sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) O Cobertorzinho de Mostardas

No meu tempo de meninote fui caixeiro na cidade do Rio Grande, que naquela época dava a nota no comércio da província. Como era da praxe, o meu primeiro posto foi o de - vassoura.

Varria o armazém - uma "venda" em ponto grande - agarrava à unha as baratas vagabundas que passeavam sobre os queijos e os bacalhaus, lustrava os sapatos de fivela do patrão e ia à missa das sete horas, porque era dos mandamentos. As vezes chuchava o meu cascudo dado pelo sr. 1º caixeiro; comia - por último - na ponta da mesa grande, sem toalha e tudo no mesmo prato; ao escurecer ia a casa tomar a bênção aos meus pais e voltava logo, para dormir numa esteira, atrás das pipas. Isso tudo eu e os outros fazíamos para aprender - a ser gente.

Mas a vida ia correndo. O diabo foi uma mulatinha, que...

Foi assim: perto do armazém morava uma senhora viúva, com três filhas, meninotas como eu, porém bonitinhas como uns feitiços...

De manhã, quando eu ia à missa ou de lá vinha, espichava para elas os olhos... mas baixava-os logo, entre respeitoso e envergonhado.

As meninas riam-se, cochichavam e beliscavam-se.

À noite, quando ia à bênção caseira ou de lá vinha, etc, e tal, era a mesma cousa.

Aquela obrigada passagem pelos três diabinhos punha-me as orelhas em fogo e forçava-me a trocar o passo, na atrapalhação do meu acanhamento.

Porém, a mais dos três diabinhos havia mais uma mulatinha, repolhudinha, bem da cor do pêssego maduro, e ladina como um sorro...

A mandado das sinhazinhas a mulatinha vinha ao armazém comprar rapaduras, puxa-puxa, pé-de-moleque ou broinhas, que eram os doces que havia; e embirrava em que só havia de ser servida por mim!

— Seu Romualdo, quatro de broinhas e dois de puxa-puxa!

Se outro caixeiro vinha atendê-la, a mulata empacava-se e teimava:

— É o seu Romualdo quem me serve. A nhãnhã deu "orde"! ...

E este seu criado Matias... A vida ia correndo.

Ora, uma tarde, tinham todos ido jantar, ficando eu, como de costume, sozinho de plantão ao balcão. Nessa tarde, não sei porquê, até uns sujeitos que costumavam ficar por ali fazendo horas, até esses não apareceram.

Estava eu olhando para uma caixa de massas italianas e cá de mim para mim perguntando que estranha árvore seria aquela que dava lasanha e macarrão, quando embarafustou porta adentro a mulatinha:

— Seu Romualdo, três de pé-de-moleque!

Fiz os três vinténs de pé-de-moleque e por minha conta tomei de uma rapadura e dei-lha, dizendo, meio a tremer de mim mesmo:

— Toma: isto é doce como tu..

A mulatinha avançou na rapadura e respondeu espevitada:

— Como tu, vá ele! "Menas" confiança! Estomagado com a ingratidão, quis retomar a rapadura e fisguei o pulso da mulata. Houve uma pequena luta silenciosa e ... justo, ao tempo que entrava da rua o patrão, a mulata bradava às armas:

— Seu Romualdo, não me belisque!

— Largue a cabra, menino! berrou o meu patrão, a dois passos de mim.

E como vinha de mãos a prumo sobre as minhas orelhas ... quebrei o corpo. Depois, não sei explicar o que se passou: divisei ao meu lado, na boca de uma barrica, um alguidar com manteiga; nele e nela afundei as mãos e com tal bocado - três ou quatro libras - fiz arma de defesa.

Os dedos ferozes tornaram a roçar-me as orelhas ... outra negaça de corpo e quando alcei-me, plantei a plastada da manteiga na cara do patrão. Olhos, barbas, nariz, boca, testa. Calafetei-o!

E voei, porta fora, assombrado. A mulatinha, em frente, fez uma careta e gritou-me:

— Bem feito! Apanhou! ... Apanhou! Bem feito! ...

Cinco minutos depois entrava em casa.

— Tratante! bradava Romualdo pai. Atreveres-te! ao teu patrão... ao segundo pai dos caixeiros! Patife!

— Mas ele ia arrancar-me as orelhas... murmurava eu, Romualdo filho, a tremer, com a boca pegada a cuspo grosso.

E Romualdo pai:

— Pois fazia muito bem! Quem dá o pão dá o ensino!

E Romualdo filho:

— Que ele sempre... tratou-me... como cachorro... gaudério! Ih! Ih! Ih!

E mais não disse, que os soluços embargaram-me a voz e os queixumes. Afinal a "velha" acomodou as cousas. As mães sabem sempre ser anjos.

Fui mandado para Mostardas, a passar uns dias com o meu padrinho.

Foi um rega-bofe a viagem, que durou três dias, a bordo dum lanchão; foi outro rega-bofe a estadia, que durou duas semanas, em casa do padrinho.

Mostardas é uma povoação perdida entre areiais, junto à costa do oceano. Gente boa, do bom tempo. Tece o linho, de que faz desde os enxovais de casamento até as camisas do diário; tece a lã desde os xergões grosseiros até o picotinho lustroso.

Nesse tempo existia aí uma raça especial de ovelhas que produziam uma lã tão aquecedora como nunca mais vi outra. Essas ovelhas morriam muito no verão abafadas na pele, era necessário tosqueá-los à navalha. A gente que trabalhava com tal lã suava em barda e ficava com as mãos vermelhas, quentes, fumegando, como se estivesse lidando em água esperta.

Mas eu, como criançola, pouca atenção dava a estas cousas.

O lanchão amarrou novamente; nele devia eu regressar. Na véspera da partida, a santa da madrinha arrumou a minha bagagem. Minha, propriamente, era apenas uma canastra pequena, forrada de couro cru, peludo. O mais eram presentes que eu levava: um fardo de miraguaia salgada, uma barrica de camarões secos, uma peça de picote, umas toalhas com rendas de bilros, etc.

E para mim, expressamente meu, um cobertorzinho, feito da tal lã das tais ovelhas especiais. O meu cobertorzinho era pequeno; dava apenas bem para o meu corpo: muito leve, transparente e felpudinho. Do lado que devia ficar para os pés. tinha duas barras vermelhas e do lado da cabeça tinha o meu -Romualdo - em letras azuis.

Fiquei encantado! E como já queria utilizá-lo na viagem, emalei-o atando-o com uma eitibira larga, descascada a capricho.

Na manhã seguinte, sob bênçãos e lágrimas dos meus padrinhos, embarquei.

O lanchão içou velas. Ainda uns abanados de mãos, de lenços ... e tudo lá ficou, para sempre, na volta do arroio!

Mal pus os pés em terra, meu pai disse-me que eu marcharia para Bagé... como caixeiro!

Chorei pelo patrão da manteiga, pelas meninas e até pela mulatinha; chorei por Mostardas, pelo lanchão...

Entreguei os presentes, as cartas, dei as lembranças, os recados e os abraços que me confiaram.

Na minha desgraça só o meu cobertorzinho me consolava. Mal toquei-lhe, para mostrá-lo à minha mãe, a embira, de ressequida, esfarinhou-se. Não prestei a isso maior atenção, mas já foi suando que o amarrei de novo com uma ourela de pano piloto. Minha mãe abanava-se de leque, como em dezembro.

Segui para Bagé. Uma viagem dessas, naquele tempo, dava para um romance!

Todos sabem disso. Passemos adiante.

Quando a "deligência" fez a última parada, perto da igreja de S. Sebastião de Bagé, o meu novo patrão esperava a encomenda.

Era eu.

Era ele um espanhol baixinho, gordo e gritão.

Como é dos estilos, pus a canastra ao ombro e marchamos para a casa do negócio.

Fazia frio!... frio!... Que frio que fazia!... As fumaças do cigarro do espanhol ficavam paradas no ar, endurecidas, talvez congeladas... Pouca gente a pé. Muitos homens a cavalo; emponchados, todos.

Chegamos. Entramos. Pousei a canastra. Olhei.

E chorei, logo. Aquela. distância, aquelas caras novas e cousas estranhas achatavam-me.

O patrão então falou:

— Mira, chico, estarás estrompado, he?... Vate a dormir. Mañana tempranito te tomarás un cimarón con galletas!

E conduziu-me ao meu quarto, isto é, ao quarto da caixeirada.

Lá, no Rio Grande, tínhamos esteiras, aqui temos pe1egos... Ganhei na troca.

Atirei-me sobre o meu pelego. Mas o frio cortava.

Meio de gatinhas, pés duros, canelas duras, ombros duros, mãos duras, consegui abrir a canastra e sacar o meu cobertorzinho. Provavelmente eu devia de estar com a cara como uma batata roxa...

Tocar no cobertor foi uma satisfação, abri-lo um prazer, estendê-lo sobre meus pelegos, uma alegria; meter-me debaixo dele, um consolo divino... E ferrei num sono de pedra.

Lá pelas tantas acordei-me meio afogado, lavado em suor.

Acordei-me sob uma granizada de risadas e falaraz dos rapazes companheiros, todos em trajes menores, sentados nos peitoris das janelas, que davam para o quintal.

— Que abafamento! que calor! diziam eles.

— Parece meio-dia de fevereiro!

— Se tivesse água agora, era banho certo!

Eu, por mim, não podia mais; parecia-me que tinha um pano de fogo em cima do corpo. Fui para a janela, como os outros.

Nisto o espanhol abriu a porta do nosso quarto e - descalço, em ceroulas e de poncho de pala enfiado - bradou:

— Eh! muchachos! Habrá fuego en la calle? Que está caliente como un sol dormiendo!

Mas logo bateram à porta da frente.

— Hay fuego, muchachos! Es fuego! A ver!

Saímos todos com o patrão; abriu-se uma porta e logo entraram uns quantos sujeitos vestidos muito à frescata.

— Chê! Bote um capilé! pediu um, esbaforido.

— Outro! Que calor! gritou outro tipo.

— Menino, dá cá um refresco... reclamou um terceiro.

— Donde es el fuego? inquiria, aflito, o espanhol.

— Que fuego, nem fuego! Calor da noite é que é.

— Isto é tormenta!

— Olha! Outro capilé!

— Aqui também!

E o calor aumentava.

Casas abriam-se com rumor, acendiam-se os candeeiros e as velas das "mangas" de vidro.

Crianças vinham para a rua, em camisinha. Ouviam-se risadas, conversas, chamados. Começavam a mandar buscar cousas ao armazém. Tijolos de goiabada, rapaduras e bolacha doce, latas de sardinha, ovos e toucinho para fritadas, varas de lingüiça, para comezainas improvisadas.

Outras casas de negócio vizinhas também abriam, para servir à sua freguesia. Havia movimento em toda parte, como se fosse de dia.

As pessoas que chegavam de outros lugares queixavam-se de que o calor aqui no armazém ainda era mais insuportável que lá.

De repente ouvimos um estouro forte, dentro do balcão; era um barril de melado que arrebentava, espumando. Um dos caixeiros que fora servir a um freguês avisou ao patrão que as velas de sebo e as barras de sabão estavam pegadas, tudo quase como uma pasta.

Todos os que bebiam ao balcão, queixavam-se e reclamavam que os refrescos estavam mornos. Veio um negro buscar uma galinha, que o seu senhor queria comer uma canja, para passar o tempo...; o caixeiro que foi ao galinheiro voltou, atarantado, a participar ao patrão que as aves todas estavam assoleadas e já morto um peru gordo.

O espanhol, corado, pingando suor, e sempre em ceroulas e de pala enfiado, correu para os fundos.

Mira! Que cosa bárbara!

Do lado do arroio vinha uma algazarra alegre, gritos, gargalhadas, ditos: era o povo que tomava banho!

Nós todos no armazém suávamos como tampa de panela. Um estancieiro, freguês da casa, pediu um chimarrão; o primeiro caixeiro amarrou a cara, porque era estopada ir-se aquentar água àquela hora, mas mandou preparar o amargo. Saiu e voltou logo o peão com os avios e a "chocolateira" com água, fervendo em pulo, e de entrada foi dizendo:

— Eta, diabo! ... Lá na cozinha "tá" tudo fervendo! ...

Aquilo estava esquisito, estava... Nunca se tinha visto um tão curioso calor em junho, entre Santo Antônio e São João, que é o tempo justo em que a geada cura as laranjas e branqueia como farinha, no terreiro e nos telhados.

E o espanhol, bufando, repetia:

— Que cosa bárbara! que cosa bárbara!

Eu, bem se imagina, estava atarantado com tudo aquilo; e sentindo a roupa empapada, com receio de alguma constipação, resolvi mudar outra, enxuta ... e esgueirei-me para o quarto.

Quase não pude entrar, sufocava, lá dentro; era um forno. Contudo, avancei até a minha canastra: era insuportável, aí perto.

Então, só então, como um raio, foi que me lembrei do meu cobertorzinho!

Era ele, só ele, o calor, a quentura da sua lã, que estava causando todo aquele estrupício na cidade.

Fiquei aterrorizado.., se o espanhol descobrisse!

Muito caladinho, apressado, dobrei-o, amarrei-o e atirei-o para o fundo da canastra, que fechei com o cadeado.

E disfarçado, vim para o balcão, com os companheiros. Daí a pouco começou a abrandar a torreira' foi abrandando; veio a viração da madrugada; já se respirava melhor. Surgiram as barras do dia e todos se foram deitar, para aproveitar ainda uma hora de sono.

Nunca ninguém soube disto. Dias depois, para tirar-lhe as pulgas, estendi o meu cobertorzinho ao sol.

Foi o meu prejuízo: combinaram-se a quentura da lã e o calor do astro... e pegou fogo!

Quando fui levantar a minha coberta, era pura cinza.., e nem fumaça tinha havido!

Olhem que era cobertorzinho quente, aquele!

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Casos_do_Romualdo/XI

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) III

Balada do Desertor

Na Primavera a guerra prenunciava,
Uma nova batalha no Vale dos Mortos,
Como a destruição apocalíptica do Armagedon.
Lembrei-me dos inúmeros mutilados,
Volvi meus olhos de poeira e dor,
Para centenas de lares,
Repletos de órfãos famintos,
Onde o fantasma feroz da fome,
Rodava em círculo aquelas moradas.

Amarrei, então, o cadarço da botina,
Salpicado de lama e sangue,
Trilhei pela estrada deserta de minas,
Dando adeus a peleja
Nada de glorioso o me aguardava.

Apenas o pelotão de fuzilamento,
O uniforme rasgado,
Os botões dourados arrancados
E a insígnia tirada a força de meu peito.

Quando descansei ao cair da tarde,
Num rancho à beira da estrada,
Só havia entre os escombros,
Um naco de pão centeio,
Empoeirado na desordem daquela dispensa.

Faltava água para beber,
E o cantil já estava vazio,
E os rios corriam lentos em direção ao mar,
Passavam envenenados,
Nada mais podia esperar.

A minha arma vendi num bordel,
E entre putas e rufiões,
Celebrei a minha deserção,
Morri crivado de balas
com a minha própria arma,
Naquela madrugada azul e fria
Quando não mais havia
um níquel para eu gastar.

Para que serve um homem hoje em dia?
Somente para morrer,
Somente para matar.

Prece de um Pecador
 

Meu Senhor fui negligente
E agora estou doente
Por conta de minha transgressão
Não amar só ti
Diante de tanta farra e profanação

Meu Senhor estou convalescente
E busco o vosso perdão
Meu Deus
Não me abandones
Sou apenas um pobre grão
Pecando nesse pobre chão

Meu Senhor fui descuidado
E agora estou ferrado
Diante de tanta violação
Abrande minha pena
Diante do vosso Tribunal de Apelação

Pequei, Senhor!
Tenha piedade de mim
na hora de minha condenação.

O Herético

Numa madrugada
Quando queimava de febre
Suspendi os olhos para o oitão
E tremendo de frio
Busquei no tempo
Agasalho para a minha solidão.

Balada da Minha Dor
 

Eu sou um cão vadio sobre a face da terra,
Farejando no ar tanto indignação.
Eu lambi as feridas de São Roque,
Levei o seu precioso pão.

Eu fui o cão de caça do palácio de Gotardo.
Transitei num tempo de peste,
e nas colinas ao Leste,
quando me buscaram,
eu estava distante cravejando minha presa no calcanhar do Cão.

Eu estive com São Lázaro,
e testemunhei a sua ressurreição
Por longas décadas andei de pelo caído,
de sardas espalhadas pelo chão.
E nem por isso abaixei o meu focinho,
nem deixei que o carinho,
diluísse nesses tempos de completa podridão.

Eu permaneci ligado,
Algumas vezes travado:
de haxixe, maconha e bom bocado.
Nesse condado repleto por putas, veados e ladrões.

Eu vi a miséria tomar conta de meu país
e nem assim me exilei,
eu aqui fiquei.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

Ana Miranda (Ponto de Cruz)

Eu me apaixonei por um homem, ele visita minha mãe de tarde, em nossa casa chega perfumado e tímido, as moedas tilintando no bolso de seu paletó, engasga nas primeiras palavras mas depois ele conversa com ela e passa a mão nos meus cabelos, sinto minha pele se arrepiar mas ele não percebe o sentimento que me causa, pensa que sou apenas uma criança e crianças quando sentem mostram o que sentem, mas eu não mostro, é forte a tentação de acompanhá-lo com os olhos, eu não entendo o que eles conversam, olho o homem enquanto ele a olha a bordar no bastidor, vejo-o levar a xícara de café aos lábios, ele me dá uma moeda e me diz para ir à padaria comprar um confeito, faço o percurso concentrada e só percebo o mundo de fora quando sinto o gosto doce da bala derretendo na minha língua, volto para casa e ele ainda está sentado na frente dela, no mesmo lugar mas um pouco pálido como se o seu coração tivesse parado de bater, eles permanecem em silêncio, ele segura a mão dela e a beija, em seguida vai embora, às vezes esquece de se despedir de mim, ela fecha os olhos, quando o ruído do carro dele desaparece ela chora em silêncio, suas lágrimas caem nos pontos de cruz, ela evita olhar para mim e depois que ele vai embora ela olha o relógio da parede de instante em instante ou fica diante da janela perdida longas horas olhando o gramado, algo esvaziou seus olhos, seu corpo, ela abraça e beija o gato, quando o animal escapa-lhe de seu colo eu o abraço e tento beijá-lo da mesma maneira mas em vão, olho o relógio porém não vejo nada, nem o tempo passa, eu não espero que o homem volte, até mesmo esqueço que ele existe, minha vida segue como a água da chuva que escorre procurando os subterrâneos, quando o homem reaparece eu lembro que o amo, amo a presença dele e não a sua ausência, um dia talvez eu vá amar a ausência de um homem, quiçá, não sei o nome dele, esqueci de perguntar, mas o nome dele não é importante, o nome de ninguém importa, sei quem ele é, pressinto sua alma, as esferas de sua existência, o calor de seus gestos e o rumor de sua voz, sinto em meu corpo a paixão que sente por minha mãe.

 (Ana Miranda, Noturnos)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Ana Miranda

Ana Maria Nóbrega Miranda (Fortaleza, 1951) residiu em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Publicou os livros de poesia Anjos e demônios (Rio de Janeiro: José Olympio, 1978) e Celebração do outro (Rio de Janeiro: Antares, 1983). Como romancista, publicou Boca do Inferno (1989), O retrato do rei (1991), Sem pecado (1993), A última quimera (1995), Desmundo (1996), Amrik (1997), além do livro de contos Noturnos (1999) e da novela Clarice (1999), todos pela Companhia das Letras. Tem obras publicadas em diversos países, entre eles Argentina, Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Espanha e Suécia. Recebeu o prêmio Jabuti em 1990 (pelo romance Boca do Inferno) e, em 2003, o romance Dias & Dias foi agraciado com os prêmios Jabuti e o da Academia Brasileira de Letras. Boca do Inferno foi incluído na lista dos cem melhores romances do século XX em língua portuguesa, publicada pelo jornal O Globo.

 Em Noturnos, Ana Miranda se vale de uma forma quase fixa (como o soneto e a sextina) de narrativa: cerca de duas páginas; uma só frase ou parágrafo (apenas um ponto, o final); muitas vírgulas; diálogos (falas) intercalados à narração (monólogo) e iniciados por maiúscula. Como se escritos sob medida ou por encomenda de jornal ou revista. A narração é sempre na primeira pessoa do feminino (sem nome explícito). Noturnos seria um romance, houvesse uma costura a amarrar os diversos segmentos (contos) do livro. Mas falta um enredo, mesmo daqueles menos palpáveis, como os de Virgínia Woolf ou do noveau-roman. Em poucas composições se pode vislumbrar uma trama, como em “Violino”. Além disso, as narradoras são mulheres de diversos feitios, embora semelhantes. Como na solidão em que vivem. Em “Blusa vermelha” confessa: “estou só, na penumbra”. Em algumas composições a personagem parece apenas divagar, sonhar, ou imaginar a “ação” que narra, como em “O vestido de noiva”. Inicia-se com um ato (que pode ser imaginário e não real): “Uma mulher abre a porta do quarto”, e se conclui com um gesto e uma lamentação: “mas quando olho pela janela percebo que anoiteceu”. Antes, constata: “nem sei a que mundos minha mente me leva”. Em muitos contos a mulher chora: “No banho choro, a água na água se desfaz, ele ouve e bate à porta” (“A morte do cisne”). “Lua” se abre assim: “No meio da noite acordo com o rosto molhado de lágrimas”.

Algumas narrativas são apenas instantâneos, flashes. E quase nada acontece ou não se vislumbra uma história. Em vez de ação, apenas reflexão. Além disso, não há nenhuma referência a pontos geográficos, nomes de cidades, logradouros. Quando muito, ao mar, à praia ou ao campo. Em “Profecia” mulher se encontra num “lugar deserto na margem oposto do lado, onde há um campo seco”. Em “Macaco” a personagem ouve o “barulho das ondas do mar batendo na muralha de pedras”. Outra se refere a “uma praia chuvosa”. A cidade aparece aqui e ali, como uma alusão apenas, mesmo na composição intitulada “Cidade”: “A cidade me chama pela janela, vejo lá embaixo as pessoas caminhando”. As descrições de ambientes são raríssimas: “uma bela casa branca com vista para a paisagem do oceano”.

A referência a objetos domésticos (armários, roupas, perfumes) se explica pela constante permanência da personagem em casa. Em “Um vestido” toda a “ação” gira em torno da compra de um vestido, “como se vestir o corpo fosse o mesmo que desnudar a alma”. Livros são também objetos não somente decorativos nas obras de Ana. Há até um conto intitulado “Meus livros”. A narradora dessa peça dá explicação para a inclinação da contista pela geografia interior: “Existe em minha cabeça uma estranha geografia que se refere ao mundo em torno de mim, um mundo físico mas de significados infinitos, essa geografia surgiu do meu hábito de viver trancada com meus livros”.             

A noite é outro elemento preponderante nestes contos e talvez isso explique o título do volume. Algumas composições acentuam essa vocação da contista para a noturnidade, como em “Obrigação noturna”: “em pé diante da janela olho a escuridão”.

As mulheres de Ana Miranda são pessoas delicadas, bem educadas, não falam palavrões, se vestem bem, frequentam ambientes finos, vivem em apartamentos de classe média, leem livros, bebem vinho. Uma ou outra foge a esse tipo, como a doméstica Odete e a narradora de “Casa roubada”, que mora em hotéis baratos, trabalhava numa fábrica de tecidos e tinha uma casa.

Há sempre outro personagem, na maioria das vezes masculino (marido, amigo, desconhecido). Esse outro ser quase nunca aparece com nitidez ou é descrito em detalhes. Em “Retrato de homem” se vê apenas um rascunho ou esboço de personagem: “na primeira vez em que nos encontramos ele bebeu duas garrafas de vinho, agarrou meus punhos”. Esse outro pode ser caracterizado até como monstro: “Tenho tanto medo do monstro da esquina”. Mas não ousa se aproximar dele, do outro. E prefere dar-lhe um apelido. Na maioria das vezes, porém, não há sequer um traço fisionômico do outro, como em “Visitante”: “Ele é o único dos homens vestido de termo”. A protagonista às vezes busca esse outro e não o encontra, como em “Sagrada família”. O outro pode ser um terceiro, como no triângulo amoroso de “Amor vicário”. O marido, que é o outro quase sempre, aqui é apenas o primeiro outro: “Quando meu marido está em casa eu finjo que não me importa a presença do outro homem”. Os outros às vezes dormem, isto é, estão ausentes, são figuras quase mortas. Ou expostas à morte. Em “Amplidão” a narradora se refere a eles como se fossem seres estranhos: “as pessoas da minha família dormem” “indefesas na cama”; “os corpos adormecidos são a expressão das almas, têm os lábios entreabertos e as pálpebras se movem fechadas, seus corpos frios e inertes flutuam, respiram fazendo ruídos e murmuram atormentadas pelos sonhos”.

Muitas vezes ocorre uma fuga se si mesma e dos outros, como em “Corpo e alma”. Fuga misteriosa: “nunca estou no lugar onde aparento estar”. Ou o corpo se distancia da alma: “minha alma vive fugindo pelas janelas”. A figura do Outro se pode esclarecer mais ainda nesta peça enigmática: “o terceiro ser que há em mim e me oprime é o Outro”; “em seguida eu terei fugido e estarei em outro lugar e ele não saberá onde”.

Quando o outro desaparece de cena, entra em seu lugar o ser que narra, para falar de si mesmo. Em pelo menos uma narrativa (“Rosa-dos-ventos”) ocorre o contrário, em que a outra (na maioria das vezes é o outro) é desvendada, mostrada com clareza, e a narradora se comporta como tal.

Muitas vezes o outro não existe mesmo. Ou existe apenas na imaginação dela, a protagonista: “um baile solitário em que danço comigo mesma no salão iluminado por velas, entre seres imaginários” (“Baile negro”). Esses entes aparecem em outras composições. Em “Maiô” mulher compra um maiô para ir ao encontro de “um homem imaginário”.

São raras as vezes em que a narradora se volta para a infância, como em “Machucados” (lembranças), “Ponto de cruz” (ela ainda criança) e “Pai” (em que o outro, o pai, é apenas uma figura de sonho de criança). Em “Mundo da Lua” a que narra tem treze anos, porém namora e fala de sexo.

Em “Carta de Odete” (um dos poucos seres fictícios com nome explícito), a “narradora” é outra, a antiga empregada doméstica. Na maioria dos contos a protagonista é mulher solitária, em casa ou em algum ambiente fechado, a falar de si mesma, de sua solidão, de desencontros, fugas, pecados, culpas. Em “Unhas” a mulher constata: “Nasceram esta noite unhas nos meus dedos das mãos, tão compridas que parecem garras”. E se pergunta: “serão as unhas os meus pecados que se tornaram visíveis?”

Pode-se dizer que os conflitos das personagens de Ana Miranda são consigo mesmas. Dramas de desencontros e desarmonias com os outros. Ou com o outro. No estranho “Mariposas de madeira”, a narradora se encontra com a Outra, que se diz do Outro, e lhe pede que não se aproxime mais “do homem que ela ama”. Esse outro “talvez seja um estrangeiro de olhos azuis que perambula nos gramados e de vez em quando senta à sombra de uma árvore e canta canções de sua terra”. No também estranho “Incompreensão”, a narradora diz não entender “a diferença que há entre mim e eles” (os outros).

As personagens de Ana Miranda vivem a inadaptação ou a sensação de inadaptação ao status quo. Vivem em solidão e essa solidão faz com que os outros seres pareçam figuras apagadas, desbotadas, sombras, quase sem vida, sem aura.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 13


Fonte:
Trova formatada obtida no facebook do autor

Antologia: Mulheres e seus Desafios (Participe!!! Prazo: Março de 2014)

Escritor (a), poeta (poetiza), cronista e jornalista.
Participe!

O Livro Digital será publicado no mês de Março de 2014.

1 – Assunto:
Sobre a Mulher.

2 – Participação:
Cada participante terá direito a duas páginas.

3 – Sobre o Texto
 Postar texto e preencher autorização.

Letra Arial 12 na cor preta. Não enviar textos colados de páginas da internet.

No arquivo do texto deve constar no cabeçalho: nome completo do autor, pseudônimo, endereço completo, e-mail, telefone com DDD, pequeno currículo (5 linhas).

O Título seguido do texto, não podendo ultrapassar duas páginas do WORD, o material.

O texto deve ser original, e sem ofensivas sobre cor, raça, classe social, pessoas ou governo. Não serão admitidos textos pornográficos.

4 – Inscrição
Valor da inscrição: R$20,00 depositados diretamente na CAIXA ECONÔMICA FEDERAL ou nas casas lotéricas.
AGÊNCIA 2199
CONTA: 390-6
CPF do titular: 067277568-99
 
 5 – Sobre Exemplares Digitais e Impressos
A inscrição não dá ao autor o direito a exemplares. Apenas o livro digital, com ISBN, que será entregue após a publicação do livro via e-mail. Será comercializado no site da editora. Os autores terão participação de 60% dividida entre todos, sobre quaisquer vendas do livro digital “Mulheres e seus Desafios”.

O valor para cada livro impresso depois da publicação será de R$35,00. O participante poderá adquirir quantos livros desejar.

6 – Prazo
As inscrições encerram em 90 dias, ou até se esgotarem as páginas. Não mais que 300 páginas. (No máximo 150 participantes) independente de sexo, idade (acima de 18 anos), cor, ou classe social.

Poderão participar autores brasileiros residentes no Brasil e no exterior.

7 – Aceitação
Os textos e contrato só serão aceitos junto com a confirmação do pagamento via e-mail.

8 – Prêmios:
Para os três melhores textos, seus respectivos autores receberão dois exemplares impressos em suas residências sem custos adicionais. Mais um prêmio surpresa será enviado junto com os livros.

9 – Nota:

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AUTOR: Eu, (Nome do Autor), ( NOME ARTÍSTICO SE TIVER); (Nacionalidade), (Profissão), (Estado Civil), Carteira de Identidade nº (xxx), CPF nº (xxx), capaz, residente e domiciliado à Rua (xxx), n.º (xxx), Bairro (xxx), Cidade (xxx), CEP. (xxx), no Estado (xxx); ( E-MAIL); autorizo a edição, publicação, distribuição, comunicação ao público, dos textos supracitados, (  aqui o nome dos textos separados por ponto e vírgula);  no projeto MULHERES E SEUS DESAFIOS  1ª edição. Antologia.

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Fonte:
Branca Tirollo. Editora Sotaques.

Academia Formiguense de Letras (Posse, Lançamento e Sarau)


AFL EMPOSSA DOIS NOVOS ACADÊMICOS, LANÇA SEU 9º LIVRO E CONFRATERNIZA-SE COM SARAU

Com uma expressiva presença, aconteceu no sábado, dia onze de janeiro, às vinte horas, a Sessão Solene da Academia Formiguense de Letras – AFL. A solenidade aconteceu no CEMAP – Centro Municipal de Aprendizagem e Profissionalização situado na Rua Alderico Nogueira, nº 470, em Formiga (MG).

A abertura da solenidade ficou por conta de uma belíssima apresentação artística de dança do ventre coreografada pelo grupo “Além do Véu” sob a coordenação de Dora Smith e pelas dançarinas Daiana, Flávia, Gabrielly, Jociane e Larissa.

O cerimonial ficou por conta da marconiana Thayná Pereira Vieira, e a solenidade fora presidida pelo Sr. Paulo José de Oliveira, compondo ainda a Mesa de Honra a representante do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais – CECULT/MG Professora Maria Ribeiro de Andrada e Oliveira Figueiredo, o Dr. Sérgio Ricardo Gomes – representando o Conselho Comunitário de Segurança Pública – COMSEP, os Acadêmicos Dr. José Pereira de Souza e a Professora Maria Aparecida Castro e Campos Segundo (Tia Cidinha) e os neoacadêmicos Dr. Wilson Alves Figueira e Professor Carlos Eulocastro de Oliveira.

Na oportunidade foram empossados os neoacadêmicos Dr. Wilson Alves Figueira, ocupando a Cadeira de número 33, o qual foi saudado pelo Acadêmico Capitão José Pereira de Sousa, e o Professor Carlos Eulocastro de Oliveira (Professor Carlinhos), ocupando a cadeira de número 24, o qual fora saudado pela Acadêmica Maria Aparecida Castro e Campos Segundo – Tia Cidinha.

O ato de posse dos dois novos recipiendários foi conduzido pelo Sr. Paulo José de Oliveira – presidente da AFL e pela Acadêmica Maria Ribeiro de Andrada e Oliveira Figueiredo – Maria Andrada, membro do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais. Em seus discursos de posse os dois novos membros exaltaram a importância da AFL, a alegria de se tornarem imortais e, a disposição em tudo fazer para honrar suas Cadeiras e, por conseguinte as lídimas tradições acadêmicas. Representando os familiares, também foram homenageadas as esposas dos Acadêmicos empossandos Sra. Nilza e Sra. Alverilda.

Na sequência, fora realizado o lançamento do nono livro da AFL intitulado “Solar da Prosa, Poesia & Efemérides". A obra prefaciada pelo Acadêmico Dr. Ubiratan de Brito Mota é uma coletânea composta de homenagens, contos, crônicas, poesias e as efemérides da entidade.

Na oportunidade, o presidente da Academia Formiguense de Letras – AFL agradeceu a presença de todos, e aos que contribuíram para com a realização do evento, em especial à equipe do Clube Literário Marconi Montoli – CLMM (Marconianos), à secretaria Municipal de Educação (SME), à Proart Formaturas e Eventos, ao Acadêmico Paulo Pacheco – fotógrafo da noite, à imprensa e canais da web que divulgaram a solenidade e as cantoras Kakal Chaves e Cláudia França.

Encerrando o evento, fora realizado o Sarau Literário e Musical com a apresentação de Kakal Chaves e Cláudia França, tendo sido encerrado o evento com o Coquetel de confraternização.

Fonte:
Paulo José de Oliveira (PAJO)
Fotos: Paulo Pacheco – Ângulos

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 12

Roberto Pinheiro Acruche é de São Francisco de Itabapoana/RJ

Fonte:
Trova formatada obtida no facebook do autor

Irmãos Grimm (O Enigma)

Era uma vez um príncipe que sentiu desejo de sair pelo mundo e não levou junto consigo senão um criado fiel. Um dia, ele cavalgava em uma grande floresta e, quando escureceu, vendo que não havia por ali nenhuma hospedaria, ficou sem saber onde passaria a noite. Então avistou uma moça que se dirigia a um casebre e, quando ele chegou mais perto, viu que a moça era jovem e bonita. Iniciou a conversa com estas palavras!

"Cara criança, será que eu e meu criado podemos encontrar abrigo nesta casa por esta noite?"

- "Claro," disse a moça, com voz triste. "Mas eu não aconselho; não entrem ali!"

- "Por que não?" perguntou o príncipe.

A moça disse suspirando! - "Minha madrasta pratica artes maléficas e não simpatiza com estranhos."

Então ele compreendeu que tinha chegado à casa de uma feiticeira, mas, como estava escuro e ele não poderia prosseguir viagem nem tinha medo, entrou. A velha estava sentada em uma poltrona junto à lareira e examinou os estranhos com seus olhos vermelhos.

"Boa noite!" murmurou ela, fingindo cordialidade. "Acomodem-se e descansem."

Depois soprou o carvão sobre o qual, em uma grande panela, estava cozinhando alguma coisa. A filha avisou-os de que tomassem cuidado para nada comer e também nada beber naquela casa, pois a velha preparava bebidas maléficas.

Dormiram tranquilamente até o raiar do dia. Quando se preparavam para a partida e o príncipe já estava sentado em seu cavalo, a velha disse!

"Espere um momento, desejo fazer um brinde à sua partida."

Enquanto ela foi buscar a bebida, o príncipe partiu a cavalo e o criado, que tinha de prender sua sela, ficou sozinho, quando eis que a feiticeira volta com a bebida.

"Leve-a a seu patrão," disse ela, mas naquele momento o copo quebrou e o veneno derramou sobre o cavalo, e era tão poderoso que o animal morreu na hora.

O criado correu até seu patrão e contou-lhe o que tinha acontecido, mas não queria deixar para trás sua sela e correu de volta para pegá-la. Mas, quando chegou junto ao cavalo morto, um corvo já estava sentado sobre ele e o devorava.

"Quem sabe se hoje encontraremos algo melhor?" disse o criado. Matou o corvo e levou-o consigo.

Percorreram a floresta o dia todo, mas não conseguiram sair dela. Ao cair da noite, toparam com uma hospedaria e nela entraram. O criado deu ao dono o corvo, a fim de que ele o preparasse para o jantar.

Eles, porém, tinham ido parar num covil de assassinos; com a escuridão, chegaram doze bandidos e sentiram vontade de matar e roubar os estranhos. Mas, antes de pôr mãos à obra, sentaram-se à mesa, e o dono da hospedaria e a feiticeira se uniram a eles.

Comeram juntos um prato de sopa na qual se tinha picado a carne do corvo. Mal tinham engolido alguns bocados e caíram mortos, pois o corvo os tinha contaminado com o veneno da carne do cavalo.

Não restava ninguém naquela casa senão a filha do hospedeiro, que era uma moça honesta e não tinha tido nenhuma participação nas coisas terríveis que ali aconteciam. Ela abriu todas as portas para os estranhos e mostrou-lhes tesouros incontáveis. O príncipe, porém, disse que ela poderia ficar com tudo, pois ele não queria nada, e partiu com seu criado.

Depois de terem cavalgado por muito tempo, chegaram a uma cidade onde havia uma princesa bela mas muito convencida; ela tinha feito proclamar que quem propusesse um enigma que ela não fosse capaz de decifrar se tornaria seu marido. Mas, se ela o decifrasse, ele seria decapitado. Ela tinha três dias para refletir; mas era tão esperta que sempre acabava decifrando o enigma antes do prazo. Já nove tinham morrido daquela maneira, quando chegou o príncipe e, deslumbrado com a beleza da moça, quis arriscar sua vida.

Então, apresentou-se diante dela e propôs seu enigma!

"O que é?: um não matou nenhum, mas matou doze."

Ela não sabia do que se tratava, pensou e pensou, mas não conseguiu desvendar o enigma. Consultou seu livro de enigmas, mas nada encontrou ali. Em resumo, sua esperteza chegara ao fim.

Não sabendo mais o que fazer, mandou sua criada ir até o quarto do senhor para espioná-lo enquanto dormia! talvez ele falasse durante o sono e revelasse o enigma... Mas o esperto criado tinha-se deitado na cama no lugar de seu patrão e, quando a criada chegou, arrancou-lhe o manto em que ela estava envolvida e expulsou-a do quarto a chicotadas.

Na segunda noite, a princesa enviou sua camareira na esperança de que ela tivesse melhor sorte. Mas o criado também arrancou-lhe o manto e expulsou-a a chicotadas.

Na terceira noite, o príncipe julgou-se em segurança e deitou-se em sua cama. Eis que vai até lá a princesa em pessoa, envolta num manto cinzento, e se senta perto dele. Quando pensou que ele estava dormindo e sonhando, pôs-se a lhe falar, na esperança de que ele lhe respondesse durante o sono, como muitos fazem.

Mas ele estava bem acordado e compreendeu e ouviu tudo muito bem.

Ela perguntou! "Um matou nenhum, o que isso significa?"

- "Um corvo, que se alimentou de um cavalo morto e envenenado e por isso morreu," foi a resposta do príncipe.

"E matou doze... como assim?" perguntou a princesa.

"São doze assassinos que provaram do corvo e por isso morreram."

Ao saber a chave do enigma, a princesa quis sair de fininho, mas o príncipe segurou-lhe o manto bem firmemente, de tal forma que ela teve de deixá-lo para trás.

Na manhã seguinte, a princesa fez saber que decifrara o enigma, mandou chamar os doze juizes e disse a eles qual era a solução. Mas o jovem pediu permissão para falar e disse!

– "Ela foi de fininho até meu quarto à noite e me perguntou, caso contrário não teria decifrado o enigma."

Os juizes pediram uma prova. Então o criado trouxe os três mantos.

Quando os juizes viram o manto cinzento que a princesa costumava vestir, disseram:

"Que se borde o manto com ouro e prata! Será seu vestido de casamento.”

Fonte:

Jangada de Versos do Ceará (5)

CÉSAR LEAL
(Francisco César Leal)

Saboeiro (1924 – 2013) Recife/PE
-

Sutilíssimo Eterno

Sutilíssimo eterno que habita
minhas saletas interiores
onde trago o tempo guardado
noturno e resignado

sutilíssimo eterno interior
que como um tálamo é
em minha alma limpa e sofrida
como água dormida em pedra

que eterna seiva alimenta
este tempo em mim retido
plumagem livre de flor
forma exata imperecível

sinto-te assim como um trunfo
branda coroa do eterno
além das nuvens, das águas
ouço o teu metal desperto

se existes no ser completo
na cinza móvel das sombras
por que retiras de mim
tudo o que em mim não é pântano?

Análise da sombra

Analisa-se da sombra
seu caráter permanente:
pela manhã retraindo
a imagem, à tarde crescente.

E aquele instante em que a sombra
adelgaça o corpo fino
como se no chão entrasse
quando o sol se encontra a pino.

Quem a esse instante mira
em oposição ao lado
onde o sol era luz antes
logo vê o passo vago

da sombra que agora cresce
o corpo de onde se filtra
até fundir-se no limbo
que em torno dela gravita.

Forma esse limbo a coroa
que as sombras traz federadas:
soma de todas as sombras
num só nó à noite atadas.

Minha águia
 

ó
Não
Não quero
Não quero perder
Não quero perder contato
Não quero perder contato com
Não quero perder contato com a
Não quero perder contato com a minha
Não quero perder contato com a minha Águia
ó não quero perder contato com a minha Águia !
S
S S
S S S
Sinto que ela voou para
céus tão altos
onde
se encontra agora ?
Que mãos lhe afagam as plumas
depois
de meu último
abraço
de meu último
beijo
de minha última
c
a
r
í
c
i
a

?
? ?
? ? ?

Homens e bois

Como um cruzador regressa
ao porto e vai descansar
das muitas fadigas funtas
em suas patas de radar,
regressam os bois ao curral
a mugir na cerração
do pó que as patas levantam
do lombo-azul do verão.
Marcham sempre organizados
— como em marcha um batalhão —
são tristes, magros e tristes
os magros bois do sertão.
Alguns morrem mesmo bois,
pescoço atado ao cambão,
outros morrem a morte de homens:
sangue a correr pelo chão.
Esse o destino dos dois
(homem ou boi, não importa o nome)
ambos morrem para matar
(dos canhões e homens) a fome.

Os quatro currais de Belmonte
 

São cicatrizes ligadas
à terra, como costuras,
aquelas cercas de pedras
semelhando a sepulturas.

Não pela forma alongada
que as sepulturas revela
nem pela cor dos tijolos
que a nossos olhos apela.

Nem pelo esmalte das tíbias,
o descarnado mistério,
dos bois que ali dormem secos
quais homens no cemitério.

Mas pelas rotas porteiras
de pedras esfumaçadas
quais cidadelas sem teto
depois de bombardeadas.

Viveram ali entendidos
homens, plantas e animais,
ao pó do solo fundidos.
Restaram quatro currais.

Elogio do sonho

Quando caminha nas águas
banha as agulhas noturnas
e bebe chamas de espumas
nos claros copos da lua
esconde no corpo um fogo
claro, vermelho, constante:
rubro ondular de bandeiras
por entre nuvens dançantes
ei-la subindo nas chuvas
galopando em seu cavalo
a cabeleira de trigo
solta ao furacão voante
ordena para que um dia
os sons se mudem nas cordas
destes violinos cegos
que por entre urtigas tocam
— vejo-a inteira, emparedada
entre as brasas que caíam
naqueles vales secretos
onde as árvores fugiam.

Fonte:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/cleal.html

Folclore da África (A Mensagem Perdida)

A formiga teve desde tempos imemoriais muitos inimigos, e porque ela é muito pequena e destrutiva, tem havido um grande número de mortes entre elas. Não só a maioria das aves são suas inimigas, mas o tamanduá se alimenta quase que exclusivamente só de formigas, e a centopéia ficava tocaiando elas em todas as oportunidades e lugares que tivessem chance.

Então entre algumas delas surgiu a idéia de fazer um conselho e juntos eles imaginarem uma solução para ver se eles podiam ser mudar para um lugar seguro, quando atacados por pássaros e animais ladrões.

Mas na conferência as opiniões foram as mais discordantes possíveis, e eles não chegavam a nenhuma decisão.

As formigas não se entendiam e cada uma resolveu fazer sua casa onde bem entendesse

Lá estavam a formiga vermelha, a formiga do arroz, a formiga preta, a formiga alvéola, a formiga cinza, a formiga brilhante, e outras variedades. A discussão foi uma verdadeira babel de diversidades, que continuou por um longo tempo e não deu em nada.

Uma parte desejava que todos fossem morar em um pequeno buraco na terra, e viver lá, outra parte queria ter uma casa grande e forte construída no chão, onde ninguém pudesse entrar, além de formigas; ainda outros queriam morar nas árvores , de modo a se livrar do tamanduá, esquecendo completamente que eles seriam a presa das aves; outra parte parecia inclinada a ter asas e voar.

E, como já foi dito, não houve acordo quanto a nada, e cada partido resolveu ir trabalhar de sua própria maneira, e sob sua própria responsabilidade.

As facções se dividiram em pequenas partes separadas e se espalharam em todo lugar do mundo, e cada um tinha a sua própria tarefa, e cada uma fez o seu trabalho de forma regular e bem. E todos trabalharam juntos no mesmo caminho. Dentre eles, escolheram um rei, e devemos dizer que alguns dos grupos fez e eles dividiram o trabalho para que tudo corresse tão bem como podia.

Mas cada grupo fez de sua própria maneira, e nenhum deles pensou em se proteger contra o ataque de pássaros ou tamanduá.

As formigas vermelhas construíram sua casa sobre a terra e viveram sobre ela, mas o tamanduá jogou no chão em um minuto o que lhes custou muitos dias de trabalho precioso. As formigas do arroz viviam debaixo da terra, e, com eles, não houve sorte melhor. Pois quando eles saíram, o tamanduá apareceu, tirando eles do buraco e metendo numa mochila. As formiga alvéola fugiram para as árvores, mas em muitas ocasiões a centopéia estava esperando por eles, ou os pássaros os devoravam. As formigas cinza tinha a intenção de salvar-se de extermínio, alçando vôo, mas isso também não lhes valeu de nada, porque o lagarto, a aranha caçadora, e as aves foram muito mais rápidos do que eles.

Quando a formiga rei ouviu que não chegariam a acordo nenhum, ele lhes mandou uma unidade de formigas em segredo, com a mensagem de trabalharem em conjunto. Mas, infelizmente, ele escolheu o besouro como mensageiro, e até hoje ele não chegou às formigas, de modo que eles ainda hoje são a personificação da discórdia e, consequentemente, a presa dos inimigos.

Fonte:
JAMES A. HONEŸ, M.D. in http://www.sacred-texts.com/afr/saft/
http://www.sacred-texts.com/afr/saft/
http://casadecha.wordpress.com

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) O Gringo das Linguiças

Bom é o dito: viver, não custa, saber viver é que são elas!...

Estrangeiro é que é gente mestraça para saber arranjar a vida, de um nada faz muito e quando um de nós mal se precata vê o tal homezinho embandeirado, cheio de boas patacas e ... sempre chorando pitangas...

Conheci muito - quase na estrada do Caverá - um gringo ruivo, torto, de cabelo à escovinha, chamado Domenico, o qual tinha um boliche mui arrebentado, localizado ao lado de cá do Passo do Mutuca, sobre um galho do Ibicuí da Armada.

O lugar do arranchamento parece que foi escolhido a dedo: era trânsito obrigado de carreteiros, tropas, cargueiros e quaisquer andantes. E todos, de comitiva ou escoteiro, antes ou depois de varar o passo, faziam a parada certa no Domenico, que tinha boas sombras, boa aguada e bom potreiro.

O gringo era sabido ...

A venda só tinha uns garrafões de canha, rapaduras, queijo e alguns surrões de ótima erva-mate; já de matreiro o dono não supria a casa - pelo menos à vista - porque tinha receio de algum saque se mostrasse fartura nas prateleiras... sim, que araganos por aqueles pagos era cisco!

O que fazia a especialidade do Domenico era o amargo, e acima do amargo a comida: era só linguiça com ovos. Só, só, só: mas era uma senhora comida!

Quem chegasse - a que hora fosse - se pedia de comer, lá vinha a linguiça com ovos...

E apesar de que o diabo cobrava-se a lo largo, o cobre não aparecia; entrava aos punhados - balastracas, bolivianos e até onças! - porém ele chorava sempre, que mal "guadanhava" para sustentar os filhos, que eram uma ratatulha.

Por uma causa desconhecida, porém infalível, aquela redondeza era também a cancha certa da cachorrada gaudéria.

Em toda esta minha longa vida, nem antes nem depois, nunca vi tanto cachorro chimarrão! Creio porém que seria o cheiro das fritadas que atraía aquele bicharedo: era como uma isca cheirosa que voava no vento e entrava pelas bibocas e restingas chamando os chimarrões...

Todo o vizindário queixava-se de que a cachorrada baguala comia-lhe ovelhas, terneiros, potrilhos, vacas magras e até a criação do terreiro; todos se lastimavam dos prejuízos...

O Domenico, não.

Uma ocasião, por motivo de grandes chuvas, fiquei ilhado no Domenico; quando melhorou o tempo e dispunha-me a seguir viagem, fui atacado de violenta nevralgia, que por uns quantos dias trouxe-me de canto chorado...

Ora, quando, a poder de folhas de mamono aquecidas com sebo de carneiro, melhorei o meu tanto e resolvi marchar na manhã seguinte, justamente nessa noite foi a casa do Domenico assaltada por uma pandilha de ladrões. E por mal dos pecados, estávamos sós; de homens: eu e ele.

O gringo era passado nestas cousas... vi logo que não era esse o primeiro mondongo que ele pelava...

Não se acobardou com o perigo; ao contrário, reforçou as trancas das portas, fechou toda a família num quarto do centro da casa, pôs as roncadeiras, de dois canos, e a munição, em cima do balcão, empinou um trago gordo, convidou-me para ajudá-lo e apagou todas as luzes.

Eu nem se pergunta - já se vê, estava pronto; amartilhei as minhas pistolas e desembainhei os meus facões.

Os assaltantes, do lado de fora, junto à janela, cochichavam; de repente fizeram um alarido e meteram ombros à porta, forçando-a. Nós, quietos.

O Domenico soprou ao meu ouvido:

— La casa é di pau a pique, barreata...

Compreendi logo o partido a tirar e comecei a defesa, enérgica. Tiro sobre tiro na parede que dava para o terreiro, e que era a do assalto. Como as pistolas eram especiais, de dupla carga em cada cano, cada tiro, cada bala, varava a parede como se esta fosse manteiga!

E, tiro dado, bandido no chão!

O gringo fazia como eu; por fim já quase não podíamos respirar, de cerrado que tudo estava de fumaça. Com o cheiro da pólvora começamos a espirrar, e aproveitei logo esse recurso, espirrando e fazendo o Domenico espirrar, em tons diferentes e em pontos diferentes...; e vá tiro!

Com essa hábil manobra sucedeu o que eu previa: os bandidos julgaram que havia muitos defensores entrincheirados dentro da casa - pudera! tanto espirro e tanto tiro! - e rasparam-se, carregando os mortos e feridos, que deviam ser muitos, pelos meus cálculos.

Suspendemos o tiroteio; tranquilamente acendi um cigarro no cano da pistola, que estava em brasa. E como não havia mais perigo urgente, resolvemos deixar o exame do local do combate para de manhã. Acendemos a candeia e resfrescamos as armas.

O gringo apertou-me a mão, calorosamente agradecido, e declarou-me, a queima-roupa.

— Dopo mafiana voi no mangerete piü linguice in questa casa mia...

E foi soltar a sua gente.

Julguei que com o susto o coitado estivesse variando.

Deitei-me e dormi até sol alto. Apenas desperto lembrei-me do assalto noturno e saltei do catre para ir ver os estragos que houvesse.

O terreiro apresentava enormes manchas de sangue, além de pequenos regatos onde ele estava empoçado, coalhado, e espalhados pelo chão (que o Domenico deixara para eu ver - e que os bandidos perderam por ter sido a noite muito escura) encontramos uns quantos dedos de mão, vários pedaços de nariz e de orelhas, três retalhos de bochechas, alguns bocados de miolos arrebentados e chamuscados pelas buchas, uma tampinha de joelho, um pé inteiro, atorado pelo tornozelo, ainda calçado com o pé da bota e a espora, e muitos outros vestígios da carnificina que haviamos feito, aliás sem esperar aquele montão de avarias. Enterramos aquela pedaçaria pondo-lhe uma cruz ao lado!

Fomos almoçar. Tive então, e clara, a explicação da frase do Domenico, na véspera: não havia linguiça à mesa!

Galinha ensopada, uma paleta de ovelha, assada, e canjica de milho branco. Era uma novidade completa! Verdade que eu não estava almoçando na mesa do boliche e sim na da família do gringo.

Ele, então, abriu-se:

— Voi, qui, non mangerete piú linguiza. Vi diró perché e solo a voi, per gratitudine!.

E disse-o, assim, que eu repito em língua de gente, por não obrigar ninguém a traduzir:

— "Signor" Romualdo, já reparou como comem os diversos animais?

— Não, Domenico!

— Repare, "Signor", e curioso e instrutivo, O gato, come devagar, esparramando a comida, escolhendo, catando, jeitosamente pegando, largando o pedaço; o porco, atola o focinho no cocho, mastiga tudo, misturando, batendo a queixada, babando-se, roncando; o boi, deita de lado a língua, para apanhar o pasto; o cavalo, corta-o, delicadamente; a galinha vai de ponta de bico; o urubu, a bico e unhas, estraçalhando... mas o cachorro! o cachorro! ... come esganado, sôfrego, às bocadas, tudo inteiro, sem mastigar! Parece que em vez de meter a comida dentro de si, parece que ele é que se quer meter pela comida adentro. "É vero, Signor?"

— Sim, Domenico, é assim mesmo!

Ebbene! Aqui os vizinhos todos lastimam-se por causa do cachorro chimarrão; eu, não, ao contrário: gosto! Poupo muito trabalho, "Signor" Romualdo. É com eles que faço as linguiças para os andantes.., mas deles, não é a carne que eu quero, "Signor", são as tripas. Dellcate, fine, mervegliose!"

É assim:

O cheiro das fritadas atrai muito os cachorros baguais; vai então, por isso, lá dentro do galpão penduro um pedaço de lingüiça frita de bom tamanho, e bem alto, para eles não lhe chegarem. Vem o primeiro farejando, outro e mais outro vem; enfim dezenas de cachorros vão chegando, apenas no ar o cheiro da fritura anda voando! ...

Quando o galpão está cheio, fecho a porta e começo a laçar os cachorros e ponho-os todos na corrente, cada um no seu palanque, lá detrás da horta.

Comida, nada; água, sim, à vontade. Assim, durante uma semana os vou limpando perfeitamente; aquelas tripas ficam que nem resma têm, mais... perfeitissimamente limpas.

Nas vésperas de um precisar, só então começo a dar água com sal, uma salmourita leve, para manter o apetite...

Enquanto isso, mato os porcos, as ovelhas, ou as vaquilhonas, conforme a conta, isto é, conforme os cachorros que tenho em compostura, isto é, conforme a quantidade de varas de tripa que calculo em cada um, conforme o respectivo tamanho:

Bem, carneio as reses, pico toda a carne, tempero-a e deixo ficar uns dias, para tomar gosto, cada porção separada para cada cachorro, conforme o tamanho, na competente gamela.

A tudo isso, nos bichos, salmourita fraca!

No dia marcado para a fabricação, vou levando as gamelas e pondo em frente de cada chimarrão.

"Per la madonna! Signor Romualdo!" aquilo é em dois tempos!... Uhn! ... uhn! ... uhn! ... e zás! come, que comer inhact! inhact! ... às bocadas, aos punhados, ao montões, sofregamente, esganadamente, inteiro, sem respirar, às goladas, sem provar nem mastigar nada! É uma cachoeira pra dentro!

Mal o chimarrão acaba de engolir e pega a lamber a gamela, então aproveito a ocasião...

Mato o cachorro! abro-o, amarro as duas pontas - o principio e o fim - da tripa... e pronto, tenho uma lingüiça bem-feita, grossa, parelha, e que me não deu trabalho nenhum para encher...

Depois é pôr na vara a orear e ir cortando os pedaços para fritar, conforme o número de gente a servir, e pra bonito, enfeitar sempre com ovos estrelados por cima. É "meraviglia!"
==============

Tive, a modo, uns engulhos, e tratei de montar a cavalo.
Aquele gringo ... aquele gringo era das Arábias!…

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Casos_do_Romualdo/XV

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) II

O Herói Anônimo

Quando a opressão
Clama por Justiça
Eu então me engolfo nessa Legião.

Defendendo em plagas distantes
A liberdade instalada em meu coração.
Eu já estou mutilado
Diante de tanta revolução

Não tenho mais uma perna
Não possuo nem mais uma mão.

Dentro de mim
Bate apenas o vento
De uma nova rebelião.
Balada do Cangaceiro Sem Mãe

Vim de muito longe
Das terras de Massacará
Trazendo somente farinha
E a vontade de pilhar
Pelejando por caminhos tiranos
Entre xiquexique, macambiras e gravatás.
Perdido entre tantas lembranças
Sozinho, sem mulher, sem sonhar.

Vindo de muito longe
Pra nessa terra guerrear.
O punhal sobre o peito
E o meu ferro de marcar.
Zé Baiano é o meu nome
E não sei
Onde minha mãe agora estar.

Anel de ouro, trancelim,
Seda, cachaça
Trago no fundo do emborná.

A coragem no meu olho
Sou de longe, sou de longe
Das terras de Massacará.

A coragem no meu olho
Sou de longe, sou de longe
Das terras de Massacará.

Minha sina é morrer lutando
Em qualquer tiroteio
Na hora que eu for enfrentar.
Tenho a benção do Meu Padim
Meu corpo fechado
Bala nenhuma irá se alojar.
Nem as pegadas do inimigo
Poderá um dia me alcançar.

Dormindo em coitos
Sem puder se quer descansar
Acordando no breu da noite
Depois de parar pra rezar
Minha vida pertence
ao Deus Dará
Vim de longe,
Vim de longe,
Das terras de Massacará.
Cangaço
Para João Bá

Para quem pensa
Que o cangaço se acabou
Vive parado na história
O cangaço continua
Silencioso na memória
Sem volantes, cangaceiros
Ou Lampiões
Matando muito mais gente
Pelas cidades e pelos sertões.

Quem imaginou
Que no tempo do Capitão
Houve mais mortandade
Enganados todos estão
O cangaço anda solto
Com a anuência do grande Cão
Agora dando gravatas
Em insuspeitos cidadãos
Matando muito mais pais de família
Pelas cidades e pelo sertão.

O nordestino morrendo de fome
E o preto pobre metralhado na invasão
Lampião foi um santo
Besta é aquele que difama o capitão
Diga-me se o cangaço
Não tá aí agora, não
Sem clavinote, fuzil ou mosquetão,
Silencioso na capital Federal
Em pleno coração de minha Nação.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

Nilto Maciel (Meu Filho Matias Beck)

Estive em Amsterdã durante três dias. Na bagagem levei um dicionário inglês-português, português-inglês. Em Paris procurei dicionário holandês-português, português-holandês. Não o encontrei e viajei preocupado. No entanto, ao me encontrar com Jacob Komrij, meu tradutor e futuro cicerone, voltei a sorrir. Mal nos conhecemos pessoalmente (durante um ano trocamos cartas e conversamos por telefone), ele me presenteou um pequeno livro, um dicionário holandês-português, português-holandês, de sua autoria. Porém, avisou logo: eu não iria precisar do dicionário em nenhum momento. Ele estaria comigo durante os três dias de minha estada em seu país. E já havia programado todos os minutos de minha vida: livrarias, jornais, televisões, as igrejas góticas Oude Kerk e Nieuwe Kerk, a Casa de Rembrandt, o Museu Van Gogh, os canais da cidade etc. Ao nos despedirmos à noite, após o jantar no hotel, combinamos encontro na manhã seguinte, às dez horas. Iria ao hotel. Dormi logo, embora pensando naquela aventura. Ora, quem diria, conhecer quase toda a Europa, em dois meses. E ainda ver de perto alguns de meus livros em inglês, francês, espanhol e até holandês. Sentia-me o verdadeiro escritor satisfeito consigo mesmo. Não digo orgulhoso, vaidoso, que isto não tenho sentido quase nunca.

            Ao acordar, olhei para o relógio: ainda não eram oito horas. Quando desci à recepção, passavam cinco minutos das nove. Decidi, então, ver a rua, as pessoas. Criei coragem e me pus a andar. Ninguém olhava para mim, como se eu fosse um holandês qualquer. Eu, porém, olhava para todos, quase todos, curioso, como se cada holandês fosse um ser de outro planeta. Até ver uma garota sentada num banco, lendo um livro. Parei a dez metros dela e fui seduzido por sua beleza. Vestia uma saia curta e deixava à mostra as pernas. Recostei-me a uma árvore, evitando ser atropelado pelos transeuntes. Não tirava os olhos da moça, que parecia alheia a tudo, inclusive aos meus olhos curiosos. 

Tentei ler o título do livro. Voltava o foco da visão para a pele clara das pernas da leitora. Lembrei-me de ter às mãos o dicionário de Jacob e resolvi me aproximar da jovem. Abri o dicionário e pedi permissão para me sentar ao seu lado. Abri o dicionário e me apresentei: brasileiro, escritor etc. Ela me mostrou o livro. Estupefato, percebi estar diante da primeira leitora de  Corrida de Anões em terras batavas. Eu disse ser o autor daquele livro. Ela pareceu não acreditar em mim, sorriu, abriu novamente o volume e se pôs a olhar para minha foto na aba. A fotografia é de 1976, eu tinha 30 anos, usava cabelos longos e negros. Nisso, Jacob se aproximou de nós. No hotel indicaram o rumo que eu havia tomado. Apresentei-lhe Aadje. Ele lembrou de nosso compromisso e eu a convidei a passear conosco. 

Dirigimo-nos ao carro, parado diante do hotel, e saímos. Pedi a Jacob para servir de intérprete. Falei de mim, do Brasil, da literatura brasileira. Ele e ela falaram da Holanda, de Amsterdã, de escritores holandeses, especialmente  Joost van den Vondel, Herman Gorter, Elizabeth Wolff-Bekker, Aadje Deken e outros. Ora, então eu estava conhecendo outra Aadje? Não, não escrevia nada. Apenas gostava de ler, estudava Literatura na Universidade. E o nome? Aadje Beck. Seria descendente do célebre aventureiro Matias Beck? Falei da invasão de Pernambuco e do Nordeste brasileiro pelos holandeses, em 1630. Maurício de Nassau, Johann Mauritius van Nassau-Siegen. A Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais. Lembrei o domínio dos holandeses no Ceará: o rio Marajaik; as minas de prata na serra de Itarema (Maranguape); o forte de Schoonenborch; Matias Beck, o “verdadeiro fundador” da cidade de Fortaleza, segundo Raimundo Girão. Beck e seus 298 comandados desembarcaram no Ceará em 6 de abril de 1649.

Cheio de coragem, convidei Aadje para jantarmos. A conversa teve início com Desidério Erasmo, O Elogio da Loucura, a Reforma, Lutero, católicos e protestantes. Passamos aos tempos de hoje, o mundo, as guerras, a política e a literatura. Meio embriagado, beijei a mão de Aadje. Ela sorriu. Jacob lembrou os compromissos do dia seguinte e se despediu. Perguntei à moça se desejaria conhecer o quarto onde me hospedava. Algumas horas depois, ainda acordados, pus-me a falar de minha viagem de volta. Ainda deveria conhecer Londres. Convidei-a a conhecer o Brasil, especialmente Fortaleza, a cidade fundada pelo seu ancestral Matias Beck. Ela parecia feliz. Se um dia tivesse um filho, dar-lhe-ia o nome de Matias.

Três meses após meu regresso ao Brasil, recebi um telefonema de Jacob Komrij: nossa amiga Aadje Beck acabava de falecer. E deixava um filho.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) José Costa Matos

José Costa Matos (Ipueiras, 1927), poeta, contista e romancista, é autor do volume de contos Na Trilha dos Matuiús (1998). Apesar de não ter apresentado livro de ficção curta antes, sua dedicação à literatura vem de muitos anos. Um dos vencedores do II Prêmio Ceará de Literatura, de que resultou livro com este título, em 1995. Venceu o Concurso Nacional de Contos, na Bahia, o II Prêmio Ceará de Literatura e outros concursos literários realizados em diversos Estados. Está presente em algumas antologias, como O Talento Cearense em Contos. Na poesia, tem os livros Pirilampos, As viagens, O sono das respostas, Na última curva da esperança e O Povoamento da solidão, este ganhador do Grande Prêmio Minas de cultura. É titular da cadeira 29 da Academia Cearense de Letras.

O poeta Francisco Carvalho, também estudioso da Literatura, faz a seguinte observação nas abas do livro Na Trilha dos Matuiús, de José Costa Matos: “Parece lícito supor que o conto, ao contrário do poema, se faz com palavras e com ideias. E também, obviamente, com imaginação e talento”. A obra objeto deste artigo se constitui de dez narrativas. Numa delas, “Um conto, só”, talvez a mais bem realizada do volume, o narrador, Marcos, cujo nome é mencionado apenas uma vez, rumina as suas angústias de querer ser escritor e, assim, mostrar ao povo e às autoridades da pequena cidade onde mora que a falta de diploma acadêmico não o torna menor que o juiz e o vigário. No entanto, sente-me menor, porque não passa de “defensor dativo dos réus pobres”, à falta de advogados na cidade, razão por que a inveja pouco a pouco vai lhe roendo o espírito: “A verdade é que não posso competir com ele em títulos, e isso me dói um bocado”. Essas ruminações lembram alguns personagens de Graciliano Ramos. A linguagem também nos remete à prosa castiça e envolvente do mestre de Angústia. E esse é um dos aspectos positivos no livro de Costa Matos. Mas voltemos ao conto: o protagonista-narrador se propõe escrever um conto e com ele participar de um concurso internacional, na França. Ganhar o prêmio seria realizar um sonho fabuloso: abocanhar quinze mil francos, ter a história publicada na Europa e ver o seu nome “em jornais de dois continentes”. Restava escrever o conto. Rumina aqui, rumina ali, Marcos se convence de que é fácil para ele escrever um conto, pois “tinha gramática” e imaginação. Bastava ler alguns autos de processos criminais, rememorar as secas no sertão e passar uma revista nos “tipos curiosos” do lugar. O assunto da história surgiria disso. Passam-se os dias e nada de o conto germinar. A angústia cresce, pois, sem o conto, ele continuará apenas defensor dativo de réus pobres, professor de “rapazes e moças da sociedade”, conferencista religioso e redator de telegramas dos políticos. Continuará menor do que o doutor Seixas, o magistrado. A história chega ao fim e nada de o conto ser escrito. Porque, apesar de todos os seus conhecimentos do espiritismo, do catolicismo e dos livros, não sabe como se escreve um conto. Talvez faltasse talento ao pobre Marcos. Como também a João Valério, o narrador de Caetés, que “tinha um romance começado na gaveta” e, no final do romance, confessa: “Abandonei definitivamente os caetés: um negociante não se deve meter em coisas de arte”. O que sobrou em Graciliano e não faltou a Costa Matos, ao escrever o conto de um conto que não foi escrito.

Na Trilha dos Matuiús contém crônicas poéticas (“Pedidos de Natal”, “Nada”), crônicas de costumes (“Madrinha Juliana e suas Peiticas”), novelas curtas (“Incêndio na Pedra”, “Uma História de Prefeito”), histórias pitorescas e anedóticas (“O Desmaio de Luís Preto”), contos psicológicos (“Um Conto, Só”, “Pedras na Vidraça”). Em quase todas as narrativas as tramas se desenrolam em cidade pequena do Ceará, seja a Ipueiras real e seus arredores (em “Incêndio na Pedra” há referência à “festa de Nossa Senhora da Conceição, padroeira dos ipueirenses”; em “Uma Usina de Mitos” um personagem pergunta: “Não vê que Ipueiras está cercada de morros?”), seja uma fictícia e mítica urbe do interior do Nordeste brasileiro: Morro do Papoco, com “seus sambas quentes”, Rua de Baixo, Rua de Cima, Rua do Ourives, Morro do Curral do Açougue. Também Fortaleza, ou simplesmente a capital, é palco de um drama, “Pedras na Vidraça”, embora somente na última frase haja menção a uma de suas praias: “Os coqueiros se desequilibravam em colunas oscilantes, sob a brisa de treva da Volta da Jurema”.

As histórias de Na Trilha dos Matuiús ocorrem em tempos variados, algumas nos meados do século XX, antes da televisão; outras, na era do telefone celular. Um personagem se refere a um cavalo-de-pau, seu objeto de desejo. Fala de retretas da banda de música. Tonho Silveira “comprou uma geladeira a querosene”. Dona Josefa “ficava sem outra ocupação que as novelas do rádio”.

Em “Incêndio de Pedra”, Inácio Romão encontra uma Ipueiras modificada, após anos longe da terra natal. Acostumado à cidade grande, bradava: “Cadê o barulho? Cadê o cheiro de fumaça? Me acostumo não! Sou um bicho de máquinas zoadentas. Preciso escutar sirenes de fábricas. Queimem gasolina, meus patrícios, pode ser que o progresso sinta a cheirinho bom e resolva chegar por aqui!” O conto ambientado em Fortaleza menciona a televisão e os automóveis.

Tirante os empresários Santiago Ribas e Sérgio Câmara, do conto acima mencionado, os personagens de Costa Matos são matutos ou vivem em cidade pequena. Alguns são tipos característicos (ou curiosos, como diz um personagem) desse ambiente e surgem, ou são apenas citados, em mais de uma história. O contista frustrado Marcos relembra alguns deles: “Passei uma revista nos tipos curiosos do meu conhecimento: Antônio Té-Logo, Maria Tei-tei, Véi Zuca-do-Oi-Só, Carolina Bunda-Alegre...” São pretas velhas, cozinheiras nas casas dos abastados, como Madrinha Juliana; padres de voz estridente nos sermões, como Salustiano e Feitosa; donas de forrós, como Joaninha Bunda Alegre; fabricantes de viola; cantadores; primeiras-damas; prefeitos corruptos; juízes incompetentes; promotores subservientes; comerciantes de secos e molhados.

Voltemos à linguagem. No meio da narrativa, o personagem Marcos, em seu monólogo bem arrumado, refere-se ao momento em que decide escrever um conto: “Certamente, eu tinha gramática para isso. E imaginação também”. Entretanto, se sabe que somente gramática, estudo, leitura não fazem um escritor. Mesmo que o candidato a prosador tenha também muita imaginação. É preciso algo mais. Talvez talento e dedicação à arte de escrever. Costa Matos certamente tem gramática para escrever. Sua frase é quase sempre curta, sem rodeios. Os verbos e os substantivos se casam de forma precisa, clara, sem a necessidade das muletas dos adjetivos, advérbios, preposições, como neste trecho de “Incêndio na Pedra”: “No princípio das tardes, o céu escurecia, para os lados do nascente. E chovia nas alturas. Aqui em baixo, apareciam umas gotinhas de água, tão leves que voavam na horizontal. Os cachorros, ociosos, tentavam abocanhá-las, na ilusão de comer pequeninos insetos faiscantes”. A descrição é minuciosa, embora sem excessos de palavras. Lembra pintura expressionista ou cenário de filme no campo.

O uso da descrição é discreto nas narrativas de Costa Matos. Somente o necessário para que o leitor imagine o lugar onde os personagens atuam. Em “O Desmaio de Luís Preto” lê-se isto: “Era o domingo entardecer e a poeira subir, no campo ao lado do cemitério novo. Bancas de café, potes de aluá, pirulitos em tabuleiros itinerantes, bandejas de pés-de-moleque”. Em poucas palavras pintou o quadro de uma festa esportiva.

Costa Matos mostra com Na Trilha dos Matuiús que é possível e bom para a Literatura o uso correto da frase, sem se prender demais às regras gramaticais e sem se deixar fascinar pelos modismos e pela banalização da linguagem.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 22 – 1.° de agosto de 1887

Anda agora toda a imprensa,
Ou quase toda, cuidando
De alcançar que, sem detença,
Acabe um vício nefando.

Na brasileira linguagem,
Essa nacional usança
Chama-se capoeiragem;
É uma espécie de dança,

Obrigada a cabeçadas,
Rasteiras e desafios,
Facadas e punhaladas,
Tudo o que desperte os brios.

Há formados dois partidos,
Dizem, cada qual mais forte,
De tais rancores nutridos,
Que o melhor desforço é morte.

Ora, os jornais que desejam
Ver a boa paz nas ruas,
Reclamam, pedem, forcejam
Contra as duas nações cruas.

Referem casos horrendos,
Já tão vulgares que soam
Como simples dividendos
De bancos que se esboroam.

E zangam-se as tais gazetas,
Enchem-se todas de tédio,
Fazem caras e caretas
Por não ver ao mal remédio.

Vou consolá-las. É uso
Das alminhas bem nascidas
Dar, contra o pesar intruso
Consolações repetidas.

Eu (em tão boa hora o diga,
Que me não minta esta pena!)
Tenho aquela corda amiga
Que, em pena, dá eco à pena.

Inda quando a rima saia,
Como essa, um pouquinho dura,
(Ou esta da mesma laia)
É rima que dói, mas cura.

As consolações — ou antes
A consolação é uma;
Trepa tu pelas estantes,
Busca, arruma, desarruma:

E, se tens livros contendo
Decisões de Vinte e Quatro
(Há sessenta anos!) vai lendo
Um aviso áspero e atro.

Lê isto: “Para que cessem
De uma vez os capoeiras,
Que as ruas entenebrecem,
Com insolentes canseiras,

“Manda o imperador, que sabe
E quer pôr a isto cobro,
Dar a pena a que lhes cabe,
E se for preciso, em dobro.

“Recomenda neste caso
Que haja a major energia,
Para que em estreito prazo
Acabe a patifaria;

“E seja restituída
A paz aos bons habitantes,
De modo que tenham vida
Igual à que tinham dantes”.

Ora, se este aviso expresso
(Que é de vinte e oito de maio)
Teve tão ruim sucesso
Que inda fulge o mesmo raio,

Concluo que o capoeira
Nasceu com a liberdade,
Ou deu a nota primeira
Se tem mais que a mesma idade.

Valha-nos isto, que ao menos
Consola a gente medrosa,
E faz de alguns agarenos
Cristã gente gloriosa.

Sete de abril, a Regência,
Depois a Maioridade,
Partidos em divergência,
Barulhos pela cidade,

Guerras cruas e compridas,
Exposições, grandes festas,
Paradas apetecidas,
Tudo viu a faca e a testa...

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Humberto de Campos (A Obra Prima)

O almirante Ribas acabava de referir às senhoras, à mesa de jantar, a origem da mulata nacional, tal como eu a contei, aqui, há poucos dias, quando o desembargador Pessegueiro, recompondo as guias do bigode grisalho e cuidado, atalhou, com orgulho:

- Há engano nessa tradição, Sr. almirante: há engano. A mulata não teve origem no céu, como se diz; a sua origem, para gloria nossa, é toda terrena.

E recostando-se na cadeira, apoiando-se na mesa com ambas as mãos, começou, pausado, a sua narrativa:

- O preto, o branco e o amarelo, que habitam a África, a Europa, a Ásia e a Oceania, foram, realmente, modelados por Jeová, que os reconheceu, de fato, como seus filhos. Atirando-os, aos milhares, ao mundo, ele os conhecia todos, regulando-lhes a vida e a morte. E tanto assim, que, quando aparecia, no céu, de volta da terra, um branco, um preto ou um indivíduo de raça asiática, ele tomava, paternal, pela mão, reconduzindo-o ao convívio dos bem-aventurados.

Feita uma pequena pausa, o desembargador continuou:

- Certo dia, porém, bateram à porta de ouro do céu. Solícito, como sempre, S. Pedro correu a abri-la, e recuou, deslumbrado: era a primeira mulata que, requebrada, cheirosa, encantadora, incomparável, penetrava, triunfante, no Paraíso!

As senhoras sorriram, admirando o entusiasmo do velho magistrado, e ele, sorrindo com elas, retomou o fio à narrativa:

- A presença daquela criatura estranha, rica de encantos, de graças, de seduções, agitou, de pronto, a morada celeste. Anjos e serafins rodeavam-na, fascinados, tontos, embriagados de beleza. Estrelas que viviam isoladas no azul, achegavam-se, cochichando, formando constelações. E uma grande música religiosa ressoou pelas alturas, celebrando, num enlevo, o maravilhoso acontecimento.

Nesse ponto, com os braços e os lábios abertos, o desembargador quedou-se, como num êxtase. Passado um minuto, continuou:

- Avisado da novidade, Jeová quis, ele próprio, ver o prodígio; e, descendo do seu trono de pedrarias, encaminhou-se, com o cortejo de arcanjos, no rumo da porta, de se achava a mulata, rodeada de santos e querubins. Chegando aí, ao vê-la, ele próprio recuou, tapando os olhos com as mãos; diante dele, a cabeça pendida para um lado, os lábios entreabertos num sorriso, e os olhos entrefechados num delíquio, a recém-chegada esperava-o, doce, linda, maravilhosa! Passado o primeiro momento de pasmo, o Supremo Arquiteto levantou o rosto venerável, e, com a barba soberba derramada pelo peito largo, bradou, deslumbrado:

"- Eu fiz a raça preta, que povoou a Líbia ardente, suportando, impassível, o fogo dos desertos. A raça amarela, cujas mulheres, pequeninas e tímidas, enchem a Ásia, é obra minha. A mulher branca, delicada, mimosa, de olhos azuis e cabelos de ouro, saiu das minhas oficinas. Que artífice terá, porém, imaginado e realizado esta jóia, esta obra-prima da natureza, esta flor incomparável da criação?"

Nesse momento, os bem-aventurados abriram alas, deixando ver uma figura curiosa: barba feita, bigode retorcido, correntão de ouro atravessado sobre o colete, que lhe dava maior vulto à obesidade, apareceu, sorridente, o Manuel da Venda, exclamando, com orgulho:

- Eu, Senhor!

Ante essa confissão, Jeová não resistiu: encaminhou-se para o Manuel, que o olhava desafiadoramente, e, sem se conter, bradou, com os olhos úmidos:

"- Mestre!..."

E apertou-lhe a mão, comovido.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.