe vêm de todos os lados; e então padece, e geme, e desespera, porque desejaria romper com o
seu passado, deixar de ser o homem frívolo, o homem vento, o homem-inundação que tem sido, para ser um homem concêntrico e dono de si.

Palhares ouviu-me, ouviu-me, e, afinal, perguntou:

-"Mas esse moço é deveras uma inteligência sagaz, ou é uma dessas grandes inteligências bobas que há por esse mundo?"

-"Sagacíssima."

-"Pois não parece. Seria tão fácil libertar-se, isolar-se!"

-"É o que se afigura à primeira vista."

-"Precisa dos outros, efetivamente, para viver?"

-"Não; isso, não; tem a sua independência material bem segura."

-"Então, não compreendo. Por que não se retira?"

-"Impossível. Relacionadíssimo. Cheio de laços, que não se dissolvem senão quando novos laços os submergem: um homem que se procura, se aprecia, se quer, se disputa, se admira. Encantador. Como romper? Como ter a energia de quebrar brutalmente esses laços? Como repelir, quando se tem um coração brando, uma revoada de carinhos e solicitudes que nos cerca e nos assalta?"

-"Não compreendo. Para um homem se isolar, não há necessidade de movimentos bruscos, nem de fuga. Para fazer o vácuo em redor de si, gradualmente, docemente, não há senão isto: ser bom."

-"Mas ele o é. E depois, ser bom é mais um motivo para criar afetos e dedicações em redor de si."

-"Espere. Distingo. Ser bom, de uma bondade pedestre e regular, de fato, é um meio de criar afetos e dedicações em redor de si. Não é dessa bondade prática e hábil que eu falo. Eu falo da bondade íntima, profunda, plena e sossegada, que procura o bem nas próprias raízes do pensamento e da vontade, de forma que o pensamento e a vontade, quando se manifestam, já se manifestam como conseqüências exteriores, mortiças, frias, aguadas e, dir-se-ia, indiferentes de uma grande realidade latente e central que não cura de exterioridades. Compreendeu?"

-"Mais ou menos. Quer dizer uma bondade sentida, consciente, feita de compreensão e de piedade, mas que não tenta esforços por se mostrar e por atuar cá fora. Porque sabe talvez que toda exteriorização é espetáculo e todo espetáculo perverte."

-"Mais ou menos isso!"

-"Mas por que pensa que aí estaria o meio de libertação?"

-"Ora, essa! meu amigo! Pelo que vejo, não conhece os homens. Os homens só nos avaliam, nos pesam, nos apreçam pelas nossas projeções exteriores. E essas projeções, para terem valor, se hão de articular com as necessidades, os desejos, as conveniências, as aspirações dos que nos rodeiam. Valem pela soma de utilidade e de cumplicidade que levam consigo.
Mas um indivíduo realmente e simplesmente bom é o mais desvalioso dos homens. É talvez uma árvore frutífera, mas que produz frutos quando é sazão, e fora disso não produz mais nada; ali está, no seu lugar, quieta, sem movimento, sem iniciativa, sem préstimo, sem solicitudes, sem graça.
Apenas dá sombra. Uma sombra igual para todos. Mas que importa aos homens uma árvore que dá sombra! A sombra aproveita-se, quando aderga, goza-se, saboreia-se, mas não se tem nenhuma gratidão para a planta equânime que não no-la reservou para nós, que a dará ao primeiro vagabundo que a procure. Assim, a árvore de boa sombra vive realmente isolada, cercada por uma densa muralha de impenetrabilidade própria e de alheia indiferença."

"Diga ao seu amigo que faça isso."

Palhares sorriu, pôs um confeito na língua e, a remexê-lo na boca, perguntou:

-"Quer jantar comigo?"

-"Obrigado."

- "Sem cerimônia. Temos hoje lá em casa um peixe que me mandaram do litoral, um esplêndido robalo. Presente de um amigo."

-"Tem amigos amáveis."

-"Mas, naturalmente. Prestei a esse um serviço de grande importância, que só eu estava em condições de prestar."

-"Gratidão, nesse caso."

-"Qual!"

-"Esperança de novo serviço..."

-"Talvez"

-"Afeto humano!"

-"Afetos verdadeiros e sólidos! Passam depressa, nada mais fugitivo, não há dúvida; mas verdadeiros e sólidos porque se firmam na realidade viva das relações úteis. Não há outra. Dentro da vida, da vida efetiva, da vida que se vive, não há outra. É isso. É assim. Mas quer ou não quer comer o bom peixe do meu amigo?"

Fonte:
Domínio Público

Cláudio Manuel da Costa (Fábula do Ribeirão do Carmo)

Cláudio Manuel da Costa
  SONETO

A vós, canoras ninfas, que no amado
Berço viveis do plácido Mondego,
Que sois da minha lira doce emprego,
Inda quando de vós mais apartado;

A vós do pátrio rio em vão cantado
O sucesso infeliz eu vos entrego;
E a vítima estrangeira, com que chego,
Em seus braços acolha o vosso agrado.

Vêde a história infeliz, que Amor ordena,
Jamais de fauno ou de pastor ouvida,
Jamais cantada na silvestre avena.

Se ela vos desagrada, por sentida,
Sabei, que outra mais feia em minha pena
Se vê entre estas serras escondida.
...........................................................

Aonde levantado Gigante, a quem tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema, e rara
Desta inculta região, vive Itamonte,
Parto da terra, transformado em monte;
De uma penha, que esposa
Foi do invicto Gigante,
Apagando Lucina a luminosa,
A lâmpada brilhante,
Nasci; tendo em meu mal logo tão dura,
Como em meu nascimento, a desventura.
Fui da florente idade
Pela cândida estrada
Os pés movendo com gentil vaidade;
E a pompa imaginada
De toda a minha glória num só dia
Trocou de meu destino a aleivosia.
Pela floresta, e prado
Bem polido mancebo,
Girava em meu poder tão confiado,
Que até do mesmo Febo
Imaginava o trono peregrino
Ajoelhado aos pés do meu destino.
Não ficou tronco, ou penha,
Que não desse tributo
A meu braço feliz; que já desdenha,
Despótico, absoluto,
As tenras flores, as mimosas plantas,
Em rendimentos mil, em glórias tantas.
Mas ah! Que Amor tirano
No tempo, em que a alegria
Se aproveitava mais do meu engano;
Por aleivosa via Introduziu cruel a desventura,
Que houve de ser mortal, por não ter cura.
Vizinho ao berço caro,
Aonde a pátria tive,
Vivia Eulina, esse prodígio raro,
Que não sei, se ainda vive,
Para brasão eterno da beleza,
Para injúria fatal da natureza.
Era Eulina de Aucolo
A mais prezada filha;
Aucolo tão feliz, que o mesmo
Apolo Se lhe prostra, se humilha
Na cópia da riqueza florescente,
Destro na lira, no cantar ciente.
De seus primeiros anos
Na beleza nativa,
Humilde Aucolo, em ritos não profanos,
A bela ninfa esquiva
Em voto ao sacro Apolo consagrara;
E dele em prêmio tantos dons herdara.
Três lustros, todos d’ouro,
A gentil formosura,
Vinha tocando apenas, quando o louro,
Brilhante Deus procura
Acreditar do pai o culto atento,
Na grata aceitação do rendimento.
Mais formosa de Eulina
Respirava a beleza;
De ouro a madeixa rica, e peregrina
Dos corações faz presa;
A cândida porção da neve bela
Entre as rosadas faces se congela.
Mas inda, que a ventura
Lhe foi tão generosa,
Permite o meu destino, que uma dura,
Condição rigorosa
Ou mais aumente enfim, ou mais ateie
Tanto esplendor; para que mais me enleie.
Não sabe o culto ardente
De tantos sacrifícios
Abrandar o seu nume: a dor veemente,
Tecendo precipícios,
Já quase me chegava a extremo tanto,
Que o menor mal era o mortal quebranto.
Vendo inútil o empenho
De render-lhe a fereza,
Busquei na minha indústria o meu despenho:
Com ingrata destreza
Fiei de um roubo (oh mísero delito!)
A ventura de um bem, que era infinito.
Sabia eu, como tinha Eulina por costume,
(Quando o maior planeta quase vinha
Já desmaiando o lume,
Para dourar de luz outro horizonte)
Banhar-se nas correntes de uma fonte.
A fugir destinado
Com o furto precioso,
Desde a pátria, onde tive o berço amado;
Recolhi numeroso
Tesouro, que roubara diligente
A meu pai, que de nada era ciente.
Assim pois prevenido
De um bosque à fonte perto,
Esperava o portento apetecido
Da ninfa; e descoberto
Me foi apenas, quando (oh dura empresa!)
Chego; abraço a mais rara gentileza.
Quis gritar; oprimida
A voz entre a garganta
Apolo? diz, Apol... a voz partida
Lhe nega forca tanta:
Mas ah! Eu não sei como, de repente
Densa nuvem me põe do bem ausente.
Inutilmente ao vento
Vou estendendo os braços:
Buscar nas sombras o meu bem intento:
Onde a meus ternos laços. . . !
Onte te escondes, digo, amada Eulina?
Quem tanto estrago contra mim fulmina?
Mas ia por diante;
Quando entre a nuvem densa
Aparecendo o corpo mais brilhante,
Eu vejo (oh dor imensa!)
Passar a bela ninfa, já roubada
Do Númen, a quem fora consagrada.
Em seus braços a tinha
O louro Apolo presa;
E já ludíbrio da fadiga minha,
Por amorosa empresa,
Era despojo da deidade ingrata
O bem, que de meus olhos me arrebata.
Então já da paciência
As rédeas desatadas,
Toco de meus delírios a inclemência:
E de todo apagadas
Do acerto as luzes, busco a morte ímpia,
De um agudo punhal na ponta fria.
As entranhas rasgando,
E sobre mim caindo,
Na funesta lembrança soluçando,
De todo confundindo
Vou a verde campina; e quase exangue
Entro a banhar as flores de meu sangue.
Inda não satisfeito
O Númen soberano,
Quer vingar ultrajado o seu respeito;
Permitindo em meu dano.
Que em pequena corrente convertido
Corra por estes campos estendido.
E para que a lembrança
De minha desventura
Triunfe sabre a trágica mudança
Dos anos, sempre pura,
Do sangue, que exalei, ó bela Eulina,
A cor inda conservo peregrina.
Porém o ódio triste
De Apolo mais se acende;
E sobre o mesmo estrago, que me assiste,
Maior ruína empreende:
Que chegando a ser ímpia uma deidade,
Excede toda a humana crueldade.
Por mais desgraça minha,
Dos tesouros preciosos
Chegou notícia, que eu roubado tinha,
Aos homens ambiciosos;
E crendo em mim riquezas tão estranhas,
Me estão rasgando as míseras entranhas.
Polido o ferro duro
Na abrasadora chama
Sobre os meus ombros bate tão seguro,
Quem nem a dor, que clama,
Nem o estéril desvelo da porfia
Desengana a ambiciosa tirania.
Ah mortais! Até quando
Vos cega o pensamento!
Que máquinas estais edificando
Sobre tão louco intento?
Como nem inda no seu reino imundo
Vive seguro o Báratro profundo!
Idolatrando a ruína
Lá penetrais o centro,
Que Apolo não banhou, nem viu Lucina;
E das entranhas dentro
Da profanada terra,
Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.
Que exemplos vos não dita
Do ambicioso empenho
De Polidoro a mísera desdita!
Que perigo o lenho,
Que entregastes primeiro ao mar salgado,
Que desenganos vos não tem custado!
Enfim sem esperança,
Que alívio me permita,
Aqui chorando estou minha mudança;
E a enganadora dita,
Para que eu viva sempre descontente,
Na muda fantasia está presente.
Um murmurar sonoro
Apenas se me escuta;
Que até das mesmas lágrimas, que choro,
A Deidade Absoluta
Não consente ao clamor, se esforce tanto,
Que mova à compaixão meu terno pranto.
Daqui vou descobrindo
A fábrica eminente
De uma grande cidade; aqui polindo
A desgrenhada frente,
Maior espaço ocupo dilatado,
Por dar mais desafogo a meu cuidado.
Competir não pretendo
Contigo, ó cristalino
Tejo, que mansamente vais correndo:
Meu ingrato destino
Me nega a prateada majestade,
Que os muros banha da maior cidade.
As ninfas generosas,
Que em tuas praias giram,
Ó plácido Mondego, rigorosas
De ouvir-me se retiram;
Que de sangue a corrente turva, e feia
Teme Ericina, Aglaura, e Deiopéia.
Não se escuta a harmonia
Da temperada avena
Nas margens minhas; que a fatal porfia
Da humana sede ordena,
Se atenda apenas o ruído horrendo
Do tosco ferro, que me vai rompendo.
Porém se Apolo ingrato
Foi causa deste enleio,
Que muito, que da Musa o belo trato
Se ausente de meu seio,
Se o deus, que o temperado coro tece,
Me foge, me castiga, e me aborrece!
Enfim sou, qual te digo,
O Ribeirão prezado,
De meus engenhos a fortuna sigo;
Comigo sepultado
Eu choro o meu despenho; eles sem cura
Choram também a sua desventura.

Ariano Suassuna (Romance da Pedra do Reino)

A caminho da bela e lendária Pedra do Reino

Inspirada no Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna, a tradicional cavalgada de São José do Belmonte chega à sexta edição prometendo atrair mais de 800 cavaleiros (sem falar nos turistas "preguiçosos" que fazem o percurso de carro). Este ano, o evento acontece entre os dias 29 e 31 deste mês, oferecendo aos participantes uma chance imperdível de conhecer um pouco mais sobre a "tragédia sebastianista" ocorrida em Pernambuco há 160 anos e conferir algumas das mais típicas manifestações da cultura popular.

Promovida pela Associação Cultural da Pedra do Reino, a Cavalgada relembra o movimento liderado por João Ferreira, em 1838, na chamada Pedra do Reino, na Serra do Catolé, em São José do Belmonte (na verdade composta por duas grandes formações rochosas, uma com 30 e outra com 33 metros de altura). No local, o auto proclamado Rei João Ferreira formou uma comunidade de fiéis prometendo um reino de justiça, liberdade e prosperidade, onde os pobres ficariam ricos e até os pretos renasceriam brancos.

Tudo isso aconteceria depois da ressurreição de Dom Sebastião, antigo Rei de Portugal, desaparecido na África durante a batalha do Alcácer-Quibir, no século 16. No começo, aos fiéis pedia-se apenas que acreditassem, aguardassem e vivessem segundo as leis do Rei João Ferreira (que incluíam o direito de passar a noite com cada noiva da comunidade, no dia do casamento delas!).

Chegou um ponto em que passaram a ser exigidos sacrifícios humanos. João Ferreira (chamado de Dom João II) pregava que Dom Sebastião só desencantaria se a Pedra do Reino fosse lavada com sangue. O resultado foi a morte de 11 mulheres, 12 homens e 30 crianças (sem falar em 14 cachorros). O próprio João Ferreira terminou sendo morto e outro rei assumiu o seu lugar, Pedro Antônio, que só passou um dia no poder.

A Guarda Nacional, integrada por fazendeiros da região, decidiu intervir e mais 22 pessoas morreram (entre sebastianistas e soldados). O então prefeito da comarca de Flores, Francisco Barbosa Paes, descreveu o episódio como "uma das maiores carnificinas acontecidas no Sertão Pernambucano. O caso mais extraordinário, mais terrível, nunca visto, quase incapaz de acreditar-se".

O EVENTO

A história é contada no romance de Ariano Suassuna e revivida anualmente na Cavalgada da Pedra do Reino (que este ano acontece no domingo, 31, precedida de outras celebrações a partir da sexta, 29). Os participantes, com trajes, armas e bandeiras de inspiração medieval, partem da praça central de São José do Belmonte, por volta de 05h da manhã, depois que tiros de bacamarte ecoam pela cidade e o padre abençoa os cavaleiros. Cinco horas depois, chegam à Pedra do Reino, onde é celebrada uma Missa com a presença de cantadores e violeiros, seguida por uma grande festa. Este ano, uma das atrações é a banda Comadre Florzinha.

Convidado especialíssimo, o escritor e secretário de cultura do estado de Pernambuco, Ariano Suassuna, lidera a comitiva com o título de Imperador da Pedra do Reino, concedido pela Associação. Junto a ele segue seu filho, o artista plástico Dantas Suassuna, Rei da Cavalgada, acompanhado da Rainha, Elizandra Carvalho, escolhida por concurso entre as garotas do município. Também na comitiva de frente, os membros da Ordem dos Cavaleiros da Pedra do Reino, em seis pares de vermelho e azul.

Um ritual um tanto mágico parece estar acontecendo, à medida em que os cavaleiros seguem até a Pedra do Reino, entoando tradicionais aboios (cantigas de vaqueiros), com trajes elaborados especialmente para a ocasião. Mais envolvente só mesmo o romance de Ariano sobre o tema, indispensável para quem quiser captar toda a essência do evento.

Para quem não tiver chance de lê-lo, vale ir se familiarizando com a história a parte do Memorial da Pedra do Reino, que será inaugurado no próximo domingo, dia 24, em Belmonte. No local, funcionará um museu com objetos, fotos e documentos sobre as mortes nas pedras e sobre a criação da festa. Uma das salas terá o nome do Imperador Ariano Suassuna.

A obra de Ariano Suassuna

“O assunto da obra esteia-se no mistério da decifração da morte de Sebastião Garcia-Barretto; afinal, é, aparentemente, por estar ligado a ela que o narrador se encontra preso e depondo num processo que constitui(rá) a narrativa. Essa morte é atribuída, pelo narrador, a motivos políticos que se relacionariam à sucessão do trono do Imperador do Brasil, da dinastia de João Ferreira, fanático que se proclamou rei do Brasil, em 1836, na comarca de Vila Bela.

No plano histórico, a década de 30 é marcada por confrontos políticos. Fundem-se o real e o imaginário, para surgimento da ficção, o que corresponde à proposta quadernesca de ajeitar o real para que possa ‘caber nas métricas da Poesia’.

Na verdade, a morte instaura apenas um enigma, gerador de um discurso sobre fatos mais relevantes: a genealogia de Quaderna, que lhe impõe um Destino, as atividades dessa personagem, o desaparecimento, no dia do crime, de Sinésio, filho de Sebastião Garcia-Barretto, e o posterior aparecimento do rapaz do cavalo branco.

Esse assunto apresenta características de epopéia: está em jogo o destino da Vila e, pela megalomania do narrador, o do Brasil; há a volta de um herói, tido por morto, depois responsável por grandes façanhas que incluem a vingança do pai assassinado e o estabelecimento de uma nova ordem (‘um reino de glória, justiça e paz’), condizente com os mais elevados destinos da Raça e da Nação brasileira, se amolda ao projeto de Quaderna.

(...)

O rapaz do cavalo branco e o próprio Quaderna são ‘assinalados’, isto é, devem cumprir um Destino como os heróis Ulisses, Enéias, Gama.”

(MICHELETTI, Guaraciaba. Na Confluência das Formas, ed.Clíper, 1997, p. 75-76)

“Para atingir seus objetivos, Quaderna, respaldando-se na sua tradição familiar, funda a religião Católica-Sertaneja, que toma de outras princípios básicos, refundindo-os, de acordo com seus propósitos.

Desta religião, essencialmente pragmática, nasce outra demanda: a política. As duas confundem-se no ‘rapaz do cavalo branco’, que se revela herdeiro do mito de D.Sebastião e da tradição cavaleiresca do Santo Graal. D.Sebastião é o casto guerreiro que, em seu cavalo branco, em Alcácer-Qibir, luta contra os mouros, me defesa dos ideais cristãos. Roberto do Diabo, depois pai de Ricarte da Normandia, um dos Doze Pares de França, purgou suas culpas, redimiu-se, quando montado em seu cavalo branco, que ‘era encantado’, livrou o reino de sua amada de um grande traidor. Ambos, mito e romance, partilham da crença de que os novos tempos são anunciados pela chegada do predestinado.”

(MICHELETTI, p. Cit., p. 66)

A PEDRA DO REINO

Publicado em 1970, A pedra do reino continua sendo considerado um romance completo, pois até hoje as duas outras partes da trilogia não vieram a público, pelo menos em edições comerciais. Em vista disso, a possibilidade de análise é um tanto precária, apesar de a obra oferecer, em suas mais de 600 páginas, matéria suficiente não apenas para ensaios como para livros inteiros.

De leitura um pouco árida na primeira centena de páginas, A pedra do reino, mesmo isolada da trilogia de que faz parte, é um verdadeiro monumento literário que se liga à cultura caboclo-sertaneja nordestina, muito marcada pelas tradições do mundo ibérico (Portugal e Espanha), trazidas pelos primeiros colonizadores europeus e transformadas ao longo dos séculos.

Em linhas gerais, A pedra do reino é a apresentação do memorial - obviamente em primeira pessoa - de D. Dinis Ferreira - Quaderna, que, preso em Taperoá, faz sua própria defesa perante o corregedor e, para tanto, conta a história de sua família, das desavenças, das lutas e das controvérsias políticas, literárias e filosóficas em que se vira envolvido. Como diz um crítico, na obra de Suassuna podem ser percebidas "duas distintas tradições a informarem a concepção de mundo do herói: a tradição mítico-sertaneja e a tradição erudita" (J. H. Weber). O que faz, como no caso de todas as demais obras da nova narrativa, com que A pedra do reino se diferencie claramente do romance brasileiro tradicional.

O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta foi publicado no Rio de Janeiro em agosto de 1971. Seu sucesso foi imediato e as reedições traduzem o interesse dos leitores (janeiro de 1972, agosto de 1972).

Resumir A Pedra do Reino seria, sem dúvida, destruir uma obra composta de idas e vindas, de momentos líricos e cômicos, de debates políticos e filosóficos, de múltiplas citações, alusões e referências históricas e literárias. Basta esboçar o argumento narrativo para se convencer da dificuldade da empreitada : Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, poeta, humorista, memorialista e bibliotecário da Vila de Taperoá, no sertão da Paraíba, decide relatar os acontecimentos que o trouxeram onde se encontra no início do livro, ou seja na cadeia. Elabora assim um Memorial dirigido «aos magistrados e soldados, toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros […] aos nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos…» Após a evocação do fator determinante, isto é a chegada do Donzel Branco, seu primo, Sinesio o Alumioso, e o assassinado do tio de Quaderna, éste conta a história de sua família, ligada à proclamação de um reino, estabelecido sobre duas pedras «encantadas», situadas no Alto Sertão de Pernambuco. Descreve seu itinerário pessoal e até íntimo : sua infância, sua formação poética com um cantador, a descoberta do passado da família e do mundo da cavalaria, a tomada de consciência de herdeiro do reino, a longa viagem iniciática que lhe permite reencontrar este passado, seus mestres e os problemas filosóficos, literários e políticos que os ocupam, o espírito aventureiro que leva Quaderna a organizar a sua reconquista do Reino Perdido e lhe permitirá talvez, um dia, revelar a verdade sobre a morte rocambolesca do seu tio. A chegada do Rapaz do Cavalo Branco, misterioso e perigoso, será o início da grande aventura de Quaderna, sua "Demanda do Graal" : demanda da identidade do rapaz, busca da verdade, procura de um tesouro perdido mas, antes de mais nada, espera e procura da Revelação, do «Sacramento» que o tornará Imperador do Sertão e Gênio da Raça. A aventura de fato não começou : o romance inteiro não é senão preparação à aventura, relato mesclado de muitas histórias ou anedotas ligadas, direta ou indiretamente, à narrativa principal.

1. Uma Pedra movediça ou a constelação de variantes

Se o Auto da Compadecida foi imediatamente traduzido e representado em várias línguas no mundo inteiro, A Pedra do Reino, apesar do entusiasmo que desperta em críticos e leitores, assustou os editores estrangeiros pelas suas dimensões (625 páginas) tanto quanto pelo seu mundo denso de referências culturais brasileiras, eruditas e populares. As editoras alemãs tomaram a frente : a edição, em dois volumes reunidos numa caixinha, teve um formato semi-bolso, uma diagramação atraente e uma capa original.

Os editores franceses reagiram positivamente à leitura do romance mas pretenderam aplicar uma regra então quase generalizada para as obras volumosas de autores estrangeiros pouco conhecidos : a redução do volume por amputação de uma ou várias partes. Jorge Amado já tinha sido vítima deste procedimento e sua Tereza Batista só foi editada na sua integridade textual nos anos 90 : na primeira edição francesa, faltavam o primeiro e o último capítulos o que resultava num considerável empobrecimento do significado da obra.

1.1. Informado, Ariano Suassuna começou recusando mas reavaliou posteriormente a sua posição e entregou (à sua tradutora), em 1976, uma primeira tentativa de redução textual, uma variante do primeiro livro do Romance d’A Pedra do Reino, intitulada A Pedra do Reino, versão para Franceses e outros estrangeiros sensatos. Mas as negociações de edição foram suspensas e a reescritura parou neste ponto. Esta primeira versão reduzida foi vertida para o francês e figura, com autorização do autor, em anexo da minha tese de Doutoramento em Letras, na Universidade de Paris III , juntamente com poemas e textos de outros autores, membros do Movimento Armorial. Esta «Antologia Armorial» não saiu, até o presente momento, das páginas da tese.

Contudo, o trabalho de redução assim iniciado não restringiu somente o volume global de palavras por capítulo como atingiu aos poucos a própria estrutura do romance, obrigando o autor a uma re-visão de sua obra. Deste modo, Suassuna elabora uma variante que não se destina mais exclusivamente à tradução. A redução do texto implica corte de parte do volume inicial, as duas primeiras partes que relatam a infância e a formação literária do narrador-protagonista, Quaderna. Por outro lado, são suprimidas varias citações e alusões diretas ou indiretas a obras literárias, em particular a folhetos, cantigas ou quadras populares.

1.2. Quaderna, o Decifrador (tapuscrito com correções manuais, datado de 1978) reduziu-se de fato a um primeiro livro, A Pedra do Reino ou a Quarta-feira de Trevas. A matéria narrativa continua distribuída em partes, intituladas «Canto» e não «Livro» como na edição de 1971. Estas três partes são :

Canto I – Os Três Irmãos Sertanejos nas teias da sorte cega

Canto II – Os Gaviões Cegadores

Canto III – A Demanda do Sangral

Apesar da transformação do intitulado do segundo canto, podemos encontrar no conteúdo narrativo do livro bem como no intitulado dos «folhetos» ou capítulos, uma exata correspondência com o conteúdo dos Livros III, IV e V da versão editada em 1976.

Suassuna acaba por redistribuir os elementos de sua trilogia : este primeiro volume de Quaderna o Decifrador, A Pedra do Reino ou a Quarta-feira de Trevas, deveria ser seguido por um segundo volume, provavelmente intitulado As infâncias de Quaderna, que retomaria a matéria narrativa dos dois primeiros livros da edição de 1971, parte da História d’O Rei Degolado nas Catingas do Sertão, além dos folhetos publicados sob este título em forma de folhetins semanais no Diário de Pernambuco, de 2 de maio 1976 a 19 de junho de 1977.

Sem prazo para concluir estas transformações do segundo e do terceiro volume, Suassuna prefere manter inédita a nova versão para reeditar os três volumes de uma só vez ou com poucos mêses de distância. Contudo, em curto artigo, datado de 9 de agosto de 1981 e publicado no Diário de Pernambuco, Ariano Suassuna comunica a sua retirada da vida pública e da literatura. O aparente, e tão apressadamente comentado, fracasso do seu engajamento cultural [no Movimento Armorial] juntou-se às dúvidas e questionamentos de um escritor e de um homem que se declarou sempre «perturbado por sonhos, químeras e visões até utópicas da vida e do real».

1.3. Em 1994, antevendo a possibilidade concreta de traduzir A Pedra do Reino e tendo encontrado um editor francês decidido a publicá-la, submeti a proposta a Ariano. A aceitação foi seguida, dois mêses mais tarde, pela remessa de um tapuscrito intitulado A Pedra do Reino, versão para Europeus e Brasileiros sensatos. O título era evidentemente adaptado da primeira versão reduzida e destinada à tradução (a de 1976), contudo Ariano, ao incluir os «Brasileiros» entre os destinatários desta nova obra, manifestou claramente o caráter definitivo desta nova estrutura narrativa e que será algum dia publicada em português. Esta versão retoma o texto de Quaderna, o Decifrador, com muitas correções manuscritas, algumas supressões e alguns acréscimos4, e mantém a mesma estrutura em folhetos (capítulos) de mesmo título, suprimindo contudo a divisão em partes ou «cantos» da versão de 1978. Os folhetos apresentam-se portanto uns após os outros sem qualquer separação ou forma de estruturação.

Este livro, traduzido por mim, foi publicado pelas Editions Anne-Marie Métailié em fevereiro de 1998, poucos dias antes da realização do Salão do Livro de Paris, cujo convidado de honra era, naquele ano, o Brasil. A edição foi primorosa e reproduziu na capa uma xilogravura colorida de Gilvan Samico, intitulada «Alexandrino e o Pássaro de Fogo», escolhida pela editora entre as muitas sugestões apresentadas, sem saber que esta gravura tinha sido preferida por Ariano Suassuna para ilustrar a capa do primeiro disco LP do Quinteto Armorial (capa conservada na edição em CD).

Dispomos portanto de quatro textos distintos d’A Pedra do Reino :

A. O Romance d’A Pedra do Reino, de 1971, editado pela José Olympio, só se encontra hoje nos sebos e saiu há muito tempo do catálogo da editora. Desconfio que esta situação de «quase desaparecimento» seja aceita com certa satisfação pelo autor que deixa se criar um hiato antes da publicação da nova versão;

B. A Pedra do Reino, versão para Franceses e outros estrangeiros sensatos, de 1976, ensaio de redução do primeiro livro (ou parte) que foi interrompido. Foi traduzido para o francês e tornado público como anexo de uma tese (ou seja está inédito para o grande público!);

C. Quaderna, o Decifrador : Livro I – A Pedra do Reino ou a Quarta-feira de Trevas, de 1978, versão completa e inédita em português ;

D. A Pedra do Reino, versão para Europeus e Brasileiros sensatos, de 1994, versão corrigida do texto anterior, inédita em português e publicada em francês em tradução minha, com o título de La Pierre du Royaume, version pour Européens et Brésiliens de bon sens.

Eis o estado da questão em matéria textual : a Pedra do Reino continuará sem dúvida alguma a se mexer e esperamos que chegue a uma edição completa e satisfatória.

2. O processo de tradução de La Pierre du Royaume

Existem dois tipos de tradutores : os que traduzem por amor à língua e os que traduzem por amor a uma obra literária. Não considero evidentemente aqueles que traduzem por apego ao dinheiro porque geralmente desistem logo de ser tradutores! Na França, tradutor tem estatuto, tem tarifa sindical, tem associação representativa. Tradutor de português tem principalmente dificuldades para encontrar um editor que queira publicar obras da literatura portuguesa ou brasileira.

Eu me situo objetivamente entre os tradutores que traduzem por amor a uma obra literária : descobriram um autor ou um livro e querem fazer compartilhar aos seus compatriotas – que não têm a sorte de poder ler no original – o prazer desta leitura. A minha leitura d’A Pedra do Reino foi apaixonada e apaixonante. A tradução do livro tornou-se portanto um objetivo. Durante anos, andei nas editoras parisienses em cada viagem à França, deixava o livro, umas páginas traduzidas e esperava o diagnóstico. Ele sempre foi o mesmo : a obra era magnífica, a tradução de qualidade mas… e no «mas» entrava segundo os anos e as editoras : a crise da edição francesa, a falta de interesse para a literatura estrangeira, o tamanho do livro, o custo da tradução, a situação financeira da referida editora etc.

Em 1994, a França lia e a-do-ra-va um escritor brasileiro, que fazia um sucesso inacreditável e vendia até cinco edições paralelas de um mesmo livro. Precisa dizer o nome ? Pois era mesmo aquele que vocês imaginam : Paulo Coelho. Esta situação me deu força para ir à luta novamente. Resolvi procurar desta vez uma pequena casa editorial que tinha 15 anos de existência e um invejável catálogo de autores brasileiros : Machado de Assis, Euclydes da Cunha, Guimarães Rosa, Cornélio Penna e Raquel de Queiroz figuravam, entre outros, na sua «Biblioteca brasileira». Não precisei de nenhum esforço para convencer Anne-Marie Métailié da importância da Pedra do Reino : mencionei a Versão para Franceses e outros estrangeiros sensatos de 1976 e o Quaderna, o Decifrador, de 1978. Poucos mêses depois, o contrato estava assinado e Ariano me mandava a versão definitiva, corrigida e transformada em Versão para Europeus e Brasileiros sensatos.

O meu trabalho de tradução, correção, releitura e recorreção durou 3 anos, sem exclusiva, claro, porque tradutor, na França como em qualquer parte do mundo, dificilmente vive graças a suas traduções.

Eu pensava conhecer o livro : afinal tinha lido inúmeras vezes, consultado, anotado, fichado, tinha escrito uma dissertação de mestrado sobre A Pedra do Reino como novela de cavalaria e uma tese de doutorado sobre o Movimento Armorial em que a obra figurava e era analisada pormenorizadamente. Tinha feito comunicações, conferências, debates mas nunca havia experimentado esta relação íntima com o texto, este pisar no rasto do autor, este passar pelas próprias palavras as emoções, as dúvidas, as alegrias. A tradução me revelou dimensões da obra que a crítica e a análise não podiam alcançar mas, em compensação, sem este trabalho anterior de longos anos de pesquisa e aprofundamento não somente deste livro senão da obra completa de Suassuna e dos integrantes do Movimento Armorial, nunca teria ousado enfrentar tamanho desafio.

A Pedra do Reino é um livro oral, ele é dito, contado, por um narrador falante e mentiroso, que envolve o seu leitor em conversas, relatos e discursos brilhantes interrompidos por crises de sinceridade ou de medo. Eu traduzi este livro falando em voz alta, frente ao meu computador; revisava teatralizando e muitas vezes preferi tal palavra a tal outra simplesmente porque soava melhor. Esta busca do tom, do som, da justeza da conversa me levou freqüentemente a simplificar as formas verbais porque o subjuntivo, por exemplo, não tem o mesmo valor nem a mesma significação social em português e em francês.

Além da dimensão oral, A Pedra do Reino é um livro visual, com ilustrações reproduzidas na edição de 1971 em página inteira ou integrada no texto. Para a edição francesa, Ariano Suassuna retrabalhou seus desenhos a modo de vinhetas situadas na abertura de cada folheto, lembrando as iluminuras e iniciais ricamente ornamentadas dos manuscritos antigos. O efeito é surpreendente e belíssimo.

O léxico apresenta-se sempre como a dificuldade mais visível de uma tradução. A pesquisa lexicográfica representa sem dúvida uma parte importante do trabalho : alguns termos de geografia, culinária ou história foram mantidos no texto, sem nota quando se tratavam de termos já dicionarizados, como caatinga ou sertão, ou com nota de rodapé, retomados num glossário no final do livro, quando muito específicos como foi o caso de certas manifestações folclóricas ou plantas.

Por outro lado, o respeito do texto obriga a desconfiar do peso adquirido por certos termos na língua-meta : um dos meus leitores (foram vários) criticou minha tradução, aparentemente preguiçosa, de «um Negro meio sangue de Índio-Tapuia» (un Noir demi-sang d’Indien-Tapuia) e sugeriu «um Nègre métis d’Indien-Tapuia». Desprezando este «meio-sangue» que, em português como em francês, refere-se à mistura de sangue da raça eqüina, ignorou a paixão do narrador Quaderna pelos cavalos : as comparações entre homens e cavalos são freqüentes no romance e sempre positivas enquanto o termo «mestiço» conserva, em ambas as línguas, uma carga semântica negativa.

Outro objeto de debate, o nome do Estado, a Paraíba. A prática habitual dos geógrafos consistiria em traduzí-la por «la province du Paraïba», termo que me pareceu de imediato muito estreito para designar o que, para o narrador, representa um verdadeiro país e até o centro do Império do Sertão, seu território mítico. A estrutura federal do Brasil impõe, por outro lado, de não assimilar um Estado a uma simples província, que se define em relação a um centro, numa perspectiva centralizadora e jacobina inaceitável no Brasil. O Estado da Paraíba apresenta-se nesta obra como um país designado no feminino em razão do seu final em –a. Escrever-se-á portanto la Paraïba como se escreve la Louisiane ou la Californie. Le Paraïba, no entanto, continuou designando o rio Paraíba e Paraïba, «tout court», foi reservado à capital do Estado que mudou de nome em 1930 para escolher o nome do seu Presidente assassinado, João Pessoa.

La Pierre du Royaume, version pour Européens et Brésiliens de bon sens não obedece, portanto, a critérios acadêmicos : os famosos exercícios de aprendizagem de língua estrangeira, latim ou grego, version ou thème, que a universidade francesa continua valorizando ao extremo, para as línguas vivas tanto quanto para as mortas. Todos os anos, por ocasião da preparação dos concursos que dão acesso à carreira docente (Capes e Agrégation) as traduções das obras inscritas ao programa são analisadas, dissecadas e geralmente condenadas por professores universitários que perseguem o «faux-sens», o «contre-sens», o «solécisme» ou qualquer um destes graves pecados da vida docente. E propõem textos impecáveis, conservando todos os modos e pretéritos perfeitos e imperfeitos, mas geralmente textos mortos, destruídos pelas marteladas conjugadas da erudição e da gramática. Não estou defendendo o erro e muito menos a aproximação ou a falta de rigor mas, como no teatro, a tradução deve se tornar de algum modo interpretação para conseguir atingir a verossimilhança discursiva e a poética.

Assim, me atrevo a concluir esta reflexão com a ajuda de Samuel, personagem de A Pedra do Reino :

«[…] quando um Poeta brasileiro ou português traduz uma obra estrangeira, para mim, o original fica sendo o trabalho dele. Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o mais que posso! Para mim, Manoel Odorico Mendes é o autor dos originais da Ilíada e da Eneida brasileira : Homero e Virgílio são, apenas, os tradutores gregos e latinos dessas obras dele! Castilho é o autor do Fausto e do Dom Quixote, assim como José Pedro Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da Divina Comédia que Dante traduziu para o italiano!»

Posso portanto com tranquilidade e orgulho assinar este texto :
Idelette Muzart Fonseca dos Santos
autora de La Pierre du Royaume,
Version pour Européens et Brésiliens de bon sens,
obra traduzida para o português por Ariano Suassuna.


Fontes:
http://educaterra.terra.com.br/literatura/litcont/litcont_6.htm)
http://www.geocities.com/ail_br/lapierreduroyaume.html)

Império Serrano (Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino: Ariano Suassuna)

Compositores
    Aluizio Machado, Maurição, Carlos Sena, Lula e Elmo Caetano

Sol Inclemente
Vai Além da Imaginação
Sopro ardente árida terra
Desse poeta cantador
Sede de vida gente sofrida
Salve o Lanceiro e Guerreiro do amor

Cabra macho firmeza, que emoção
Liberdade, esperança, ressureição
A bondade e a maldade no coração
Amor, verdade eu encontro neste chão

Vem que tem

Tem azul tem encarnado tem
Numa comunhão de fé
Lança em punho ao som da luta
Desse sonho contra a dor
Resgatando o passado
Desse povo vencedor
Esses reis tão sertanejos
Descendentes de valor
E a cavalgada parte
Lá de Belmonte
Prá serra do Catolé
Tão linda minha corte sertaneja
Marco forte altaneira do sertão
Buscando na justiça a igualdade
Empunhando a bandeira da coroação

Hoje o império é a voz da razão
Onde reina a paz e a união
E é muito mais que uma paixão
Sou imperador lá do sertão

José Nêumanne (A volta de Quaderna, o Quixote da caatinga)

(Nêumane, Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator.)
Pode até ter sido mera coincidência o escritor paraibano radicado em Recife Ariano Suassuna haver permitido, após um longo hiato de 31 anos a reedição de sua obra-prima em prosa de ficção, Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, neste mesmo ano em que se comemoram os 400 anos de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, a primeira novela da história da literatura mundial. Mas a verdade é que há muito mais coincidências entre a saga do cavaleiro andante e a do poeta-palhaço sertanejo que a primeira letra de seus nomes – Quixote e Quaderna.

Na nova e caprichada edição com que a José Olympio está substituindo agora, tendo afinal obtido a autorização do renitente autor, a velha, já ensebada e rara última edição ainda dos anos 70 do século passado, foi incluído o posfácio do grande escritor pernambucano infelizmente muito pouco conhecido no Sudeste Maximiano Campos (1941-1998). Em seu texto, esse expoente da Geração de 65 deu aquela que talvez seja a melhor definição do protagonista do romance: "Quaderna é um misto de Quixote e Sancho, com predominância de Quixote". Mas as semelhanças entre as duas obras não se limitam à inicial dos nomes de seus protagonistas. Assim como Cervantes glosou os romances de cavalaria na moda em seu tempo, Suassuna trabalha sua literatura no riquíssimo acervo da poesia de bancada das feiras nordestinas com conhecimento de causa e estro de poeta.

Nas veredas de Cervantes - Da mesma forma como Quixote, Quaderna é trágico e cômico, épico e picaresco. Aliás, da mesma forma como o cavaleiro da triste figura e como inúmeros heróis dos romances de cordel que ele cita ao longo do caudal de prosa poética em que o herói é criado e recriado e se mostra malcriado. Costuma-se comparar a prosa ao mesmo tempo clássica (de um classicismo de romance europeu, do qual também estão embebidos os folhetos de feira) e bárbara dessa obra-prima a dois outros momentos capitais da ficção em português das Américas: Os sertões, de Euclydes da Cunha (com ípsilon, como gosta de grafar Suassuna), e Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Há com esses outros livros, sim, seminais semelhanças de porte, mas parentesco estilístico pode ser que haja mais com o primeiro que com o segundo. Como o registro da queda de Canudos, o percurso de Quaderna pelo sertão real e por seu universo de fantasia, susto e sombra se insere nas veredas, abertas por Cervantes e mapeadas por Jorge Luís Borges, da novela enciclopédica, não tanto na trilha "joyciana", preferida por Rosa nos sertões das Gerais: a da submissão da narrativa à lingüística.

Na prosa de Rosa em geral – e no "romance riverrão" em particular -, o autor pesquisa o miolo da palavra, partindo da raiz, mas buscando a universalidade em doses de erudição de laboratório. Essa foi a trilha perseguida por James Joyce na elaboração de Finnegans Wake, obra quase intraduzível em outras línguas precisamente por não pertencer apenas à original. Suassuna – mais até que em Euclydes e mesmo que em Borges, citados acima como expoentes da prosa enciclopédica – faz o trajeto oposto, partindo do ar para o substrato da língua, como o fizeram os colegas japonês Dogen Zenji (1220-1253), argentino Bartolomé Hidalgo (1788-1822), peruano César Vallejo (1892-1938) e chilenos Vicente Huidobro (1893-1948) e Pablo Neruda (1904-1973). Todos esses escritores, citados em brilhante ensaio do escritor argentino Juan José Saer, preferiram lidar com sua "língua materna" a fazê-lo com a "língua nacional". Assim como o mestre zen-budista Zenji impregnou-se de cultura chinesa, mas escreveu seus 95 sermões no próprio e tosco japonês, o irlandês (como Joyce) W. B. Yeats (1865-1939) elogiava o gaélico como língua de sua grei, mas escrevia sua poesia genial no idioma que aprendeu da mãe na infância, o inglês, e o florentino Dante Alighieri (1265-1321) inventou a poesia ocidental no grosseiro dialeto toscano, preterindo o latim que dominava muito bem, Suassuna recorreu ao ritmo, à graça e à picardia da língua que sorveu nas conversas íntimas da família, em funções de repentistas e nos romances de amor, aventura e presepadas dos heróis da cultura sebastianista medieval ibérica transportada para o sertão de origem de seu herói e pai, João Suassuna.

Colcha de retalhos - Na orelha da nova edição, Bráulio Tavares, poeta também paraibano, resumiu a escritura da obra-prima do mestre da literatura, antes consagrado e popularizado no teatro, de forma exemplar: "O Romance d’A Pedra do Reino é um livro onde o autor parece decidido a aproveitar-se de todas as liberdades concedidas hoje em dia ao gênero ‘romance’, como desaguadouro de elementos vindos da novela, do conto, do poema, do folheto de cordel, do monólogo dramático, do diálogo filosófico, da crônica de época, do memorialismo." Isso resultou, em sua opinião, numa "colcha de retalhos onde a prosa profética convive com o trocadilho, a iluminação mística é contrabalançada pelo versinho fescenino e longas citações de obras históricas são ilustradas por desenhos que lembram os ‘rébus’ ou enigmas figurados dos almanaques dos charadistas."

Ao mesmo Bráulio Tavares coube posfaciar outra obra-prima do autor, esta no teatro, O auto da Compadecida, relançada em edição comemorativa (revista pelo autor) dos 50 anos da peça pela Agir, com ilustrações não do autor (como no caso do romance), mas do filho Manuel Dantas Suassuna, além de outros textos do poeta Carlos Newton Júnior e do romancista Raimundo Carrero, ambos seguidores de Suassuna em seu Movimento Armorial, do qual o exemplo mais completo e perfeito em literatura é o Romance d’A Pedra do Reino. No posfácio Bráulio reproduziu uma anedota que o próprio Suassuna adora repetir em suas divertidíssimas aulas-espetáculo – a do crítico que lhe perguntou o que, afinal, era dele naquela peça que, conforme o próprio autor reconhecia, tinha o primeiro ato baseado no folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, o segundo inspirado no romance O Cavalo que defecava dinheiro e o terceiro em O castigo da soberba, todos compilados por Leonardo Mota em seu clássico Violeiros do Norte, cuja primeira edição data de 1925. "Oxente, eu escrevi foi a peça", respondeu-lhe o dramaturgo.

O "gênio" e o "quengo" - Se Quaderna, entre artimanhas, palhaçadas e quetais, revela seu projeto de se tornar o "gênio da raça brasileira", João Grilo, o "amarelo" do cordel tornado protagonista da peça que fez enorme sucesso no palco e, adaptada para a televisão e para o cinema, tem assegurado farto lucro para seus produtores, pode ser apontado como o protótipo do "quengo" (sinônimo de cérebro e, por extensão, de quem saiba usá-lo): o tipo covarde e desnutrido que consegue sobreviver a golpes de esperteza com os quais supera a truculência dos donos do poder no sertão sem lei.

E, por fim, para quem quiser conhecer o processo racional do qual são extraídas a prosa, a poesia e o teatro do morador do Poço da Panela a José Olympio também reeditou o livro no qual ele reuniu seus ensinamentos do curso que deu sobre Estética na Universidade Federal de Pernambuco: Iniciação à Estética. Nele trouxe para seus alunos e, depois, para seus leitores diversas visões - de Platão e Aristóteles aos escolásticos e a Kant, de Kant a Hegel e a Bérgson, entre outros pensadores - na linguagem clara, concisa e saborosa que domina como poucos. E reconhece sem disfarces sua adesão à escola da Estética filosófica pelo mesmo motivo com que colando cacos da literatura popular das feiras livres amalgama a cerâmica sofisticada de sua obra literária variada: "é a mais aberta de todas e incorpora ao estudo do campo estético as contribuições trazidas por todas as outras."

Fonte:
http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/colunistas/jneumanne/jn0017.htm

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 2

Pegadinha 4
Gostaria de colocar minha opinião.

Opiniões não se colocam, se expõem ou se dão. Há também quem gosta de, ao final de um discurso, fazer uma colocação em vez de fazer uma exposição, que é muito mais coerente e elegante. O correto seria escrever:

Gostaria de expor minha opinião.

ou

Gostaria de dar minha opinião.
––––––––––

Pegadinha 5

Vou explicar nos mínimos detalhes.

Veja como, às vezes, o excesso atrapalha.

Há expressões, em nossa língua, classificadas como pleonasmos viciosos, que revelam a precariedade linguística de quem os escreve ou assim fala. Nesta dica de português, estamos diante de uma dessas excrescências. Pleonasmo é a repetição de palavras ou expressões de mesmo sentido. A expressão viciosa "nos mínimos detalhes" equivale a aberrações como "subir pra cima", descer pra baixo, chutar com os pés etc. Em detalhe já está contida a ideia de mínimo. Detalhe significa pormenor, minúcia, no mínimo. Se se pretendesse fazer a explicação em suas mínimas partes, seria suficiente fazê-la em detalhes, ou em seus pormenores, ou ainda em minúcias. Então escrevamos corretamente:

Vou explicar em detalhes.

– ou –

Vou explicar detalhadamente.
___________________

Pegadinha 6

Inglaterra confirma invasão ao Iraque.

Jamais poderá ocorrer invasão a lugar algum. Porém, o que é possível acontecer é invasão de algum lugar. Escreve-se com correção, assim:

Inglaterra confirma invasão do Iraque.

Veja, a seguir, outros exemplos corretamente escritos:

Invasão de privacidade.

Invasão de domicílio.

A invasão do estádio pela polícia deu-se às 20 horas de ontem.
____________________

Pegadinha 7

O acidente aconteceu porque o motorista dormiu no volante.

Para que alguém consiga dormir no volante, é necessário que este seja, no mínimo, do tamanho de uma cama. Convenhamos, volantes desse tamanho ainda não foram fabricados. Então, melhor seria dormir no banco do automóvel ou, mais adequadamente, em uma cama com mais conforto. Quem dorme bem, dorme em algum lugar. Já "dormir próximo" ou "junto" significa dormir a (preposição) com o respectivo artigo (o ou a). O correto seria escrever:

O acidente aconteceu porque o motorista dormiu ao volante.

A seguir, outros exemplos de frases corretamente grafadas:

A moça dormiu ao computador.

O marinheiro dormiu ao timão.

Romeu dormia à janela de Julieta.
________________________

Pegadinha 8

Marcos é um parasita da mulher.

Parasita, com a final, é denominação exclusiva de certas plantas. Para pessoas e animais, usa-se parasito. O correto seria escrever:

Marcos é um parasito da mulher.

Eis outros exemplos de frases corretamente grafadas:

Raquel age como um parasito da mãe.

Há sujeitos que são autênticos parasitos da sociedade.

A pulga é um parasito, como também o é o carrapato.

Precisamos exterminar as parasitas que estão nessa árvore.

As parasitas debilitaram nosso pomar.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte IX – O Inquérito

Mal chegado de São Paulo, depois daquele sucesso imprevisto da Independência, que abreviara a viagem de d. Pedro, o Satanás tratou de averiguar ocaso misterioso da rua do Conde.

Remordia-o principalmente o remorso no relativo à Branca e ao abandono em que a deixara. Nem mesmo podia compreender como ele, o homem impassível e calmo, já afeito às vicissitudes da sorte e bem afamado pela imperturbável presença de espírito, que conservava durante os transes mais arriscados da vida, se tinha tornado quase doudo, irrefletido e imprevidente.

A nada concluíam entretanto as suas primeiras pesquisas. Lá, na rua do Conde, a casa de Branca conservava-se impenetrável e quieta, com essa lúgubre fisionomia dos prédios misteriosos que foram o teatro de um crime. E, pela vizinhança, diziam-na apenas mal-assombrada, percorrida durante a noite por fantasmas alvadios de almas penadas, que vinham gemer a sua dor na encenação espetral das crendices populares.

Ninguém sabia de mais nada, e ninguém conseguira esbater luz sobre a treva apavorante daquele crime.

Mistério, mistério!

De Branca nem se ouvia falar. Talvez que ela tivesse remontado para o céu na compostura angelical de suas purezas.

E o Satanás debatia-se, cego e louco, apaixonado e fúnebre, na grande noite das idéias. Lembrou-se, entretanto, de d. Bias. Fora ele quem viera chamá-lo à bodega do Trancoso. E o magro fidalgo das Espanhas bem devia conhecer alguma cousa desse drama sanguinolento e inexplicável. Se ele nada pudesse dizer sobre a sorte de Branca, relataria pelo menos o princípio dessa luta a que assistira, e que prostrara em terra o cadáver de Paulo de Andrade.

E o Satanás dirigiu-se para a tasca da rua do Piolho.

D. Bias lá estava.

Ninguém lhe dissera sobre a chegada do príncipe e sua comitiva. E ele supunha-se muito seguro, longe da espada de Pallingrini.

Ria a bom folgar.

A Domitila, recusando-se embora a pagar-lhe imediatamente os mil cruzados prometidos, recheava-lhe a bolsa, de constante, e permitia-lhe algumas diabruras, que o arredassem por momento da vigilância sobre a prisão de Branca.

E d. Bias fazia-se agora de pagador, e falava alto e fanfarronava à vontade entre aquela gente que lhe ia escorropichando os pichéis.

Fez-se branco, pois, trêmulo como um esqueleto de museu agitado pelo vento, quando o Satanás bateu-lhe ao ombro fortemente.

Mas recuperou logo a presença de espírito. Estava diante do inimigo. E se lhe faltava a coragem de desembainhar a nunca desembainhada durindana, compreendia a necessidade de esgrimir a mentira - a única arma que ele sabia manejar.

- Bem hajas pelo teu regresso! disse. Tu desapareceste de repente, e eu tinha, entretanto, importantes comunicações a fazer.

- E eu ando à procura dessas comunicações, fez o Satanás com a voz soturna, sentando-se do outro lado da mesa e esvaziando um copo que ali estava.

- Então, pergunta. As minhas idéias, assim, se concatenarão melhor e com mais vantagens para ti.

- Pois bem! O que é feito de Branca?

- Que Branca?

- A minha filha! Aquela moça loura que desapareceu bruscamente depois do crime da rua do Conde.

- Era tua filha!

- Sim.

- Pois não sei! afirmou d. Bias resolutamente.

Descobrindo que a sua encarcerada era filha do Satanás, o magro fantasma de d. Quixote teve ímpetos de revelar-lhe tudo. Perpassou-lhe no cérebro a idéia de ajoelhar-se, de rojar-se ao chão, de dizer ao escultor:

- Tua filha! Sou eu quem a tem prisioneira. Mas perdoa-me. Eu, só eu te a posso restituir. Vem comigo. Vem buscá-la. Mas perdoa-me. Conserva-me a vida. E dá-me os mil cruzados que a Domitila me prometeu.

Mas d. Bias amava Branca. A meiga e triste filha do Satanás deixava que ele a abraçasse. Sorria numa alegria infantil de louca. E muito baixinho dizia-lhe ao ouvido uma suave cantilena de amores: - Paulo! meu Paulo!

Por isso ele afirmou:

- Não sei.

O Satanás não lhe permitiria com certeza o prolongamento desses idílios de prisão. E d. Bias amava Branca.

Também o outro não insistiu.

Não eram essas propriamente as revelações que esperava. Perguntara por perguntar, para dar saída a essa idéia que o obsedava, que lhe fazia o mais forte e o mais insistente das preocupações. E, sem mais referir-se ao caso, continuou o inquérito relativamente aos pródromos do drama.

- Como soubeste que lá em cima, na minha casa, havia gente a se matar?

- Eu te conto, Satanás. Eu conto.

- E toma tento em ti. Fala a verdade. Por que se não...

E um grande murro sobre a mesa completou-lhe o pensamento.

D. Bias começou assim:

- Naquela noite, sabia de uns amores misteriosos, que não te relatarei nem por quinhentos milhões de diabos, nem que venha o inferno todo inteiro em guerra aberta contra mim, porque sou fidalgo das Espanhas e nunca meus lábios traíram o segredo da reputação de uma mulher.

O Satanás olhou-o muito sério, com a força violenta do seu olhar de fogo.

- Escuta! d. Bias. Trata de dizer-me a verdade e deixa-te dessas retóricas.

- Mas...

- O melhor é perguntar. O que fazias tu na rua do Conde por aquelas horas da noite?

D. Bias, então, sentiu uma grande necessidade de expandir-se, de dizer a verdade toda inteira àquele homem que ele se habituara sempre a temer, que o dominava com todo o prestigio da sua força, e que estava ali, defronte dele, a crestá-lo com a chama insistente do seu olhar de fera.

E disse tudo. Disse como d. Pedro o chamara para uma empresa amorosa, como eles se tinham ido postar diante da casa de Branca, como o tinham visto a ele, Satanás, entrar e sair, como tinham entrado depois, como tinham garrotado e amordaçado d. Emerenciana, como o príncipe subira e estivera lá em cima a sós com Branca como a casa tinha sido assaltada pelo valente capitão das guardas, como ele, d. Bias, tinha fugido e vindo lhe pedir socorro.

- Miserável! praguejou o Satanás.

E, para saciar logo a sua sede de vingança, para dar aos músculos nessas grandes tempestades de idéias que lhe espatifava o cérebro, o escultor suspendeu d. Bias pela cintura e atirou-o com durindana e tudo para o meio da sala.

Depois saiu, possesso, louco de raiva, qual fera bravia em cio de vinganças.

D. Bias levantou-se, a mão aos copos da espada, numa compostura honesta de homem insultado, que exige uma reparação imediata e sanguinolenta.

- Por S. Tiago de Compostela! Os fidalgos não fazem assim! Brigam lealmente e não fogem como este Satanás de todos os infernos.

Lá fora Pallingrini foi-se acalmando com a frialdade da noite.

O vento caía-lhe sobre as faces como uma ducha, chamando-o à realidade da vida. E ele fez-se mais quieto, diminuiu o passo, que trouxera acelerado até então, e pôs-se a meditar.

Queria uma vingança, vingança completa, vingança de italiano.

Branca! Ela deveria estar em poder do príncipe. E era preciso reavê-la. Para isso não havia brutalidades e violências que produzissem resultado. Ele tinha necessidade de fazer-se manhoso e hipócrita. D. Pedro seria agora o seu mestre. Ele soubera tão bem compor a fisionomia traidora e fazer-se amigo e confidente naquela recente viagem a Santos, que bem valia a pena imitá-lo.

E, depois... depois, quando à força de vigilância e de astúcia ele tivesse descoberto o esconderijo onde o príncipe lhe guardava a filha, quando tivesse abraçado Branca, quando readquirisse a posse daquele amor imaculado e puro, ideal e santo de pai, depois... viria a luta, luta de gigantes, para a qual ele traria toda a energia do seu temperamento e toda a audácia nunca desmentida do seu viver.

Não lhe bastava a morte de d. Pedro. D. Pedro era valente. E, para ele, a morte era apenas esse fatal desenlace da vida que não assusta aos fortes e que o homem procura muitas vezes.

Para que matá-lo?! Embora o horóscopo fatídico da cigana aí estivesse a dizer que um dos dous devia morrer pela mão do outro, ele não queria matar o príncipe. Queria-o miserável e vencido, morto no seu orgulho, arrastando uns dias infaustos de vilipêndio, martirizado por essa angústia de abatimento que é o suplício dos fortes.

E, horrivelmente calmo, como o espetro sinistro das vinganças, ele cortou as trevas da noite com um gesto largo de ameaça.
––––––––––––-
continua

terça-feira, 12 de março de 2013

A. A. de Assis (A Trova na Imagem - 7)


Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 19. Embriaguez

Viajou hoje no bonde um homem embriagado, meio dormindo. Quando chegamos ao ponto, no centro, todos descemos, e ele ficou. O condutor foi interrogá-lo, ver porque não descia. Sacudiu-o. "Ó amigo, já chegamos! Ó amigo..." O bêbedo abriu um olho, ergueu a cabeça, e deixou-atombar de novo sobre o peito. "Ó amigo! então não desce? Ó amigo..." O ébrio tornou a abrir um olho, fixou-o no condutor, e murmurou: "Toca o bonde." -"Mas olhe que tem de pagar outrapassagem! Ó cidadão! está ouvindo? Tem de pagar outra passagem!" -"Sim!" berrou o homem.

"Sim! eu pago outra passagem! Toque essa porcaria! Siga! Eu pago quanto você quiser. Olhe, tome!" E estendeu ao condutor uma prata de dez tostões.

Quando o condutor lhe restituía o troco, o beberrão, já manso, fez um gesto trêmulo de repulsa amigável. "Guarde para você, guarde lá... ouviu? Mas olhe aqui, condutor, mande tocar maisdevagar nas curvas... sim? É só o que eu lhe peço. Mais devagarinho nas curvas!" E o ébrio recostou-se, acomodou-se, cruzou as mãos sobre os joelhos e fechou os olhos, como se estivesse na mais fofa poltrona, debaixo de um teto amigo.

Explicou então o condutor porque é que ele queria menos rapidez nas curvas: é que já havia levado um meio trambolhão do bonde abaixo, numa delas. Assistiam à cena dez ou doze curiosos, que muito se divertiram. Nunca há maior divertimento do que ver um homem em situação degradante, e "risível", que por via de regra é risível porque seria própria para entristecer.

E porque o estado de bebedeira é degradante? Já sei: é pela mesma razão por que é risível, é que diminui o homem ex abrupto, o reduz à condição de autômato, de um autômato e amarfanhado. Mas há tanto outro gênero de embriaguez que passa como se não fosse degradante nem ridículo! Por que?

Os efeitos são os mesmos: um homem sem a posse completa de si próprio, sem sequer essa espécie de dignidade animal que consiste na harmonia espontânea dos movimentos com as "finalidades" naturais, da estrutura; um homem que se torna inconveniente ou se torna perigoso, que tem de ser aturado nas suas importunações, ou carregado como uma coisa, ou conduzido como um animal, ou que extravasa, dá escândalo e faz desordem.

Há a bebedeira de morfina, éter e similares, e das paixões políticas, profissionais e confessionais, a da ambição doentia, a do exibicionismo patológico; há a embriaguez moderna da atividade exacerbada, que, como todas, enfuria, desfalca, mecaniza e deforma a natureza do homem. E há a embriaguez da sensualidade que se desdobra nesta epidemia universal de ostentação, de festas e de fantochismo dançante. E há a embriaguez do automóvel, embriaguez típica.

O paciente começa por tomá-lo aos poucos, e às vezes arrenega, às vezes duvida entre si se é bom ou se não será. Mas volta, e prova mais uma vez, mais outra, e mais outra, aumentando as doses. Para encurtar, não tarda que seja um viciado. Torna-se um automobilimaníaco. Anda quase constantemente automobiliagado, com períodos lúcidos de mais em mais breves, em que trata de seus negócios e participa da vida íntima de sua família.

Quando está em crise, empalidece, enrija-se, tem os olhos parados, o lábio descaído e branco. A pequena velocidade é a fase alegre e brincalhona: ele pirueteia, ziguezagueia, faz gracinhas com a máquina, assusta o transeunte pacífico, dirige pilhérias aos guardas. A velocidade média é a fase da provocação e do "leve o diabo". A velocidade máxima média é o estado delirante: a consciência acaba de desaparecer, desaparece tudo, ou tudo se reduz a um sonho agônico, em que a personalidade tem a abafada impressão de se libertar das prisões materiais e voar no vento e na luz.

Embriaguez detestável como qualquer outra. Mais do que qualquer outra produz vítimas, que não são unicamente os enfermos, conforme todos os dias revelam as crônicas. E, como muitas outras, deixa suas heranças à descendência.

Entretanto, não se cogita de uma lei seca para esse flagelo.

A verdade é que o homem é um ser que se embriaga. Não importa a maneira: o essencial é embriagar-se. Morfina, éter, coca, ópio, vinho, grappa, whisky, gin, vodca, cerveja, automóvel, jogo, esporte, dança, negócios, arte, política, notoriedade, glória, ódio, tudo lhe serve, contanto que lhe permita, conforme os temperamentos, sentir a falsa plenitude de um desaforo interior, embora à custa do desbarate e da quebra do rico, vário e harmônico plano natural da construção humana.

Dizia Tolstói que o homem procura no álcool e no tabaco o entorpecimento do Eu consciente. E é verdade. Mas o álcool e o tabaco não são os únicos mananciais dessa felicidade mutilante. Há-os em barda por aí, todos produzindo efeitos exteriores análogos, todos proporcionando o mesmo resultado interior, quer se trate de um cigarro ou de um trago, quer de um veículo atirado como um buscapé ou de uma paixão ou preconceito absorvente, que se cultiva: reduzir o campo dos cuidados, abafar uma porção de vozes que balbuciam dentro de nós, prevenir um mundo de preocupações e de angústias possíveis, apequenar a nossa humanidade, pôr entre nós e o cariz oceânico da vida um véu que o esfume e nos tranqüilize.

Não nos ríamos do bêbedo, ríamo-nos de nós. Todos temos o nosso copo, e todos parecemos obedecer ao conselho de Omar Kayyám: Sonha que já não és, e sê feliz.

És que? Homem, cá para o nosso caso.

Fonte:
Domínio Público

Alberto Figueiredo Pimentel (Desânimo)


Alberto Caeiro (Caravela da Poesia XVI)

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

A ÁGUA CHIA NO PÚCARO QUE ELEVO À BOCA

A água chia no púcaro que elevo à boca.
«É um som fresco» diz-me quem me dá a bebê-la.
Sorrio. O som é só um som de chiar.
Bebo a água sem ouvir nada com a minha garganta.

A CRIANÇA

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

A ESPANTOSA REALIDADE DAS COUSAS

A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. naturalmente.

Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

A GUERRA

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.

A guerra, como todo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.

Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por conseqüência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza
os pôs.

Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer cousas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.

A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.

A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as cousas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

A NEVE

A neve pôs uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as ações do mundo.

A NOITE DESCE


A noite desce, o calor soçobra um pouco,
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
E tivesse raiz, ligação direta com a terra
Não esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noite.
À noite quando me separo das cousas,
E m'aproximo das estrelas ou constelações distantes —
Erro: porque o distante não é o próximo,
E aproximá-lo é enganar-me

Fonte:
Poemas Inconjuntos (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/inconjuntos.htm)
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet,
sem identificação do autor.

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) Parte 1

Pegadinha 1

Desculpem o transtorno.


O verbo desculpar é transitivo direto e indireto, isto é, ele possui dois objetos: um direto e outro indireto. A ordem em que esses objetos figuram na oração é indiferente.  Pode vir primeiro o objeto direto, depois o indireto, ou vice-versa. Trocando em miúdos, quem desculpa, desculpa alguém por alguma coisa. O objeto direto é sempre uma pessoa e o indireto é alguma coisa. Seria muito desagradável, neste caso, procurar o transtorno para desculpá-lo por alguma coisa que tenha feito de errado. Será que foi o transtorno quem escreveu essa frase?

O correto seria escrever:

Desculpem-nos pelo transtorno.
––––––––––––––––––––

Pegadinha 2

Agradecemos a preferência.


Vamos aprender a agradecer em bom português. Muita gente boa agradece mal aos seus clientes por falta de conhecimento de transitividade verbal. O verbo agradecer, nessa construção, possui outra regência, que o transforma num transitivo indireto acompanhado de um adjunto adverbial de causa. Na frase errada, acima, o agradecimento é dirigido à causa (= a preferência) e não ao seu agente (= o cliente ou os clientes).

Para agradecer, corretamente, deve-se escrever assim:

Agradecemo-lhes pela preferência.

ou

Agradecemos aos nossos clientes pela preferência.
––––––––––––––––––––

Pegadinha 3

São os banqueiros que acabam lucrando.


Neste tópico de dicas de português para concursos, a expressão é que não é genuinamente um verbo. Trata-se simplesmente de uma locução de realce, que a usamos, evidentemente, para dar destaque à ideia expressa na frase. Por tratar-se de um mero adorno frasal, essa locução é totalmente dispensável sem prejuízo para o sentido da oração. Exemplo:

É os banqueiros que acabam lucrando. = Os banqueiros acabam lucrando. (A igualdade é de significação, é lógico.)

Mais exemplos:

Só nós dois é que sabemos o quanto nos queremos bem. (Letra de canção portuguesa.)
Seria ridículo dizer: Só nós dois somos que sabemos o quanto nos queremos bem. A frase original pode ser escrita, sem nenhum prejuízo para a sua significação: Só nós dois sabemos o quanto nos queremos bem.

É eles que representarão o presidente. Essa frase está correta. Estaria incorreta se fosse escrita assim: São eles que representarão o presidente. Se eliminarmos do contexto a expressão de realce é que, veremos que o sentido é o mesmo: Eles representarão o presidente.

Muito cuidado! Nas questões de português, sobre concordância verbal, as organizadoras de vestibulares e concursos públicos costumam usar, de vez em quando, frases desse tipo, induzindo o vestibulando ou concursando a considerá-las incorretas.

Concluindo, indicamos como escrita correta da frase do topo a seguinte construção:

É os banqueiros que acabam lucrando. - ou

Os banqueiros é que acabam lucrando.

Lembrar: é que – é uma locução de realce.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Leonilda Yvonneti Spina (Trovas para Luiz Otávio)

Luiz Otávio é fundador
do movimento da trova,
que nunca perde o fulgor,
cada dia se renova.

Luiz Otávio, o Trovador,
é fonte de inspiração
aos que trazem com amor
a trova no coração.

Luiz Otávio, o Trovador,
homenagem bem merece.
Ele fez trovas de amor
que a gente jamais esquece.

Com Luiz Otávio surgiu
a trova neste país.
Quem o segue já sentiu
que hoje é muito mais feliz!

Fonte:
A autora

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte VIII – O Grito Auriverde

Naquele tempo fazia-se a viagem de Santos a S. Paulo, através do mato virgem. A serra que a Estrada Inglesa hoje corta, e por onde sobem os vagões bufando, só podia ser galgada a cavalo, dificilmente, penosamente. A jornada de d. Pedro fez-se por um dia magnífico. A serra inundada de sol encrespava a sua vegetação prodigiosa, de um lado e de outro do estreito caminho, aberto na mata, por onde os cavalos trotavam enchendo as grotas de ecos prolongados.

A frente da comitiva, o príncipe cravava de instante a instante as esporas no animal. Ao seu lado, seguia o comandante do regimento. O Satanás vinha mais para trás, com a capa voando ao vento, na impetuosidade do galope. Depois, atropelado e veloz, - num grande estrupido, o regimento de cavalaria abalava a serra, voando.

Ninguém falava. O príncipe seguia preocupado, por aquele novo aspecto que tomavam as cousas, impondo-lhe agora um procedimento cujas conseqüências ainda não se podiam prever. Esquecera-se já dos tristes sucessos da casa da rua do Conde. A princípio, o remorso lhe apuara o coração, vendo-se o causador daquela grande desgraça. Branca resistira com uma tenacidade, que ofendera a sua vaidade de conquistador irresistível. Era a primeira mulher que opunha um obstáculo à satisfação de um desejo seu. Ferido no amor próprio, não recuou diante de uma violência. Nenhuma das outras recusara aquela honra, nenhuma! - estas, por amor, cedendo-se com paixão àquele belo fidalgo que governava o maior país da terra, e cujos lábios e cujas mãos tinham carícias tão novas, afagos tão doces; aquelas, por vaidade, amando-o por luxo, dando-se a ele pela satisfação de se sentirem princesas no breve espaço de um espasmo de gozo; outras, por imposição de maridos e pais ambiciosos, fazendo do corpo de uma esposa ou do corpo de uma filha sólidos degraus para a subida gloriosa do poder... Nenhuma das outras recusara aquela honra, nenhuma!

E era aquela criança tímida e fraca, era aquele pedacinho de gente, que lhe vinha cravar os olhos na face, atrevidamente, corajosamente, e dizer-lhe sem tremer: - Não te quero, não te desejo, não serei tua, porque não te amo, porque amo um outro que é mais belo, que é mais amante, que é mais forte do que tu!
Depois, quando vira entrar no quarto Paulo de Andrade quando compreendera que era aquele o seu rival, o príncipe esperara-o a pé firme, olhando-o face a face, num ímpeto daquele seu belo temperamento, tão seu e tão nobre, que o faria afrontar todos os perigos, que o fez uma vez, mais tarde, sozinho, em S. Cristóvão, esperar na rua um homem que o ofendera, e retalhar-lhe o rosto a chicote.

Mas, Paulo recusara, preferindo matar-se a erguer a mão contra ele.

E vendo-o morto, o príncipe, compreendendo que ia haver um escândalo, saiu daquela casa, fugindo do lugar onde fora procurar um gozo passageiro e onde ganhara um remorso terrível.

Agora, porém, essa preocupação fora sufocada por outras mais sérias. O homem desaparecera. Em seu lugar ficava apenas o príncipe, com toda a grave responsabilidade de uma conspiração política.

Era possível recuar? A guerra estava declarada. A tropa portuguesa capitulara no Rio e não tardava muito que capitulasse também em todo o resto do Brasil. O senado conferira ao príncipe o título de Defensor Perpétuo do Brasil; não lhe impunha esse titulo o dever de resistir a tudo e a sacudir de uma vez o jugo da metrópole? Não era defender o Brasil e, mais do que isso, salvá-lo, fazer com que ele se constituísse nação independente?

Quanto ao Satanás, a sua preocupação era de outra natureza; o desgraçado pensava na filha, de quem não sabia, de quem já não queria saber, atolada na desonra, roubada ao seu afeto.

O desejo de vingança enchia-lhe a alma de rancor; poderia numa hora de júbilo supremo, roubar a vida a quem lhe roubara a felicidade? conseguiria enfim satisfazer a sua única preocupação de agora, deitando a mão ao verdadeiro culpado?

D. Pedro interrompeu-lhe a meditação, chamando-o para junto de si.

- Dize cá, Satanás! tens confiança no futuro?

- Por que não? é tão bom esperar, mesmo quando só há motivo para desespero!...

- Duvidas então do êxito da minha última aventura?

- Não! não duvido... Era do meu futuro que falava e não do seu. O seu futuro é garantido: que motivo teria eu para duvidar dele?

- Também me parece isso. Demais não foi só a minha ambição que trouxe os acontecimentos ao pé em que estão: foi também a fatalidade que preparou tudo, dando-me este papel, que não posso recusar, porque há muito tempo que o desejava e pedia a Deus. Agora é caminhar.

D. Pedro alongou a vista pelo horizonte. Agora, galgada a serra, rasgavam-se as planícies verdes, cheias de tufos de árvores, arrepiadas de outeiros, circuladas de montanhas.

- Será talvez o primeiro do mundo, este país que Deus me quis dar, na sua justiça infinita. Desgraçado de quem, chegado ao meio do caminho, tem medo do desconhecido e dá as costas ao que tem de vir. Eu já não posso parar. Vencerei o futuro, ou serei vencido por ele. Mas serás meu, país abençoado...

E, parado, sofreando a carreira ao cavalo, de cabeça erguida, belo e transfigurado, o príncipe teve um largo gesto que varreu todo o horizonte.

E abalou de novo, ato do galope, pela planície afora, como se quisesse chegar mais depressa a esse futuro que lhe sorria e que o chamava, acenando-lhe com uma coroa e com a glória da fundação de uma grande nacionalidade.

Depois de um longo silêncio, foi o Satanás o primeiro a falar.

- E já não é possível reprimir o ódio entre brasileiros e portugueses, senhor. São conflitos constantes, rixas de todos os dias. E só o que se deve recear. Se a população portuguesa reagir? se mesmo a população brasileira recuar?

- Não recuará. Pois não foi o próprio povo quem me pediu que ficasse, exigindo que eu rompesse com meu pai?

- Não há que fiar no povo, senhor. O povo quer uma cousa hoje e outra amanhã. De mais, mesmo confiando no povo, não se devem recear as alternativas da guerra?

- Mas as últimas noticias são boas. Labatut, na Baía, caminha de vitória em vitória. Venceremos.

E não falou mais, senão quando, no vale do Ipiranga, às margens do rio que se acachoeirava, espumando, entre ribas de verdura, ordenou que se fizesse um pequena parada de descanso, antes de entrar na cidade.

Todos se apearam.

Na serenidade da tarde, as palmeiras bracejavam no ar. Havia uma grande suavidade no céu muito azul, limpo de nuvens, cortado de asas. Os cavalos saíram pelo campo, a pastar. Os soldados estenderam-se na relva, prostrados por aquela caminhada longa, ao sol forte de setembro. Abriram-se as garrafas de cana, acenderam-se os cigarros.

D. Pedro e Satanás falavam de Marta, da peixada de escabeche, da beleza de Maria.

- Homem, por falar em peixada... fez d. Pedro, e disse uma cousa que fez o outro rir muito.

O príncipe riu também, e levantando-se, entrou numa moita.

Mais longe, na entrada do vale, levantou-se uma nuvem de poeira. Ouvia-se um galope. E, em breve, um cavaleiro apareceu. Ao chegar perto da comitiva, apeou-se, e deixou-se cair no chão, sem fala, coberto de pó, extenuado.

Tinham chegado a Santos, logo depois da partida do príncipe, novas notícias, ainda mais graves, ainda mais aterradoras.

Era ele quem as vinha trazer. Tinha viajado sem parar um instante, num galope louco pela serra acima.

O comandante do regimento foi procurar o príncipe. Encontrou apenas o Satanás, sentado numa pedra, cotovelos sobre os joelhos, face sobre os punhos, pensando.

- Onde está o príncipe?

O Satanás levantou os olhos e disse gravemente:

- Espere um pouco. Está ocupado. Foi apanhar uma parasita.

Quando o príncipe veio, não o surpreenderam as notícias. Confirmava-se o consta de terem sido os deputados brasileiros obrigados a fugir de Lisboa. Esses deputados eram Antônio Carlos de Andrade e Silva, Cipriano Barata, Lino Coutinho e Diogo Feijó. Antônio Carlos, em plena sessão das cortes interrompido num discurso, bradara num belo assomo de indignação: - Silêncio, canalha! Quando fala um brasileiro ninguém o interrompe!

O governo português, diziam mais as notícias, dispunha-se a mandar uma esquadra para o Brasil, para reprimir a revolução. Era preciso agir, com a máxima urgência.

D. Pedro não pestanejou. Chamou o comandante.

- A cavalo! forme o regimento!

E arrancou do chapéu o pendão azul e branco. Depois, tirou de uma árvore uma folha verde, listrada de amarelo, e, substituindo-a ao pendão, montou também a cavalo.

O regimento esperava, em linha, a voz de marchar. O príncipe estendeu o braço:

- A caminho!

E, com uma voz que ecoou longamente, na tarde radiante, pelas quebradas da serrania, soltou o seu grito de guerra - Independência ou morte!
–––––––––––-
continua

Cassiano Ricardo (Desejo)