quinta-feira, 13 de março de 2014

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) III


Teddy levou-a para o quarto, à hora de dormir, e teimou em fazê-la deitar-se junto ao seu peito. Rikki-tikki resignou-se, mas logo que o menino caiu no sono saltou dali para rondar a casa. No escuro que fazia deu de encontro com Chuchundra, o rato mosqueado, que, como sempre, se ia esgueirando rente à parede.

Chuchundra é um animalzinho triste, que choraminga toda noite, experimentando ganhar coragem para correr pelo meio dos quartos sem jamais o conseguir.

- Não me mate ! exclamou Chuchundra quase em lágrimas.

- Julgas por acaso que um matador de serpentes persiga ratos mosqueados? - respondeu Rikki com desprezo.

- Os que matam serpentes serão por ela mortos - disse Chuchundra sempre choroso. - E como estarei seguro de que Nag não me tome por você durante alguma noite escura ?

- Não há o menor perigo, respondeu Rikki-tikki, porque Nag mora no jardim e você não anda por lá.

- Meu primo Chua, o rato, contou-me que... - ia dizendo Chuchundra, mas interrompeu-se.

- Que contou ele ?

- Caluda! Nag anda por toda parte, Rikki. Você devia conversar com Chua, no jardim.

- Não o conheço. Conte logo o que ele disse. E depressa, Chuchundra, que se não...

Chuchundra sentou-se e duas lágrimas lhe rolaram pelos bigodes.

- Sou um coitadinho, soluçou ele, que nunca teve coragem de correr pelo meio dos quartos... Caluda! Não é preciso que eu fale. Não está ouvindo nada, Rikki?

Rikki-tikki pôs-se à escuta. A casa estava imersa no maior silencio, mas mesmo assim pareceu-lhe ouvir um imperceptível "crá-crá...", um leve rumor como de abelha caminhando sobre vidro de vidraça ... um esfregar seco de escamas sobre o tijolo.

- É Nag, ou a esposa de Nag, que para cá vem vindo pelo cano d'água do banheiro, murmurou a mangusta. Você tem razão, Chuchundra. Eu devia ter conversado com Chua.

Disse e dirigiu-se, cautelosa, para a sala de banho de Teddy, onde nada encontrou; de lá encaminhou-se para a sala de banho da mãe de Teddy. Viu logo no rodapé da parede urna abertura para o escoamento da água, através da qual pode ouvir a conversa de Nag e Nagaína lá fora, no
jardim. Dizia Nagaína:

- Quando a casa ficar vazia ela terá de mudar-se daqui - e nós então ficaremos de posse do jardim. Entre devagar e não se esqueça de que o homem que matou Karait é a pessoa que deve ser mordida em primeiro lugar. Depois venha contar-me como a coisa foi e combinaremos o modo de atacar Rikkitikki.

- Mas está você certa de que teremos alguma coisa a ganhar matando tanta gente? - indagou Nag.

- Teremos tudo a ganhar. Havia mangusta no jardim quando a casa esteve desabitada? Se a casa ficar novamente vazia voltaremos a ser os donos do jardim - e não se esqueça de que logo que os nossos ovos, no canteiro dos melões, terminem o choco (será talvez amanhã), as cobrinhas vão ter necessidade de espaço e sossego.

- Não pensei nisso, observou Nag. Vou iniciar o ataque, mas acho inútil dar caça a Rikki-tikki logo em seguida. Matarei o homem, a mulher e, caso possa, também o menino; depois voltarei tranqüilamente. Vendo a casa vazia, Rikkitikki muda-se logo.

Rikki-tikki estremeceu do focinho a cauda, de raiva, ao ouvir tal conversa. Logo em seguida a cabeça de Nag surgiu na abertura, seguida de metro e meio de corpo escamoso e frio. Apesar de furiosa, Rikki-tikki não deixou de amedrontar-se diante do tamanho da serpente. Nag ergueu a cabeça e olhou para dentro do banheiro, então no escuro. Rikki viu seus olhos brilharem.

- Se a mato aqui, refletiu a mangusta, Nagaína virá a saber; e se para atacá-la eu espero que Nag saia do buraco, as vantagens ficam do lado dele. Que fazer?

Nag saiu do buraco e coleou pelo assoalho; Rikki ouvia-o beber num jarro bojudo de encher a banheira.

- Está bem, disse a cobra. Quando Karait foi morta, o homem tinha na mão um pau. Ele pode ter ainda esse pau, mas se vier ao banho pela manhã certo que não o trará consigo. Esperarei por esse momento. Está-me ouvindo, Nagaína? Vou esperar aqui até pela manhã.

Não veio nenhuma resposta de fora, o que fez crer à mangusta que a outra cobra já se tinha ido. Nag enrodilhou-se no jarro e Rikki permaneceu imóvel, como morta.

Ao cabo de uma hora, porém, começou a mover-se lentamente na direção do jarro. Viu que Nag estava adormecida; pôde correr os olhos pelo seu longo dorso a fim de estudar em que ponto morder.

- Se não lhe quebro a espinha do primeiro bote, pensou ela, Nag poderá ainda lutar - e se Nag luta, ai de Rikki!...

Considerou depois a espessura do pescoço da cobra logo abaixo do capelo e achou muito para sua boca; mas uma mordida mais para perto da cauda só serviria para tornar a serpente ainda mais furiosa.

- É preciso ser na cabeça, resolveu-se por fim; na cabeça, bem rente ao capelo; e, quando a agarrar, tenho de ficar agarrada, haja o que houver.

Deu o bote. A cabeça da cobra jazia um tanto afastada do jarro, bem sob a curva da asa; logo que seus dentes ferraram, Rikki encostou o cangote de encontro ao rebojo da vasilha, a fim de melhor manter a cabeça junto ao chão. Isso lhe deu melhor jeito. Mas foi sacudida da direita para a
esquerda e da esquerda para a direita, como rato seguro em boca de cão - e para diante e para trás, e para cima e para baixo, e em círculos largos e curtos. A mangusta, porém, que estava os olhos bem rubros, manteve-se firme, enquanto a cauda da serpente chicoteava às tontas, derrubando saboneteiras e escovas, e ressoando surda de
encontro ao metal da banheira. Sempre firme, a mangusta apertava os dentes cada vez mais, pois que, certa como estava de ser batida na luta, queria ao menos, para honra da raça, que a encontrassem de dentes cerrados. Sentia-se já completamente tonta, moída de golpes, como prestes a desfazer-se em pedaços, quando algo atrás dela estrondou
horrível, e uma fulguração quente a pôs sem sentidos, com a pelagem tostada.

Desperto pelo barulho, o pai de Teddy havia pulado da cama e viera disparar a sua espingarda de dois canos bem sobre o capelo da cobra.

Rikki-tikki, de olhos fechados, continuava de dentes cerrados, convencida de que estava morta e bem morta; mesmo assim percebeu que a cabeça da cobra não mais se mexia e que o homem a levantava do chão, dizendo:

- A mangusta outra vez, Alice; acaba de salvar as nossas vidas, esta amiguinha...

A mãe de Teddy acudiu, muito pálida, e contemplou os restos mortais de Nag, enquanto Rikki-tikki se arrastava para o quarto do menino, onde passou o resto da noite a estudar-se cuidadosamente, a ver se realmente estava partida em vinte pedaços, como supunha.

Ao romper da manhã mostrava-se muito satisfeita com a sua façanha.

- Tenho agora de justar contas com Nagaína, que é pior que cinco Nags; e há ainda os ovos que estão em fim de choco. Ai, ai, ai! Preciso ver Darzee...

Sem esperar pelo almoço, correu para o espinheiro, onde encontrou Darzee entoando um canto de triunfo no tom mais alto possível. A notícia da morte de Nag já havia dado volta ao jardim, depois que um criado lançou o cadáver da cobra à estrumeira.

- Ó estúpido chumaço de penas! exclamou Rikki-tikki encolerizada. É então tempo de cantar?

- Nag morreu - morreu - morreu! cantava Darzee. A corajosa Rikki-tikki agarrou-a pela cabeça e não largou mais. O homem veio com o canudo comprido que faz pum! e Nag foi partida em dois pedaços! Nunca mais nos comerá os filhotes...

- Tudo isso é verdade, mas onde está Nagaína? - indagou Rikki-tikki, olhando cautelosa para os lados.

- Nagaína chegou até a boca do esgoto do banheiro para chamar Nag - disse Darzee, mas Nag saiu na ponta dum pau, pendurada, e foi dormir no monturo. Cantemos louvores à grande mangusta de olho vermelho!

E Darzee estufou o papo e cantou...

- Se eu pudesse alcançar esse ninho, dava com os filhotes no chão! - gritou a mangusta. Vocês não sabem fazer nada a seu tempo. Aí no ninho estão os dois bem seguros, mas cá embaixo tudo me cheira a guerra e perigos. Pare um minuto com essa cantoria, Darzee!

- Pelo amor da grande, da bela, da heróica mangusta, vou calar-me - respondeu Darzee. Que é que teme a matadora da terrível Nag?

- Temos Nagaína. Onde anda ela?

- No monturo, perto da cocheira, chorando a morte do marido. Viva Rikki-tikki, a gloriosa heroína dos dentes brancosl

- Para o diabo meus dentes brancos! Não sabe você por acaso onde Nagaína guarda seus ovos?

- Sei, sim. Estão no canteiro dos melões, no lugar onde o sol bate o dia inteiro. Faz já muito tempo que ela os escondeu lá.

- E só agora lembra-se você de contar-me isso ? Perto do muro, não é?

- Será que Rikki-tikki quer comer os ovos da cobra?

- Comer, propriamente, não, Darzee. Venha cá. Se você tiver um grão de juízo na cabecinha, vai já à estrumeira, fingindo estar de asa quebrada, para que Nagaína o persiga até àquela moita. Tenho de ir ao canteiro dos melões, mas sem que Nagaína me veja.
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continua

Adélia Prado (Bagagem)

O livro Bagagem, foi a primeira publicação de Adélia Prado, de 1976, por indicação de Carlos Drummond de Andrade. Declaração da autora sobre a obra: "Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”.
Em seu poema "Fluência", ela relatou a sensação da estreia: "O meu alívio foi constatar que depois da festa o mundo continuava igual e a perplexidade que gerou Bagagem continuava intacta. Foi ver que a poesia não desertara de mim".

Do ponto de vista estilístico, destaca-se a combinação dos contrários, como tristeza e alegria, tanto quanto do lirismo e da ironia. Bagagem chamou a atenção da crítica pelo jeito diferente que a autora tem de dizer as coisas que sente e vê.

Em Bagagem, os poemas são distribuídos em quatro grandes seções. Essas seções se configuram segundo um variado mapa existencial, que se divide entre as coordenadas da “poesia”, do “amor” e da “memória”, além daquela “alfândega”, de sentido mais escorregadio mas nem por isso menos sugestivo (pensemos num contraponto com o título do livro). O cotidiano é, sumariamente descrito, o espaço próprio das vivências imediatas, recebendo frequentemente a carga do trivial, que é a polaridade “terrena” das ofegantes aspirações ao sublime:

CONFEITO
Quero comer bolo de noiva,
puro açúcar, puro amor carnal
disfarçado de corações e sininhos:
um branco, outro cor-de-rosa,
um branco, outro cor-de-rosa.

É a poesia do cotidiano, não do grandiloquente. Claro que muitos escritores brasileiros já tinham praticado ou pregado a poetização do cotidiano antes dela - dos modernistas a Mário Quintana-, mas em Adélia Prado a transformação do ordinário em extraordinário é soberba, não fosse esse um adjetivo que ela abominaria. A notar, ainda, a sensualidade que ela empresta à religiosidade.

A questão do feminino surge na poesia adeliana no modo como ela dá a ler um conjunto de práticas culturalmente marcado, de modo que o sujeito lírico ora com ele se identifica, ora dele se afasta, num movimento pendular entre a tradição e a ruptura, o diálogo com os poetas masculinos e a explicitação de sua diferença, de que o poema "Com licença poética", que inicia Bagagem, é exemplar.

Nota: O poema "Com licença poética" parafraseia o "Poema de Sete Faces", de Drummond:
Poema de Sete Faces
Quando nasci,
um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai Carlos!
ser “gauche” na vida.
(C. Drummond de Andrade)

Vejamos então, a análise de alguns poemas que fazem parte da obra Bagagem.

1. COM LICENÇA POÉTICA
(Análise feita por Jaqueline Alice Cappellari, do curso de Letras das Faculdades Porto-Alegrenses de Educação, Ciências e Letras, orientada pela Profª Diana Maria Marchi.)

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Comentários: Os primeiros poemas de Adélia Prado, publicados em Bagagem, procuram exatamente isso: definir a imagem da poeta. Em "Com licença poética", ela assume sua sina de mulher-poeta ao passo em que se apresenta de forma simples e grandiosa ao mesmo tempo; sem deixar de explicitar suas antíteses, ou seja, as contradições do universo feminino, bem como suas diferenças diante do universo masculino.
Já no primeiro verso, é explícita a paródia a Carlos Drummond de Andrade, como já vimos, na qual a poeta deixa, a princípio, claro sua diferenciação. Em vez de um anjo coxo, conforme o conhecido poema drummondiano, trata-se de um anjo esbelto que anuncia o nascimento do eu-lírico de "Com licença poética".

Mais adiante, no terceiro, quarto e quinto versos, a poeta admite que ser mulher-poeta é uma tarefa árdua, visto que, carregar Manuel Bandeira, isto é, o peso de fazer poesia diante da existência de um poeta grandioso como Manuel Bandeira, realmente não seria fácil.

No quinto verso, quando o eu-lírico de "Com licença poética" define a mulher como “esta espécie ainda envergonhada”, podemos deduzir que a mulher é uma “espécie” ainda tímida, com resquícios da criação sob os preceitos católicos citados anteriormente, ou seja, que carrega uma “culpa”, não reconhecendo seu verdadeiro potencial, que lhe permite engendrar homens e fazer poesia.

Em relação ao sexto e ao sétimo verso, percebe-se que a poeta se mostra conformada com sua condição, isto é, aceita os pretextos que, ao longo dos anos, foram dados à mulher (mãe, dona de casa, esposa), pois ela não precisa mentir, é desdobrável, é aquilo que é.

Em seguida, nos próximos versos, a poeta enumera, de forma simples, algumas características da mulher que é, abordando questões sempre tão ligadas ao sexo feminino: medo de não conseguir casar, do parto. Sem rodeios, ela revela sua forma de fazer poesia: escreve o que sente. E isso é tido por ela como uma sina, faz parte de seu destino.

Assim, fica claro que se trata de uma mulher que cumpre a sina há tempos a ela destinada: casar, parir os filhos, cuidar da casa. E escreve. Enfim, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma “nova mulher”, que se define, que se encontra e que tem consciência de, conforme o décimo segundo verso, inaugurar uma linguagem, fundar reinos.

Dessa maneira, ela planta sua semente através da poesia, fundando reinos que irão resultar na literatura feminina amadurecida dos tempos atuais. Reinos infinitos, que se ampliam de acordo com as conquistas da mulher nesta sociedade ainda tão desigual.

Entretanto, o eu-lírico declara que a dor não é amargura; e isso é dito entre parênteses, como um adendo, para que não seja esquecido. Sim, a mulher já sofreu muito, e ainda sofre, porém essa dor não se transformou em amargura, mas em crescimento, em poesia.

Conforme o décimo quarto verso, sua tristeza não tem linhagem, é comum e, assim, identifica-se com o coletivo. Contudo, seu desejo, sua disposição e sua determinação em busca da satisfação são características seculares, próprias da mulher. Para concluir, a poeta retoma a referência a Drummond; no entanto, mais uma vez, o utiliza como sua antítese. Dessa forma, permanece a idéia da superioridade feminina, visto que “ser coxo na vida é maldição pra homem. A mulher é desdobrável”, flexível, isto é, não aceita um destino defeituoso para o qual o homem sempre tentou persuadi-la. Enfim, ela é mulher.

2. GRANDE DESEJO
(Análise feita por Jaqueline Alice Cappellari, do curso de Letras das Faculdades Porto-Alegrenses de Educação, Ciências e Letras, orientada pela Profª Diana Maria Marchi.)

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai.
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

A autora inicia dizendo que é uma mulher comum, do povo, mãe. Desse modo, observa-se a rima provocada pelo contraste dos nomes "Cornélia" e "Adélia", assim como o contraste de significado que esses dois nomes representam. Ela declara-se uma mulher simples por meio da enumeração de atos corriqueiros, banais, tais como fazer comida e bater o osso no prato pra chamar cachorro.

No sexto verso, para que ocorra uma aproximação ainda maior com o coletivo, Adélia diz que “quando dói” grita “ai”, pois não se trata de uma mulher revolucionária, que reprime sua dor em busca de determinado ideal, mas sim uma mulher que constitui sua força com base na sinceridade consigo mesma. Sendo assim, suas sensibilidades não têm governo. Ela se aceita tal como é, com seus momentos de dor e de irracionalidade.

O eu-lírico continua sua apresentação e, no décimo segundo verso, notamos sua religiosidade, outra constante na obra de Adélia Prado, como se a poeta fosse um enviado de Deus que cumpre a sina escrevendo aquilo que sente. Sua poesia está tão ligada à religião que, quando escrever seu livro, irá a uma igreja, talvez para batizá-lo; a uma lápide, a um descampado, talvez para agradecer. Então, nesse instante, a sensibilidade da poeta virá à tona e ela irá chorar, transformando-se numa dama requintada, pois tem um livro com seu nome; porém esquisita, já que é diferente, possui um destino que sabe qual é. Adélia é uma mulher do povo, e sua poesia não está vinculada nem possui fundo político, mesmo numa época em que as feministas estavam em plena atividade com seus discursos de emancipação.

A apresentação pessoal, no poema "Grande desejo", coloca-se com clareza: não se trata de uma mulher excepcional, revolucionária (leia-se, nem no nível ideológico, nem no nível estético), como Cornélia, a mãe dos irmãos Tibério e Caio, que propuseram a primeira lei da reforma agrária em Roma, e que, por isso mesmo foram condenados à morte, sendo valentemente defendidos pela mãe. Identifica-se apenas como Adélia, mas é uma mulher que rima, uma mulher do povo, e mulher de forno e fogão, que cuida de cachorro e grita quando algo lhe dói, mas tem a sensibilidade para as coisas boas da vida. Ao mesmo tempo, desenha-se requintada e esquisita, isso depois que já tiver composto um livro com seu nome – imagina-se, o próprio livro que o leitor tem naquele momento em mãos. Dessa maneira, vemos que a significação da mulher é uma das características fundamentais da obra de Adélia Prado.

3. A INVENÇÃO DE UM MODO
Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.

No poema "A invenção de um modo", o eu-lírico lança os fundamentos da nova estética em gestação, a qual se caracteriza pela busca do equilíbrio entre pólos opostos. Nada de extremismos – ou isto ou aquilo –, mas há o desejo da busca de unidade, de conjugação e intersecção: “entre paciência e fama quero as duas”, ou seja, isto e aquilo.

4. ENREDO PARA UM TEMA
(Análise feita por Angélica Soares, Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Letras da UFRJ)

Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.

O poema é uma referência poética ao anti-ecológico silenciamento das mulheres, onde, pelo refazer irônico do autoritarismo da supremacia masculina desvendam-se exigências coercitivas hierarquizantes imputadas, desde sempre, à mulher, em uma sociedade androcêntrica.

Aí, o emprego do discurso direto, que reconstrói na íntegra, a fala do pai, do apaixonado candidato a marido da filha e de D. Cristóvão parece garantir o caráter memorialístico do poema, na medida em que atenua a subjetividade lírica dos versos. O impacto entre a fantasia da filha e a ironia do pai e de D. Cristóvão (representantes máximos, nesse texto, do poder patriarcal) concorre para intensificar o sentido do silêncio feminino diante da lei. O calar-se, como parte da submissão, que se liga às idéias de fragilidade, passividade e dependência da mulher, espelha, nos versos, a oposição binária entre o feminino e o masculino construída. "Enredo para um tema" testemunha, literariamente, essa opressão.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/bagagem

quarta-feira, 12 de março de 2014

Machado de Assis (Médico é remédio)

Em que diabo conversam estas duas moças metidas na alcova? Conversam do Miranda, um rapaz engenheiro, que vai casar com uma amiga delas. Este Miranda é um noivo como qualquer outro, e não inventou o quadrado da hipotenusa; é bonito, mas não é um Apolo. Também não é rico. Tem mocidade, alguma instrução e um bom emprego. São vantagens, mas não explicam que as duas moças se fechem na alcova para falar dele, e muito menos que uma delas, a Julieta, chore às bandeiras despregadas.

Para compreender ambas as coisas, e principalmente a segunda, é preciso saber que o nosso Miranda e Julieta amaram-se algum tempo. Pode ser mesmo que ele não a amasse; ela é que com certeza morria por ele. Trocaram muitas cartas, as dele um pouco secas como um problema, as dela enfeitadas de todos os retalhos de frases que lhe lembravam dos romances. Creio mesmo que juraram entre si um amor eterno, não limitado à existência do sol, no máximo, mas eterno, eterno como o próprio amor. Vai então o miserável, aproveita-se da intimidade de Julieta com Malvina, namora a Malvina e pede-a em casamento. O que ainda agrava este fato é que Malvina não tinha melhor amiga que Julieta; andaram no colégio, eram da mesma idade e trocavam as suas mais íntimas confidências. Um dia Julieta notou certa frieza na outra, escassez de visitas, poucas cartas; e tão pouco advertiu na causa que, achando também alguma diferença no Miranda, confiou à amiga as suas tristezas amorosas. Não tardou, porém, que a verdade aparecesse. Julieta disse à amiga coisas duras, nomes feios, que a outra ouviu com a placidez que dá a vitória, e perdoou com magnanimidade. Não é Otávio o demente, é Augusto.

Casam na quarta-feira próxima. O pai da noiva, amigo do pai de Julieta, mandou-lhe um convite. O ponto especial da consulta de Julieta a esta outra amiga Maria Leocádia, é se ela deve confessar tudo à mãe para que não a leve ao casamento. Maria Leocádia reflete.

— Não, respondeu ela finalmente: acho que você não deve dizer nada. Estas coisas não se dizem; e, demais, sua mãe não fará caso, e você tem sempre de ir...

— Não vou, não vou... Só amarrada!

— Ora, Julieta; deixa disso. Você não indo, dá um gosto a ela. Eu, no caso de você, ia; assistia a tudo, muito quietinha, como se não fosse nada.

— Velhaca! falsa! interrompia-se Julieta, dirigindo-se mentalmente à outra.

Maria Leocádia confessou que era uma perfídia, e, para ajudar a consolação, disse que o noivo não valia nada, ou muito pouco. Mas a ferida era recente, o amor subsistia e Julieta desatou a chorar. A amiga abraçou-a muito, beijou-a, murmurou-lhe ao ouvido as palavras mais cordiais; falou-lhe ao brio. Julieta enxugou as lágrimas; daí a pouco saía de carro, ao lado da mãe, com quem viera visitar a família da amiga.

O que aí fica passa-se no Rio de Janeiro, onde residem todas as pessoas que figuram no episódio. Há mesmo uma circunstância curiosa: — o pai de Julieta é um oficial de marinha, o de Malvina outro, e o de Maria Leocádia outro. Este último sucumbiu na guerra do Paraguai.

A indiscrição era o pecado venial de Maria Leocádia. Tão depressa falou com o namorado dela, o bacharel José Augusto, como lhe referiu tudo o que se passara. Estava indignada; mas o José Augusto, filósofo e pacato, achou que não era caso de indignação.

Concordava que a outra chorasse; mas tudo passa, e eles ainda teriam de assistir ao casamento de Julieta.

— Também o que faltava era ela ficar solteira toda a vida, replicou Maria Leocádia.

— Logo...

Cinco minutos depois, metiam o assunto na algibeira, e falavam de si mesmos. Ninguém ignora que os assuntos mais interessantes derrubam os que o são menos; foi o que aconteceu aos dois namorados.

Na rua, porém, José Augusto tornou a pensar na amiga da namorada, e achou que era naturalmente triste a situação. Considerou que Julieta não era bonita, nem rica; tinha uma certa graça e algumas prendas; mas os noivos não andavam a rodo, e a pobrezinha ia entrar em nova campanha. Neste ponto da reflexão, sentiu que estava com fome. Tomara apenas uma xícara de chá, e foi comer. Mal se sentou aparece-lhe um colega de academia, formado dois anos, que esperava por dias uma nomeação de juiz municipal para o interior. José Augusto fê-lo sentar; depois, olhou para ele, e, como ferido de uma ideia súbita, desfechou-lhe esta pergunta:

— Marcos, tu queres uma noiva?

Marcos respondeu que preferia um bife sangrento. Estava com fome... Veio o bife, veio pão, vinho, chá, anedotas, pilhérias, até que o José Augusto perguntou-lhe se conhecia Julieta ou a família.

— Nem uma nem outra.

— Hás de gostar dela; é interessantíssima.

— Mas que interesse...?

— Sou amigo da família.

— Pois casa-te.

— Não posso, retorquiu José Augusto rindo; tenho outras ideias, atirei o lenço a outra odalisca... Mas, sério; lembrei-me hoje de ti a propósito dela. Crê que era um bom casamento.

— Tem alguma coisa?

— Não, não tem; mas é só o que lhe falta. Simpática, bem-educada, inteligente, muito meiga; uma excelente criatura... Não te peço que te obrigues a nada; se não gostares ou tiveres outras ideias, acabou-se. Para começar vai sábado a um casamento.

— Não posso, tenho outro.

— De quem?

— Do Miranda.

— Mas é o mesmo casamento. Conheces a noiva?

— Não; só conheço o Miranda.

— Pois muito bem; lá verás a tua.

Chegou o sábado. O céu trouxe duas cores: uma azul para Malvina, outra feia e horrenda para Julieta. Imagine-se com que dor se vestiu esta, que lágrimas lhe não arrancou a obrigação de ir assistir à felicidade da outra. Duas ou três vezes, esteve para dizer que não ia, ou simplesmente adoecer. Afinal, resolveu ir e mostrar-se forte. O conselho de Maria Leocádia era o mais sensato.

Ao mesmo tempo, o bacharel Marcos dizia consigo, atando a gravata ao espelho:

— Que interesse tem o José Augusto de me fazer casar, e logo com a tal moça que não conheço? Esquisito, realmente... Se, ao menos, fosse alguma coisa que merecesse e pudesse...

Enfiou o colete, e continuou:

— Enfim, veremos. Às vezes estas coisas nascem assim, quando menos se espera... Está feito; não me custa dizer-lhe algumas palavrinhas amáveis... Terá o nariz torto?

Na véspera, o José Augusto dizia a Maria Leocádia:

— Queria guardar o segredo, mas já agora digo tudo. Ando vendo se arranjo um noivo
para Julieta.

— Sim?

— É verdade; já dei uns toques. Creio que a coisa pode fazer-se.

— Quem é?

— Segredo.

— Segredo comigo?

— Está bom, mas não passe daqui; é um amigo, o bacharel Marcos, um bonito rapaz. Não diga nada a Julieta; é muito orgulhosa, pode recusar, se entender que lhe estamos
fazendo algum favor.

Maria Leocádia prometeu que seria muda como um peixe; mas, sem dúvida, há peixes que falam, porque tão depressa entrou no salão e viu Julieta, perguntou-lhe se conhecia um bacharel Marcos, assim e assim...Julieta respondeu que não, e a amiga sorriu. Por que é que sorria? Por um motivo singular, explicou ela, porque alguma coisa lhe dizia que ele podia e viria a ser a consolação e a desforra.

Julieta estava linda e triste, e a tristeza era o que mais lhe realçava as graças naturais. Ela tratava de dominá-la, e conseguia-o às vezes; mas nem disfarçava tanto, que se não conhecesse por baixo da crosta alegre uma camada de melancolia, nem por tanto tempo que não caísse de espaço a espaço no mais profundo abatimento.

Isto mesmo, por outra forma, e com algumas precauções oratórias, lhe foi dito por José
Augusto, ao pedir-lhe uma quadrilha, durante a quadrilha e depois da quadrilha. Começou por lhe declarar francamente que estava linda, lindíssima. Julieta sorriu; o elogio fez-lhe bem. José Augusto, sempre filósofo e pacato, foi além e confessou-lhe em segredo que achava a noiva ridícula.

— Não é verdade? disse vivamente Julieta.

E depois, emendando a mão:

— Está acanhada.

— Não, não; ridícula é que ela está! Todas as noivas ficam bem. Olhe a cintura do vestido: está mais levantada de um lado que de outro...

— O senhor é muito reparador, disse Julieta sorrindo.

Evidentemente, estava gloriosa. Ouvia proclamar-se bela, e a noiva ridícula. Duas vitórias enormes. E o José Augusto não disse aquilo para cumprimentá-la. Pode ser que carregasse a mão no juízo que fez da noiva; mas em relação a Julieta disse a verdade, tal qual a sentia, e continuava a sentir fitando os lindos olhos da abandonada. Daí a pouco apresentou-lhe o Marcos, que lhe pediu uma valsa.

Julieta lembrou-se do que lhe dissera Maria Leocádia a respeito deste Marcos, e, posto não o achasse mau, não o achou tão especialmente belo que merecesse o papel que a amiga lhe atribuiu. Marcos, ao contrário, achou-a divina. Acabada a valsa, foi ter com José Augusto, entusiasmado.

— Realmente, disse ele, a tua recomendada é uma sílfide.

— Ainda bem. Bonita, não?

— Lindíssima, graciosa, elegante, e conversando muito bem.

— Já vês que te não enganei.

— Não; e, realmente, é pena.

— O quê?

— É pena que eu não ouse.

— Que não ouses? Mas, ousa, peralta. O que é que te impede de ousar?

— Ajudas-me?

— Se eu mesmo te propus!

José Augusto ainda nessa noite falou a Julieta acerca do amigo, louvou-lhe as qualidades sólidas e brilhantes, disse-lhe que tinha um grande futuro. Também falou a Maria Leocádia; contou-lhe o entusiasmo do Marcos, e a possibilidade de fazê-lo aceitar pela outra; pediu-lhe o auxílio. Que ela trabalhasse e ele, e tudo se arranjaria. Conseguiu ainda dançar uma vez com Julieta, e falou-lhe da conveniência de casar. Há de haver algum coração nesta sala, reflexionou ele, que sangre muito de amor.

— Por que não diz isso com mais simplicidade? redarguiu ela sorrindo.

A verdade é que Julieta estava irritada com o trabalho empregado em fazê-la aceitar um noivo, naquela ocasião, principalmente, em que era obrigada a fazer cortejo à felicidade da outra. Não falei desta nem do noivo; para quê? Valem como antecedentes da ação.

Mas que sejam bonitos ou feios, que estejam ou não felizes, é o que não importa. O que importa unicamente é o que vai suceder com a rival vencida. Esta retirou-se para casa aborrecida, abatida, dizendo mentalmente as coisas mais duras à outra; até a madrugada não pôde dormir. Afinal, passou por uma breve madorna, acordou nervosa e com sono.

— Que mulherzinha! pensava o José Augusto indo para casa. Embatucou-me com as  tais palavras: — Por que não diz isso com mais simplicidade? Foi um epigrama fino, e inesperado. E o ladrão estava bonita! Realmente, quem é que deixa a Julieta para escolher a Malvina! A Malvina é uma massa de carne, sem feitio...

Maria Leocádia tomou a peito o casamento da amiga e José Augusto também. Julieta não dava esperanças; e, coisa singular, era menos expressiva com a amiga do que o namorado desta. Tinha vergonha de falar com a outra em tais matérias. Por outro lado, a linguagem de José Augusto era mais própria a fazer-lhe nascer o amor, que ela sinceramente desejava sentir pelo Marcos. Não queria casar sem amor. José Augusto, posto que filósofo e pacato, adoçava as suas reflexões de uma certa cor íntima; além  disso, dava-lhes o prestígio do sexo. Julieta chegou a pedir-lhe perdão da resposta que lhe dera no dia das bodas de Malvina.

— Confesso, disse ela, que o amor não pode falar com simplicidade.

José Augusto concordou com esse parecer; e ambos entraram por uma tal floresta de estilo, que se perderam inteiramente. Ao cabo de muitos dias, foram achar-se à porta de uma caverna, de onde saiu um dragão azul, que os tomou e voou com eles pelos ares fora até à porta da matriz do Sacramento. Ninguém ignora o que estes dragões vão fazer às igrejas. Maria Leocádia teve de repetir contra Julieta tudo o que esta disse de Malvina.

Plagiária!

Publicado originalmente em A Estação 1883

Fonte:
Portal Domínio Público

Débora Novaes de Castro (Livro de Poemas)

MARIAS
 

Ó Maria,
cheia de graça,
não a divina, mas
Maria, da praça.

De tardezinha,
faces rosadas,
Marias na praça.

Maria, Maria,
não Santa Maria,
mas a doce Maria
tão rica de encantos,
nos volteios
da praça!

FRUTA-PÃO

Fruta, cipó,
índio, tacape,
pajé, pajelança,
oca, maloca,
milho... biju...
mandioca...

fogo, tição,
verde da folha,
tanga sem canga,
ponta de flecha,
indio que pesca
peixes com
lança...

caça, cocar
tupi-guarani,
mata, machado,
serra que mata,
menino acuado,
água... cipó...
fruta-pão?

MENINA DE TRANÇAS...
(Hom. ao Dia da Mulher)

Menina formosa,
dize teu nome:
Maria, Rosa, Isabela,
Ana, Rosani, Mariana...
mas dize-o agora,
menina feitiço
dos laços e fitas,
Dináura, Soraya,
Daniella?

Menina de tranças,
menina dengosa,
dize teu nome:
Delma, Ana Paula,
Neusa, Taís, Manuela,
 dize-o depressa
que o tempo tem pressa
e enreda teus sonhos,
sonhos de amor.

Menina de agora,
amanhã flor donzela,
se por capricho
ou mimos de flor
não dizes teu nome
de flor batizada,
na natureza,
teu nome é
M u l h e r!

SETEMBRO...

Quando Setembro vier,
em sua nave colorida
e perfumada,

serei mais espanto que luz,
mais esperança que o verde,
mais doce que o mel,
mais feliz que o rosal,

verei, deslumbrada,
os vitrais da catedral

e, de asas quebradas,
verei a Primavera partir
para recompor, noutros ares,
nova orquestração
de amores!

PREÇO DO SONHO

Se sonho
fosse mercadoria,
talvez se procedesse
assim:

Hei, você.
Quanto custa o sonho?

Não custa nada.
Pode sonhar.
mas não esqueça
a conta...

sonhos,
não custam nada.
O que se paga
é consultar.

SIGNO DO SOL

Enquanto
houver estrelas
nos olhos das crianças

o chão embrutecido
florescerá sob o signo
do sol, e haverá
esperança!

MORRE UM POEMA

A febre de escrever,
escalda-me a face...

ardo no silêncio,
crucificada no tempo,
de que nem sempre disponho
naquele justo momento...

e mais um poema se perde
na pedra sacrificial
da lágrima não
derramada!

RELÓGIO DE AREIAS

Pela janela aberta
vejo passar os sonhos.
São belos frutos maduros
polpudos...suculentos
tentando do lado de fora.

São lépidos, trigueiros,
brejeiros sonhos-romãs.
São alvas mãos pequeninas
tecendo coroas de virgens
pra festa de casamento.

Pela janela aberta
vejo passar os anos.
Eles fluem tão depressa
como um relógio de areias,
como um final de oração.

Fecho então a janela.
O sono é minha unção.

ANDARILHA

Caminho
dentro de mim...

Palmilho
o labirinto usual
de todos os momentos
possíveis e impossíveis
na descoberta da pedra
sofismal da vida.

Ao pensar
tê-la encontrado,
fantasmagórica miragem.
Desvencilho-me do espanto
retomo a caminhada.

Fonte:
Recanto das Letras

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) II

Rikki-tikki sentiu os olhos rubros e ardentes (quando os olhas duma mangusta ficam assim é que ela está em cólera), e sentou-se sobre a cauda e as pernas traseiras, qual pequenino canguru; olhou depois em torno e rangeu os dentes de raiva. Nag e Nagaína, porém, já haviam desaparecido dentro do ervaçal. Quando uma serpente erra o bote, nada diz nem denuncia o que pretende fazer em seguida. Rikki desistiu de persegui-la, porque não tinha a certeza de poder agüentar a luta com as duas. Em vista disso correu para o limpo e sentou-se, a refletir. Estava metida numa complicação muito séria.

Quem lê os velhos livros de história natural aprende que quando uma mangusta combate contra uma cobra e é mordida, foge dali para o mato a fim de mascar certas ervas curativas. Não é verdade. A vitória depende só de olho vivo e músculos prontos - arremesso de cobra contra salto de mangusta. E como olho nenhum pode seguir o movimento duma cabeça de cobra que dá bote, a agilidade defensiva da mangusta constitui maior prodígio que o efeito mágico de misteriosas ervas.

Rikki-tikki, verdadeira mangusta que era, não deixou de sentir-se satisfeita de ter tão habilmente evitado aquele golpe a traição. Veio-lhe disso mais confiança em si e quando Teddy desceu correndo para o jardim, mostrou-se com direito de ser admirada. No momento, porém, em que o menino se inclinava para ela, qualquer coisa mexeu-se na areia e uma vozinha disse:

- Cuidado ! Eu sou a Morte!

Era Karait, a pequenina cobra cor de areia, que costuma dissimular-se na poeira. Tem a mordedura venenosíssima, mas Darzee e a companheira, em vez de responderem, recolheram-se precipitadamente para dentro do ninho. É que do espesso do ervaçal viera um silvo surdo, um horrível som arrepiante... que fez Rikki-tikki dar um pulo para trás. E então, polegada a polegada, ergueu-se da erva a cabeça com o capelo ereto de Nag, a grande cobra negra de mais de dois metros de comprimento. Depois que se levantou de um terço acima do solo, ficou a bambolear-se da esquerda para a direita, exatamente como se balança um pé de taraxaco – e a cobra olhava para Rikki-tikki com esses olhos duros das serpentes, os quais nunca mudam de expressão, seja o que for que elas pensem.

- Quer saber quem é Nag? Sou eu, disse a cobra. O grande deus Brama pôs sua marca sobre todo o nosso povo, quando a primeira cobra estirou o seu capelo para o preservar do sol enquanto dormia... Olha para mim e treme, mangusta !

A cobra retesou o mais que pode o seu capelo, e Rikki-tikki pode ver sobre seu corpo as marcas em forma de argolas.

Por um minuto a mangusta sentiu medo; mas é impossível tal animalzinho sentir medo por muito tempo e, embora Rikki-tikki jamais houvesse encontrado uma cobra, sua mãe a nutrira de carne de cobras e lhe ensinara que o destino das mangustas é fazer guerra às cobras e devorá-las. Nag também sabia disso e lá no fundo do coração estava receosa.

- Muito bem, disse Rikki-tikki - e sua cauda eriçou-se de novo. - Com marcas de Brama ou não, acha que tem o direito de comer os filhotes de passarinho que caem do poleiro?

Nag vigiava os menores movimentos do ervaçal que se estendia por trás da mangusta. Sabia muito bem o significado de mangusta no jardim – simplesmente morte para si e sua família, mais cedo ou mais tarde. Era preciso, pois, apanhá-la de surpresa. Pensando assim, Nag moleou o corpo e disse:

- Conversemos ... Você come ovos. Por que não havemos nós de comer o que sai dos ovos? Responda.

- Olhe para trás, olhe para trás! - cantou disfarçadamente Darzee.

Rikki-tikki compreendeu instantaneamente o aviso, sem necessidade de voltar a cabeça para ver do que se tratava. E saltou para o ar, o mais alto que pode, ouvindo o ruído dum bote que falha. Era Nagaína, a companheira de Nag. Tinha vindo por detrás, sorrateiramente, enquanto Nag distraía a mangusta, a fim de dar cabo do inimigo por surpresa. Rikki-tikki, ainda no ar, ouviu o silvo de raiva da cobra lograda; depois veio ao chão e quase que caiu de costas. Se fosse mangusta de mais idade saberia que era aquele o momento de quebrar a espinha do inimigo com uma boa mordedura, mas apavorou-se com a terrível chicotada que recebeu e limitou-se a uma mordidela única, pulando de lado. Nagaína ficou a rabear, furiosa e malferida.

- Malvado! Malvado Darzee! - exclamou Nag.

E deu o salto mais impetuoso que pode na direção do ninho; Darzee, porém, o construíra de modo a pô-lo fora do alcance de qualquer serpente - e o ninho continuou lá em cima, a balouçar-se, inatingido.

Rikki-tikki sentiu os olhos rubros e ardentes (quando os olhas duma mangusta ficam assim é que ela está em cólera), e sentou-se sobre a cauda e as pernas traseiras, qual pequenino canguru; olhou depois em torno e rangeu os dentes de raiva. Nag e Nagaína, porém, já haviam desaparecido dentro do ervaçal. Quando uma serpente erra o bote, nada diz nem denuncia o que pretende fazer em seguida. Rikki desistiu de persegui-la, porque não tinha a certeza de poder agüentar a luta com as duas. Em vista disso correu para o limpo e sentou-se, a refletir. Estava metida numa complicação muito séria.

Quem lê os velhos livros de história natural aprende que quando uma mangusta combate contra uma cobra e é mordida, foge dali para o mato a fim de mascar certas ervas curativas. Não é verdade. A vitória depende só de olho vivo e músculos prontos - arremesso de cobra contra salto de mangusta. E como olho nenhum pode seguir o movimento duma cabeça de cobra que dá bote, a agilidade defensiva da mangusta constitui maior prodígio que o efeito mágico de misteriosas ervas.

Rikki-tikki, verdadeira mangusta que era, não deixou de sentir-se satisfeita de ter tão habilmente evitado aquele golpe a traição. Veio-lhe disso mais confiança em si e quando Teddy desceu correndo para o jardim, mostrou-se com direito de ser admirada. No momento, porém, em que o menino se inclinava para ela, qualquer coisa mexeu-se na areia e uma vozinha disse:

- Cuidado! Eu sou a Morte!

Era Karait, a pequenina cobra cor de areia, que costuma dissimular-se na poeira. Tem a mordedura venenosíssima, mas é tão minúscula que ninguém lhe presta atenção - o que a faz ainda mais perigosa.

Os olhos de Rikki-tikki tornaram-se novamente rubros e, erguendo-se, ela dirigiu-se para Karait, com o bamboleio de corpo herdado de sua raça. Parecia cômico aquele andar, mas era sábio, porque lhe punha o corpo num tal equilíbrio que num dado momento podia, veloz como o relâmpago, mudar de direção para onde conviesse, o que constitui grande vantagem para quem vive em luta com as serpentes. Rikki-tikki, ignorando isso, estava a fazer coisa muito mais perigosa do que combater Nag; Karait era tão pequenina e movia-se com tanta agilidade que, a não ser que fosse agarrada rente à cabeça, poderia, num contragolpe, atingir a mangusta no olho ou no focinho. Rikki não sabia disso e, com os olhos em fogo, bamboleava-se naquele balanço de equilíbrio, procurando o momento de dar o golpe. Karait avançou. Rikki saltou de lado e fugiu com o corpo, a tempo de livrar-se, por um fio de cabelo, do pequenino bote da cabecinha empoeirada.

Teddy gritou para dentro:

- Venham ver uma coisa! A mangustinha está caçando uma cobra!...

Rikki ouviu a mãe do menino dar um grito, enquanto o pai se precipitava para o jardim, de bengala na mão. Nesse entremeio Karait desferiu novo bote, que também falhou e Rikki-tikki caiu sobre ela, ferrando-a no ponto próprio, bem junto à cabeça. A mordedura paralisou-a, e Rikki ia devorá-la, a começar pela cauda, quando se lembrou que tais refeições deixam o corpo pesado. Ora, ela tinha necessidade de dispor, dum momento para outro, de toda a sua força e ligeireza para o recontro com as cobras grandes. Ficou, pois, em jejum e foi espojar-se no pó, sob uma touça de mamoeiros, enquanto o pai de Teddy dava umas últimas bengaladas no cadáver de Karait.

- Para que isso? - pensou Rikki-tikki. Eu já a matei.

A mãe de Teddy desceu ao jardim ainda aflita e tomando nos braços a mangusta apertou-a ao peito, dizendo entre lágrimas que ela havia salvo seu filho da morte; o pai do menino concordou que aquela mangustinha era providencial. Teddy olhava para os dois com os olhos muito arregalados.

E no íntimo Rikki-tikki divertiu-se com a cena, embora a não compreendesse. Ao jantar, passeando dum extremo a outro sobre a mesa, por entre pratos e copos, poderia ter-se regalado de tudo quanto quisesse; mas a lembrança de Nag e Nagaína a fazia manter-se em jejum. E conquanto lhe fosse agradável ser amimada pela mãe de Teddy, para cujo ombro saltou, seus olhos de quando em vez tornavam-se rubros e de sua garganta saía o grito de guerra: Rikk-tikk-tikki-tikki-tchek!
================
continua

A Natureza em Versos II

Fonte: Libreria Fogola Pisa
CARLOS EDUARDO POMPEU
O Tapete da Vida


 Que a morte venha ternamente
e a vida se esvaia lentamente,
para que eu possa, em placidez,
assistir aos meus últimos momentos.

Que sejam como os das flores
e das folhas do outono,
que ao soçobrarem,
quando dos galhos se desgarrem,
flutuem bailando no ar,
até pousarem num tapete,
casual e úmido,
de flores murchas,
 folhas mortas
e húmus.

NEWTON NAZARETH
Tarde de Verão


 Ebulição infernal, asfalto ferve,
Emana um insuportável vapor,
Vindo do meio dia com sol a pino,
Irradiando seus raios de calor.

 Nas áreas urbanas os arranha-céus,
Parecem unir-se quase no espaço,
E conspirando contra o oxigênio,
Cada vez bem mais difícil e escasso.

 Pessoas andam se esbarrando e trôpegas,
Às pressas e sequiosas por um bar,
Elas parecem suplicar por socorro,
Resfolegando e ansiando o ar.

 Temperatura alta, insuportável,
Face úmida, axilas molhadas,
Gotas de suor escorrem pelas têmporas,
Paletó nas mãos, camisas encharcadas.

 Nas praias superlotadas é a antítese,
Banhistas seminus expostos ao sol,
Distantes de tudo, longes, distraídos,
Mergulhando, ou praticando o “frescobol”.

 É a tranquilidade, é um oásis.
Nos bares da orla, chope e cerveja,
Alegria contagiante com risos,
Euforia, atmosfera benfazeja.

 Surge aos poucos uma pequena aragem,
Que vai se apresentando discretamente,
Mostrando velocidade que aumenta,
Cuja intensidade cresce fortemente.

 É o afamado vento sudoeste,
Respeitado por sua ferocidade.
Mais conhecido como um destruidor,
E o grande formador de tempestade.

 Agora já se nota uma ventania,
Com intensidade avassaladora,
Que vai derrubando tudo à sua frente,
Destruindo com fúria assustadora.

Faíscas de relâmpagos rasgam céu,
É vista uma escuridão vesperal,
Os roncos das trovoadas amedrontam,
É o prenúncio de um forte vendaval.

Vários pingos espessos se precipitam,
Aumentam a cada fração de segundo,
Chove exageradamente, sem parar.
Horrível, até parece o fim do mundo.

Ruas alagadas, trânsito infernal,
Todo sistema de sinais apagado,
Soam sirenes, pedidos de socorro.
Desastre total é o caos instalado.

Todos correm a esmo sem direção,
Desconhecendo riscos e o perigo,
Tropeçando, esbarrando-se, caindo,
A procura de proteção num abrigo.

Gradativamente a chuva diminui,
Silenciosa e serena sem alarde.
Por do sol já aparece no seu ocaso,
E se vislumbra os sinais do fim de tarde.

A noite chega imponente e majestosa,
O céu está sem nuvens todo estrelado,
No fundo a lua cheia resplandecente,
Irradia seu brilho prá todo lado.

Agora com toda calma e sem transtornos,
As pessoas caminham no calçadão,
O calor aos poucos volta como antes,
De uma noite típica de verão.

A cara da cidade volta ao normal,
Toda iluminada e sempre graciosa,
Esbanjando amor e hospitalidade,
Naquela que é linda e maravilhosa.

SUZANA MARIA CRUZ PEIXOTO
Poema em Aldravipéia


 paisagens
  formosas
  encantos
  da
  natureza
  Deus

a
  terra
  nosso
  berço
  nosso
  chão

o sertanejo
  escuta
  o
  capim
  crescer

chuvisco delicioso
  frescura
  de
  capim
  molhado

buquês
  de
  ipê
  florada
  da
  beleza

flores
  no
  jardim
  harmonia
  da
  vida

gotas
  de
  orvalho
  ornamento
  das
  flores

vento
  faz
  voar
  grãos
  de
poeira


o
  vento
  uivando
  açoita
  os
  arvoredos

pássaros
  na
  tempestade
  revoada
  sem
  rumo

outono
  chega,
  folha
  cai,
  árvore
  desnuda

límpidas
  águas
  nascentes:
  lágrimas
  da
  terra
   
chuá...
  chuá...
águas murmurantes
  da
  cascata


cascata
cristalina
sua
sina
sempre
cantar

chuê...
  chuê...
  o
rio
que
  canta

cursos
  dos
  rios
  caminhos
  sem
  volta
   
praia
  beira-mar
  delicada
brisa
que
  alisa

carinhosa
  brisa
  acaricia
  chega
  de
  mansinho

ondas:
  do
  mar

borbulhas
  lambendo
  praias

poderosa natureza
inesgotável
fonte
de
beleza

Fonte:
IV Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br