segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 12 – 5 de fevereiro de 1887

Quem diria que o Cassino,
Onde a fina flor se ajunta,
Ficaria tão mofino,
Que é quase cousa defunta?

Aqueles lustres brilhantes,
Que viram colos e braços,
Pares e pares dançantes,
E os ardores e os cansaços;

Que viram andar em valsas,
Quadrilhas, polcas, mazurcas,
Moças finas como as alças,
Moças gordas como as turcas;

Que escutaram tanta cousa
Falada por tanta gente,
Que eternamente repousa,
Ou geme velha e doente;

Que viram ir tanta moda
De toucados e vestidos,
Vestidos de grande roda,
E vestidos escorridos;

Ministros e diplomatas,
E outros hóspedes ilustres,
E sábios e pataratas...
Ó vós, históricos lustres,

Que direis vós desse estado,
Cassino a beira de um pego;
Melhor direi pendurado
De um prego, lustres, de um prego?

Deve até o gás, aquele
Gás que encheu os vossos bicos,
Que deu vida, em tanta pele,
A tantos colares ricos.

Deve ordenados, impostos,
E gastos tão incorretos,
Que até não foram expostos
Por diretores discretos.

E vede mais que há ruínas
No edifício, e é necessário
Colher muitas esterlinas
Para torná-lo ao primário.

E há mais, há a idéia nova
De alguns acrescentamentos,
É pôr o Cassino à prova
Com outros divertimentos.

Oxalá que a cousa saia
Como se deseja. Entanto
Posto que a reforma atraia,
Acho outro melhor encanto.

Não basta que haja bilhares,
Conversações e leituras
Partidas familiares,
E algumas outras funduras.

Preciso é cousa mais certa,
Cousa que dê gente e cobres,
Disso que chama e que esperta
Vontades ricas e pobres!

Não digo elefante branco,
Nem galo de cinco pernas,
Nem a ossada de um rei franco,
Nem luminárias eternas.

Mas há cousa que isso tudo
Vale, e vale mais ainda,
Cousa de mira e de estudo,
Cousa finda e nunca finda.

Que seja? Um homem. E que homem?
Um homem de Deus, um Santos,
Que entre as dores que o consomem
Não esquece os seus encantos.

Esse general que estava
Há pouco em Paris, e voa
Quando apenas se curava.
Voa por mais que lhe doa,

Voa à pátria, onde uns pelintras,
A quem confiara o Estado,
Para ir ver as suas Cintras,
E tratar-se descansado,

Entenderam que podiam
Passos de pouco préstimo
Governar, e que o fariam,
Como seu, o que era empréstimo.

Homem tal, que mais não sente
Que a sede do eterno mando,
Que, inda prostrado e doente,
Quer morrer, mas governando,

Olhe o Cassino, valia
Algum esforço em pegá-lo
No dia, no próprio dia
Em que passasse, e guardá-lo.

Pois tão depressa a Assembléia
Oriental e aterrada
Soubesse disso — uma idéia
Seria logo votada.

Vejam que idéia e que tino:
Que anualmente o seu tesouro
Pagasse ao nosso Cassino
Trezentos mil pesos de ouro,

Quando à velha sociedade
Particular encomenda
De guardar nesta cidade
Aquela famosa prenda.

Com isso, e mais o cobrado
Às pessoas curiosas,
Passavas de endividado,
Cassino, a maré de rosas.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Folclore Sueco (Ingeborg e Hialmar)

HIALMAR, o herói descendente dos Vetars, tinha feito um pacto de fraternidade com Orrar Oddur, o Viking.

Juntos se haviam apresentado ao rei de Sigtune, Ané, prometendo-lhe fidelidade absoluta.

O rei Ané tinha uma filha chamada Ingeborg, que amava secretamente Hialmar, e sentia-se desgraçada porque acreditava que o herói não reparara em sua beleza. Estava, porém, enganada, pois que também Hialmar a queria, embora jamais tivesse confessado seu amor.

Em Bolmsé, país próximo de Sigtune, remava Ansgrim, o gigante, pai de doze filhos, todos audazes guerreiros. O mais velho, Hiovard, tinha contemplado uma única vez a formosura de Ingeborg e por ela se apaixonara de tal maneira que, quando chegou a festa de Yul — a festa do verão — e Ansgrim e seus filhos brindaram com a taça de hidromel para que cada um deles propusesse uma nova gesta com que se expandisse sua fama de heróis, Hiovard declarou que aquele ano conseguiria a mão da princesa de Sigtune, mesmo que a isso se opusessem o Rei e todo o país.

Ansgrim, prudente, lembrou ao filho a presença em Sigtune de dois irmãos de armas: Orrar Oddur, o Viking, e Hialmar, o herói. Hiovard assegurou que estava disposto a bater-se fosse com quem fosse, e dez de seus doze irmãos beberam a taça de hidromel, declarando que se colocariam ao lado de seu irmão em qualquer circunstância, e que lutariam em defesa dele contra todos os guerreiros de Sigtune reunidos.

Angandyr, o mais moço, tinha ainda intacta sua taça de hidromel. O pai, surpreendido, perguntou-lhe se êle seria suficientemente covarde para não se unir à luta de seus irmãos pela conquista de Ingeborg. Levantou-se, então, o mais moço dos irmãos e declarou que acompanhar os demais na luta contra Sigtune parecia-lhe pouca coisa. Queria encontrar, e apoderar-se da espada Tirfing, cujo fio era envenenado e saía vitoriosa de todas as lutas. Os anões, inimigos dos deuses do Valhala, tinham forjado aquela espada, havia muito tempo. Vários heróis tinham-na possuído, e com ela conquistado memoráveis vitórias. Agora estava escondida nas profundezas da terra, e ninguém sabia de seu paradeiro.

Tanto o pai como os onze irmãos do jovem admiraram-lhe a coragem de formular tal promessa, que consideravam impossível de realizar.

Pouco tempo depois, os doze irmãos dirigiram-se para Sigtune, onde foram recebidos em audiência pelo rei, rodeado de todos os seus guerreiros. Angandyr olhou atentamente para a espada de todos os presentes, sem poder descobrir a Tirfing entre elas.

Ao oferecer-lhe Ané a taça de hidromel, Hiovard recusou-a, dizendo que não tinha vindo em ânimo pacífico nem para beber com ele. Vinha buscar a princesa Ingeborg, que solicitava como esposa.

Antes que o Rei tivesse tempo de responder, levantou-se Hialmar com tal violência que sua armadura ressoou estrepitosamente. Colocou-se na frente do Rei e disse-lhe que ele havia defendido todo o tempo as costas de seu Estado, que as rochas do mar podiam dar testemunho dos numerosos combates que às suas margens tinha ganho. Nunca pedira uma recompensa, porque sentia satisfação em cumprir a promessa, que fizera quando ainda era quase uma criança, de dedicar sua vida à salvaguarda de seu país. Agora se tornara um homem e não se sentia disposto a esperar, só e sem lar, a chegada da morte. Também ele amava a princesa Ingeborg, e solicitava-lhe a mão dela.

O velho Rei vacilou. Não podia prescindir de Hialmar, mas também temia a cólera dos filhos de Ansgrim. Não sabendo como resolver a questão, decidiu chamar sua filha, para que fosse ela quem escolhesse entre os dois apaixonados.

Apareceu Ingeborg ante eles, mais bela do que nunca. Ao saber o que .dela se esperava, sorriu, feliz, e, sem temor algum, sem vacilar um único instante, estendeu a mão para Hialmar, declarando que de há muito desejava ser sua esposa.

Hiovard e seus onze irmãos, indignados pela afronta que, segundo eles, lhes infligia Hialmar, desafiaram-no a que fosse a Samsé, combater com eles. Hialmar aceitou o repto.

Os doze gigantes saíram do palácio de Ané com o coração repleto de ódio e desejos de vingança. Mas chegaram apenas onze à casa de seu pai. Angandyr ficou pelo caminho, meditando sobre a maneira de apoderar-se de Tirfing e vingar-se de Hialmar.

Vagou pelos montes durante muito tempo, e, cansado enfim, com aquela caminhada, aproximou-se de umas pedras cobertas de musgo e deixou-se tombar sobre elas. Estava anoitecendo, e o jovem adormeceu.

Acreditou ver, em sonhos, como que uma luz azul que iluminava o espaço. No meio daquela claridade, Angandyr percebeu os anões que dançavam em torno de um átrio enegrecido. Entre saltos e risos entoavam uma canção, em que diziam que apenas um guerreiro forte e valente, que fosse digno de tal coisa, conseguiria encontrar Tirfing, a espada envenenada.

Quando a estranha visão se desvaneceu, Angandyr despertou e viu a seu lado uma espada. Apanhou-a, surpreendido. Era a Tirfing.

Aproximava-se a data do combate em Samsé. Ingeborg tecia uma forte couraça de seda para Hialmar, mas um terrível pressentimento impedia-a de adiantar o trabalho. As agulhas caíam-lhe das mãos e a jovem chorava amargamente, porque, embora confiando no valor e na audácia de seu amado, tinha a certeza de que ele morreria em combate.

Também Hialmar tinha esse pressentimento. Só a Orrar Oddur, que devia acompanhá-lo ao combate, confiara seus temores.

Chegou o momento da partida, e os dois apaixonados, com o coração cheio de dor, despediram-se à beira do mar. Ingeborg entregou ao seu noivo um anel de ouro, como prenda de seu amor e de sua fé. Hialmar colocou o anel no dedo e ao ver o amor que lhe dedicava a princesa a quem adorava, sentiu renascer a confiança e a coragem para afrontar o perigo da espada envenenada de Angandyr. O pensamento de que era ela o prêmio para a sua façanha dissipou seus lúgubres pressentimentos.

Orrar Oddur e Hialmar chegaram a Samsé e encontraram os doze irmãos. Onze deles precipitaram-se sobre Oddur. Hialmar lançou-se contra Angandyr.

Enquanto Orrar se defendia do violento ataque dos onze irmãos, gritava a Hiovard que aquele não era procedimento digno de nobres. Que cada um deles viesse à luta por sua vez, e ele daria boa conta de todos. Assim o fizeram, e, um por um, caíram os onze aos golpes fortes da espada do Viking.

Terminada a luta, Orrar voltou-se a procura de Hialmar. Angandyr jazia morto e Tirfing estava a seu lado, manchada com o sangue de Hialmar. Este continuava de pé, mas tinha no rosto a lividez da morte.

Ao ver aproximar-se seu irmão de armas, Hialmar pareceu reunir as poucas forças que lhe restavam. Dezesseis feridas dilaceravam-lhe as carnes. O veneno de Tirfing ia penetrando em seu coração.

Arrancou de seu dedo o anel que Ingeborg lhe dera ao despedir-se, e, entregando-o ao seu amigo, rogou-lhe que o devolvesse à sua amada dizendo-lhe que seu último pensamento tinha sido para ela.

Orrar deu sepultura aos doze irmãos. Apanhou depois o amigo e depositou-o no fundo da embarcação.

Dirigiu-se, muito triste, para Sigtune. Ao chegar, foi ver Ingeborg, que o recebeu ansiosamente. Entregou à princesa o anel de Hialmar, transmitindo-lhe, ao mesmo tempo, as derradeiras palavras do guerreiro, que tinham sido uma doce lembrança de amor para ela.

A dor de Ingeborg foi imensa. Contemplou, absorta, o anel, e, de súbito, vendo as manchas de sangue que nele havia, teve a ideia de reunir-se a Hialmar. Aplicou, pois, os lábios ao sangue envenenado, e absorveu-o desesperadamente. O veneno deslizou pelas suas veias, chegando até o coração.

Tirfing, ao matar Hialmar, tinha matado também Ingeborg.

Orrar Oddur transladou os corpos dos dois enamorados e enterrou-os em Samsé. Conta o mito que pouco tempo depois nasciam junto à sepultura duas bétulas frondosas e esbeltas, tão aproximadas uma da outra, que seus ramos entrelaçavam-se, como os braços de dois apaixonados. E ainda se assegura que nas noites de ventania, as copas das árvores, ao balançarem, pronunciam docemente, os nomes de Hialmar e Ingeborg.

Fonte:
Maravilhas do conto mitológico. Adaptação de Nair Lacerda. Cultrix, 1960.

Carlos Emílio Corrêa Lima (A Catedral)

Com a tinta vermelha do sangue dos que se foram, escrevo este manuscrito. Para narrar as terríveis coisas que estão acontecendo, nenhuma tinta servirá a não ser esta. Minha revolta e meu desespero aqui estão simbolizados. E também minha determinação. Retiro o sangue de corpos caídos nas calçadas, nos últimos parques, em todos os lugares dessa cidade devastada. Ele vem fresco, ainda líquido, soando no metal do balde. As frases correm soltas, cada vez há mais sangue. Além desse balde carrego sempre comigo uma seringa que serve para uso nos cadáveres sem ferimentos a bala. Tenho ainda mais simpatia por esses, eles se parecem comigo. Um dia uma família inteira forneceu-me sangue. Cortei as cordas e eles despencaram do galho sobre a grama, um a um. Uma suave brisa e os corpos dos avós, de seus filhos e dos netos imóveis sob a sombra do baobá, do único baobá plantado em Fortaleza nesses dois séculos. Um grande silêncio como se um novo sol estivesse para nascer inundou o parque. De alguma forma, nessas palavras seu passado e sua essência estão contidos. Transpira. Somos essas palavras, dizem eles, e a brisa continua a soprar. Ontem a única seringa que eu ainda possuía quebrou-se quando galguei um muro. Vi-me obrigado a invadir um hospital para roubar todo um novo estoque, para os dias que ainda restam. É interminável. Os hospitais estão paralisados. As pessoas morrem nas ruas sem serem atendidas, sem serem socorridas por ninguém. Nem mesmo eu as socorro. Já não há mais transfusão de sangue, o sangue não corre nas veias. O sangue flui em todas essas páginas. Há hemorragia contínua. Há perda de vida, mas o que estava em nós não pode ser definitivamente perdido. Temos que escrever a história da vida. Todos esses milhões de anos de vida não podem se derramar desse modo. É preciso uma caligrafia. Completar o ciclo. As pessoas estavam sendo mortas em plena rua, a cada instante. Tudo era triste, mas a escrita precisava continuar. Já não durmo há muitíssimo tempo. Escapei dos tiroteios, das bombas e meu nome ainda não foi afixado nos bancos, no tronco das árvores. Escapei de tudo, mas não escapei da morte. Um dia qualquer eles invadirão a casa e me metralharão. Aí a civilização se extinguirá, soprarão e apagarão a chama do universo. Sinto fome, sinto frio e a casa está aberta aos ladrões e saqueadores que procuram sobreviver de qualquer maneira, exatamente como eu. Eles entram e eu aponto o que há de mais valioso para levar. Dessa maneira não sou molestado por eles e nem interrompo o texto de todos nós. Faz trinta anos. Ainda existia o aeroporto, os holofotes ainda giravam seus feixes de luz na redoma estrelada das noites de verão, ainda se projetavam filmes no cinema principal, a biblioteca pública era frequentada, dançava-se. Faz trinta anos e como é distante, longo como o fio de sangue que escorria do corpo da velha e gorda escritora que uma vez dera uma conferência sobre Rocha Pombo e com a qual estou escrevendo essa carta para os cosmos. Valioso, remoto e envelhecido líquido do mistério, que tem em si o segredo dos minérios e a história química da vegetação, linfa do labirinto, fluindo do livro da Terra quando a cidade está gelada os mendigos morrem debaixo dos viadutos, enregelados, se petrificam ou então são mortos pela polícia ao amanhecer, quando poderiam estar despertando pela última vez. E eu, um derradeiro, a armazenar-te como tinta, a escrever o que acontecerá!, o que de fato aconteceu. Misturo todos os sangues num tanque que tenho no quintal e que já serviu de morada para uma imensa tartaruga que devolvi há muitos anos ao mar. Devo realmente parecer um vampiro, tal a minha magreza, o estado lamentável a que ficaram reduzidas minhas roupas. A água dos mortos em minha cisterna. Ali, entre as árvores do quintal, debaixo do grande coqueiro fazia tanto silêncio, tanto, meu Deus, quanto pavor! O vento é forte. Os tanques de guerra fazem estrondar as ruas, as louças tremem na cristaleira (as poucas que restam), as vidraças se partem. São mastodontes. Misturo todos os sangues aqui. Reservo, preservo. É bom. Talvez mais um pouco de tempo, mais um pouco de dor, de páginas escritas com a água dos mortos de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, o remoto forte pulverizado entre as dunas, talvez só mais um pouco de tempo. O primeiro, os arquitetos sempre imaginaram, sempre preservaram os segredos. A cidade foi imaginada pelas gerações, planificada. Ninguém sabe como, mas a cidade é a representação do nosso percurso quadrangular da história. A cidade, se traçado, oculta os segredos, as botijas, as misérias, os medos acumulados. Olhássemos para o mapa da cidade e veríamos a representação simbólica de nosso código genético, veríamos o que sentimos ao pôr-do-sol quando a criança chora, e o velho a retira como fizera com a tartaruga milenar numa praia rochosa e de escarpas cheias de rumor, numa noite estrelada de aparições e propícia e rituais. O velho ri, morre de rir, rola na areia, suja-se todo, gritando que o cometa vem, o cometa vem, e ele morre de procurar, morre de caminhar espavorido. O velho é a foz, o extremo, a transbordar, dois dias atrás, quando eu retirava mais tinta de escrever do corpo de um estudante baleado no estômago ao distribuir panfletos... o estudante também estava louco, todos estavam, a  represas rompiam-se, o mar era ouvido na boca das grutas lá no sertão, as águas ecoavam como no início do mundo, o cometa mais uma vez, lentamente, aproxima-se atraído pelo som do órgão tocado, pacientemente, na catedral e da água escorrendo das torneiras esquecidas, abertas para sempre, inundando as pias, os banheiros, as casas desabitadas, o estudante repetia um gesto já codificado, a matriz de um balé na memória, na minha e na dos que atiraram, em todas, que se diluem, que se juntam, que se fundem nesse oceano, nessa amplificação, nesse plasma, oh estamos no sol, no sol vermelho, oh eles quase me acertaram. Pensei que eles não voltariam a atacar naquela área, já a haviam limpado bastante foi o meu erro. Eles voltaram e eu era o único que ali ainda desobedecia ao toque de recolher lendo distraído o texto datilografado que acusava as autoridades locais de não terem resistido aos invasores. Um texto datilografado, isso me surpreendeu, lágrimas afloraram dos meus olhos. Talvez a máquina de escrever estivesse escondida debaixo da terra, no túmulo dos avós desse rapaz, no único local ainda um tanto indevassável, num desses cemitérios invadidos pelo mato, abandonados, de túmulos rachados, em cidadezinhas extintas, em final, repetidas na retenção do Distante. Eu via a silhueta do homem o crepúsculo entre os túmulos ligeiramente encurvado, tendo a máquina de escrever ao nível do umbigo, entre as mãos, pousada sobre o mármore gasto, no meio de uma região pedregosa, tanta força, ouvimos o bater nas teclas, o bater seco, que vai até ao amanhecer, o que estamos ouvindo são os tiros, o que eu ouvi foram os tiros, os tiros, os tiros à medida que trrrammmm eu começava a correr sentindo os músculos, correndo velozmente para a origem, para os primeiros dias, tendo ao alcance das mãos os objetos dourados. Mergulhei entre as ondas. A água cobriu-me todo. Sentia todo o meu corpo. Aos sessenta anos podia correr como um menino, o menino da floresta, quando havia a floresta e o texto não havia terminado de ser escrito. Ah, voltando do adiante onde eu quase havia podido ir, encharcado, sem o balde, sem a seringa, sentindo cansaço de milênios, deitei o rosto sobre a areia dourada e adormeci. A vida era um amplo templo, e o órgão não cessava de vibrar, de alimentar nosso sono. Eu caminhava sob a abóbada da grande catedral, da gótica, da híbrida, da majestosa catedral que, pouco a pouco, no pausado aprofundamento dos passos deixava de ser uma incógnita, tão ampla, as portas estavam abertas. (Via-se entre névoas, na praça em frente, a estátua de Pedro II semidestruída.) A catedral nos protege dos dinossauros. Desde muito longe um sonâmbulo caminhando e escrevendo na areia com um galho de árvore o que agora estou escrevendo, que antes bem aqui era mar. As águas baixaram de nível e a cidade foi sendo construída e sobre o local onde era mar começaram a cavar os alicerces da catedral. Antes não era batida de coração, respiração, ruídos pré-históricos de tanques de guerra e de aviões a jato. Vou escrevendo o que devo ter registrado sobre a areia da praia, com um supremo esforço, sobre o papel, com todo o passado sobre a areia, que o milagre acontecerá, sim, o milagre acontecerá. Sim, isso eu sei, eu e o padre que toca o órgão, essa melodia que se estende pela cidade como uma nuvem. A mais grandiloquente profecia. O pterodáctilo, o réptil voador, que partiu de uma fenda de Jericoacoara e seguiu sobrevoando o litoral até Fortaleza está pousando sobre a cúpula da catedral. O milagre acontecerá. O pterodáctilo pairou sobre a cidade, sua sombra imobilizou todos os afazeres públicos, dias antes da invasão quando os loucos gritavam a todos os ventos que o ataque iria começar. O pterodáctilo foi recebido com vaias, com aplausos, tão gigantesco, sobrevoou a cidade por toda a semana, era domingo, os vagabundos e os loucos ao sol vermelho, tudo era isso que aí está, nós o recebíamos assim, nossa última visão. A suprema alegria do poente. O anjo salvador. Riam e se abraçavam, todos. Bom final, o máximo que se poderia esperar antes da invasão e de trinta anos de caos. Todos bêbados e eu a escrever agora a história desse mundo pesado, desse mundo onde o sofrimento é a seiva. O sofrimento era o primeiro pântano, a descarga elétrica, foi quando eu nasci. Tudo se acionou. As páginas da floresta contam a história imensa em meio aos jogos e brincadeiras que se aprofundam e se elevam no tempo. Infância. Estávamos todos lá, na floresta e vimos, trinta anos depois o pterodáctilo desenhar o ir e vir por um teclado num volteio no céu, pousar na cúpula da catedral e depois de sete dias, com um elétrico grasnido que nos arrepiou até a semente, partir de volta para o rochedo longínquo, o rochedo mágico de Jericoacoara. Escrevi: ela nos protege dos invasores, como em Londres, permaneceu intacta no meio dos escombros causados pelos bombardeios. Eles retornam, mas aqui era mar, o mar cobria tudo isso aqui. Sobre o antigo terreno marinho o arquiteto, por ordens da arquidiocese começou a construir a catedral. Trinta anos de construção e ela ainda não pôde ser concluída. Preciso fugir das volantes, pular os muros, essa vida interminável que temos que preservar, precisa. Ela nos protege. Sempre sonhamos com ela. Todos os que ainda estão vivos em Fortaleza sonham, na escala das noites que se sucedem, com a catedral, a completam lentamente por esses dias de ruína. A torre esquerda será tão alta quanto a da direita. Ela nos dará apoio, gerará energias. Esperem, parece que Martim começou a tocar o prefixo. Gerará energias, é uma espiral de luz que absorvemos pelos poros. A música ecoa, em meio aos tiros, aos ruídos mecânicos, aos gritos, ela ecoa. A música que sempre quisemos ouvir, ouço-a por entre os galhos das árvores. Ouço-a, há um coro como o som das águas das ondas do mar, cantando e ouvindo, escoando. Misturei todos os sangues e a tinta escureceu, minha caligrafia está quase negra. Forma-se um novo ser. O milagre acontecerá. Não segurei junto com os outros porque minha função será registrá-lo. Devo ser a única testemunha. Eu, junto com os mortos, instrumento dos mortos a continuar escrevendo. Os sobreviventes não estão interessados em comunicar ao silêncio aquilo de que participam integralmente. Correm mães com seus filhos, correm os últimos jovens, escapando das balas, da matança desorganizada. Ouço seres passando velozmente debaixo de minha janela. E é por ela que diviso a catedral. Os que estavam nas fendas, os que se escondiam debaixo dos carros, nos cinemas paralisados, em fazendas distantes e profundas, os que sepultavam seus entes queridos debaixo das árvores em silêncio e com o mais completo cuidado para não mais molestar a terra e que já não aguentavam mais a noite eterna, ocultos que estavam nas matas das serras, dirigem-se em procissão apressada para o centro de irradiação daquela música magnética. Ah, essa é a minha solidão, possuir todo o meu tempo. Muitos anos atrás eu já havia pressentido o que iria acontecer. Avisara a todos os meus amigos, dissera aos meus filhos, à minha mulher, que se preparassem, que depois da velhice tudo seria novo, que ondas irresistíveis batiam, batiam e me avisavam. Foram baleados. Dalva morreu lendo. Estava no jardinzinho, na pequena área cheia de plantas que reservamos para a leitura. O helicóptero voava à baixa altitude, quase rente ao telhado e de lá dispararam. Ela lia as provas de meu novo romance e sei em que frase foi golpeada. Seus últimos pensamentos foram minhas palavras “e se algum dia te encontrares com a catedral, entra pelos vitrais, como luz, como irradiação e te assombres, ainda não estarei ali na viagem através do universo”... Tudo tão calmo apesar de aparência de brutalidade, de Dalva nem haver podido concluir o arco da respiração que seguia com a frase até o ponto. Meus filhos viram tudo, saíram correndo pela rua aos gritos chamando meu nome dizendo em meio ao choro, às rajadas e à inquietação, eu sei, mundo, velho mundo, cidades plantadas sobre a Terra, socorrei-nos, amparai-nos, os apitos, as buzinas, os motores do mundo, pai, amparai-nos, toda a construção, o ir adiante, socorrei-nos, pisando a Terra e a linguagem não é descoberta. Vendo a catedral pela janela sinto no peito a sensação dessa distância infinita, meus filhos longínquos. Não pude responder aos seus gritos. Ela estava morta, precisamente ela. Meus filhos tatearam formas estranhas, desconhecidas, sentiram gostos inéditos e se dissolveram no horizonte. É com muito sangue, com toda a amargura que eu continuo esse texto. Eu não quero morrer. Frase infantil e lapidar, devia ser esculpida em todos os túmulos inscrita numa circunferência. Só Adolf Rockfeller não pensa em morrer. Lá de Nova York, em uma das ilhas secretas, ele mexe com seus computadores, controlando a marcha do morticínio, traçando sobre o planisfério em sua imensa mesa as curvas e espirais da marcha de seus exércitos pela Terra: a rosa geométrica da destruição. Controlando o caos. Ao estudante morto resistiu. Os da resistência que não obedeceram à ordem do interventor de se manterem em suas casas para sempre (ele sempre em seu palácio assistindo à matança pela televisão e diante dos gráficos estatísticos da fome total também será baleado) resistiram e de seu sangue traço o panorama. A Terra está sendo rapidamente aniquilada. Nessa pequena parte do universo há três acontecimentos que se relacionam e que são os mais importantes.

O padre-arquiteto continua a tocar o órgão. É o ponto máximo da morte. Alta madrugada. Como espectros as pessoas entram na catedral. Há um clima de maresia, um cheiro de mariscos, de peixe, como nos sonhos. Sobre os barcos, os longuíssimos bancos de areia, há algas, caramujos. Toda a sorte de flora e de fauna marinha pende das paredes. O castiçal de prata que se avista, resplandecendo, logo da entrada, deve estar embebido de plâncton. Há um polvo no sacrário, em meio ao ouro faiscante. Minúsculos peixes nadam em água salgada, que substitui o vinho, nos cálices sobre a mesa do altar. O piso é de areia úmida, como se a maré naquele momento estivesse baixa, forma-se uma estranha sintaxe em nossas frases, há pedras e recifes, o mar vem vindo. As pessoas, depois de todo o sofrimento, pisam sobre o leito do mar. Mas há gatos, que pulam sobre o altar, derrubando a toalha branca com os cálices e o missal. Há um calor abrasante, um estremecimento que aumenta de intensidade. Todos estão ali. Cantam mas estão cheios de pavor ante o desconhecido. É o mar, é o mar que se aproxima. Nada pior do que as prisões, nada pior do que os hospícios, nada pior do que as escolas, nada pior do que a matança generalizada. Um som de cachoeira de areia invade o amplo espaço à medida que a luminosidade aumenta. O padre-arquiteto, o organista que durante todos os dias da invasão permaneceu ininterruptamente a tocar, o mesmo que batizou minha primeira filha e a quem eu salvei de uma doença considerada incurável, quando enfim ele bebeu água pura e nós dois nos regozijamos e começamos, depois de sua cura, a realizar nosso projeto secreto... Ah! Martim, sem dizer uma palavra, seguiu até o centro do altar. Entre a pressão dos dedos sobre as teclas e o som ecoar, transcorria um tempo interminável. O pensamento é um ímã. Quando ele subiu ao altar e abriu os braços diante de todos os fugitivos que ali estavam, a baleia-mãe rompeu a crosta. Da Terra. Ali estava ela, no interior da grande nave. O som aumentou. Era o fim do começo. O acorde que Martim fizera minutos atrás soou por todo o espaço. E a catedral, as paredes de pedra estremecendo, com todos os sobreviventes da desgraça humana reunidos em seu interior, elevou-se, sem desestruturar-se, iniciando sua viagem pelo universo. As crianças, que eram mais ágeis, que encaravam aquilo tudo com a mesma naturalidade de antes do texto haver começado, subiram as escadas da torre do sino que estava sendo tangido por um símio sorridente e fora para o terraço, no telhado, admirar do alto da abóbada a Terra se afastando, e as estrelas, cada vez mais as estrelas, perdendo lentamente a audição. Tal a repercussão e o deslumbramento. A pena começa a falhar e a chiar sobre o papel como uma agulha num disco arranhado. Devo levantar-me de minha escrivaninha porque irei desempenhar uma segunda missão, que mantive em segredo até agora. Há uma razão para eu não haver utilizado meu sangue nesta carta. Devo partir. Há um avião no aeroporto vazio, um bimotor antiquado mas ainda em boa forma, que escondi no hangar mais abandonado (tudo cessou, o aeroporto às escuras, bois pastando na pista, espectros horrendos de aviadores mortos da guerra infestando o local, os soldados ceifados nas ruas vitimados por um gás cósmico lançado pela catedral ao iniciar sua ascensão), um avião que irei pilotar solitário sobre o Oceano Atlântico durante a madrugada e de cuja cabina vislumbrarei a catedral radiante seguindo sobre o mar cada vez mais afastando-se do sol já que depois do amanhecer do dia seguinte, antes que o cometa nos dissolva, devo estar nas ilhas secretas de Nova York para, com o único tiro de revólver, matar Adolf Rockfeller.

(Carlos Emílio Corrêa Lima, Ofos)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Carlos Emílio Corrêa Lima

Carlos Emílio Barreto Corrêa Lima (Fortaleza, 1956) foi um dos fundadores da revista O Saco Cultural. Publicou os livros de contos Ofos (Fortaleza: Ed. Nação Cariri, 1984) e O Romance que Explodiu (Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 2006); os romances A Cachoeira das Eras (São Paulo: Ed. Moderna, 1979), Além, Jericoacoara (Fortaleza: SECULT, 1982) e Pedaços da História mais Longe (Rio de Janeiro: Ed. Impressões do Brasil, 1997); além do livro de ensaio Virgílio Várzea: os olhos de paisagem do cineasta do Parnaso (Fortaleza/Florianópolis: Edições UFC/FCSC, 2003), tese de mestrado em literatura brasileira, na Universidade Federal do Ceará. Participa das antologias: Queda de Braço: uma antologia do conto marginal, org. Glauco Matoso e Nilto Maciel (Rio de Janeiro: Club dos Amigos do Marsaninho, 1977) e Uma Antologia do Conto Fantástico, org. Bráulio Tavares (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003). Criou a revista Arraia Pajeurbe (Fundação Cultural de Fortaleza) e as Rodas de Poesias, recitais no Centro Cultural Dragão do Mar. Tem contos no Almanaque de Contos Cearenses, org. Pedro Salgueiro (Recife: Ed. Bagaço, 1997) e na revista Caos Portátil: um almanaque de contos.

Carlos Emílio é daqueles criadores para quem a folha de papel em branco diante dele deve causar angústia, por ser tão pequena, limitada. Ele precisaria de uma parede, um painel, onde pudesse escrever à vontade, assim como alguns pintores necessitam de murais amplos. Talvez uma parede lhe fosse ainda limitada e o melhor fosse um muro sem limites, onde pudesse escrever ilimitadamente. Seus romances e contos são longas caminhadas não por veredas, mas por largos caminhos. Longos passeios de barco não por igarapés, riachos, mas pelo Amazonas. Carlos Emílio não se contenta com um só drama, uma única célula dramática. O drama de seus contos e romances é cheio de tentáculos ou ramificações. Mas, apesar de à primeira vista pareceram dramas insólitos, são, na verdade, muito reais. Leia-se o conto “Pedrofídio”, no qual o protagonista narra suas dores, as picadas de cobra sofridas, o perambular pelos matos durante anos, a matar cobras, como um alucinado. No entanto, é apenas um miserável, um homem roubado, cuja avó foi enforcada por seu atual patrão, que o escraviza, faz dele “cabide”, onde pendura roupas.

Os personagens vão e vêm, cometem loucuras, se envolvem em conflitos a toda hora, numa sarabanda dos diabos. Apesar disso, há neles, contos e romances, um tal enquadramento, uma tal pintura, mesmo que opulenta, cheia de cores, que mais parece ao leitor estar lendo uma primavera ou a natureza em estado de primavera. Leia-se “Os Idiotas do Sol”, no qual toda a narrativa se localiza num ponto qualquer da África, cercado de “gigantescas florestas”, habitado pelos “mais estranhos e despropositados animais”. As personagens vivem isoladas de tudo, como se cumprindo um destino, embora conduzidas pelo “pai” do narrador, um homem aparentemente normal, eis que ministro em 1872, no Brasil. Portanto, as personagens não são seres incomuns ou de outro mundo, embora pareçam o contrário. São estranhas, sim, porém muito reais. No entanto, a realidade de muitos deles pode ser apenas aparente, e isto o contista se esforça por apresentar. O homem que se afunda na África com a família tinha sido ministro de Estado no Brasil. Pedrofídio, matador de cobras e ele mesmo um homem-cobra, não passa de um lavrador, um homem do campo.

Carlos Emílio foge aos padrões do conto tradicional quando empurra suas personagens para fora dos restritos espaços de uma sala, de uma casa. Ele prefere os quintais, as praias, os desertos, os campos, as montanhas, os pomares, as árvores, que buscam o firmamento, o mais longínquo, o infinito. O espaço geográfico real está pintado em alguns contos, como uma planície africana, na história da família do ministro, ou Gentilândia, em Fortaleza, no conto do pomar. Aliás, a capital do Ceará está presente em algumas narrativas, não exatamente como foi ou é. Nada de ruas, monumentos, prédios históricas. Em outros contos o espaço geográfico é inominado, embora, às vezes, de fácil apreensão (o sertão, na história do homem das cobras, e a praia de “O Barco”). No entanto, onde localizar aquele sertão ou aquela praia? Na verdade, o contista não tem a mínima vontade ou necessidade de geografar as suas narrativas, talvez para não se enquadrar neste ou naquele tipo de prosa de ficção, seja o regionalismo, seja outro qualquer.

As personagens andam, correm, se transformam nisso e naquilo, e até voam, porque em sonho, pesadelo, alucinadas. E se afundam em buracos, poços, se perdem nos matos, em labirintos subterrâneos, feito formigas, seres do imaginário. Morrem de forma misteriosa, como Bertha, a irmã mais nova do narrador de “Os Idiotas do Sol”, de morte prevista, porque relacionada a fenômenos celestes. E, aonde quer que elas vão, carregam seus dramas, a intensidade de seus conflitos. Vão, somem, saem pela última palavra do conto e entram para a eternidade. Ou para a história.

O tempo em Carlos Emílio é imensurável. Mesmo se se deixar de lado o flash-back, como no conto dos idiotas do sol. Por quanto tempo viveram as cinco personagens no interior da África? Dias, meses, anos?

Durante a narrativa o tempo é, em alguns contos, constantemente revolvido. Pedrofídio vai e vem no tempo: conta o seu tempo de assustado, o tempo da primeira picada de cobra, o tempo das andanças pelos matos, a matar cobras, o tempo anterior a tudo isto, o tempo da volta à própria casa, o tempo da última picada, o tempo da escravidão. Há na história dele irrealidade? Será um conto fantástico?

O tempo na ficção de Carlos Emílio é nebuloso. A manhã se confunde com a tarde e a noite. O dia da morte ou do susto se confunde com os dias de outras mortes e outros sustos. Nunca se sabe se a personagem viveu um dia, um ano, um século. Talvez nem haja tempo. Talvez estejam fora do tempo, além delas mesmas, anteriores ao seu nascimento ou posteriores ao seu desaparecimento.

Qual o tom das narrativas curtas de Carlos Emílio? De que ingredientes se serve para compor suas narrativas? Pode-se dizer que o tom é o não-tom. Ou o tom é ambivalente, ambíguo. O menino do pomar que conta seus medos pode até nem ter tido medos e falar deles apenas para deixar no leitor a impressão de que a personagem é o medo ou o contar o medo. O narrador das aventuras africanas, que pode ser um menino, conta a morte da irmã, a fuga do cavalo, a ira do pai – e pode tudo isto ter sido normal para ele. Ao leitor, no entanto, isto é assombroso.

Não há pieguice, saudosismo, melancolia nas personagens emilianas. Elas aparecem, contam episódios, desaparecem, como se o leitor não tivesse o direito de ter a impressão de ter visto um menino com medo do homem que ouvia rádio no fundo de um poço.

A linguagem dos contos (e dos romances) de CE é esparramada, volumosa, como uma corredeira, uma cachoeira. Não há diques para ele. A narração escoa, evolui e, como um rio impetuoso, fura o mar, quebra ondas e se mistura ao oceano. Ele nem precisa de diálogos, quase sempre curtos. O narrador transmite uma ou outra fala de outra personagem e continua a narrar. Ele é o protagonista da narração, embora nem sempre seja da narrativa. As personagens falam, conversam, porém pouco se sabe dessas falas e conversas. Falam, o mais das vezes, para si mesmas, sem que o leitor perceba isto. E, sobretudo, narram. São narradores insaciáveis, incansáveis, mesmo na hora da morte ou do desaparecimento.

O diálogo interior, o fluxo da consciência, todas as modernas linguagens estão presentes nos contos e romances de CE.

O ponto de vista nas obras de CE é o mais das vezes o do observador, mesmo quando a primeira pessoa fala, seja ela protagonista, testemunha ou personagem secundária. Às vezes o narrador fala por ele e por outros, na primeira pessoa do plural (nós) e, aqui e ali, muda para o singular (eu), como em “O pomar”. Os outros, no entanto, são bem mais que secundários, são quase que apêndices, figurantes. Em alguns contos o narrador não é narrador de verdade. Como se a história já estivesse escrita e fosse o leitor, ao ler, o narrador. O leitor seria, assim, co-autor. Pode-se supor também que a história (se é que há história) é narrada pelo escritor, que pode ser um personagem oculto. Como em “O Barco”. Carlos Emílio consegue enganar o leitor com facilidade. Às vezes o narrador parece ser o principal da trama, quando na verdade é apenas um observador, isento quase sempre, imune aos dramas que se apresentam aos seus olhos ou saltam de sua memória. Outras vezes parece ser o protagonista, de tão presente na narração e na narrativa. Mas isto não importa ao leitor. O menino ou rapaz que narra as aventuras dele, de suas irmãs e de seus pais, nos cafundós de uma África mítica, sem a presença de negros, feras, florestas incorrompidas, pode estar contando uma história absurda, misteriosa, fantástica, real ou imaginária. Será um narrador-protagonista, uma testemunha, um narrador secundário?

Há contistas que passam a vida escrevendo esboços de romances. Não é o caso de CE, que escreve contos a seu modo e romances também. Seus contos poderiam ter 500 páginas e, ainda assim, seriam contos. Não quaisquer contos, mas contos dele, com a marca dele. Porque não seriam romances, não teriam dezenas de personagens, não seriam divididos em capítulos, não trariam enredos romanescos. Simples (ou complexa) questão de estilo, modo de elaborar o conto. As personagens de seus contos às vezes viajam pelo mundo, como as dos romances. Como o homem-cobra, o personagem-narrador de “Pedrofídio”, que sai com os filhos pelos matos, a matar cobras e gentes. As personagens não se delineiam como retratos ampliados, permanecem esboçadas nas entrelinhas, pintadas ou rabiscadas como personagens de contos, que sabem até aonde vão. E se conformam com o fim da história, como o menino que não ficou triste nem zangado, quando fecharam o pomar onde brincava (“O Pomar”).

Muito bem apontou Dimas Macedo, em “Os Enigmas de Carlos Emílio” (LC, p. 77), ao se referir ao romance Além, Jericoacoara: (...) “não estamos obrigados a concluir pela existência de um enredo, ainda porque o mesmo não se manifesta de forma literal, embora pareça emergir em diversos momentos do seu entretexto”. E assim também se pode observar da leitura de muitos de seus contos: a ausência de enredo ou a sua manifestação de forma furtiva, como o colear de uma serpente. No conto “O Barco”, por exemplo, um casal, muitos filhos, um barco construído por “gente formada em artes de navegar” e só. Não se vislumbra um enredo. As personagens não atuam, não agem, não se locomovem. Pensam, apenas pensam, sobretudo nos muitos filhos, cada um deles uma letra do alfabeto. Talvez não haja o enredo tradicional ou mais usual. Ocorre que se trata de um enredo esgarçado, sobretudo quando o narrador parece falar para si mesmo. Veja-se a narrativa “Os Idiotas do Sol”, em que o narrador conta parte da história dele e de sua família e se concentra no tempo em que viveram num pedaço de terra africana. Há uma explicação de porque foram as cinco pessoas para a África. O “mistério” estaria no “Livro da Terra”, possivelmente um manuscrito, que um dia o narrador promete publicar.

Entretanto, a urdidura ficcional é tão bem armada ou arrumada, entrelaçada, os fios tão bem amarrados, a formarem um sólido, embora às vezes maleável, plano, como se o leitor se visse num tapete persa de As Mil e Uma Noites, a voar pelo espaço da irrealidade, sem medo de cair em abismos, certo de que o tecido é firme e colorido e de que a aventura será inusitada, que a leitura se dá sem sobressaltos.

Recriando os mitos perdidos e elaborando novos mitos, Carlos Emílio se converte numa espécie de feiticeiro e conclama contra si os catequizadores modernos, como a televisão, a serviço dos novos monarcas. Conclamará ainda aqueles que, de outra forma, falam a mesma língua dos inquisidores e, travestidos de santos missionários, pregam a idolatria a deuses estrangeiros.

Esses e outros mitos estão também presentes em muitos dos contos de Carlos Emílio. Isto é, o mito como elaboração ficcional. Pois, como observa Dimas Macedo, no artigo citado neste capítulo, “a obra de Carlos Emílio é toda ela pura ficção”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

domingo, 22 de dezembro de 2013

João Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) 2

Efetivamente, um assombro!

Em menos duma semana não havia mais uma preá, para remédio. Liquidadas. E eu, esfregando as mãos. Mas - nem tudo lembra! - os bichanos, já sem pitança, miavam que era um desespero... e quando menos eu sonhava...

Olha a gataiada no galinheiro E não me ficou viva uma só ave, desde os pintos até os galos de rinha! Uma calamidade!

Nem por isso dei parte de fraco; pensei, e para acabar com os gatos, resolvi soltar-lhes... cachorros! E vá! Na estrada!

A peonada andava numa contradança, trazendo cachorros e logo voltando a buscar mais; pelas estradas só se via passarem andantes conduzindo matilhas, e trelas de até vinte cachorros. Apareceram-me perdigueiros, veadeiros, paqueiros, onceiros, rateiros, tatuzeiros; e galgos, d'água, terras-novas, crespinhos; e grandes e pequenos, brigadores, ranhentos.

Eram centos e centos de cachorros! Contava, pagava e soltava-os logo, aos gatos! Indiscutivelmente: um sucesso.

Em poucos dias não se acharia nem mais um único gato, um só que fosse, para salvar um condenado da forca! E eu, assobiando, satisfeito. Mas - é que andei precipitado... - a cachorrada sem mais gatos... gania de jeito, que só a chumbo! E como eu não tivesse mais gatos. -. os cães, uma bela noite, atiraram-se às ovelhas, e com tal gana, que nem as maçarocas ficaram!

Um cataclismo!

Aí, meio que desanimei; mas depois de coçar-me forte, durante uns minutos largos pensei, e para acabar com os cachorros, resolvi contratar gringos, tocadores de realejo!... Custou-me um pouco a organizar o batalhão: mas a notícia de que a paga era boa correu, e começaram a aparecer-me gringos, vindos até de onde o diabo perdeu as botas!...

Cachorro tem um terror doudo pelo realejo; é tocar-se um desses moinhos de música e o cão, mesmo preso na corrente, uiva, chora, apavora-se..., e não há nada que o detenha na fuga; nem água fervendo, nem tição de fogo, nem comida, nem pau... só outro realejo, que o faça mudar de rumo! Quando botei a gringalhada a manobrar os realejos, toda ao mesmo tempo, marchas, polcas, funerais, o miserere, o caranguejo, a Esteia confidente, o bitu, valsas, o solo Inglês... o maxixe quando tudo isso estrondeou nos ares...

Oh! Deus do céu!...Senhor S. Pedro!... Meu anjo da Guarda!... cachorro houve, que tão desnorteado de horror ficou, que até sobre os próprios gringos atirou-se... atirou-se..., e caiu, estrebuchando, espumando, rilhando os dentes, como danado! ... O cachorrio pegou numa uivaçada tão espantosa que chegou a abafar o barulho dos realejos: mas logo desatou a disparar... a disparar... a disparar... e foram-se, campo fora, para os lados da rosa-dos-ventos, como assombrados!

Inegavelmente: soberbo!

E eu, cheguei a fazer uns passos de gavota, rejubilando-me; sim, senhor! Mas - e aqui tive um baque no coração.. – os gringos, sem mais cachorros para espantar, pediam comida. E eu, que não contava com a rapidez do negócio, havia-os contratado por três dias, calculando que com três dias de realejo não haveria cachorro - nem morto! - capaz de resistir...

E errei feio, porque os próprios buldogues não chegaram a agüentar nem uma hora... E eles a pedirem comida! E a chegarem mais gringos, que pelas estradas tinham tido notícias do meu anúncio; outros que eram ainda mandados expressamente pelos meus amigos e conhecidos e comissionados!

E cada desgraçado que chegava, como saudação, tocava-me uma peça de realejo; e quando foi de noite, todos eles, de combinação - eram cento e cinqüenta e três - resolveram fazer-me uma surpresa, e todos a um tempo, como um furacão que desaba, manobraram uma serenata sem fôlego, que durou da uma às três horas da madrugada. Comecei a deitar sangue pelo nariz, pelos ouvidos, pelas gengivas, e desmaiei. Ao clarear do dia recobrei os sentidos; chamei os capatazes, a peonada, uns hóspedes que tinha, e armei-os de revólveres, de davinas, de pistolas, de bacamartes; meti em quadrado os gringos, com os realejos; todos nós, armas engatilhadas, facas reluzindo, prontos a matar, tocamo-los porteira fora, aos gritos imperiosos de - silêncio! silêncio! silêncio!

Passei então um dia delicioso; sesteei regaladamente!

Mas - sempre aparece cada uma! - logo começaram a aparecer-me em casa advogados, escrivães, meirinhos, autoridades. Ora dá-se! Um homem quieto na sua quinta, sem se preocupar da vida alheia e a vida alheia atrapalhando a sua! ... Eram os vizinhos, queixosos, que me processavam, pediam indenizações, reclamavam contra prejuízos de que eu era causante!

Estes, porque as preás que conseguiram escapar-se haviam-se-lhes entocado nas plantações; aqueles, porque, gatos danados - dos meus - tinham-lhes mordido as criações; outros, porque os cachorros corridos comiam-lhes os rebanhos.., e até um violento protesto do cônsul, acusando-me de tentativa de morte sobre trezentos e sete gringos e meio!...

E eram citações, requerimentos, autos, contrafes, termos, inquirições.., um inferno! Chamei advogados para a minha defesa, estes pegaram-se a discutir com os contrários: então é que a complicação complicou-se mesmo!

Os peões despediram-se medrosos os capatazes foram saindo, por causa das dúvidas... Fiquei sozinho, na quinta solitária.

Então adoeci.

Veio um doutor para salvar-me. Mostrei-lhe a língua, tateou o pulso, rufou-me na barriga e... chamou um colega. Depois os dois chamaram um terceiro, os três, um outro; os quatro, um quinto... Já era uma dúzia deles; vieram mais ainda: cheguei a contar um quarteirão! Desde a nuca até a sola dos pés, o meu corpo era um mapa geográfico de manchas e vergões; estava todo sanado e empolado de ventosas, inflamado dos sinapismos, lambuzado dos ungüentos, queimado dos vesicatórios, encorrilhado das embrocações, cruzado das pinceladas...

Na casca consenti tudo: no miolo, nada. Engolir, isso sim, isso é que nem à mão de Deus-Padre nenhum deles foi homem para me obrigar!

Certo dia, por doze votos fui considerado ainda vivo, e por treze dado por morto. Venceu o um da maioria: passaram atestado de óbito e foram-se... e veio o defunteiro tomar as medidas do caixão...

Que cena, esta, da tomada das medidas ...     que cena!.. Dormi... até acordar-me; depois levantei-me, fiz um churrasquinho, chupei dois mates e pitei um cigarro de fumo crioulo. Sol alto montei a cavalo, para ir-me embora, de vez.

Tinha vencido sete pragas: bastava de combate.

Mas, ao sair a cancela do terreiro, vi o que nunca imaginei mais ver! ... Vi a barba-de-bode renascendo na lavoura, algumas preás roendo ervas, três gatos em cima do telhado; dois cachorros coçando as pulgas; um gringo de realejo à sombra de um moirão, um meirinho que chegava a trote..., e um doutor que apeava-se da carriola!...

Amigo!

Cerrei pernas ao baio e só parei... quando vendi a quinta. Pagas as contas, sobraram-me três patacas, em cobre: comprei as espoletas, pólvora e balas, e ganhei, outra vez, no sertão!

Tenha chácara quem quiser: eu, Romualdo, é que nunca mais! Nem atado!
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CONTINUA…

Lourival Açucena (Versos)

A POLÍTICA

I

Você pergunta, Yayá,
Por que deixei a política?
Você quer saber de tudo,
Você é muito analítica.

Pois bem, eu lhe digo:
Ouça o que eu refiro,
Porque nesse jogo
Já fechei o firo...
Mas, olhe, menina,
Que dos meus arcanos
Não quero que saibam
Gregos nem Troianos...
Já ouviu, Yayá?

II

Esses arautos políticos,
Quer de uma, quer doutra grei,
Quando estão de baixo gritam:
“Viva o povo” – “Abaixo o Rei”!

Mas, o sábio Rei,
Que conhece tudo,
Faz que não entende,
Fica surdo e mudo;
E o povo que idéia
Não tem dos negócios
Vai crendo nas loas
Dos tais capadócios...
Já ouviu, Yayá?

III

Prometem ao pobre povo
Um governo angelical,
A terra da promissão,
Um paraíso ideal...

Porém, quando grimpam,
Cessam as cantigas
E tratam somente
De suas barrigas.
E nem mais conhecem
Aquele bom moço
Com quem já viveram
De braço ao pescoço...
Já ouviu, Yayá?

IV

Prometem casas da Índia,
Cabedais, mundos e fundos:
Mas, quando estão no poleiro:
–Viva Dom Pedro segundo!

Seja liberal
Seja puritano,
Traz o povo sempre
Num completo engano.
Gregos e Troianos
Procedem assim...
Eu vou debulhando
Tintim por tintim...
Já ouviu, yayá?

V

Enquanto esperam maré,
Oh! Que afeto! Oh! que doçura!
Mas, quando embarcam na lancha,
Quanto gás!... quanta impostura!

E toda carícia
Veste-se em orgulho,
E a massa fina
Reduz-se a gorgulho.
Eu de rapapés
Estou escarmentado,
E de farrambambas
Muito escabriado...
Já ouviu, Yayá?

VI

Nas vésperas da eleição,
Vão à casa do compadre,
Dão beijos no afilhado,
Rompem sedas à comadre...

E o pobre diabo
Entra na rascada,
Tomando sopapos,
Servindo de escada.

Eles vão p’ra Corte

E o compadre fica
Bebendo jucá,
Ou dose de arnica...
Já ouviu, Yayá?

VII

Propalam grandes idéias,
Proclamam belos princípios,
Arrotam patriotismo,
Por todos os municípios.

Tudo isto é pirraça,
Isto tudo é peta,
É toda a questão
L’argent na gaveta:
Ou, então, galgar-se
O mando, a grandeza,
Para, lá de cima,
Calcar-se à pobreza...
Já ouviu, Yayá?

VIII

Morra Pedro e viva Paulo,
Com muita festa p’ra festa,
Com pouco mais: – Viva Pedro,
Morra Paulo que não presta.

Quanta incoerência
E contradição!...
Oh! Que mastigado
Que especulação!...
Quem isto negar
Terá boa fé?!...
Nega de finório,
Ou de pai-mané...
Já ouviu, Yayá?

IX

Hoje, Sancho é muito bom...
Amanhã, Sancho é ruim...
Já fica sendo um demônio
Quem foi ontem Serafim.

Eu não os entendo,
Eu não os percebo,
E, nesta enredada,
Se os percebo, cebo!...
Por isto, safei-me,
Sem bulha e arenga,
E livre-me Deus
Da tal estrovenga...
Já ouviu, Yayá?

EU NÃO SEI PINTAR AMOR

Amor é brando, é zangado
É faceiro e vive nu,
Tem vistas de cururu,
E vive sempre vendado:
É sincero, é refolhado,
Causa prazer, causa dor,
Tem carinhos, tem rigor,
Amor... pinte-o quem quiser,
Retrate o amor quem souber,
Eu não sei pintar amor.

Amor é terno, é cruel,
É rico, é pobre, é mendigo,
É dita, é peste, é castigo,
É mel puro, é agro fel;
Tem cadeias, traz laurel,
É constante, é vil traidor,
É escravo, é grão Senhor,
Amor... pinte-o quem quiser,
Retrate o amor quem souber,
Eu não sei pintar amor.

Amor é loquaz, é mudo.
É moderado, é garrido,
É covarde, é destemido,
É galhofeiro, é sisudo.
É vida, é morte de tudo,
É brioso, é sem pudor.
Traz doçura, dá travor,
Amor... pinte-o quem quiser,
Retrate o amor quem souber,
Eu não sei pintar amor.

Amor é grave, é truão,
É furacão é galerno,
É paraíso, é inferno,
É cordeirinho, é leão;
É Anjo, é Nume, é Dragão,
Tem asas, tem passador,
Dá esforços, faz tremor.
Enfim, pinte-o quem quiser,
Retrate amor quem quiser,
Eu não sei pintar amor.

DELÍQUIOS

Donzela bela, Eucaris formosa,
Brisa odorosa, que afugenta a calma:
Ah! Foge, foge, dos salões dourados,
Que mil cuidados me despertas n’alma.

Donzela bela, Flor de Lis amada!
Mimosa fada, que de amor me encanta:
Se brinca o zéfiro com o teu cabelo,
Amargo zelo meu prazer quebranta.

Donzela bela, ante quem Aglaia
Cora e desmaia, vendo um teu sorriso;
Do rio à margem, oh! esconde o seio,
Pois me receio do gentil Narciso!

Donzela bela, oh! Não vejo o mundo
Esse jocoso riso encantador.
Não vás ao bosque, que no bosque habitam
Deuses que excitam de volúpia amor.

Donzela bela! Não me dês ciúmes,
Brandos queixumes, compassiva, atende,
Ouve: não queiras de Silvano a flauta,
Que a virg’incauta sedutora prende.

Donzela bela! prazenteira palma,
Vida dest’alma, que só quer amar-te;
Da trácia lira ternos sons desejo,
Em doce arpejo para consagrar-te.

Donzela bela! Vênus coruscante!
Em seu levante pela madrugada,
Sob os influxos dessa luz benina
A minha sina já se vê mudada.

Donzela bela! nenúfar mimoso,
Vergel umbroso, onde Amor descansa,
Dá-me um abrigo nos teus lindos braços,
Preso nos laços da sedosa trança.

A PORANGABA

Minha gentil Porangaba,
Imagem, visão querida,
Só teu amor me conforta,
Nos agros transes da vida.

Quando ouço a juriti
Soltar saudosa um gemido,
Saudoso, pensando em ti,
Respondo com um ai! dorido...

Se, na campina deserta,
Terno sabiá gorjeia,
Deste amor, que me inspiraste,
Voraz a chama se ateia.

Quer procure o povoado,
Quer divague na espessura,
Mostra-me a mente abrasada
Tua elegante figura.

Estando de ti ausente,
Da saudade eu sinto a dor;
Serão teus os meus suspiros,
Minha afeição, meu amor.

Da vida o doce prazer
Em mim fenece e acaba;
Só este amor não falece,
Minha gentil Porangaba!

SABIÁ
(LUNDU)


Eu fui pegar passarinho,
Na matinha de Yayá?
Engendrei o meu lacinho
E peguei um sabiá.

Sabiá, eu bem sabia,
Sabia que tu caías.
Sabiá, fica sabendo
Que tu cais todos os dias.

Sabiá ressabiado
Na matinha arrepiou-se,
Eu toquei chama de baixo
Sabiá veio, entregou-se.

Sabiá, eu bem sabia, etc.

Saiba todo sabiá
De mata, gangorra ou praia
Que não armo a gangolina
Em que sabiá não caia...

Sabiá, eu bem sabia, etc.

E Yayá já sabe hoje
Que eu sei pegar passarinho,
E que sabiá sabido
Não me come o melãozinho.

Sabiá, eu bem sabia, etc.

PIRRAÇAS DE AMOR

Ante os citérios altares,
Respeitoso apresentei-me,
E das pirraças de Amor
A Vênus assim queixei-me:
– “Ó deusa da formosura,
Se fazes justiça pura,
Castiga Cupido ingrato
Que, com juras e promessas,
Pregando: mocas e peças,
Fez de mim gato sapato”.

Respondeu-me Vênus,
De bom parecer:
“Quem se dispõe a amar,
Dispõe-se a sofrer;
Gracinha de amor
Amor quer dizer...”

– “Ouve, atende, ó linda deusa:
Asseverou-me Cupido
Que da formosa Tircea
Eu era amado e querido;
E, quando eu já muito crente,
Saltitando de contente,
Ia explicar-me com ela,
Rompe ele a pateada,
Solta a bela uma risada,
E zás... me bate a janela!”

Respondeu-me Vênus,
Com riso maligno:
–“É muito garoto
Aquele menino!
Mas não se despeite
Com o pequenino”.

Assegurou-me que Eulina,
Em delíquios amorosos,
Delirava por me ver
Entre os seus braços formosos:
Para a escada de um sobrado,
Onde habita o bem-amado
Funesta paixão me arrasta;
Ele, porém, de antemão,
Nos degraus unta sabão:
Virei de bumba canastra.

Respondeu-me Vênus,
Com ar zombeteiro:
“Aquele meu filho
É muito brejeiro!
Sempre foi assim
Vivo e galhofeiro”.

Fez-me crer também que eu era
Os sonhos de um serafim,
Pois que Jonia encantadora
Morria de amor por mim!
Não sei como tal notícia
Não me matou de delícia!
Mas era uma nova entrega...
Pois Jonia com o filho teu
Encapelou-me o chapéu
E fez de mim cabra-cega.

Respondeu-me Vênus,
Meneando a trança:
– “É muito traquinas
Aquela criança.
Só com paciência
Afetos se alcança.”

Jurou-me, enfim, por teus mimos
E pelas águas do Estige,
Que por mim terna paixão
De Clorinda o peito aflige;
Fui bem ancho ter com a bela,
Mas, teu filho unido a ela
Apresta p’ra caçoada
Uma chusma de vadios,
Que entre gritos e assobios,
Fez-me chispar na palmada.

Vênus, a bom rir,
Com as faces vermelhas,
Me disse franzindo
Lindas sobrancelhas:
“Quando ele chegar
Puxo-lhe as orelhas”.

De Vulcano a esposa pérfida
Inda a frase não findava,
Quando o filho adulterino
Neste comenos entrava.
A mãe, com ledo festejo
Para dar-lhe um terno beijo,
Da ara desce um degrau...
E ele dizendo xetas,
Saudou-me com três caretas,
E por fim deu-me um gagau...

Sempre os filhos seguem
De seus pais o trilho...
Se Vênus é pérfida,
É pérfido o filho.
E o jogo de Amor
É só de codilho!...

Fonte:
AÇUCENA, Lourival. Lorenio (Joaquim Eduvirges de Mello Açucena). Versos
reunidos por Luís da Câmara Cascudo. 2. ed. Natal: Editora Universitária/UFRN, 1986.

Lourival Açucena (1827 – 1907)

Joaquim Eduvirges de Mello Açucena, ou Lourival Açucena ou Lorênio (Natal, 17 de Outubro de 1827 – Natal, 28 de Março de 1907) foi o primeiro poeta do Rio Grande do Norte.

Sua poesia era ligada ao Romantismo, mas tinha forte relação tardia com o Arcadismo.

Teve uma vida agitada e participava ativamente dos serões boêmios de Natal.

Para visitar sua amada, chegava a atravessar o Rio Potenji a nado e ainda andar algumas léguas até o município de São Gonçalo do Amarante, onde ela morava.

Ficou preso por dois meses no Forte dos Reis Magos, acusado de desfalque.

Figura emblemática em Natal, Lourival Açucena foi funcionário público, juiz de paz, delegado de polícia, oficial de gabinete do Presidente da Província, seresteiro, ator e poeta.

Como cantor, alcançou fama nos festejos religiosos, Diz-se que era cantor de grandes qualidades e que se acompanhava ao violão. Há também notícias de que não teria se limitado a cantar apenas em Natal, chegando a se apresentar em Pernambuco com reconhecimento e aplauso. Tendo sido entre os nosso poetas um dos de mais longa existência (viveu 80 anos incompletos), ele notabilizou-se não apenas pela qualidade da sua poesia e talento de modinheiro, mas pela agitação que lhe marcou a vida, de modo especial no complicado relacionamento coma elite política da Província.

Não teve livro publicado em vida, mas, chegaria a ver poemas seus, impressos em várias publicações

Em 1853, representou o Capitão Lourival na peça O Desertor Francês, e sua performance rendeu-lhe o apelido que carregaria por cinquenta anos.

Escreveu para quase todos os jornais da cidade, mas não chegou a publicar livro algum em vida.

Ele teve seus textos publicados pela primeira vez com o surgimento do pioneiro jornalzinho O Recreio, em 1861, pois seu talento e agitada vida pessoal acabaram se tornando objeto de interesse entre os que residiam na capital e arredores.

Lourival casou-se por três vezes e teve 32 filhos.

Trinta dias após a morte de Lourival Açucena os amigos publicaram uma Poliantéia, breve reunião de poemas seus, para homenagear-lhe a memória. O pequeno volume saiu pela Oficina Literária Norte-Rio-Grandense. Coube, porém, a Luiz da Câmara Cascudo, contando coma colaboração do filho do poeta, querida personalidade natalense, Joaquim Lourival (o "professor Panqueca", proprietário de uma concorrida escola particular), a tarefa de reunir tudo o que pode recolher dos seus poemas, publicando um volume a que chamou de Versos, em 1927.

Em 1987 a Universidade Federal do Rio Grande do Norte voltaria a editar este trabalho.

Coincidindo com a irrequieta personalidade do autor, a sua poesia não revela unidade, um traço comum, capaz de caracterizá-la. Ao contrário, é fácil perceber lendo os seus poemas, que a ele não preocupou filiar-se a qualquer escola, (embora seja forte em sua pequena obra a presença do arcadismo). Tal diversificação encontraria uma possível justificativa em sua condição de modinheiro, pressupondo-se, aí, a obrigação de variar o repertório e o seu estilo, com vistas a atender à solicitação popular. Assim, é possível vê-lo também como romântico e até como poeta clássico. Mas, é justamente quando adota a maneira mais próxima do povo, nas quadras, nos termas satíricos, que se percebe um Lourival Açucena mais autentico. Isto é fácil de comprovar em "A Política" onde ele "filosofa" a respeito desta prática à época do Império.

Em sua homenagem, Ferreira Itajubá escreveu o poema No Campo Santo:

Morreste e não soubeste, ó grande veterano,
Que, quando por Natal, a rosa todo ano
Floresce alegremente, entre as demais roseiras,
O prado embalsamando, ao lado das primeiras,
esta alma não rebenta em rosas de ilusão
Como quando cantaste ao som do violão.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lourival_A%C3%A7ucena
http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20090308125215AAmCLnE

Nilto Maciel (Um Passarinho)

Viviam numa casa de campo Mateus e Maria. Às vezes ela o chamava de velho, quando ele dizia ou praticava tolices. No entanto, esta história teve início assim: Um gavião ia ao encalço de um passarinho. Na busca de salvação, a caça desceu mais e mais e avistou uma casa. Voavam sobre as copas das árvores, quase a tocá-las. E se a casa estivesse fechada? Arriscaria entrar por uma brecha da porta ou de uma das janelas e, assim, escaparia das garras do predador. A casa se aproximava mais do coitado. Entretanto, as janelas pareciam escancaradas. Logo, o gavião também invadiria a casa. Voava o passarinho já quase sem forças. O pio agudo do gavião soava nos ares. Não havia outra saída, quer dizer, outra entrada, a não ser a janela. Súbito o choque, a dor, o desmaio. Havia um vidro na janela.

Em outra ocasião, Mateus contou a história assim: Perseguido, assustado, em busca de abrigo, ninho, comida (suposições), ofuscado pela luz do Sol, pela neblina (não lembrava mais a hora e a estação do ano), um passarinho esbarrou no vidro de uma janela. O ruído provocado pelo encontrão despertou o dono da casa. Seria ladrão quebrando o vidro? Pedra jogada por moleque? Cauteloso, dirigiu-se à janela. Não, o vidro permanecia intacto, apesar de maculado de sangue. Olhou para o lado de fora: Nem ladrões, nem moleques. No chão, ao pé da janela, agonizava um pássaro. Chamou Maria. Precisava de ajuda.

A mulher contava a segunda parte da história de outro modo: O vento açoitava portas e janelas, em prenúncio de chuva. Mateus passeava pela casa, inquieto. Aproximou-se da janela, a resmungar: “Essa ventania não para”. Maria queria ouvir notícias na televisão, saber de vendavais, furacões, tempestades, porém o vento atrapalhava e o marido não parava de grazinar. Sentia dor? Não, mas precisava de ajuda.

O homem correu até a sala, abriu a porta, aos gritos, e se precipitou no jardim. O pássaro se debatia, no chão. O vento zunia nas árvores. Formigas se acercavam do corpinho. Uma dúvida ocorreu de imediato: Abandonava a avezinha ou lhe dava socorro? À porta, Maria observava a cena e fazia perguntas. Acocorado, o homem levou as mãos ao chão e, com cuidado de pai, ergueu a criatura à altura do peito. O passarinho piava sem parar.

Para Maria, mal se aproximou da ave, Mateus se ajoelhou e, quase a chorar, se pôs a dar consolo ao moribundo. Acolheu-o nas mãos, ergueu-se e voltou para casa, a perguntar pela gaiola. Tempos passados livrara um pássaro mantido na prisão. E a gaiola, por que não a destruiu? Porque não havia mal nenhum nela. Mal havia no aprisionamento de pássaros.

A mulher buscou a gaiola e, às pressas, a depôs aos pés do homem. Não, antes de aprisionar o passarinho, urgia fazer-lhe curativos, dar-lhe alpiste. Onde achar alpiste? Servia qualquer comida: Arroz cozido, banana, água. Dias e noites de cuidados. Acordava assustado: Teria morrido a avezinha? E se o gavião voltasse, disposto a rematar a caçada? Maria se irritava. Fosse cuidar da casa, do jardim.

Nunca mais apareceu o rapinador, e o passarinho sarou, cresceu, cantou. O homem se animava, a rezingar: Filhos e netos precisavam ver a ave. Maria se agastava: Os filhos precisavam cuidar de si mesmos e dos próprios filhos; os netos careciam de brincar, estudar, viajar. Passarinhos gostavam de matas, liberdade. Soltasse o passarinho. Mateus cuidava cada vez mais do prisioneiro.

A mulher contou o último capítulo da história assim: O velho fez questão de convidar filhos e netos para um almoço. A casa vivia tão sem graça, silenciosa, sossegada! Necessitava de gente, barulho, vida. Não se acostumava a viver sozinho com Maria.

Para Mateus almoços e jantares significavam alegria. Saudades dos tempos de infância dos filhos. Naquele tempo tudo, até o choro dos meninos, terminava em riso.

Naquele almoço de fim de vida, Mateus serviu o passarinho aos filhos e netos, como se servisse arroz, feijão, legumes.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
Imagem = http://www.fotosdahora.com.br

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 11 – 20 de janeiro de 1887

Cousas que cá nos trouxeram
De outros remotos lugares,
Tão facilmente se deram
Com a terra e com os ares,

Que foram logo mui nossas
Como é nosso o Corcovado,
Como são nossas as roças,
Como é nosso o bom-bocado.

Dizem até que, não tendo
Firme a personalidade,
Vamos tudo recebendo
Alto e malo, na verdade.

Que é obra daquela musa
Da imitação, que nos guia,
E muita vez nos recusa
Toda a original porfia.

Ao que eu contesto, porquanto
A tudo damos um cunho
Local, nosso; e a cada canto
Acho disso testemunho.

Já não falo do quiosque,
Onde um rapagão barbado
Vive... não digo num bosque,
Que é consoante forçado,

Mas no meio de um enxame
(É menos mau) de cigarros,
Fósforos, não sei se arame;
Parati para os pigarros;

Café, charutos, bilhetes
Do Pará, das Alagoas,
Verdadeiros diabretes,
E outras muitas cousas boas.

Mas a polca? A polca veio
De longas terras estranhas,
Galgando o que achou permeio,
Mares, cidades, montanhas.

Aqui ficou, aqui mora;
Mas de feições tão mudadas,
Que até discute ou memora
Cousas velhas e intrincadas.

Pusemos-lhe a melhor graça,
No título, que é dengoso,
Já requebro, já chalaça,
Ou lépido ou langoroso.

Vem a polca: Tire as patas,
Nhonhô! — Vem a polca: Ó gentes!
Outra é: — Bife com batatas!
Outra: Que bonitos dentes!

—Ai, não me pegue, que morro!
— Nhonhô, seja menos seco!
— Você me adora? — Olhe, eu corro!
— Que graça! — Caia no beco!

E como se não bastara
Isto, já de casa, veio
Cousa muito mais que rara,
Cousa nova e de recreio.

Veio a polca de pergunta
Sobre qualquer cousa posta
Impressa, vendida e junta
Com a polca de resposta.

Exemplo: Já se sabia
Que esta câmara apurada,
Inda acabaria um dia
Numa grande trapalhada.

Chega a polca, e, sem detença,
Vendo a discussão, engancha-se,
E resolve: — Há diferença?
— Se há diferença, desmancha-se.

Digam-me se há ministério,
Juiz, conselho de Estado,
Que resolva este mistério
De modo mais modulado.

É simples, quatro compassos,
E muito saracoteio,
Cinturas presas nos braços,
Gravatas cheirando o seio.

— Há diferença? diz ela.
Logo ele: — Se há diferença,
Desmancha-se; e o belo e a bela
Voltam à primeira avença.

E polcam de novo: — Ai, morro!
— Nhonhô, seja menos seco!
— Você me adora? — Olhe, eu corro!
— Que graça! Caia no beco!

Desmancha, desmancha tudo,
Desmancha, se a vida empaca.
Desmancha, flor de veludo,
Desmancha, aba de casaca!

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Airton Monte (Velho ao Telescópio)

Do sobrado via-se o quintal: verde, ondulado mar de goiabeiras, figueiras, bananeiras e o gorjeio dos pássaros ao fundo reinventando Bach. Os óculos na ponta do nariz dão-lhe um ar de velho carpinteiro. Falta-lhe apenas Pinóquio para ser Gepeto.

No centro do terraço, um pouco elevado em relação ao resto do sobrado, repousa um telescópio coberto por uma capa de lona. Todo o universo gira em torno desse objeto mágico, principalmente o telescópio, autor de maravilhosas alquimias: sonhos cansados de um homem velho que vai morrendo aos poucos envolto em estranho brilho.

A vida resume-se em atos tão simples como comer, dormir (não, não pode comer muito, o velho estômago ranzinza rezinga em demasia), sentar-se ao telescópio e ver os mundos.

Sim, por certo ver os mundos. Não somente olhar como se olha o sujo no canto da unha, o nó da gravata, a poeira que sobe do chão cheirando a chuva e abre os dedos magros no ar.

Isso passara a vida aprendendo. Tudo que lhe restara fazer. Mais nada antes ou depois. Quanto mais agora, que se achava prestes a despedir-se. Pensava com seus rotineiros botões: não sabia contar histórias. Fazer histórias era ocupação mais tola que não lhe cativava. Também, pra que criar, contar histórias? Não tinha netos a quem contá-las. O único filho há muito engolido pelo mundo sem qualquer notícia todos esses tristes, longos anos.

A mulher, coitadinha, quase cega pela catarata, caduca, pernas entrevadas, o dia inteiro na cama, as mãos desenrolando fios pesados do passado do carretel de lã jogado no assoalho.

O telescópio comprara faz trinta anos, na primeira e última viagem feita à capital. Mas o sobrado já existia há tanto, tanto, tanto tempo. Nele nascera e dentro do sombrio e austero casarão, criança ainda, vira morrer os pais no mesmo quarto onde alguns anos mais tarde juntara o corpo em frêmito ao de Cândida, então bonita e tão cheia de pudor. Ela atendia pelo doce apelido de Candinha e não tinha os dedos engrossados pelo reumatismo. A pinta negrazulada no ombro esquerdo que a camisola de branca renda realçava não era esta verruga eriçada de pêlos negros como o dorso de uma caranguejeira.

Onde depositar seu beijo mais doce? Sua carícia mais suave, louca fragrância perdida, delírio manso? Cotovelos no balaústre o olhar se aperta, a boca se franze num sorriso murcho quando lembra o filho miúdo, monstrinho enrugado, cara chocha, sumida entre as cobertas bordadas, o rosto cansado de Candinha banhado de felicidade naquela madrugada. Um filho, emoção mais súbita, brusca torrente solta pelo peito na alegria acesa das brasas dos charutos, no brilho borbulhante da champanha.

Depois, já homem feito, alto, magro, belo, Gonçalvinho indo estudar na capital, o trem desenrolando o futuro nos trilhos batidos de sol. Um belo dia a notícia: Gonçalvinho preso. O telegrama tremia-lhe nas mãos. Passou em claro toda a noite. Os dois, pois Candinha desfiou quilômetros de orações no rosário prateado, um com medo de olhar pro outro, Candinha rezando o terço em voz contrita.

Bem que avisara. Lendo todos aqueles livros de língua enrolada, os amigos esquisitos de ocultas conversas deslizando pelos botequins, pelos bares, pelos redutos das sofridas repúblicas de estudantes.

A longa peregrinação pelos amigos influentes, estendendo a mão num apelo mudo, o coração de pai exposto à piedade dos coronéis, deputados, até o filho ser solto finalmente. Vinha mais magro de volta do trem. Olheiras profundas, chega quase não se podia ver os olhos azuis. Mas, o brilho de seu olhar era o mesmo, a mesma fala apaixonada tentando explicar-lhe coisas que não compreendia muito bem, mas sentia o coração encolher, encolher até que não havia mais coração nem nada e no vazio do peito opresso medrava o fruto áspero do medo.

Súbito, o sumiço. Rápido, brutal, sem palavras, sem abraço último, beijo derradeiro na face barbada. Seis meses depois, chegou a carta com endereço de Paris. Breves palavras de um carinho vago e a sentença cortante:

“Pai, tudo bem comigo. Vou pra Espanha lutar pela liberdade. Não me queiram mal. Sua bênção. Do filho que muito lhe ama”.

A vida foi só isso. Dez palavras numa carta em papel azul que Dona Candinha trazia sempre fechada no cofre de pinho junto às poucas joias da família: colar de pérola, brincos de diamante, uma pulseira de prata mexicana.

No quarto ouve a tosse seca da mulher. De quando em quando um suspiro comprido, frase solta, gemido. Hoje os pardais estão tardando. Não gosta de sabiás. Lembra o filho pequeno armando arapucas na sombra da velha mangueira. No bolso do pijama o pão desfeito em migalhas tão inúteis na tarde. Por que não vêm os pardais? Foram pra Espanha também?

A frieza da tarde embaça os óculos. A mão trêmula esfrega lentamente o vidro espesso da janela. Não tem pressa. Não precisa ter pressa. Não tem nenhuma razão pra ter pressa. Portanto, apenas move lentamente os olhos circunvagando o espaço em volta. O telescópio no terraço. Céu bonito em volta. Pode ser que chova. Há pouco ouviu o grito das marrecas. Não gosta de chuva. As estrelas somem e ele fica preso no sem mundos, cada vez mais só.

Se o filho tivesse pelo menos na lua. Aguçando a vista um pouco quem sabe não divisava seu vulto entre os buracos do queijo? Diabo é que a Espanha é longe, do outro lado do mundo. A Espanha é muito mais longe que a lua. Dona Cândida conversa sozinha com seus fantasmas. Feliz dela, de nunca estar sozinha.

Muitas vezes ficara matutando, olho grudado na Ursa Maior; quem irá primeiro? Melhor que seja ela, pobrezinha. Assim não sofreria tanto. Se for ele primeiro, quem vai cuidá-la de noite? Fechar a janela se o frio aumentar? Lembrar do xarope pra tosse, do remédio pra asma? O chá de erva-doce, doces, tenros peitinhos de frango boiando na canja dada de colherinha na boca de menina velha? Quem lhe ouvirá as histórias mais bobas? Quem lhe trará a lã vermelha para o eterno sapatinho do filho?

A morte é uma coisa muito engraçada. Depois que a gente se acostuma com a ideia tudo fica mais fácil, indolor, destituído de mistério. Até o medo vai encolhendo, ficando do tamanho daquele sujo de mosca na vidraça.

Morrer deve ser bom. Quem sabe não vira pardal, pedaço de cometa, luz de meteoro, quinta ponta de uma estrela? Mas, quando não houver mais Dr. Gonçalves neste mundo de meu Deus, o que será do telescópio? Quem untará, numa carícia de noivo, suas juntas entorpecidas de animal mitológico, raspando a ferrugem com punhados de bombril? Que olho substituirá seu olho por trás da lente arranhada? Ou simplesmente não haverá mais pupilas sonhadoras rastreando mundos no fim de cada tarde?

Podem até demolir o casarão, vender o telescópio como ferro velho, objeto de antiquário, ou simplesmente deixá-lo apodrecer em qualquer sótão, esquecido, vazio de mundos, coberto de sujo, o tripé de madeira trabalhada todo roído pelo dente fino dos ratos.

Ergue a lona devagar como se despisse uma mulher. Como se trocasse as fraldas, madrugadinha, de um bebê. A primeira gota cai na ponta do nariz. É enorme e brilha nas sete cores do arco-íris. Repõe a lona depressa com cuidados de mãe. Ri do pensamento avariado. Pode pegar um resfriado. Resfriado. Como se telescópio fosse capaz de sentir essas tais coisas frágeis de gente humana. Telescópio não é besta não. Não é à toa que ele sempre vê mais longe, vencendo o olho humano.

Entra, corre a porta de vidro e fica olhando a chuva cair, monótona e dolorida.

– É, com esse tempo assim pesado, bem capaz de não vir nenhum pardal.

 (Airton Monte, Homem Não Chora)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Airton Monte

Antônio Airton Machado Monte (Fortaleza, 1949) é médico-psiquiatra formado pela Universidade Federal do Ceará; cronista do jornal O Povo, mas essencialmente poeta e contista. Iniciou-se na revista O Saco, onde publicou contos. Foi um dos fundadores do Grupo Siriará de Literatura. Estreou, no gênero conto, com O Grande Pânico (1979), seguido de Homem não Chora (1981) e Alba Sanguínea (1983). Tem inédito Os Bailarinos. Participou de algumas antologias: Queda de Braço: uma antologia do conto marginal, Os Novos Poetas do Ceará III, Antologia da Nova Poesia Cearense, Verdeversos e 10 Contistas Cearenses. Publicou também a coletânea de crônicas, selecionadas de sua coluna de jornal, Moça com Flor na Boca (1ª. Edição, Fortaleza: FUNCET, 2004; 2ª. Edição, Editora da UFC/Coleção Literatura no Vestibular, 2005), além do livro de poesia Memórias de Botequim (Fortaleza: edição do autor, 1979), que venceu o Prêmio Governo do Estado do Ceará em 1979.

Em O Grande Pânico são visíveis a olho nu três histórias essencialmente metafóricas. Toda história é uma metáfora. Uma ou mais. Porque toda leitura implica uma interpretação. Ocorre o contrário geralmente com as obras consagradas pelos críticos. Na verdade, uma metáfora pode ser mais ou menos perceptível. Assim, existe em razão da ótica do leitor. Em “A Última Noite” até a personagem principal tem nome simbólico – Cidadão. É o homem diante do medo coletivo de desobedecer a norma ou o costume. Alguém tem de se fazer ovelha negra e pintar a casa de azul, numa sociedade em que o costume impõe o cinzento. Cor de cárcere, de prisão. O azul simboliza o firmamento, a vastidão, a liberdade. A atmosfera é nitidamente kafkiana nesse conto.

O traço marcante do livro, no entanto, é outro: o drama do homem suburbano, do marginal, da “gente chinfrim, ralé miúda”. Na mesma categoria estão os loucos, os alcoólatras, as prostitutas pobres, os pivetes, os fracassados de todo o gênero. Embora pertencendo todos ao mesmo mundo, ao mesmo espaço marginal da sociedade, existe uma espécie de muralha a separá-los. De um lado estão os profundamente angustiados, os candidatos ao suicídio, os identificados como loucos, e são personagens-narradores. Seus discursos não chegam a constituir histórias, embora o contista afirme “que o homem é um ser sedento de ouvir histórias”. Falam sempre de seus medos (“sou somente um amontoado de medos”, em “Os Gritos Circulares”) e de seus desesperos (“O barco vai afundar”, em "Diário de Bordo”).

Quase todos os contos do livro são histórias bem contadas, dessas que o homem sempre gostou de ouvir, sem hermetismos e sem rebuscamentos de linguagem. Não quero dizer histórias pobres, meros “causos”. Pelo contrário, algumas delas chegam a arrepiar, a causar assombro, de tão magníficas. Assim são “Manuel Lombinho”, “Domingo, Futebol e Cachaça” e “Ave Noturna”, sem as quais qualquer antologia brasileira de contos poderá ficar capenga.

A primeira delas, assim como “Mulher Só”, parece capítulo de romance. Os personagens são os mesmos: o mascate Manuel, a puta Laura e Urucungo. Não só isso: a vidinha miúda de um arraial onde prosperam os coronéis e seus lacaios e onde se aviltam na miséria as putas, os corcundas, os deserdados em geral.

Em “Da Angustiante Espera Causada por um Simples Fenômeno Celeste” há uma história subjacente. Ela emerge como música-de-câmera, misturando-se às pequeninas histórias contemporâneas de cada personagem. É a história do eclipse prestes a acontecer. Então a vida gira em torno do fenômeno celeste, como se sem ele nada de novo pudesse acontecer a um e a outro personagem.

Alguns contos poderiam estar fora do livro: “Fábula algo Engraçada”, “Cotidiano” e “Pega o Ladrão”. Os próprios títulos os denunciam. O primeiro é uma historiazinha de pivetes, embora não lhe falte beleza poética. O outro pode ser considerado apenas a reunião de quatro historietas cujo tema é a  morte. O terceiro, embora sátira do sentimento de insegurança individual na cidade grande, não passa de história algo engraçada.

Proposital ou não, Airton Monte cometeu um deslize – o de utilizar duas vezes a mesma ideia poética, a mesma figura, quase a mesma frase. Em “Os Gritos Circulares” escreveu: "dentro da mala o passado dobrado em dois como uma calça velha”, e na última história: “na mala surrada a vida dobrada em dois como uma roupa usada”.

Encerra o volume um conto longo, positivamente fragmentos de um romance: a quarta parte do livro. Vale como história curta, mesmo dentro da concepção do contista.

Apesar de tudo, O Grande Pânico faz de Airton Monte não apenas um criador, mas um escritor que sabe manejar a palavra, até mesmo o adjetivo.

Esse mundo à parte, que habita os diários sensacionalistas, os bares, os cabarés, as ruelas escuras, os subúrbios, os manicômios, é, na verdade, um mundo dividido em si mesmo.

Nenhum ficcionista cria tipos, inventa personagens. Se o fizesse, estaria abstraindo o homem e fracassaria como escritor. O que realiza é, primeiro, uma descoberta, porque o ser humano é sempre terra desconhecida. Descobre o seu semelhante. Crê na sua existência, como os navegadores antigos acreditavam nos mundos novos. E parte no seu rumo. E o explora, sozinho. Penetra-o, confunde-se com ele. Revela-o. O ficcionista é um revelador. De mundos reais e quase sempre ignorados.

Airton Monte aproxima-se mais do ficcionista revelador do que do falso criador. Como Dostoievski. Delineia a psicologia dos tipos descobertos. Como Machado de Assis. Veja-se Felizbelo. E quase todos os personagens de Homem Não Chora. Seres humanos desesperados no amor impossível, em “O Enforcado”. Farrapos humanos que teimam em viver ou perdem toda e qualquer esperança. Cegos, mendigos, prostitutas decaídas, cornos, devoradores de moscas, tarados, velhos, solitários, assassinos arrependidos e idiotizados, loucos, como Berta, todos loucos, pois a loucura não é senão sentir-se sem rumo, sem esperança, sem saída.

Apaixonado pelas pessoas, Airton Monte apaixona-se também pelas suas personagens. A umas dedica a mais mordaz antipatia. E as torna feias, monstruosas, irracionais. De outras, sente a mais santa piedade. Por serem também miseráveis, criaturas sem eira nem beira, catrevages de carne e osso. Mesmo quando o personagem-narrador se identifica com ele, quando narrador e protagonista se confundem, e o texto se transforma num choro de bêbado, num grito de aflito, num discurso de angustiado.

O narrador, como o poeta, é um curioso, um escavador, um repórter. Um vagabundo à cata de aventuras, de pessoas, de fatos. Para disso extrair a matéria-prima de suas “criações” ou “criaturas”. Os outros não percebem nada, porque, no máximo, veem. Ou não veem, porque não buscam ver. Nunca verão Felizbelo. No entanto, Airton Monte o viu, porque o procurou, o descobriu, o revelou. Delineou-o por dentro e por fora, feito um deus.

Não se revela o homem, porém, com a linguagem jornalística, seca, sem vida, sem paixão. Pois a linguagem de Homem Não Chora é poética, ritmada, ondulante, viva, apaixonada. Como no conto “Velho ao Telescópio”, talvez um dos mais poéticos e inventivos contos da literatura brasileira.

É quase certo tenham sido os contos reunidos em Homem Não Chora escritos ao longo de alguns anos. Nuns, o contista parece deixar com que as palavras se esparramem sobre o papel, como numa confissão, numa elegia, num pranto poético. Noutros, se adstringe a um enredo e faz narrativa. É o caso de “Atrás de Cada Porta Tem um Sonho”. Aliás, o mais longo do livro. E, como no primeiro livro de Airton Monte  – O Grande Pânico –, alguns contos são profundamente metafóricos, repletos de simbolismos. Em “Os Mercadores” vislumbra-se a importância da tragédia grega na sua formação. Em “O Sábio Haroldo” os personagens se locomovem num ambiente kafkiano, que tanto pode ser um asilo de loucos como uma micro sociedade totalitária, onde se fabricam loucos, feras ou simplesmente se adaptam indivíduos a uma brutalidade instituída. E desde o lar, passando pela escola e chegando ao local de trabalho, o que tem sido a nossa sociedade?

Um dos contos mais estranhos do livro intitula-se “Pequeno Interlúdio para o Desespero”. E por que estranho, se todo o livro é isso que diz esse título? O tempo parou para Maria. De repente todos os de sua casa viraram estátuas. E também ela. Esse conto vale por todos os protestos e gritos feministas.

Em outras histórias do livro encontramos situações igualmente estranhas, a exigirem do leitor reflexões mais demoradas. Num deles o contista fala mais metafisicamente do homem: “Compreende, afinal, e quase fica louco, que existem vitrines separando as pessoas entre si e somos todos manequins se olhando em silêncio, impassíveis testemunhas e cúmplices.” (“Vitrines”, p. 14). De uma simples atitude, embora própria de um alienado, revela Airton Monte um tipo e, a partir dele, discute a condição humana. Em apenas duas páginas.

Incrédulo diante do homem, o contista vasculha as vísceras de uma sociedade embrutecida e revela criaturas que os mais crédulos pensavam existirem apenas no reino da fantasia. Embora o cachorrinho de madame de um dos contos pareça mais mitológico do que real. Nele Airton Monte se revela um criador. Ou um recriador, porque nem assim se confunde com os falsos criadores, os que nunca viram de perto, de bem perto, o ser humano.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.