quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A Saudade em Sonetos Diversos V

MENDES MARTINS
À Espera


E vem a primavera. E os prados novamente
Cobriram-se de luz, de flores, de verduras;
Fez-se azul todo o céu, azul e transparente
Como um pálio de gaze aberto nas alturas.

E eu disse assim comigo: "Às minhas desventuras
Aos pesares que eu sofro, e tornam-me descrente,
Vão enfim pôr um termo os beijos e as ternuras
Daquela que eu espero e de quem vivo ausente."

E assentei-me, esperando-a, à beira do caminho...
O cair de uma folha, a música de um ninho
Lembravam-me o seu passo e a sua voz, criança!

E afinal veio o inverno e foi-se a primavera,
E cheio de saudade e sempre à sua espera,
E à força de esperar perdi toda esperança.

NARCISO ARAÚJO
Casa triste


Como está triste aquela casa! Nela,
Meus olhos viam tanta vez, outrora,
Em purpurejos, rútila, a janela
Toda tocada de clarões de aurora.

Ali morou Maria, doce e bela
Conterrânea gentil, mimo de Flora,
Que perfumava, em outro tempo, aquela
Casa que eu vejo tão tristonha, agora.

Como está triste aquela casa! Quando,
Alheio a tudo, longamente a fito,
Uma saudade, dentro em mim chorando,

Recorda o feliz tempo, em que Maria,
Com o rosto alegre, juvenil, bonito,
Era, à janela, um sol que resplendia.

OSCAR D'ALVA
Hora de tédio


Quando a sós na existência meditando
Triste, revivo malogrados dias,
Ao recordar mais dores que alegrias,
O coração se sente miserando.

Punge-me n'alma fundas agonias
De uma vida passada o bem pregando
Em toda a parte, e apenas encontrando
Insolências, insultos, ironias...

Os gozos são efêmeros fulgores
Que minha alma lembrando hoje revive;
O mais são mágoas, lutos, dissabores...

Então sinto — ao pensar que não gozei —
Saudade de prazeres que não tive,
Esperança de bens que não terei!

OSÓRIO DUQUE ESTRADA
Pulvis


Áureos castelos da primeira idade,
Dourada fantasia de outras eras
Cuja luz de uma estranha claridade,
A alma me encheu de sóis e primaveras;

Glória, amor, ilusões da mocidade
Palpitando ao clarão de outras esferas;
Ânsias do afeto, espinhos da saudade,
Sonhos alados, fúlgidas quimeras;

Ideais da velha crença sonhadora;
Poemas tangidos da chorosa lira
(Que mais chorara se ditosa fora);

Por tanta coisa essa alma ainda suspira!
Tanta coisa, que a mente enganadora
Julgava ser verdade e era mentira!

PAULINO DE ANDRADE
Olinda


No alto, a paisagem verde-escura e acidentada.
Em baixo, o ouro da praia e a saudade do mar...
Sugere lendas... reis magos... terra encantada...
Fidalgas castelãs... troveiros a cantar...

É bem de vê-la sob a tragédia sagrada
Do crepúsculo: é grande, heróica, singular!
Eu, quando a vejo assim, tenho a alma amplificada
E uma dilatação de beleza no olhar.

E se, pela alterosa e lendária Palmira
Longa e empolgada, a vista amplamente se estira,
Lembro o Nebo sob a ânsia imortal de Moisés!...

E um ninho azul coroa a epopéica Cidade...
Rumina o coqueiral uma velha saudade,
E a saudade do Mar rumoreja-lhe aos pés...

PAULO DE ARRUDA
Tristezas

 
Há saudades que pungem docemente
Como as lembranças de um feliz passado,
Quando se vive ainda acalentado
Pelos sonhos de gozos do presente.

Mas, se da vida no areal candente
Para o vigor perdido, e abandonado
Volve aos céus da ventura o olhar magoado
Como a saudade, então, é atroz, pungente!

E, ah! feliz do que em meio aos dissabores
Da alma ainda achar nos íntimos refolhos
Um mar de prantos que lhe afogue as dores!

Pois sofre mais quem desolado e exangue,
Não tendo nunca lágrimas nos olhos,
Tem dentro da alma lágrimas de sangue.

PEDRO KILKERRY
Taça 

 
Aquela taça de metal que, um dia,
À Laura, um dia assim, lhe oferecera,
Entre relevos delicados de hera,
"Saudade" em letras de rubis trazia.

E era um riso de amor e de poesia
Em cada riso ou flor da primavera...
E Laura, a um canto, cruel, por que a esquecera,
Laura que soluçou, porque eu partia?

Anos derivam. De remorsos presa
Não é que vai, acaso, à soledade
Da abandonada... Vai por fantasia.

Mas, como um choro, vê, vê com surpresa,
Desmancharem-se as letras da "Saudade"
Que aquela taça de metal trazia.

PEDRO SATURNINO
Açucenas


Minha Mamãe! tu foste mãe-menina,
Pois é filho das tuas mãos pequenas
Aquele pé viçoso de açucenas,
Que plantaste quando eras pequenina.

Carregado de flores (e de penas),
Lá no mesmo local ainda germina;
Do passado jardim resta ele apenas,
Tudo mais, ao redor, é mato ou ruína.

Eu, teu filho de amor que tanto estimas
E irmão dele nos dons, e até nos males,
Ao lembrar-me de ti, floresço em rimas.

— Meu irmão com saudades e entre dores,
Entre espinhos cruéis levanta o cális
E lembra-se de ti chorando flores!

QUINTINO CUNHA
Entre nuvens


Ameaça chuva. O pássaro na rama
Vem de ocultar-se. A fera permanece
À sombra do covil. Tudo parece
Triste como a saudade de quem ama.

Enquanto o céu apenas se recama
De nuvens, não; mas, quando se incandesce
De um relampejar profundo, a chuva desce,
Por fina força a chuva se derrama.

Em nós outros também o tempestivo
Amor é assim como este quadro vivo,
Que, há pouco, a natureza dominava.

Falo por mim, tirando por Maria;
Pois quando na minha alma relampejava,
Nos seus olhos tristíssimos chovia.

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/saudoso.htm

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) Maria da Silva

Recolhido no Algarve

Era uma vez um rei, que andava à caça, e perdeu-se no monte, quando se fechou a noite. Foi com o seu pajem pedir agasalho a uma cabaninha de um carvoeiro que vivia na serra. O carvoeiro deu logo a sua cama ao rei, e a mulher, como estava doente, ficou deitada em uma enxerga no adro. De noite ouviu o rei um grande alarido, e choros, e uma voz que dizia:

– Esta, que agora acaba de nascer
Ainda há de ser tua mulher;
E por mais que a sorte lhe seja mesquinha
Sempre contigo virá a ser rainha.

O rei ficou bastante atrapalhado, e tratou de saber que horas eram. Era meia-noite em ponto. Ao outro dia quando falou com o carvoeiro, perguntou-lhe que barulho tinha sido aquele.

– Foi uma filhinha que me nasceu; havia de ser pela meia-noite em ponto, senhor.

O rei disse que queria fazer a fortuna daquela criança, e que lhe daria muito dinheiro se a deixasse ir com ele. O carvoeiro deixou, e o rei partiu. Pelo caminho disse ao pajem que fosse matar aquela criança, porque era preciso fugir a um agouro com que ela tinha nascido. O pajem não teve alma para matar a inocente, e deixou a criança no fundo de um barroco, entre uns silvados, embrulhada no cinto vermelho que ele tirou de si. Tornou para onde estava o rei, e disse:

– Real senhor, não tive ânimo de matar a criança, mas deixei-a num sítio donde se não vê nem monte nem fonte, e lá morrerá com certeza.

Aconteceu que um rachador de lenha veio trabalhar para aquele sítio, ouviu chorar uma criança, desceu ao barroco e tirou-a condoído, e levou-a para casa. A mulher, que não tinha filhos, acolheu-a com satisfação e tratou-a como se fosse seu sangue, e chamavam-lhe Maria da Silva, em lembrança do acontecido.
   
Passados anos o pajem ia com o rei de jornada e viu uma rapariguinha de cinco anos vestida com um capotinho vermelho, que ele conheceu ser feito do seu cinto. Foram ter com os camponeses, souberam a história da rapariga, o rei deu-lhes muito dinheiro, para o deixarem lavá-la para o palácio; assim que o rei partiu, mandou fazer um caixão onde meteu a Maria da Silva, e foi ele mesmo deitá-la ao mar. Um navio encontrou no alto mar o caixão, quiseram ver o que continha, e ficaram pasmados por acharem ainda viva uma criança muito linda. Foram contar tudo à terra a que chegaram, e o rei dali quis ver a rapariguinha, a rainha tomou-lhe amor, e quis que ela se criasse no palácio, para servir de aia à princesa. Quando se fizeram as festas do casamento da princesa, já Maria da Silva era grande; vieram às festas do casamento muitos reis e príncipes e veio também aquele que queria matar Maria da Silva.

O pajem que o acompanhava conheceu logo Maria da Silva, e disse-o ao rei seu amo. O rei, quando foi ao serão, quis dançar com ela, que estava muito asseada, e deu-lhe um anel dizendo:

– Dançando-te dou, dançando-me hás de dar;
E se me não deres, a vida te há de custar.

E ela respondeu-lhe:

– Dançando o recebi, dançando o hei de dar;
Também hei de ser rainha e no seu reino reinar.

Acabado o serão Maria da Silva foi para o seu quarto, e uma criada comprada pelo tal rei, roubou-lhe o anel, e deitou-o ao mar. Maria da Silva ficou muito triste, quando viu que tinha perdido o anel, e que não podia mais dar conta dele; estava à janela quando viu em um quintal uma criada a amanhar um peixe. Correu lá, e viu luzir no bucho do peixe o anel; tirou-o, voltou para o palácio. À noite ao serão o rei tornou a dançar com ela e a repetir as mesmas palavras. Maria da Silva mostrou-lhe o anel e repetiu as palavras que dissera na véspera. Então o rei ficou muito admirado, e disse:

– Já que ninguém pode fugir à sua sorte e tens de ser minha mulher e rainha, já gosto de ti, e hoje mesmo se façam as bodas.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 37 – 22 de novembro de 1887

Pessoas há... Por exemplo,
Que vale um desfalque triste
Cuja notícia contemplo?
Acho que já nem existe.

Pois, entrados os cobritos,
Desmancha-se a diferença,
E o que eram terríveis gritos
Chega a pura indiferença.

Pessoas há que detestam
Rimas daquele feitio;
São cadeias que molestam
A inspiração, mais o brio.

Eu cá sendo, necessário
Ir andando, vou andando;
Rimo Corsário e corsário,
E bando com contrabando,

Sem saber se o leitor gosta,
Ou não dessa rima rica.
Se eu quero a obra composta,
Menos que fazer me fica.

Se não sair boa a quadra,
Que saia, ao menos, completa;
Lá, se lhe quadra ou não quadra,
É queixar-se do poeta;

Não do triste gazeteiro,
Que rói o tempo e trabalha
Sem encontrar no tinteiro
Qualquer assunto que calha.

Ninguém me dirá que as notas
Falsas e germanizadas
Valem nunca um par de botas,
Novas ou acalcanhadas.

Pois que já tratara delas
O cronista do costume,
E ora são como panelas
A que não resta chorume.

Nem elas, nem os debates
Do Jockey-Club, e os palpites,
Nem os terríveis combates
De agudas encefalites.

De encefalites agudas,
Das quais não escrevo nada;
As rimas devem ser mudas,
Quando a matéria é pancada.

E brigar por dois cavalos,
Gastar suor, sangue e murros,
Defendê-los, levantá-los,
Para um amador de burros,

É completa maluquice.
Eu amo os burros, capazes,
Sem ardor nem casquilhice,
Maduros desde rapazes.

Barulhos entre campistas?
Cadeira de Torres Homem?
São matérias de altas vistas,
Que aos fracos olhos se somem.

Sobretudo, em medicina,
Basta-me um só documento,
Cousa séria, não mofina,
Obra séria e de momento,

A autópsia de um tal Garrido,
Que foi achado enforcado,
Sem ficar bem definido
Se era ou não um suicidado.

Se sim ou se não — responde
O auto que é impossível
Achar por onde se sonde
Esse problema terrível.

Mas, continuando a pena
Naquele labor ingrato,
De toda a descrita cena
Conclui que houve assassinato.

É por isso que os problemas
Nunca me meteram susto;
São simples estratagemas
Que a gente desfaz sem custo.

Assim desfizesse o dano
E a funda melancolia
De não ser pernambucano!
Teria visto, de dia,

Vênus, o astro, no Recife,
Onde apareceu agora...
Ah! tu rimas com patife,
Tu, Recife de má hora!

Lembra a notícia que Enéias,
Indo da troiana parte,
Viu assim a flor de idéias,
E assim a viu Bonaparte.

Foi o que li e acredito;
Que eu creio em tudo o que leio,
E como sigo um só rito
Só leio aquilo em que creio.

Faça o leitor outro tanto;
Se não crê nesta Gazeta
De Holanda, ponha-a num canto;
E rimará com Gazeta.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Lourdinha Leite Barbosa (Quadros em Movimento)

A mala voltara quase vazia como fora; sua mente, no entanto, estava repleta. Visitara museus, bibliotecas e livrarias.

O pequeno quadro, presente de um amigo, foi acomodado entre os inúmeros que pendiam assimetricamente da parede da sala. Encontrar um espaço ali era quase impossível. Afastou-se para ver o resultado e teve a impressão de que algo se movera. Aproximou-se com medo de que fosse um inseto. Não viu nada.

Os quadros mais antigos se alargaram e forçaram os mais recentes a se comprimirem. Nesse empurra-empurra alguns se inclinaram, Ingrid percebeu o leve rumor e recolocou-os em seus lugares. As cinco mulheres de branco que, no quadro de moldura negra, se dirigiam às suas casinhas assustaram-se com o movimento e apressaram o passo.

A luz atravessou a janela e pousou sobre o quadro em que uma moça caminhava por uma rua ensolarada. Ela estancou o passo, largou a cesta que mantinha encostada ao quadril e rodopiou sobre o calçamento irregular.

Ingrid pôs um CD de Chico Buarque e iniciou uns passos de dança. As pessoas do quadro em tons vermelho e negro, que observavam uma festa popular, voltaram-se e a aplaudiram com entusiasmo. Sem perceber o que se passava na parede de sua casa. Ingrid apanhou as ilustrações que trouxera do Museu Dorsay e estendeu-se no sofá abaixo do quadro em que um pintor fazia seu auto-retrato. O pintor abandonou palhetas e tintas e passou a observar, junto com ela, as reproduções.

Um forte sopro de vento alçou as cortinas e avivou as figuras dos quadros. As três mulheres que conversavam, ao lado de grandes cestos cheios de conchas, despiram suas longas saias, retiraram os panos da cabeça e correram, numa nudez branca, em direção ao mar. Ao mesmo tempo, as pessoas do quadro abaixo, que caminhavam com tranqüilidade ao lado do Sena, puseram-se a correr confusas em todas as direções. Já não se obedecia aos limites impostos pelas molduras. Aprisionadas no tempo, não sabiam para onde ir ou o que fazer. Atônitas descobriam um novo mundo. Uma mulher que parecia ter saído de uma revista de modas da década de cinquenta falou em francês para um enorme galo que se mantinha parado: Por que você não se move? — O galo mexeu a cabeça e respondeu em português: Estou nesta posição desde 1972, não consigo mexer as pernas.

De repente, formou-se um grande círculo e reclamações de toda ordem foram ouvidas em diferentes línguas. Todos se entendiam: “Fui paralisada enquanto caminhava para casa”; “Estou há anos sem tomar banho”, “Não sei o que foi feito da minha família”, “Nem pudemos entrar em casa, depois da festa de Iemanjá”; “Quantos anos se passaram? Estou jovem e minha filha deve estar velha”; “Por que fomos aprisionados?”; “Eu nunca terminei meu auto-retrato. Temos que fazer alguma coisa”.

Durante a confusão uma moldura caiu. Ingrid levantou-se atordoada. Estava mesmo precisando descansar, suas pernas pareciam não lhe pertencer. Apanhou o quadro e, ao colocá-lo de volta, parou perplexa: a tela não tinha qualquer vestígio de tinta.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas : Lourdinha Leite Barbosa

Lourdinha Leite Barbosa (Maria de Lourdes Dias Leite Barbosa) nasceu em Ipu. Licenciada em Letras pela Universidade Estadual do Ceará e mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. Pertence ao Grupo Espiral. Exerceu o cargo de Presidente da Academia de Letras e Artes do Nordeste – Secção Ceará. Tem contos, ensaios e artigos publicados em jornais e revistas especializadas. Participa das antologias O talento cearense em contos – org. Joyce Cavalcante (São Paulo: Maltese, 1996) e Antologia de contos cearenses – org. Túlio Monteiro (Fortaleza: FUNCET, 2004). Tem editados Protagonistas de Rachel de Queiroz: caminhos e descaminhos – ensaio (São Paulo: Pontes, 1999) e A arte de engolir palavras – contos (Recife: Bagaço, 2001).

No ensaio intitulado “Sobre A arte de engolir palavras e outras artes”, aposto ao volume como posfácio, a professora Vicência Maria Freitas Jaguaribe faz minuciosa análise da obra, que poderia deixar os críticos sem mais nada a dizer. Assim, vê na coletânea cinco narrativas fantásticas, sendo as demais “de natureza mimética ou realista, no sentido mais geral desse termo”.

                Algumas histórias da coleção tratam de pequenos dramas pessoais, quase sempre femininos ou na visão feminina (personagem-narradora), em reduzido número de parágrafos curtos, fundados no recurso da narração, com breves diálogos. Como também observa Vicência Jaguaribe, “o narrador de terceira pessoa desse conto, como o de muitos outros, parece um mero recurso da autora para emprestar à narrativa uma ilusão de objetividade, pois quem na realidade acaba filtrando os fatos para o leitor é a própria protagonista, por meio da técnica do discurso indireto livre, que soa quase como um monólogo”.

                A maioria das peças do volume foi construída como narrações em terceira pessoa. Personagens-narradores encontram-se em “Nó cego”, “Poça dágua”, “Flores de papel”, “Medo” e “Encantamento”. Na primeira, uma das mais longas do livro, uma mulher conta a sua desilusão amorosa: flagra o marido com outro homem, em “beijo profundo, prolongado”, sem deixar claro ao leitor a identidade do outro, talvez para dar ao conto um ar de mistério. Na segunda narrativa, de feitio fantástico, outra mulher narra o próprio desespero, como num pesadelo. O leitor, entretanto, só percebe o perfil feminino no desfecho, quando a personagem observa: “Sei que estou ferida, mas não sinto dor”. Na terceira história desse tipo, a protagonista Zefa, a moça doida, desenvolve a narração no presente, em monólogo interior. “Medo” tem como narrador um homem, embora também pudesse ser mulher. Nas primeiras linhas ele se diz desesperado. No último dos contos em primeira pessoa um menino apaixonado pela bailarina do circo conta a história.

                Raríssimas vezes a contista se vale do flagrante, dando o narrador pequenos saltos no tempo, a cada parágrafo. Em “Bumerangue” a protagonista, sem nome explícito, chega a uma fazenda. Em flash-back a narração se volta para a partida da personagem (“Partira escorraçada e humilhada”). Seguem-se breves narrações-descrições do ambiente (“cozinha larga e clara”; “colheita do feijão”; “as chuvas trouxeram à fazenda”). Após meia dúzia de frases, apresenta o segundo ser fictício, “um rapazola franzino, de olhar manso e fala pouca”. E novo conflito se instaura, até o desfecho, quando a mulher, “resignada, partiu em busca de um novo refúgio, como a fechar uma porta sem fim”. Dessa forma, Lourdinha Leite Barbosa consegue pintar a protagonista por dentro, bem como o ambiente onde ela vive e o tempo dos seus embates interiores, tudo em pouco mais de 30 linhas. Em “A Valsa Proibida” esta técnica se repete, com algumas variações: os flashes-backs são mais longos, o tempo narrado se encurta, a personagem tem nome explícito, Mirta, e o desfecho parece feliz.

Às vezes o tempo se dilata, enquanto o espaço da ação se restringe. Em “Vida em três tempos”, como o próprio título indica, Marília se revê em três momentos de sua vida. Pensa, rememora. O conflito é interior; a protagonista se acha em casa, a olhar para “o porta-retrato em cima da mesinha de cabeceira”. Ao final, “enrodilhou-se na velha poltrona”, a dizer ao leitor que dali não saiu, ao longo da narração. Outras vezes o espaço se amplia. Em “Aqui, ali, acolá”, como o título mostra, a ação se dá em diversos lugares: no campo (árvores, pedras, estrada); na cidade (“avenida larga e movimentada”), uma pousada, um hospital. Em “Uma paisagem quase perfeita” as personagens habitam um casarão antigo, com seu porão escuro e o grande quintal cheio de árvores: uma paisagem quase perfeita. Como nos contos de fadas, as moças sonham e sofrem de solidão. “Os dias escorriam tão lentos quanto o rosário que eram obrigadas a rezar todas as noites”. E ocorre a transgressão no tempo e no espaço: a monotonia é suspensa por um acontecimento inesperado – a chegada de um jardineiro. A figura masculina penetra no mundo feminino. “Apenas no quintal e jardim”. Daí por diante tudo se transforma no casarão e nas donzelas, que vão, uma a uma, murchando, amarelando, morrendo.

                Há também histórias folclóricas, que não deslustram o conjunto, como “Flores de papel”, em linguagem regional: cabaça, tomar tenência, indagorinha, mangar de mim, fazer mangoça, pataca. A intertextualização com as cantigas de roda dá à obra um quê de arte literária. Essa localização da trama no espaço rural ou da cidade pequena ocorre em diversas peças do volume. Em “Penitente” o protagonista anda por ruas desertas, pelo átrio da matriz, vai ao açude, embrenha-se no mato, banha-se na cacimba. Não se tratam, porém, de narrativas regionalistas, quer pela manipulação da linguagem, quer pela estruturação do enredo. A contista não cansa o leitor com diálogos intermináveis de matutos e muito menos com descrições enfadonhas de paisagens e topografias.

                Os personagens de Lourdinha Leite Barbosa são apenas os que participam diretamente da trama: o protagonista e o antagonista. Raras vezes aparece terceiro ou quarto ser fictício. Isso faz com que o conto seja curto e não se desdobre em mais de uma história ou apresente um enredo dentro de outro. Mesmo no clássico triângulo amoroso, o terceiro personagem não passa de sutil lembrança. Em “Bumerangue” a protagonista faz breve referência ao ex-marido, sem sequer mencionar o nome: “Até ameaça de morte ele fizera”. Apenas “ele” e nada mais. Em “A Decisão”, Hortência lembra do ex-marido em uma frase capital: “ele confessou que tinha outra”. Essa outra não chega a ser personagem. Em “A Valsa Proibida” pode-se ver uma só ser fictício, Mirta, “mulher idosa, vestida de princesa”. Seu pai e sua mãe são apenas referidos, em fato remoto de sua vida. Os amigos são como bibelôs, objetos: “Mirta recebia os amigos com um largo sorriso”. São apenas “homens e mulheres, em traje de festa”. Com tanta economia de personagens, é natural que os conflitos não aflorem. Pois a trama é quase sempre pessoal, individual, interior. O enredo por pouco não é abolido nas narrativas de Lourdinha.  Veja-se “Vida em três tempos”, que pode ser o exemplo mais claro disso: a protagonista Marília vive com Dirceu, que, no entanto, não passa de personagem morto, passado. “Já não eram um. Calada. Sem nada a dizer. Fingindo não ver, não ouvir. Brigar para quê?” Ou seja, o outro, Dirceu, não passava de um ser apático, sem reação, incapaz de participar de um conflito.

                Vistos os contos em alguns dos fundamentos do gênero, resta-nos avaliar a linguagem da contista. Em primeiro lugar, a concisão e a precisão, presentes na maioria das histórias. Em consequência, a riqueza de sugestões e a economia dos detalhes, tão bem percebidas por Vicência Jaguaribe.  Ou seja, Lourdinha Leite Barbosa consegue realizar a arte de engolir palavras em sua primeira coleção de peças ficcionais, enquanto muitos escritores passam a vida expelindo palavras e terminam sufocados pela própria verborragia.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 18)



Se acaso seu filho abusa,
diga-lhe um “não”, que faz bem.
Muita vez uma recusa
salva o futuro de alguém.
A. A. DE ASSIS (PR)
.

De uma forma desmedida,
muita gente, a toda hora,
dizendo gozar a vida,
vai jogando a vida afora!…
ALFREDO DE CASTRO (MG)

Que saudade dos brinquedos
do meu tempo de criança,
tendo os risos e folguedos
como arautos da esperança.
ALICE BRANDÃO (RS)

Solidão faz apertado
o coração sofredor,
que desperta, inebriado,
ao toque de um novo amor.
ANA MICHEL (RS)

“Via de regra” – essa é boa! –
não é uma regra geral;
é a via por onde escoa
certo incômodo mensal…
ANTÔNIO DA SERRA (PR)

Quanta gente em devaneios,
buscando instantes risonhos,
vive dos sonhos alheios
e esquece dos próprios sonhos!…
ANTÔNIO JURACI SIQUEIRA (PA)

À noite vou namorar:
- Da lua já nem preciso!…
só quero ver teu olhar
fascinando o meu sorriso.
ARI SANTOS DE CAMPOS (SC)
.

Chegar mais cedo é proeza
que assusta muito marido,
pois quem chega de surpresa
costuma ser surpreendido!
ARLINDO TADEU HAGEN (MG)

Se entre guizos, eu componho
meu disfarce de Arlequim,
há sempre um Pierrô tristonho,
que chora dentro de mim!
CAROLINA RAMOS (SP)

Eu peço que não me iludas,
nem me deixes com infarto
com essas pernas desnudas
na penumbra do teu quarto.
CLÊNIO BORGES (ES)

Da singeleza eu me ufano,
da minha rua escondida,
que tem mais calor humano
que a mais central avenida.
CONCEIÇÃO DE ASSIS (MG)
.

E desde o raiar do dia,
entre rocha, musgo e lua,
vou te fazendo poesia,
morta de saudade sua.
DÁGUIMA VERÔNICA (MG)

Quero entender a magia
do silêncio , que renova ,
e afastar a nostalgia ,
que chora na minha trova!
DELCY CANALLES (RS)

Escrevem tanta besteira!
Parem com isso, de vez!
Pois quem des…fralda bandeira
de… frauda o bom português!…
DIAMANTINO FERREIRA (RJ)

Onde a lei torta vigora
e o povo ao jugo se presta,
o rico só comemora
e o pobre é quem paga a festa.
DIVENEI BOSELI (SP)

Embora sendo poeta,
foi com você que aprendi,
Isadora, minha neta,
que Amor começa com I.
ELIANA PALMA (PR)

Pouco importa que tu venhas
apressado, em teu fulgor,
pois trazes contigo as senhas
para os feitiços do amor!
ELISABETH SOUZA CRUZ (RJ)

Na roça não se complica
a higiene rotineira:
começa na velha bica
e um gamelão é banheira!
FERNANDO VASCONCELOS (PR)

As pedras do meu caminho
vou transpondo-as com ardor
e cada dia um trechinho
vira caminho de amor!
FLÁVIO STEFANI (RS)
.

A dor materializou-se,
nestas lágrimas sem cor.
Meu orgulho evaporou-se…
Rendi-me à força do amor!
FRANCISCO NEVES MACEDO (RN)

Existe amor sem sequelas,
na união de um casal,
nos romances e novelas,
nunca na vida real.
GERALDO AMÂNCIO PEREIRA (CE)

E’ de ternura o momento
em que o Sol sorri no espaço,
se faz vida e sentimento
e lança ao mar seu abraço!
GISLAINE CANALES (SC)

O forte nó da saudade
amarra o tempo num laço,
e aprisiona a mocidade
nas trovas de amor que eu faço.
HÉRON PATRÍCIO (SP)
.

Não adianta querer tanto,
nem amar sem ser amado,
foi assim meu desencanto
ao me sentir desprezado.
IALMAR PIO SCHNEIDER (RS)

Artimanhas de um amor
que nasceu no dia-a-dia
entre a rosa e o beija-flor
no canteiro da poesia.
IEDA LIMA (RN)

Alvo da própria pirraça,
o Zé caiu do cavalo;
em vez de ganhar a taça,
na testa ganhou um galo.
ISTELA MARINA (PR)

Quando chegar, vou sorrir;
sorrirás, quando eu chegar.
Não chores quando eu partir,
para eu partir… sem chorar…
IZO GOLDMAN (SP)
.

Numa espera doce e mansa,
qual zelosa tecelã,
bordo rendas de esperança
pra enfeitar nosso amanhã!
JEANETTE DE CNOP (PR)

Leve a vida sem queixume,
plante amor por onde andar:
– Seja a fé o seu perfume.
– Seja a paz o seu altar!
JOAMIR MEDEIROS (RN)

Por minha culpa partiste;
e o sal do pranto, sem dó,
agora, torna mais triste
o triste viver de um só…
JOSÉ TAVARES DE LIMA (MG)

No brinquedo “Esconde- esconde”,
eu me escondia tão bem,
que, até hoje, não sei onde,
eu me escondi…E de quem?
LISETE JOHNSON (RS)

A imaginação flutua,
dando à vida, mais sabor…
…Que a lua é muito mais lua
nos versos de um trovador!
MARLÊ BEATRIZ ARAÚJO (RS)
.

Embora o dia me açoite
com seus barulhos brutais,
lá no silêncio da noite…
a solidão bate mais!
MARIA MADALENA FERREIRA (RJ)

A saudade é um bem guardado
que nos volta, de repente,
num presente do passado,
quando o passado é presente.
MARIA NASCIMENTO (RJ)

Quando a mágoa nos revolta,
e os dias tinge de breu,
só o Perdão nos traz de volta
a luz que a mágoa escondeu.
MARISA VIEIRA OLIVAES (RS)
.

Um erro sempre é semente
de uma dor que vai nascer.
Perdão é o melhor presente
que alguém pode receber…
MILTON SOUZA (RS)
.

Para ser feliz, na vida,
bem alegre, a todo instante,
sem causar qualquer ferida,
o equilíbrio é importante.
NEI GARCEZ (PR)
.

A criança tem direito:
lar, carinho e educação
pra conduzir com respeito
o futuro da nação.
NEIVA FERNANDES (RJ)

Pra que teu lar seja um templo,
pleno de amor e de paz,
mostra o caminho do exemplo,
que é sempre o mais eficaz.
NEOLY DE OLIVEIRA VARGAS (RS)
.

Na minha dúvida atroz,
pra evitar vexame e enrosco,
não direi “arroz com noz”,
direi sempre “arroz conosco”…
OSVALDO REIS (PR)

Você pode até amar
aos limites do impossível,
mas ao se relacionar,
equilíbrio, imprescindível.
RAYMUNDO SALLES BRASIL (BA)
.

Ser careca, ele detesta.
Não suporta usar peruca.
Então, puxou para testa
o que restava na nuca…
RENATA PACOLLA (SP)

Quando à noite, a solidão
e a saudade trazem dor,
vou dizendo ao coração:
-é o preço por tanto amor.
ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE (RJ)

Na vida, em toscos degraus,
entre tropeços a sustos,
mais que a revolta dos maus,
temo a revolta dos justos!
RODOLPHO ABBUD (RJ)

Um coração congelado
pega fogo, de repente,
quando o amor, fósforo alado,
risca faíscas na gente!
ROSA DE OLIVEIRA (PR)

Na fornalha, em que me abraso,
– você finge que não vê )s
eu desprezo não faz caso
do meu amor… por você!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA (SP)

Ao lento passar da horas,
aumentam as agonias…
Quanto mais tempo demoras,
mais sinto as noites vazias.
VANDA ALVES (PR)

Foi preciso muito brio,
quase a coragem faltou,
para enfrentar o vazio,
que a tua ausência deixou!
WILMA M. CAVALHEIRO (RS )

Irmãos Grimm (Os Três Homenzinhos da Floresta)

Era uma vez um homem cuja esposa havia morrido, e uma mulher cujo marido havia morrido, e o homem tinha uma filha, e a mulher também tinha uma filha. As meninas se davam muito bem uma com a outra, e gostavam de caminhar juntas, e pouco depois chegaram à casa da mulher.

Então disse a mulher para a filha do homem,

"Ouça, diga ao teu pai que eu gostaria de me casar com ele, e então você poderá tomar banho de leite todas as manhãs, e beber vinho, mas a minha própria filha irá se banhar com água e também só poderá beber água."

A garota foi para casa, e contou ao pai dela o que a mulher havia dito. O homem disse,

"O que devo fazer? O casamento é uma felicidade, mas também é um tormento."

Com o passar do tempo ele não conseguia tomar uma decisão, então ele tirou a bota, e disse,

"Pegue esta bota, ela tem um buraco na sola. Suba até o sótão, pendure-o no prego da parede, e depois coloque água dentro dele. Se a água não vazar, então eu me casarei novamente, mas se a água escorrer, não me casarei."

A garota fez o que o pai havia falado, mas a água fez com que o buraco não se abrisse, e a bota ficou cheia até o topo. Ela informou ao pai o que tinha acontecido. Então ele mesmo subiu até o sótão, e quando ele viu que ela tinha razão, ele foi até a casa da viúva para fazer corte a ela, e o casamento foi celebrado.

Na manhã seguinte, quando as duas garotas se levantaram, eis que havia diante da filha do homem, leite para ela se banhar e vinho para ela beber, mas diante da filha da mulher havia água para ela se lavar e água para ela beber.

Na segunda manhã, havia água para se levar e água para beber para a filha do homem bem como para a filha da mulher.

E na manhã do terceiro dia; havia água para se banhar; e água para beber para a filha do homem, e leite para se lavar e vinho para beber, para a filha da mulher, e assim todos os dias.

A mulher havia se tornado amarga e indelicada com a sua enteada, e a medida que os dias se passavam ela se esforçava o máximo para tratá-la ainda pior. Ela também era invejosa porque a enteada dela era linda e adorável, e a sua filha era feia e repulsiva.

Uma vez, durante o inverno, quando tudo congelava como a dureza de uma pedra, e as montanhas e os vales estavam cobertos de neve, a mulher fez um vestido de papel, chamou a sua enteada, e disse,

"Venha aqui, coloque este vestido e vá passear na floresta, e me traga um pequeno cesto cheio de morangos, — Pois estou com vontade de comer alguns."

"Mas como!" disse a garota, "nenhum morango cresce no inverno! O chão está congelado, e além de tudo a neve cobriu toda a plantação. E porque é que eu teria de ir neste vestido de papel? Está tão frio lá fora que até a minha respiração congela! O vento irá soprar o vestido, e os espinhos irão machucar o meu corpo."

"Você está me contrariando novamente?" disse a madrasta, "Trate de ir, e não me mostre a tua cara novamente até que retorne com um cesto cheio de morangos!"

Então ela lhe deu um pedacinho de pão duro, e disse,

"Isto deverá durar o dia todo," e pensou, "Ela irá morrer de frio e fome lá fora, e nunca mais a verei perto de mim novamente."

Mas a garota era obediente, e colocou o vestido de papel, e saiu com o cesto. Em toda parte não havia outra coisa além de neve, e nem sequer se podia ver um pedaço de verde. Quando ela chegou na floresta, ela viu uma casinha onde havia três pequenos anõezinhos[1]. Ela desejou a eles "Bom Dia", e modestamente bateu na porta. Eles gritaram, "Entre," e ela entrou na casa e se sentou no banco perto da lareira, onde ela começou a se aquecer e a fazer a sua refeição.

Os duendes disseram,

"Dá-nos também um pedaço de pão."

"Com prazer," disse ela, e dividiu o seu pedaço de pão em dois, e deu a eles a metade.

Eles perguntaram,

"O que você está fazendo aqui na floresta em pleno inverno, com esse vestido tão fininho?"

"Ah," respondeu ela, "Eu vim buscar um cesto cheio de morangos, e não posso voltar para casa até que eu possa encontrá-los e levá-los comigo."

Quando ela terminou de comer o pão, eles deram a ela uma vassoura e disseram,

"Limpe a neve que está do outro lado da porta dos fundos com a vassoura."

Mas quando ela saiu lá fora, os três homenzinhos disseram um para o outro,

"O que poderemos oferecer a ela porque ela foi tão generosa, a ponto de dividir conosco o único pão que ela tinha?"

Então o primeiro disse,

"O meu primeiro desejo será, que ela fique cada vez mais bela todos os dias."

O segundo disse,

"O meu desejo será, que moedas de ouro saiam de sua boca cada vez que ela falar."

E o terceiro falou,

"O meu presente será, que um rei venha e a leve como sua esposa."

Agarota, todavia, fazia o que os pequenos homenzinhos haviam solicitado a ela, varreu toda a neve que havia atrás da casa com a vassoura, e por ter feito isso ela encontrou nada menos que morangos maduros e verdadeiros, que surgiram de cor vermelho escuro enquanto ela varria a neve! Cheia de alegria ela colheu rapidamente um cesto bem cheio, agradeceu aos anõezinhos, apertou a mão de cada um deles, e correu para casa para levar para a sua madrasta o que a velha estava com vontade de comer há muito tempo.

Quando ela entrou em casa e disse "Boa Noite", uma moeda de ouro imediatamente saiu de sua boca. Então ela contou o que havia acontecido com ela na floresta, mas a cada palavra que ela pronunciava, mais moedas de ouro caíam de sua boca, até que em pouco tempo todo o recinto estava repleto de ouro.

"Veja já como ela é arrogante," exclamou a irmã adotiva, "jogando moedas de ouro dessa maneira!"

Mas intimamente ela sentia inveja da irmã, e queria também ir à floresta para procurar morangos.

A mãe disse,

"Não, minha querida filhinha, está muito frio, você poderia morrer de fome."

Todavia, como a filha não lhe dava sossego, a mãe finalmente concordou, fez para ela um magnífico vestido de pele, que ela foi obrigada a vestir, e deu a ela pão com manteiga e bolo para que ela levasse.

A garota foi para a floresta e caminhou diretamente para a pequena cabana. Os três pequenos elfos deram uma espiada novamente, mas ela não os cumprimentou, e não olhou para eles e nem falou com eles, ela entrou na casa com modos grosseiros, sentou-se perto da lareira, e começou a comer o seu pão com manteiga e o bolo que ela havia trazido.

"Também queremos um pouquinho," exclamaram os pequenos homenzinhos; mas ela respondeu,

"Não há o suficiente nem para mim mesma, então, como é que eu posso dar um pouquinho para as outras pessoas?"

Quando ela terminou de comer, eles disseram,

"Há uma vassoura atrás da porta, deixe tudo limpo para nós do lado de fora da porta dos fundos."

"Credo! Limpem vocês mesmos," respondeu ela, "Eu não sou criada de vocês."

Quando ela viu que eles não iriam lhe dar nada, ela saiu pela porta. Então os três homenzinhos disseram uns para os outros,

"O que nós ofereceremos a ela por ter sido tão desobediente, por ter um coração tão invejoso, e que jamais fará uma boa ação para qualquer pessoa?”

O primeiro disse,

"O meu desejo é que ela fique cada dia mais feia."

O segundo falou,

"Desejo a ela que a cada palavra que ela pronunciar, um sapo irá saltar de sua boca."

O terceiro disse,

"O meu desejo é que ela tenha uma morte miserável."

A garota procurou os morangos do lado de fora da cabana, mas como ela não encontrou nenhum, ela voltou furiosa para casa. E quando ela começou a abrir a boca, e ia contar para a sua mãe o que havia acontecido com ela na floresta, a cada palavra que ela pronunciava, um sapo saltava de sua boca, de modo que todos se afastavam tomados de horror por ela.

Então a madrasta ficou ainda mais brava, e não pensava em outra coisa a não ser causar todo o mal que ela pudesse para a filha do homem, cuja beleza, todavia, aumentava a cada dia que passava.

Finalmente, ela pegou um caldeirão, e o colocou no fogo, e começou a ferver fios de algodão dentro dele. Quando ele entrou em ebulição, ela colocou o caldeirão fervendo sobre os ombros da garota, e deu a ela um machado para que ela pudesse ir até o rio congelado, fizesse um buraco no gelo com o machado, e enxaguasse os fios.

Ela era obediente, foi até lá e cortou um buraco no gelo; e enquanto ela estava fazendo isso com o machado, uma belíssima carruagem veio chegando, e nela estava um rei. A carruagem parou, e o rei perguntou,

"Minha filha, quem é você, e o que você está fazendo aí?"

"Eu sou uma pobre menina, e estou enxaguando estes fios."

Então o rei sentiu pena dela, e quando ele percebeu que ela era uma menina muito bonita, ele disse a ela,

"Não queres ir-te embora comigo?"

"Ah, sim, com todo prazer," respondeu ela, pois ela ficaria feliz em se livrar da sua madrasta e da sua irmã adotiva.

Então, ela entrou na carruagem e partiu para longe com o rei, e quando eles chegaram ao palácio, o casamento foi celebrado com grande pompa, assim como os pequenos homenzinhos haviam desejado à garota.

Depois que um ano havia se passado, a jovem rainha deu a luz à um filho, e assim que a madrasta ouviu falar da grande sorte que ela tivera, ela veio com a sua filha até o palácio e fingiu que desejava fazer-lhe uma visita.

Mas uma vez quando o rei havia saído, e ninguém estava presente, a perversa mulher segurou a rainha pela cabeça, e sua filha a segurou pelos pés, e elas a tiraram da cama, e a jogaram para fora da janela dentro de um riacho que passava por ali. Então a filha feia se deitou na cama, e a velha a cobriu até a cabeça.

Mais tarde, quando o rei voltou para casa, e quis falar com a sua esposa, a velha gritou,

"Silêncio, silêncio, não pode ser agora, ela está dormindo e suando bastante; o senhor precisa deixar que ela descanse hoje."

O rei não desconfiou de nenhuma maldade, e não voltou novamente até a manhã seguinte; e quando ele falava com a sua esposa e ela respondia para ele, a cada palavra que ela dizia um sapo saltava para fora da sua boca, ao passo que antes uma moeda de ouro havia caído.

Então ele quis saber o que havia acontecido, mas a velhinha disse que era por causa de ter suado muito, e que logo ela ficaria boa. Durante a noite, todavia, o ajudante de cozinha viu um pato que vinha nadando até a sarjeta, e o pato dizia:

"Rei, o que estás fazendo agora?
Estás dormindo, ou estás acordado?"

E como ele não lhe respondesse nada ele disse,

"E os meus convidados, O que podem eles fazer?"

A ajudante de cozinha disse,

"Eles estão dormindo profundamente, também."

Então o pato perguntou novamente,

"O que faz agora o bebê camundongo?"

Ele respondeu,

"Está dormindo tranquilamente em seu berço."

Então ela subiu as escadas tomando a forma de rainha, acalentou o bebê, balançou a caminha dele, cobriu-o, e depois foi embora novamente nadando pela sarjeta tomando a forma de um pato. E assim ela veio durante duas noites; e na terceira, ela disse para o cozinheiro,

"Vá e diga ao rei para que pegue a sua espada e faça brandí-la três vezes na entrada da porta."

Então o ajudante de cozinha correu e falou isto ao rei, que veio com a sua espada e fê-la brandir por três vezes sobre o espírito, e na terceira vez, a sua esposa lhe apareceu diante dele forte, vívida, e saudável como sempre fora antes. Então o rei ficou muito feliz, mas ele manteve a rainha escondida em um quarto até o domingo, quando o bebê deveria ser batizado.

E quando ele foi batizado, o rei disse:

"O que merece uma pessoa que arrasta uma outra para fora da cama e a joga dentro da água?"

"A infeliz não merece nada mais," respondeu a velhinha, "do que ser levada e colocada dentro de um barril cheio de pregos, e rolar montanha abaixo até o riacho."

"Então," disse o rei, "Tu declaraste tua própria condenação;"

E ele ordenou que tal barril fosse trazido, e a velha com sua filha fossem colocadas dentro dele, e depois que uma tampa foi pregada, o barril rolou montanha abaixo até que ele chegasse no rio.
=====================

Nota
(1) No original Haulemännerchen—i.e., Höhlen-Waldmäunlein. Eles são assim chamados porque eles vivem em cavernas nas florestas. Eles são pequenos anões de cabeças grandes, e dizem que eles roubam crianças não batizadas.


Fonte:
Contos de Grimm

A Saudade em Sonetos Diversos IV

JORGE AZEVEDO
Essas coisas da vida


Essas coisas da vida a gente nunca esquece...
Um longo beijo ao luar... uma mentira linda...
Num suspiro de amor... num sussurro de prece,
Guardar de toda boca uma saudade infinda...

E então quando se é moço e o ardor não arrefece,
Goza-se a mocidade enquanto ela não finda...
Da vida bem vivida o ocaso recrudesce
A tristeza de não poder mentir ainda...

E a minha mocidade em beijos se avigora,
Encontra em toda boca uma esplendente aurora
E em todo amor um sol em que febril, se aquece...

E na efemeridade em que ela se resume,
O consolo a lembrar... lembrar... pois ao perfume
Dessas coisas da vida a gente refloresce...

JÚLIO SALUSSE
Cisnes


A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós constantemente
Um lago azul, sem ondas nem espumas.

Bem cedo quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vogamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.

Um dia um cisne morrerá, por certo...
Quando chegar esse momento incerto,
No lago onde talvez a água se tisne,

Que o cisne vivo cheio de saudade
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado d'outro cisne.

LUÍS PISTARINI
O seu retrato


Ela mandou-me, há dias, o retrato,
— Um belo mimo em platinotipia —
Que eu não canso de ver, e, dia a dia
Mais se me torna bem querido e grato,

Porque quando entre angústias me debato,
Triste nas horas de melancolia,
Basta fitá-lo, para que a alegria
Banhe de luz o meu viver ingrato.

Lembro-me dela, então saudosamente;
E, a sorrir, nesses rápidos instantes,
Eu me inflamo de amor de um modo tal,

Que lhe beijo o retrato longamente,
Com o mesmo ardor com que beijava dantes,
Jubiloso e feliz, o original...

MANUEL BANDEIRA
À maneira de Olegário Mariano


Triste flor de milonga ao abandono,
Betsabé, Betsabé, que mal me fazes!
Ontem, a coqueluche dos rapazes,
E agora? pobre pássaro sem dono.

Primavera e verão foram-se. O outono
Chegou. Folhas no chão... Névoas falazes...
E aí vem o inverno... O fim das lindas frases...
O último sonho, e após, o último sono!

As cigarras calaram-se. Era tarde!
E hoje que no teu sangue já não arde
O fogo em que tanta alma se abrasou,

Choras, sem compreenderes que a saudade
É um bem maior do que a felicidade,
Porque é a felicidade que ficou!

MARCELO GAMA
Catavento

 

Vim sarar tédios, longe da cidade,
A convite e conselho de um amigo,
Neste sombrio casarão antigo
Onde tudo tem ares de saudade.

— "Vem para o campo que a paisagem há de
Curar-te". Mas, curar-me não consigo:
Ontem o riso esteve bem comigo;
Hoje me sinto cheio de ansiedade.

Sou assim, como as asas do moinho
Que, lá distante, à beira do caminho,
Por entre casas velhas aparece:

Gira ao norte... ora ao sul... depressa... lento...
Parece doido aquele catavento!...
Mas como ele comigo se parece!

MARIA EUGÊNIA CELSO
Meu Céu


És para alguns a fúlgida certeza
De outra vida vivida em perfeição,
Uma esperança de compensação
Ao velho mal de toda a natureza.

Felicidade, sem a atroz surpresa
Do amanhã destruidor, eterna união,
Recompensa, esplendor, paz e perdão,
Luz sem ocaso em formosura acesa...

Meu céu, no entanto, a pátria imorredoura
Do sonho de ventura em que me assombro
E meu quinhão de glórias entesoura,

Céu que um reflexo de saudades doura,
Seria se, de novo, no meu ombro,
Pousasses, filho, a cabecinha loura...

MARTINS FONTES
Sol das almas


À última luz que doira as tardes calmas,
À última luz de amor que beija o poente,
Se dá, no meu país, poeticamente,
A denominação de "Sol das Almas"!

Na montanha, a palmeira, de repente,
Brilha! O mistério lhe incandesce as palmas!
Para outro mundo leva o pó das salmas
A luminosidade comovente!

Vai morrer e ainda fulge! Ainda! Ainda!
Como um sorriso, finda a claridade,
Como um soluço, a claridade finda!

Adeus! Adeus! É o fim da Mocidade!
Nunca mais! Nunca mais! E era tão linda!
Qual é teu nome, Luz do Azul? — Saudade.

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/saudoso.htm

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O Conde Soldadinho

Recolhido no Algarve

Junto do palácio do rei morava um pobre soldado; no dia e hora em que nasceu um filho ao rei, também a mulher do soldado teve um filho. Aconteceu serem muito amigos um do outro, e o rei como era justiceiro e de bom coração deixou que o soldado e a mulher viessem viver para o palácio, para as duas crianças brincarem juntas.

Chamavam todos no palácio ao rapaz o Conde Soldadinho; ele acompanhava o príncipe a todas as festas e caçadas.

Uma vez andava o príncipe à caça, e achou-se ardendo em sede. O Conde Soldadinho foi-lhe arranjar água; daí a pedaço veio com um lindo jarro cheio de água fresca.

– Quem é que te deu um jarro tão bonito?

– Foi numa pobre cabana; e que faria se o príncipe visse a mãozinha que me deu!

Foram ambos levar o jarro à cabana, e o príncipe ficou logo apaixonado por uma rapariga muito linda que ali morava. Tomou amores com ela, ia vê-la em segredo, até que prometeu casamento para obter tudo o que queria. Temendo que o rei soubesse daqueles amores, nunca mais voltou à cabaninha, mas andava muito triste com saudades. A rapariga, que não sabia que o namorado era o príncipe, veio à corte deitar-se aos pés do rei para lhe valer:

– Supondo, servo de Deus
Na terra fazeis de rei
E que sempre sem suspeita
Fazeis justiça direita;
Pois mui alto rei sabei
Que a mim um cavaleiro
Com um amor verdadeiro
Protestou ser meu marido,
E entrou no meu aposento
Conseguiu o seu intento;
E eu como humilde criada
Batida e infamada
Neste campo de mudança
Peço aos vossos pés vingança.

O rei disse:

Levantai-vos nobre dama,
Cobrarás crédito e fama,
Que será bem castigado
O que vos tem desonrado.

E mandou chamar o príncipe, que estava passeando no jardim para vir à sua presença; o príncipe veio suspirando:

A ela trago em pensamento,
Por ela estou num tormento.

O Conde Soldadinho, que o acompanhava disse: – Pois por uma pobre pastora suspirais!

– Calai-vos, meu amigo; que também eras soldado, e meu pai vos fez conde sem o teres merecido.

Quando chegou à presença do rei contou-lhe tudo, e o rei deu-lhe ordem para casar com a pastora.
========================
Notas Comparativas

Pertence ao ciclo do amigo que se sacrifica; não há aqui a morte, mas a sua importância provém da parte metrificada, que revela a dissolução de uma obra dramática.


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 36 – 15 de novembro de 1887.

Ora, mal sabe a pessoa
Que lê estas linhas toscas,
Compostas assim à toa,
Entregues ao prelo e às moscas,

Mal sabe o susto que tive
Nas eleições da semana:
Vi Cartago, vi Ninive,
Vi além da Taprobana:

Por isso darei ao verso
Certo tom grave e pausado,
Diverso, muito diverso
Do meu tom acostumado,

E, se não, amigo, veja:
Batendo a hora do voto,
Vesti-me e fui para a igreja
Como um eleitor devoto.

Tinha comigo o diploma,
E a lista dos meus eleitos,
Fechada com boa goma,
Juntinha, agarrada aos peitos.

Começou pela chamada ...
Sei que sabe que ainda estamos
Nesta usança desusada
De só votar quem chamamos.

Dizia o mesário: — Antônio
Vaz de Souza, e repetia,
Depois: — Arlindo Theotônio
De Vasconcellos Faria.

E Arlindo, que era presente,
Levava o diploma aberto
Aos olhos do presidente,
Votava, e rápido, e certo,

Escrevia o nome: — Arlindo
Theotônio de Vasconcellos
Faria. — Trabalho findo,
Ia ao bife e ao Carcavelhos.

Mas o curioso, o incrível,
O trágico, o inopinado,
O que parece impossível
E entanto foi praticado,

É que entre os nomes dos vivos
Tinha nomes de defuntos,
De tantos que ora, entre os divos,
Gozam o descanso juntos.

E não defuntos de agora,
Mas de alguns anos passados,
Alguns que a pátria inda chora,
Outros pouco ou mal chorados.

Essa chamada de mortos
Trouxe-me um sono profundo,
Fui sentindo os olhos tortos,
E o mundo ao pé do outro mundo.

Primeiro vi Duque-Estrada
Teixeira — chegar sombrio
Para acudir à chamada
Feita no seu pátrio Rio.

Vi depois o Azevedo
Peçanha, vi a figura
Do Buarque de Macedo,
Labor, honradez, cordura.

Vi outros muitos, vi tudo,
E, continuando o mistério,
Vi, com gesto carrancudo,
A história e o seu cemitério.

Numerar os esqueletos
Que entrar vi na sacristia,
Já bolorentos ou pretos,
É obra que excede a um dia.

Vi César e mais as suas
Válidas tropas, vi Galba,
Maomé e as meias luas
E os três Curiácios de Alba.

Nino vi, Giges, e aquela
Semíramis, graça e fama,
Cleópatra, e a donzela
D'Orleans, Vasco da Gama,

Pedro o Grande, Henrique Oitavo,
Amílcar, os comerciantes
Cartagineses, Gandavo,
Napoleão e Cervantes.

E vinham todos trazendo
Uma cédula entre os ossos
Ao mesário, que ia lendo,
Os nomes desses destroços.

Sonho foi... Quando desperto,
Não achei mais que o sacrista,
A mesa vazia perto,
Nem mais eleitor nem lista,

Tonto do meu pesadelo,
Contei-o ao sacrista, e o moço
Facilitou-me entendê-lo,
Ambos à mesa do almoço:

— “Nada lhe aconteceria
Se a lista dos eleitores
Pudesse ter algum dia
Revisão e revisores.

“Se fosse oportunamente
Cada morto eliminado,
Nenhum seria presente
E muito menos chamado.

“Mas, como a preguiça é grande
E os trabalhos são massudos...
E não há quem nisto mande...
E os tempos andam bicudos...

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas – 2 -

CLAUDER ARCANJO

Clauder Arcanjo (Antonio C. Alves A.) nasceu em Santana do Acaraú, 1963. Engenheiro Civil, funcionário da Petrobrás desde 1985. Um dos coordenadores do Projeto Pedagogia da Gestão, voltado para gestão, educação e cultura. Cronista semanal da Gazeta do Oeste, de Mossoró-RN, e resenhista da Papangu, revista de humor e cultura do Rio Grande do Norte. Colaborador de Literatura – Revista do Escritor Brasileiro e Caos Portátil: um almanaque de contos. Distinguido com menção honrosa no Prêmio Literário Cidade do Recife, 2004, na categoria contos. Publicou o volume de contos Licânia (Mossoró: Sarau das Letra Editora, 2007) e tem, inéditos, um romance, um conjunto de poemas, um de contos, um de resenhas literárias e outro de crônicas.

                Licânia contém 24 narrativas curtas. O título do volume vem da cidade onde ocorrem alguns dos dramas. Em “A casa” se conta a história do regresso de um homem a Licânia, depois de anos de andanças pelo mundo. “Abelardo desceu do velho ônibus de linha, estirando as pernas, correu a vista pela praça central” (...) Mas há outras cidades, como em “Cemitério”, no qual se descreve povaréu sertanejo com esse nome. O sertão, o lugarejo, a pequena cidade são o palco da maioria dessas histórias. Em composições como “O curral das éguas” e “Negócios de feira” se narram o mundo rural ou das cidades pequenas do Nordeste. A referência a partes desse ambiente, objetos, meios de transporte, etc., é frequente no livro: a porteira grande, a tramela, as montarias. E também o uso de alguns vocábulos e expressões regionais: farnesim, abestalhado, alpendre, coivara, cacimba, caneca, alpercata, dismilinguido, caritó, vixe-Maria!, lamparina a querosene, tamborete de couro cru, etc.

                Ao lado das narrativas ambientadas no espaço rural ou em cidade pequena, de um passado recente, Clauder inventa também dramas para a cidade grande em curtas tragédias urbanas. Em “A rua” se narra a morte de menino pobre por atropelamento, como numa crônica. Os problemas sociais são preocupação do cronista, como se pode ver em “Menina de rua”: “Um vulto de um pequeno ser foi visto a se esgueirar por entre os becos da cidade. Era uma menina”. Uma das mais pungentes crônicas do livro também se volta para esse tipo de problema, sobretudo quando envolve crianças: “Moeda ao chão”.

                O escritor cearense pratica com habilidade certo tipo de conto, o chamado “conto de personagem”. “Identidade” é um deles. Brito se descreve e narra suas peripécias desde a infância até a idade adulta e a morte. “Boné azul” se inicia com a descrição do prédio de um colégio e do seu cotidiano. Após isso, o narrador se refere ao personagem, o menino Frederico. E somente no final o boné azul aparece. Em “Despedida” dois seres fictícios – o velho Xandico e o cachorro Dante – vivem uma história de amizade. “Dona Tarcisa”, com muito humor, é todo voltado para o nome da personagem. “Perneta” é história de pescador, de valentia e amor. “Jesuíno” também se enquadra nesta categoria de conto, em ambiente de seca no sertão.

                São tênues os limites que separam o conto da crônica. Entretanto, é fácil encontrar em Licânia algumas crônicas. Assim se pode ler “O cavaleiro do mar”. Ou “Zeca e os pombos”, em que o próprio narrador se diz cronista. Mas há também alegorias, como “O pó de chinelo”. Ou historinhas que poderiam compor outro tipo de livro, como “A mala”. Ou sátiras da sociedade, do comportamento do homem urbano moderno (“As sandálias da humildade”). Entretanto, bons contos povoam a coleção, como “O grito”, constituído de elipses narrativas. Ou “O riso do cão”, misterioso em sua elaboração, com certo quê de fantástico. Do mesmo naipe é “Samira”, em que a narradora, enlouquecida, relembra fatos da infância e, sobretudo, o estupro de que foi vítima. Também “Sonho de almirante” é inusitado: o amor de dois meninos, a morte de um deles, a velhice do outro.

                Clauder Arcanjo pouco se vale do diálogo na construção dos contos e crônicas. Algumas falas ele as apresenta entre aspas. Outras, precedidas de travessão. Prefere a narração tradicional, sem malabarismos: sujeito, verbo, predicado. Frases curtas, simples. Vocabulário de uso comum. Em razão disso, não se perde em descrições, explicações, informações inúteis, redundantes ou inaceitáveis na prosa de ficção moderna. Ou seja, não cansa nem irrita o leitor.

                                                                       ***
FELIPE BARROSO

                Felipe Barroso nasceu em 1963, na capital cearense. Professor universitário e advogado. Ao publicar o “despretensioso livrinho” O Velho Que Ainda Escrevia Cartas de Amor, premiado no II Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Ceará, Felipe Barroso entrou em 2005 para o clube dos contistas, essa entidade sem fins lucrativos que tanto tem atraído jovens leitores. Desde cedo tem se dedicado a leituras e exercícios literários. Passados quase vinte anos, maduro, Felipe mostra a cara a outros leitores.

                O livro é miúdo, cerca de setenta páginas. São apenas dezoito composições. Quase todas narradas na primeira pessoa: ora personagens menores, ora protagonistas. No primeiro caso, os seres fictícios “descritos” são ridicularizados, caricaturas pintadas com borrões. Sebastião Ragadásio tem “queixo de macaco e cabelo crespo e muito ralo”. Abdoral Malveiras, comendador, “tinha uma deformação na mão”; “de tanto segurar o fuzil durante a guerra, sua mãe adquirira o formato de um cano de fuzil”. Teresa, de “Teresa, a bruxa” (o título diz tudo), mostrava “cara enfezada dos velhos”. O narrador arremata a história assim: “Vai, bruxa da cidade grande, com teus olhos exoftálmicos e pêlos pendentes no queixo, voar sem vassoura, mas em asa de sonho”. (...) “Vai beber uísque bom na tua casa linda lá na zona oeste do céu”. São todas pessoas velhas, muito velhas. A velhice é, para esses narradores, deformação física e mental. Decadência. Nas breves descrições desses velhos, os defeitos são visíveis e fundamentais: Ragadásio lembrava um macaco, além de ter uma perna mecânica; o centenário Abdoral parecia um fuzil andante; Teresa, bruxa moderna, contava mais de noventa anos. A protagonista de “A morte e a duquesa”, aos 88 anos, pediu ao sobrinho médico “uma morte instantânea”, com a ingestão de “um pouquinho de cianeto”. Os cegos de “Aniversário” são um velho e uma velha num restaurante. E, para completar o naipe, a história que dá título ao volume, do septuagenário que foge de casa no dia do seu aniversário.

                Há também crianças e jovens nas composições de Felipe. Como em “Menino e trocador”, em cena ocorrida dentro de ônibus urbano. O narrador demonstra profunda simpatia e ternura pelo garoto e antipatia pelo cobrador do coletivo. Nessa linha do cotidiano na cidade grande, de denúncia de problemas sociais, o contista se aproxima do cronista, como em “Bancos de aluguel”. O protagonista é típico malandro urbano, o que faz de tudo para ganhar dinheiro: engraxate há mais de quinze anos, aluga os bancos da praça aos transeuntes que queiram sentar.

                Crônicas e poemas em prosa também fazem parte do livro: como na linguagem correta e elegante de “Let’s dance”, no satírico “Manifesto urbanista”, no enigmático “A noiva de Bristol”, na suavidade de “Aniversário”, no poético “O homem do mar”. E não falta humor, como em “Número errado”.

                Felipe Barroso sabe conduzir a narração, sem se perder em observações ou explicações, e também maneja com cuidado o diálogo. Nada de falas intermináveis, conversas que se desviam do enredo. Tudo curto, em frases enxutas e sem o uso antiquado dos verbos introdutores do relato do discurso. Mesmo quando dá voz a uma pessoa da ralé, como o engraxate de “Bancos de aluguel”. A fala não é, obviamente, literária, mas o leitor afeito à gramática não se emaranha nas armadilhas do arrazoado do narrador. Em “Manhã na repartição” o expediente (sem trocadilho) usado pelo contista é semelhante ao anterior: após um travessão, vem a fala de Gardênia; outro travessão e nova fala (de personagem sem nome explícito, funcionária da copa), e assim até o final.

                Não nos cabe indagar se Felipe morou ou passou dias em Londres. Entretanto, é possível imaginar uma dessas possibilidades pela leitura de peças como “A noiva de Bristol” e “Aniversário”. Mas há também “Negro fado”, ambientado em Lisboa. Imaginações ou não, os três podem ser catalogados como crônicas, mesmo que há muito se venham esgarçando as definições dos gêneros literários.

                O Ceará não poderia estar ausente, como espaço geográfico, das narrativas de Felipe. Em alguns contos não há nenhuma menção a nomes de cidades, logradouros ou prédios históricos, mas quem conhece Fortaleza percebe por onde se locomovem os personagens.

                Com O Velho Que Ainda Escrevia Cartas de Amor, Felipe Barroso ostenta muita imaginação e conhecimento das técnicas de narrar, para escrever com simplicidade sem incorrer no descuido com as normas gramaticais. Se demorar mais vinte anos para escrever o segundo volume, certamente alcançará degraus mais altos da arte de contar. E seus velhos serão mais velhos ainda.

                                                                       ***
JOAN EDESSOM DE OLIVEIRA

Joan Edessom de Oliveira está presente na segunda coletânea do Prêmio Domingos Olímpio, com “Os Afogados”. Na terceira obteve o primeiro lugar, com “Os Filhos de Aprígio Martins”. Tem recebido diversos prêmios literários. Dedica-se à poesia e ao conto. Tem no prelo o primeiro volume de narrativas curtas, intitulado O Plantador de Borboletas.

                Os contos de Joan Edessom são curtos não porque não tenham enredo e personagens. Se ele se valesse de recursos como o diálogo e o prolongamento narrativo da ação certamente construiria narrativas mais longas. Em “O cavalo cego”, por exemplo, apresenta as personagens assim: “Duas éguas baias, postadas à frente da igreja, revistavam as mulheres que se dirigiam à missa, cobertas pelas mantilhas.” Nenhuma palavra, apenas ação: a revista, o exame nas mulheres. Talvez Joan não tenha encontrado palavras para pôr na boca dos animais. Na frase seguinte há referência a falas: “Cheiravam-nas e levantavam as suas roupas, sem levar em conta os seus protestos.” Como se daria o ato de levantar as roupas das mulheres? O que diziam elas? Entretanto, o contista preferiu deixar para o leitor a liberdade de suprir ou não esses hiatos. Em “Os afogados”, mais curto ainda, três meninos são encontrados mortos na praia e todos são conhecidos, isto é, têm nomes explícitos.

                Pode-se ver em “O cavalo cego” uma alegoria. É possível também encontrar nele o elemento fantástico: equinos ocupam uma pequena cidade e rendem as autoridades e os habitantes. A história nos remete a um tempo fictício em que irracionais sobrepujassem os humanos em inteligência. Não se trata de ideia nova, pois Jonathan Swift, em As viagens de Gulliver, inventou cavalos inteligentes que dominavam antropoides degradados. Mas disso Joan sabe.

                As mortes dos meninos de “Os afogados” poderiam parecer simples acidente e a história seria mais uma de afogamentos no mar. Entretanto, o corpo do primeiro apresenta “cor levemente esverdeada” e no segundo “tinha uns bichinhos minúsculos grudados aos cabelos”. Talvez nada de estranho até aí. Entretanto, um sinal estranho nos corpos dos garotos dá à peça um final fantástico: “Em todos a mesma marca na mão esquerda e as penas que nasciam nos calcanhares”.  

                Apesar do enredo insólito de “O cavalo cego”, o narrador se prendeu a um tempo e espaço reais. Breves descrições ou menções nos remetem a qualquer pequena cidade do Ceará ou do Nordeste de hoje ou mesmo do passado: a igreja, as mantilhas das mulheres, o carteiro, o cabo, os soldados. Já em “Os afogados” há apenas a referência a uma praia e a um ancoradouro, não se podendo vislumbrar em que lugar se dão os afogamentos dos três meninos.

                A despeito do realismo de “Juliana”, é possível vislumbrar-se um quê de estranho nele. Juliana amava um homem (personagem sem nome explícito) com tanta intensidade que a fazia amar “as coisas e as pessoas das quais ele gostava”. Até mesmo Clara. Ou o amor é inexplicável ou a história de Joan Edessom é muito clara. Talvez uma piada.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Acruche Collection - Trova 19


Jangada de Versos do Ceará (8) Nilto Maciel

NILTO MACIEL
Baturité, 1945


DOMADOR

E essa cabeça dura,
teimosa, olhando além do lombo,
esses pés inquietos,
sofridos, pisando em brasa,
esse corpo pesado,
dormente, retorcendo-se na cama.

De que adianta
escancarar a boca,
como porta de igreja,
se dentro a descrença
bate contra o teto,
desassossegado morcego?

 Se não é possível
bordejar de novo
o primeiro gemido,
quando essa palavra torpe
não passava de invenção
de menino-prodígio?

 Calo-me, feito um bode mudo
que não esqueceu de remoer
as próprias vísceras,
teimosas, presas aos dentes.

E mordo o travesseiro
– animal travesso –,
chuto a sombra
– doido varrido –,
aperto a cabeça
para domar essa coisa
que me atravessa a vida
como a ferrugem da faca.

INSÔNIA

Foge, demônio secular, maldito,
deixa dormir serenamente e só
este menino de ilusões refeito,
deixa-o sonhar seus anjos coloridos.

 Pela janela deste quarto foge,
invade a noite e seu silêncio breve,
e esquece este menino sonhador,
que se deitou para sonhar comigo.

 Arreda, pois este inocente ser
feito de fantasia é bem capaz
de te domar, de te fazer dormir.

 É bem capaz de transformar-te, e já,
num anjo bom, numa mulher, talvez,
e se perder contigo em sonhos maus.

IMAGENS

Eu olhava para a Lua
e via São Jorge
e um dragão em luta.
Faz tanto tempo aquilo
que ate penso
ser nova a lua de agora.

Olho de novo para o céu.
Há nuvens, muitas nuvens,
como se fosse desabar
uma tempestade.
E faz frio, muito frio,
ao meu redor.

 É como se a lua fosse
uma imagem
dentro de outra imagem.
E eu a imagem
da grande imagem
de mim mesmo.

CONTEMPLAÇÃO

Para além daquelas escuridões,
cobras destilam veneno
e se entre-devoram.
Horror!!!

 A beira do precipício,
sondo-me.
Eu, o mais próximo de mim,
pouco me vejo,
tão insondável me sinto..

 O meu abismo sou.

O TEMPO

Não passa o tempo lento
que a gente nunca vê.
É como o vasto vento
que passa na tevê.

 Frio cedo fazia,
faz agora calor.
Antes tudo doía,
já nem me dói a dor.

 Tempos idos sonhei,
ninguém me viu sonhar.
Hoje, que me acordei,
não sei como acordar.

 Faz anos fui nascer.
Ninguém me percebeu.
O destino a não ser,
e eu mesmo, apenas eu.

 O tempo corre, corre,
e desce, sobe, desce,
e, enquanto a gente morre,
ele desaparece.

INDEFINIÇÃO

O homem não é sua sombra
por mais que assim queira a luz.
Nem o cachorro sarnento
é sua pálida sombra.
Nem a mais cálida árvore
é sua sombra soberba.

 Não são os contornos do homem
a sua essência, sua alma,
e muito menos seu todo.
Há, entre a luz penetrante
e a rarefeita e delgada
sombra estendida, o cachorro,
a imóvel árvore presa,
há o homem livre e liberto.

 Há no princípio luz-alfa,
como há no fim sombra-ômega.
A própria morte talvez,
ou sua véspera vil.
E aquele homem mortal
antes da sombra dá luz.

ALMA

Ó meus amigos
que rimos e choramos solidários:
noss'alma triste não vale a tristeza,
nem a alegria que trazemos nela.

 Noss’alma não vai além da vida,
por mais que dure a inocência
ou a dor de ser mortal, de carne feito.

Nossa pequenina alma
não cabe sequer dentro da lágrima
ou do brilho dos olhos de quem ri.

 Nossa alma, meus amigos,
é o desespero vão
de não podermos rir do próprio fim.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Navegador: poemas. Brasília: Editora, 1996.