quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Jorge Luis Borges (Ulrica)

Hann tekr sverthit Gram ok leggr i methal theira bert.
Völsunga Saga, 27

Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que é a mesma coisa. Os fatos ocorreram há muito pouco, porém sei que o hábito literário é, também, o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases. Quero narrar o meu encontro com Ulrica (não soube seu sobrenome e talvez nunca venha a sabê-lo) na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.

Nada me custaria referir que a vi pela primeira vez junto às Cinco Irmãs de York, esses vitrais puros de toda a imagem que respeitaram os iconoclastas de Cromwell, porém o fato é que nos conhecemos na salinha do Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu uma bebida e ela recusou.

— Sou feminista — disse. — Não quero arremedar os homens. Desagrada-me seu tabaco e seu álcool.

A frase queria ser engenhosa e adivinhei que não era a primeira vez que a pronunciava. Soube depois que não era característica dela, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.

Contou que havia chegado tarde ao museu, mas que a deixaram entrar quando souberam que era norueguesa.

Um dos presentes comentou:

— Não é a primeira vez que os noruegueses entram em York.

— Pois é — disse ela. — a Inglaterra foi nossa e a perdemos, se é que alguém pode ter algo ou algo pode ser perdido.

Foi então que a olhei. Uma linha de William Blake fala de moças de suave prata ou furioso ouro, porém em Ulrica estavam o ouro e a suavidade. Era leve e alta, de traços afilados e de olhos cinzentos. Menos que seu rosto, impressionou-me seu ar de tranqüilo mistério. Sorria facilmente e o sorriso parecia afastá-la. Vestia-se de preto, o que é raro em terras do Norte, que tentam alegrar com cores o apagado do ambiente. Falava um inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres. Não sou observador; essas coisas descobri pouco a pouco.

Apresentaram-nos. Disse-lhe que eu era professor da Universidade de los Andes em Bogotá. Esclareci que era colombiano. Perguntou-me de modo pensativo:

— O que é ser colombiano?

— Não sei — respondi. — É um ato de fé.

— Como ser norueguesa — assentiu.

Nada mais posso recordar do que se disse nessa noite. No dia seguinte, desci cedo para a sala de jantar. Pelas vidraças vi que havia nevado; os páramos se perdiam na da manhã. Não havia ninguém mais. Ulrica me convidou para a sua mesa. Disse que lhe agradava sair para caminhar sozinha.

Lembrei-me de um chiste de Schopenhauer e respondi:

— A mim também. Podemos sair juntos os dois.

Afastamo-nos da casa, sobre a neve recente. Não havia uma alma nos campos. Propus que fôssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a algumas milhas. Sei que já estava enamorado de Ulrica; não teria desejado a meu lado nenhuma outra pessoa.

Ouvi subitamente o distante uivo de um lobo. Nunca tinha ouvido um lobo uivar, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.

Em seguida, disse, como se pensasse em voz alta:

— As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster me comoveram mais que as grandes naves do museu de Oslo.

Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, nessa tarde, prosseguiria a viagem em direção a Londres; eu, até Edimburgo.

— Em Oxford Street — ela disse-me — repetirei os passos de Quincey, que procurava a sua Anna perdida entre as multidões de Londres.

— De Quincey — respondi — deixou de procurá-la. Eu, ao longo do tempo, continuo procurando-a.

— Talvez — disse em voz baixa — a tenhas encontrado.

Compreendi que uma coisa inesperada não me estava proibida e a beijei-lhe a boca e os olhos. Afastou-me com suave firmeza e depois declarou:

— Serei tua na pousada de Thorgate. Peço-te, enquanto isso, que não me toques. É melhor que assim seja.

Para um celibatário entrado em anos, o amor  é um dom que já não se espera. O milagre tem direito de impor condições. Pensei em minha mocidade em Popayán e em uma moça do Texas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.

Não incorri no erro de lhe perguntar se me amava. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Essa aventura, talvez a derradeira para mim, seria uma de tantas para essa resplandecente e resoluta discípula de Ibsen.

De mão dadas, seguimos.

— Tudo isto é como um sonho — disse —  e eu nunca sonho.

— Como aquele rei — replicou Ulrica — que não sonhou até que um feiticeiro o fez dormir numa pocilga. 

Acrescentou em seguida:

— Ouve. Um pássaro está prestes a cantar.

Pouco depois ouvimos o canto.

— Nestas terras — disse — pensam que quem está para a morrer prevê o futuro.

— E eu estou para morrer — disse ela.

Olhei-a, atônito.

— Cortemos pelo bosque — apressei-a — Chegaremos mais rápido a Thorgate.

— O bosque é perigoso — replicou.

Seguimos pelos páramos.

— Eu gostaria que este momento durasse para sempre — murmurei.

— "Sempre" é uma palavra que não é permitida aos homens — afirmou Ulrica e, para minorar a ênfase, pediu-me que repetisse o meu nome, que não ouvira bem.

— Javier Otárola — disse-lhe.

Quis repeti-lo e não pôde. Fracassei, igualmente, com o nome Ulrikke.

— Vou te chamar Sigurd — declarou com um sorriso.

— Se sou Sigurd — repliquei, — tu serás Brynhild.

Havia atrasado o passo.

— Conheces a saga? — perguntei-lhe.

— Naturalmente — disse. — A trágica história que os alemães estragaram com seus tardios Nibelungos.

Não quis discutir e respondi:

— Brynhild, caminhas como se quisesses que entre os dois houvesse uma espada no leito.

Estávamos de repente diante da pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn.

Do alto da escada, Ulrica me gritou:

— Ouviste o lobo? Já não há lobos na Inglaterra. Apressa-te.

Ao subir para o andar de cima, notei que as paredes estavam empapeladas à maneira de William Morris, de um vermelho muito profundo, com entrelaçados frutos e pássaros. Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era baixo, com um teto de duas águas. O esperado leito se duplicava em um vago cristal e a polida caoba recordou-me o espelho da Escritura. Ulrica já se havia despido. Chamou-me pelo meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. Já não havia nem espelhos. Não havia uma espada entre os dois. Como a areia, escoava o tempo. Secular na sombra fluiu o amor, e possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte V

2.2 Os contos moralizantes de Charles Perrault

Servir uma beleza ingrata
É só perda de tempo e de trabalho
E pretendê-la amável quando trata
É ser como o Grou, um paspalho.
PERRAULT, 2007, p. 155.
                                                                
Charles Perrault revive o popular através da literatura, uma vez que insere em suas obras a magicidade lúdica, bem como inova, ao acrescer à mesma uma lição de moral, o que faz direcionar o entendimento do leitor, evitando possíveis ambiguidades interpretativas. De acordo com Novaes Coelho, ele defendeu, de certo modo, a causa feminista, apoiando Mlle. L’Héritier, sua sobrinha, que lutava pela valorização da mulher quanto à aquisição de direitos intelectuais, embora, ao mesmo tempo, Perrault tenha também assumido posições nada feministas em seus contos.

Da mesma forma, as lições das narrativas apresentam acentuado cunho moralista destinado à postura feminina.

De outro modo, Novaes Coelho salienta que a posição defendida por Perrault é percebida através das temáticas abordadas em seus contos, sendo que versam sobre “mulheres injustiçadas, ameaçadas ou vítimas” (COELHO, 1987, p. 66). Para a escritora, essa abordagem escolhida por Perrault ressalta seu apoio à causa feminista.

Mendes opõe-se à afirmação de Novaes mencionada anteriormente, uma vez que para Mendes o objetivo desse escritor era realmente moralizar o papel feminino, inserido em uma estrutura familista, predominante na época, sustentando que os textos do mesmo falam do significado das funções femininas na sociedade e do significado das funções culturais da narrativa mítica. Num e noutro se consolida a ideologia familista da classe burguesa, que definia seu papel social no século XVIII. (2000, p. 110)
                      
As idéias de Mendes são bastante pertinentes, uma vez que os contos de Perrault sempre trazem uma lição moralizante para a mulher e não para o homem, o que seria mais viável se ele realmente estivesse engajado à causa feminina.

Mendes menciona ainda que Perrault, considerado pioneiro na escritura dos contos infantis, utilizou-se dos mesmos para mascarar o seu real objetivo, ou seja, doutrinar a mulher, iniciando com os menores leitores/ouvintes desde a infância até a idade adulta, ressaltando os papéis sociais.

Maria Tatar solidariza-se com a posição de Mendes. Entretanto, para ela, as lições moralizantes citadas das obras de Perrault não correspondem ao contexto dos contos lá apresentados. Além do mais, os menores leitores não entendiam o que as referidas lições pretendiam ensinar, uma vez que se embasavam em digressões sociais e de caráter, comuns ao público adulto.

[...] Em 1697, ao publicar Contos da Mamãe Gansa, Charles Perrault acrescentou a cada um pelo menos uma lição moral, por vezes duas. Freqüentemente, contudo, essas conclusões morais não se harmonizavam com os eventos na história e vez por outra não ofereciam nada além de uma oportunidade para um comentário social aleatório e digressões sobre caráter. As diretrizes comportamentais explícitas acrescentadas por Perrault e outros tendem a não funcionar quando visam crianças [...] (TATAR, 2004, p.12)
                      
Assim, Perrault compilou contos já existentes, oriundos da cultura popular. Desse modo, ele publica onze contos inseridos no livro Contos da Mamãe Gansa, entre 1691-1697, destinados às crianças e aos adultos que são: 1. A bela adormecida no bosque; 2. Chapeuzinho vermelho; 3. Barba-Azul; 4. O gato de botas; 5. As fadas; 6. A gata borralheira ou Cinderela; 7. Henrique, o topetudo; 8. O pequeno polegar; 9. A pele de asno; 10. Os desejos ridículos e 11. Grisélidis.

Percebe-se que, se Perrault, de certa forma, solidarizou-se com as mulheres, pelo menos em seus contos, as suas intenções não se tornaram claras, uma vez que, em suas obras e nas lições de moral, verifica-se a transparência de uma linguagem desmedidamente machista, conservadora e patriarcal. Além disso, o olhar desse escritor não se voltou para observar as potencialidades femininas fora do âmbito familiar, pois suas personagens assumiam a obediência, a submissão, o temor, a apatia, como características fundamentais femininas que se enfatizavam nas lições de moral.

As contribuições ou restrições que os demais homens escritores ofereceram ou impuseram à figura feminina, em âmbito sócio-intelecto-cultural, através de suas obras, seguem no próximo subcapítulo.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Contos Populares do Tibete (Ngon Tok Gyen: Opame, Chenrezik y Dolma)

O Buda celeste Opame (Amithâba), olhando para baixo desde a sua Terra Pura, contemplou o mundo e viu o sofrimento de todos os seres. Opame sentiu uma grande compaixão por eles. Deste sentimento de compaixão nasceu Chenrezik (valakiteshvara), a encarnação da compaixão, o Senhor da Compaixão.1 As montanhas se abriram e a água saiu em torrentes, cobriu a terra e correu até o Oceano Índico. Chenrezik apareceu numa ilha no centro de Lhasa, e, vendo o sofrimento dos seres, fez o voto de ajudá-los a alcançarem o Nirvana, a realidade última, a paz. Chenrezik fez o voto de não abandonar este mundo sem que todos, até mesmo a última fibra de erva, alcançassem a paz.

Havia no lago muitos seres e todos eles clamavam por um corpo. Ouvindo suas vozes, Chenrezik deu-lhes os corpos que pediam. Mas os corpos eram todos iguais, e, por isso, os seres suplicaram por se diferenciarem uns dos outros. Chenrezik deu, então, a cada um dos seres um corpo distinto, cada um deles característico e diferente dos demais.

Chenrezik, o Senhor da compaixão, pregou o Dharma, o ensinamento de todos os Budas, a fim de que todos os seres do lago, em número incontável, pudessem alcançar o Nirvana. Muitos seres o alcançaram. Mas, cada vez que Chenrezik voltava ao lago, havia muitos mais seres, muitos e muitos mais que os que já havia podido ajudar. De novo, Chenrezik pregou o Dharma, e, de novo, muitos alcançaram o Nirvana.

Quando Chenrezik contemplou o lago pela terceira vez e tornou a ver tantos seres necessitando ajuda, encheu-se de desespero. E compreendendo a impossibilidade da tarefa que se havia imposto, clamou ao Buda celeste Opame para que revogasse o seu voto, pois agora considerava a tarefa demasiado grande para que ele, sozinho, pudesse realizá-la. Em seu desespero e compaixão, o corpo de Chenrezik se fragmentou em inumeráveis pedaços.

Vendo a sua situação, Opame reconstruiu o seu corpo, dando-lhe ainda mais poder para ajudar a todos os seres vivos. Chenrezik tinha agora onze cabeças, coroadas pela cabeça do próprio Opame, e mil braços, e ainda um olho onividente na palma de cada mão.2

Mas, mesmo assim, inclusive com os mil braços e com as onze cabeças, Chenrezik considerou impossível a realização da sua tarefa. Os seres eram incontáveis e suas mentes estavam completamente toldadas por pensamentos impuros. Chenrezik chorou. E, de uma lágrima cristalina de sua face, nasceu Dolma (Târâ), para ser-lhe sua ajuda.3

Assim, pois, não existe um só ser, por insignificante que seja, cujo sofrimento não chegue a ser visto por Chenrezik ou por Dolma, e que não possa ser atingido por sua compaixão.

Notas

1. Amithâba ("luz infinita"), em tibetano Opame (Od-d pag-med), é um dos chamados Chyâni Buddas no budismo tântrico. Estes são aspectos universais, arquetípicos da "bu-deidade", tal como se mostram o espírito em meditação (dhyâna).
A Terra Pura é o chamado Paraíso Sukhâvati ou. Ocidental, no qual reside Amithâba, e que tem dado nome a uma via espiritual centrada na invocação do nome deste, via particularmente florescente no Japão.
Avalokitesvara é como uma extensão de Amithâba, uma emanação sua. Seu nome significa "o senhor que olha para baixo com compaixão", e é, pois, a personificação deste ato de Amithâba.
É a figura mais popular do panteão budista tibetano, e seu mantra (fórmula de invocação) é a oração por excelência de todo tibetano; está presente por igual na devoção popular e nas práticas iniciáticas.
Avalokitesvara, em tibetano Chenrezig (Spv-an-ras gzigs), é igualmente uma figura de primeira ordem em todas as áreas do budismo mahâyâna, como a China e o Japão, onde, na iconografia, assume um aspecto semifeminino algumas vezes, e abertamente feminino em outras, em virtude da doçura misericordiosa que encarna. Na China, é conhecido como Kuan-Yin, e, no Japão, como Kannon.
É um bodhisattva ao qual se atribuem diversas encarnações, e não apenas no mundo dos homens, pois sua compaixão abarca todos os mundos. Em particular, considera-se o Dalai Lama como uma manifestação terrenal sua.
E uma das figuras mais representadas na iconografia budista, principalmente com esta forma (à qual nos aludiremos mais adiante, em nosso relato), de onze cabeças e mil braços, na qual recebe o nome Ekadasmukha.

2. Traduzimos dessa maneira "all-seeing eye". A propósito desta designação e de seu simbolismo, pode ser consultado R. Guénon, Símbolos fundamentais da ciência sagrada, cap. LXXXII, "O olho que a tudo vê", pp. 384-386, Buenos Aires, 1960.

3. Esta é uma das diferentes versões que existem sobre o nascimento de Dolma.

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida)

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte IV

2. ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO MASCULINO

Este capítulo se propõe a realizar uma trajetória em território masculino, salientando que, especificamente, as obras de homens escritores ora facilitaram ora dificultaram para que a mulher conquistasse espaço em âmbito social e intelectual.

Desse modo,o primeiro subcapítulo aborda os homens escritores que redigiram fábulas e contos, a partir das células embrionárias Calila e Dimna e Sendebar.

Na seqüência, o estudo enfocará o escritor Charles Perrault, uma vez que o mesmo é caracterizado como inovador para a época, na elaboração de seus contos de fadas, e pioneiro para a Literatura Infantil. Na verdade, Perrault é considerado inovador pois inseriu no final de seus contos lições de moral, e pioneiro na escritura de contos para o público infantil.

Em seguida, verificar-se-ão as contribuições ou restrições que os homens escritores impuseram às mulheres, através de suas obras, em função da conquista de direitos comuns aos dois sexos e também quanto à inserção das mesmas no meio intelectual literário.

De acordo com isso, será visto em obras selecionadas o papel social desempenhado pelas mulheres de acordo com a visão masculina.

E, para finalizar esse capítulo, observar-se-á que, nesse universo de homens
literatos, à mulher era permitido unicamente contar e traduzir obras masculinas.
                                                                                    
2.1 Homens escritores de contos de fadas

Never may believe
These antic fables, nor these fairy toys.
Lovers and madmen have such seething brains,
Such shaping fantasies, that apprehend
More than cool reason ever comprehends...
And as imagination bodies forth
The forms of things unknown, the poet’s pen
Turns them to shapes, and gives to aery nothing
A local habitation and a name...

(Nunca poderei acreditar/Nessas fábulas antigas, nesses brinquedos de fadas./ As mentes febris dos amantes e  dos loucos,/ Suas fantasias moldadoras, percebem/ Mais do que a fria razão pode abarcar.../ E quando a imaginação concebe/ O contorno de coisas desconhecidas, a pena do poeta/ Transforma-as em formas, e concede ao etéreo nada/ Um endereço e um nome...(SHAKESPEARE, W. Sonho de uma noite de verão).

Em um tempo em que a TV ainda não existia, os contos folclóricos e infantis eram prestigiados como entretenimento para as famílias que, em ambiente doméstico, ouviam ou narravam histórias que se moldavam às angústias e às alegrias de quem as contava ou as ouvia. Desse modo, as histórias que representavam o momento lúdico para as famílias, difundiam-se rapidamente, resultando no surgimento de inúmeros livros escritos por homens que se apoiaram, em sua maioria, nas duas obras originárias: Calila e Dimna e Sendebar.

De acordo com Novaes Coelho, no século XII, o judeu Pedro Alfonso traduziu cerca de trinta fábulas ou contos retirados de Calila e Dimna, Sendebar e Barlaam e Josafá (1991, p. 35). Na seqüência, encontra-se a obra de Raimundo Lúlio, datada de 1286, denominada Libres de Maravelles. Essa é considerada bastante original, mas de clara descendência de Calila e Dimna e do Romance da Raposa (1991, p. 36). No século XV, escrita em letra gótica, Horto do esposo, é obra de um monge português anônimo.

Contudo, é mais um trabalho descendente da obra-origem, citada anteriormente, uma vez que apresenta a fábula do unicórnio e, entre contos exemplares, destacam-se ainda duas fábulas, onde o “exemplo” é dado por animais (1991, p. 40).

Com o Renascimento, o século XVI traz consigo consideráveis mudanças mundiais, ocasionadas pelas grandes navegações. Além disso, a invenção da imprensa e o acesso ao papel propiciaram o ambiente necessário para que o desenvolvimento cultural e literário proliferassem, associados ao ideal humanista que invadia o espírito humano ocidental.

No campo literário e em solo italiano, é publicada a obra Noites agradáveis por Gianfrancesco Straparola, em 1554. Straparola compõe seu trabalho resgatando e registrando a tradição oral de origem oriental e medieval. Processo caracterizado como “composições que nasceram da espontaneidade popular, lembradas a princípio pela tradição oral e mais tarde gravadas numa língua mais ou menos evoluída e idônea à arte [...]”, é o que afirma Leoni (1966, p.13).

Apesar de utilizar o mesmo método de Straparola, algo torna singular a obra de Gonçalo Fernandes Trancoso que, em 1575, publica Contos e histórias de proveito e exemplo. A sua obra é uma mistura do conhecido e o desconhecido, ou seja, o misto entre a tradição popular e o novo, representado pela novelística do Renascimento. O fruto dessa recente roupagem para a época só chegou ao Brasil em 1618.

No entanto, o que deve ser ressaltado no estilo literário de Trancoso é que ele inseriu a filosofia voltada ao moralismo e à postura edificante da mulher. Novaes Coelho tece comentários a respeito do objetivo dessa obra:

É considerada a primeira obra que introduziu o gênero novelesco bocaciano em Portugal. Entretanto, sua intenção principal era bem mais moralizante. Pertence claramente à linha da literatura “exemplar”, edificante (muito comum na Idade Média), mas consegue fundir esse lastro clerical com a tradição folclórica, cheia de humor (trocadilhos, provérbios, paradoxos, adivinhas, situações equívocas, etc.). (COELHO, 1991, p. 57)
                      
Por sua vez, a Itália é novamente berço de outro escritor, Giambattista Basile, que apresenta o Pentamerone, obra publicada após a morte do escritor, entre 1634 e 1636, com o pseudônimo de Gian Alessio Abbattutis. Nessa inclui-se Sole, Luna e Talia, um conto de fadas há muito presente na memória e na cultura oral dos napolitanos.

Sole, Luna e Tália ou Sol, Lua e Tália assemelha-se aos demais contos de A bela adormecida, que surgiram posteriormente a essa obra, porém o que caracteriza a história como única é a presença de opostos em sua narrativa, ou seja, “desde o rotineiro e o vulgar até o sublime”, bem como os pólos extremos que compõem a personalidade humana, dispostos em harmonia perfeita em um único texto.

Enquanto, o mundo preludiava a Era Clássica, em pleno século XVI, no Brasil vivia-se o medievalismo, uma vez que, historicamente, este país havia sido recentemente descoberto e, em conseqüência disso, os interesses voltavam-se para a educação doutrinária e à formação cultural do povo, sendo que as inovações chegaram tardiamente em solo brasileiro. Novaes Coelho apresenta claramente essa situação:

Manoel da Nóbrega e José de Anchieta são os dois primeiros nomes que, no Brasil, se ligariam às atividades embrionárias de educação, cultura e literatura que o século XVI conheceu. Assim, no momento em que, em Portugal, Camões dava voz à renovação renascentista, criando as formas da alta poesia, que iria se constituir em modelo durante toda a Era Clássica, no Brasil José de Anchieta, ainda segundo modelos medievais, escrevia os autos religiosos (destinados à representação para as populações indígenas) e compunha seus singelos poemas em louvor da Virgem. (COELHO, 1991, p. 66)
                      
José Horta Nunes (1994), também descreveu o cenário brasileiro, em âmbito educacional e literário, no período medieval, a partir da definição da palavra catequese, ou seja, a forma de ensino oferecida ao povo brasileiro nessa época:
“Catequese é um projeto educacional que introduz uma prática de linguagem no Brasil. Diante do propósito inicial de ensinar a religião aos índios, essa prática consiste em um trabalho sobre as línguas, ao lado do desenvolvimento de técnicas de ensino doutrinário” (NUNES, p. 96-97).

Assim, a literatura moralizante e os contos de fadas, difundidos no período medieval, estendem-se até o século seguinte, e é a partir daí que os contos passam a fazer parte da recém-criada Literatura Infantil. Novaes Coelho apresenta essa criação desta forma:

Cavaleiros andantes, reis, rainhas, princesas e príncipes bons e maus, fadas, bruxas, metamorfoses de criaturas humanas em animais (ou vice-versa), ogres e ogressas (sic) canibalescos, maldições, profecias, madrastas, crianças abandonadas, crianças que são entregues a alguém para serem mortas, fantasmas e magos, gênios benfazejos e malfazejos... é a fantástica legião de personagens que a partir do século XVII os escritores cultos vão descobrir na tradição oral dos povos europeus e criar a Literatura Infantil que hoje conhecemos como “tradicional”... (COELHO, 1991, p. 66)
                      
Conforme o exposto, surge na França do século XVII a literatura voltada para crianças e representada através de fábulas e contos, uma vez que os escritores buscaram entre a cultura do povo as narrativas orais passadas de geração a geração. Inicialmente, a Literatura Infantil era proposta como ação educativa e moralizante, voltada não somente à criança, mas também e, principalmente, à mulher. Novaes Coelho descreve esse acontecimento histórico e determinante para a Literatura Infantil:

É na França, na segunda metade do século XVII, durante a monarquia absoluta de Luís XIV, o “Rei Sol”, que se manifesta abertamente a preocupação com uma literatura para crianças ou jovens. As Fábulas (1668) de La Fontaine; os Contos da Mãe Gansa (1691/1697) de Charles Perrault; os Contos de Fadas (8 vols. – 1696/1699) de Mme. D’Aulnoy e Telêmaco (1699) de Fénelon são os livros pioneiros do mundo literário infantil, tal como hoje o [sic] conhecemos. (COELHO, 1991, p. 75, grifos da autora)
                      
      É sabido que dentre os séculos XII a XVII, o ensino doutrinário catequético sobrepujava o contexto literário, visando moralizar a postura da criança e da mulher. Consoante a isso, ainda no século XVII, os olhos se voltaram para os menores leitores e surge a Literatura Infantil, representada por fábulas e contos. 

Neste novo cenário criado para a Literatura Infantil, Perrault é um dos pioneiros a divulgar para o mundo dos infantes os seus contos de fadas com claro fundo moralizante, que serão vistos a seguir.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Contos Populares Portugueses (Os dois compadres)

Era uma vez dois compadres - um era muito rico e o outro muito pobre. Este, querendo apanhar dinheiro ao rico, disse para a mulher:

- Olha, tu compras uma perdiz, eu vou à caça com o compadre e levo de cá um dos coelhos que aqui temos. Lá na caçada dou-lhe um recado para ele te vir cá trazer, que é para tu cozinhares a perdiz. Depois o compadre há de querer comprar-me o coelho e eu peço muito dinheiro por ele.

Assim foi. Na caçada, o pobre disse para o coelho:

- Olha, tu vai lá à minha mulher e diz-lhe que arranje uma perdiz guisada e que faça conta com o nosso compadre.

Deu um sopapo ao coelho, que desatou a fugir. O compadre rico estava ansioso de ir a casa do outro a ver se o coelho tinha dado o recado.

Quando chegaram lá dos matos, disse o homem para a mulher:

- Cuido que falta pouco para o guisado estar na mesa. O nosso coelho trouxe o recado, não foi?

- Pois não havia de trazer?! A perdiz está pronta e contava já com o compadre, tal como o coelho me recomendou da tua parte.

Pediu o rico ao pobre:

- Compadre, venda-me o seu coelho!

- Isso é que eu não vendo, que ele faz-me os mandadinhos todos.

- Compadre, venda-me o coelho, que eu dou-lhe muito dinheiro por ele.

Vendeu-lhe o coelho bem vendido. Claro, entregou-lhe um dos que tinha na coelheira. E a primeira vez que o compadre rico mandou o coelho a um recado, nunca mais lhe apareceu.

Entretanto, quando estava para acabar o dinheiro ao pobre, disse este para a mulher:

- Temos de ver se arranjamos outra marosca para apanharmos bagos ao nosso compadre. Olha, tu arranjas a burra velha, eu junto-lhe dinheiro com a ração e depois dizemos que ela deita pelo rabo muito dinheiro e que já somos muito ricos!

Assim foi. Um dia, na caçada, o compadre rico reparou que a burra deitava dinheiro pelo rabo.

- Compadre, venda-me a burra!

- Isso não vendo eu, que já estou muito rico e quando preciso de dinheiro ela é que me dá. Não vendo. E não se lembra do coelho? Vendi-lho por uma bagatela e logo o deixou fugir!

- Compadre, venda-me a burra.

Tanto teimou que ele lha vendeu por muito dinheiro.

Assim, foi para casa o compadre rico com a burra velha comprada e em casa deu-lhe uma boa ração. Mas a besta não largava dinheiro nenhum. Passados dias, era a mesma coisa, e foi reclamar:

- Ó compadre, a burra não faz dinheiro nenhum.

- Eu é que sou um grande burro em lhe vender as coisas. Não sabe tratar delas e depois diz que o engano. É boa!

Ia-se outra vez acabando o dinheiro, quando se lembrou:

- Olha lá, ó mulher, tu arranjas um papo de peru e mete-lhe dentro as tripas do animal. Põe o papo à cintura debaixo do avental e eu dou-te uma navalhada. No papo, está bem de ver! Tu cais logo morta e com as tripas de fora! Depois toco numa gaitinha que vou comprar e tu levantas-te!

Preparada a coisa, convidou o compadre para outra caçada.

- Ó mulher, arranja aí o alforje num instante.

- Não basta ser todos dias esta seca, senão sempre às pressas!

- Cala-te, mulher, não resmungues!
- E ainda terei de me calar? Pois não faço nada!

Armou-se uma grande discussão e ele deu-lhe umas navalhadas. As tripas saltaram logo e a mulher deixou-se logo cair redonda no chão. O compadre ficou todo aflito:

- Ó desgraçado, olha o que fizeste! Mataste a tua mulher!

- Não se incomode. Tenho aqui uma gaita que dá vida aos mortos!

Começou o pobre a tocar uma musiquinha e a mulher levantou-se logo. E o rico de boca aberta:

- Compadre, venda-me a gaita!

- Qual vender, nem qual diabo!

E tudo era lembrar-lhe o coelho e mais a burra. Por fim, vendeu a gaita. Foi o compadre rico para casa, armou uma grande briga com a mulher e mandou-lhe uma navalhada na barriga. Caída ela por terra, morta, e ele pega na gaitinha e vá de tocar, tocar a bom tocar. Mas a mulher não se mexia.

Veio a Justiça. Ele pôs-se a contar o sucedido com o compadre pobre e levaram este preso. No caminho, os guardas quiseram descansar, amarraram o pobre a uma árvore e deitaram-se a dormir a sesta.

Passou um pastor com uns carneiros e perguntou-lhe o que era.

- Ora, querem à força que eu me case com a princesa, mas eu não quero. Por isso me levam preso.

Diz-lhe o pastor:

- Bem podias casar com a princesa e não te levavam para a forca.

E o preso:

- E tu estás interessado em casar com ela? Queres vir para o meu lugar?

- Pois quero.

E mudaram. Depois, o pastor, amarrado à árvore, começou a gritar:

- Eu já quero! Eu já quero!

- Já queres o quê? - perguntaram os guardas, acordando, estremunhados.

- Já quero casar com a princesa!

- Ora essa! Explica lá o que estás a dizer!

E ele contou tudo.

- Bem - disse o chefe dos guardas-, soltem lá esse homem!

Ele foi-se embora. O outro ia todo contente com os carneiros do pastor quando encontrou o compadre, que lhe perguntou:

- Então tu não foste preso?

- Eu não, pois se a minha gaita dá vida aos mortos, como havia de ser preso?

- Então esses carneiros quem te deu?

- Ora, arranjei-os eu.

- Mas como?

- Olha, anda comigo, que eu te ensino como nascem carneiros!

Levou-o para o pé de um pego, onde a água era muito funda. Perguntou-lhe se queria um carneirinho ou um carneirão. O rico disse que um carneirão. Então o pobre agarrou nele e disse com voz forte:

– Cada mergulhinho, um carneirinho. Cada mergulhão um carneirão.

E atirou com ele para dentro do pego e safou-se com o rebanho, que logo foi vender na feira de S. Mateus.

Fonte:
Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte III

1.3 Conceituações e postulados

O conto de fadas é, em si mesmo, a sua melhor explicação, isto é, o seu significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da história. FRANZ,1981, p.15.
                                              
      Quanto à conceituação de contos de fadas, Novaes Coelho os define como narrativa com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se dentro da mágica feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial. Ou melhor, têm como núcleo problemático a realização essencial do herói ou da heroína, realização que, via de regra, está visceralmente ligada à união homem/mulher. (1987, p.13)
                      
      Bruno Bettelheim afirma que os contos de fadas habitam o mundo real, o consciente, e o inconsciente, o irreal, sendo que esse misto de magicidade e concretude é que fascina o ser humano, correspondendo ao que ele já conhece e ao que a imaginação pode alcançar: “As histórias de fadas falam ao nosso consciente e ao nosso inconsciente e, por conseguinte, não precisam evitar as contradições, já que elas coexistem facilmente no nosso consciente” (1997, p. 20).

      Mendes (2000) salienta que os contos derivam de rituais primitivos, praticados em tempos extremamente longínquos, a tal ponto de, nessa época, a mulher ser considerada divindade e apresentar significativo papel na sociedade. Por sua vez, o homem era personagem-antagonista e, como tal, seu papel também constituía função secundária, como a de transformar a menina em mulher.

[...] os contos são herdeiros dos mitos, por sua vez se originam de rituais praticados nas comunidades primitivas. Nessas comunidades, a mulher tinha um papel social importante como sacerdotisa e as divindades eram femininas. [...] O dado mais importante, no entanto, seria a preponderância e a importância das personagens femininas nas narrativas. [...] O personagem masculino é secundário, nem mesmo tem nome e representa apenas o instrumento de transformação e realização da mulher. (MENDES, 2000, p. 125)
                      
Por sua vez, Vladimir Propp afirma que o conto tem uma estrutura uniforme que, inicialmente, prepara o leitor ou ouvinte para um clima harmônico, a fim de que esse atente integralmente e viva em detalhes o emaranhado de tensões fictícias que se sucederão, envolvendo uma família e seus integrantes.

As primeiras palavras do conto: “Em um certo reino, em um certo Estado...” já introduzem o ouvinte em uma atmosfera especial, que se caracteriza pela tranquilidade épica. Mas trata-se de uma impressão ilusória. Ante ele não tardarão a se desenrolar acontecimentos extremamente tensos e vibrantes. Essa tranquilidade é um recurso artístico que contrasta com a dinâmica interna do conto, geralmente vibrante e trágica, às vezes cômica e realista.

O conto prossegue assim: “... havia um camponês que tinha três filhos”; ou então: “... um czar que tinha uma filha,” ou ainda: “... havia três irmãos;” resumindo, o conto apresenta uma família [...] (PROPP, 2002, p. 29)
                      
Amarilha atribui valores psicológicos e sociológicos aos contos de fadas, ressaltando a importância da acessibilidade desses contos às crianças, como forma de interação e compreensão dos problemas humanos, quer individuais ou sociais:

No meu entender, os contos de fada, com seu rico referencial simbólico, ressaltam o papel que a literatura deve ter para a criança. O de tornar acessível ao leitor experiências imaginárias que sejam catalisadoras dos problemas do desenvolvimento humano e assim proporcionar autoconfiança sobre o seu próprio crescimento. (AMARILHA, 1997, p. 73-74)
                      
Conforme Marina Warner, os contos de fadas surgiram como uma válvula de escape, como um apelo ou alento para as mulheres cansadas de serem menosprezadas e injustiçadas por uma sociedade patriarcal, onde a lei do mais forte imperava:
                     
  Os contos de fadas sugerem uma situação em que o próprio menosprezo pelas mulheres abriu, para elas, a possibilidade de exercitar a imaginação e comunicar suas idéias. A responsabilidade das mulheres pelas crianças, o desprezo vigente por ambos os grupos e a suposta identificação daquelas com as pessoas simples, a gente comum, entregaram-lhes os contos de fadas como um tipo diferente de estufa, onde podiam semear seus próprios brotos e plantar suas próprias flores [...] (WARNER, 1999, p. 22)
                     
Já Sheldon Cashdan (2000)8 afirma que os contos relatam e representam a história em suas épocas. Em tempos difíceis como em pós-guerras, percebia-se essa realidade através das narrativas, como as de Andersen, por exemplo: “Os contos de fada são documentos históricos únicos, que nos mostram como era a vida em certos períodos da história - épocas em que cada dia era em si uma batalha pela sobrevivência” (CASHDAN, 2000, p. 62).

D’Onofrio afirma que “sob a denominação de conto popular, conto de fadas ou conto da carochinha, agrupam-se inúmeras narrativas de temas e motivos os mais variados” (2006, p. 110) e salienta ainda que as narrativas apresentam estruturas peculiares, sendo que os seus autores e narradores são desconhecidos, uma vez que essas histórias acompanham a humanidade e são o patrimônio cultural efetivo da mesma. Além disso, os seus personagens representam funções em um tempo e espaço indeterminados.

Já a escritora Clarissa Pinkola Estés sustenta que nos contos de fadas há instruções que conduzem à compreensão da evolução feminina. O passado, para a autora, é o elo e a condução para que a mulher encontre o seu autoconhecimento.

Os contos de fadas, os mitos e as histórias proporcionam uma compreensão que aguça nosso olhar para que possamos escolher o caminho deixado pela natureza selvagem. As instruções encontradas nas histórias nos confirmam que o caminho não terminou, mas que ele ainda conduz as mulheres mais longe, e ainda mais longe, na direção do seu próprio conhecimento. As trilhas que todas estamos seguindo são aquelas do arquétipo da Mulher Selvagem, o Self instintivo inato. (ESTÉS, 1994, p.19)
                      
      Por sua vez, Franz afirma que “o estudo dos contos de fadas é essencial,
para nós, pois eles delineiam a base humana universal” (1981, p. 38), esclarecendo ainda que os contos estão além de quaisquer diferença, quer sejam culturais ou raciais, “podendo assim migrar facilmente de um país para outro. A linguagem dos contos de fadas parece ser a linguagem internacional de toda a espécie humana de idades, raças e culturas” (FRANZ, 1981, p. 38).

Desse modo, depreende-se, através da cultura popular, que os contos de fadas tratam de temas universais e antagônicos. Emaranham-se sentimentos como amor e ódio, atitudes de poder e submissão, bem como desígnios de vida e morte. A bem da verdade, o início e o término da narrativa assemelham-se, uma vez que a estabilidade da mesma é alcançada nesses dois períodos. Primeiramente, esse equilíbrio é desestabilizado com um conflito que gera um ou inúmeros outros problemas existenciais e, no momento em que esses são reconhecidos e solucionados, a harmonia é retomada.

Quanto à conceituação de conto de fadas, nota-se que é a atribuição dada a
uma história fantasiosa, a qual tem fadas como personagens, podendo também não as ter, além de reis, rainhas, príncipes, princesas e bruxas. Por outro lado, se o próprio Lobato denominou o “Mundo das Maravilhas” (1990, p. 249) o lugar onde os personagens vivem e desempenham seus papéis dentro dos contos, percebe-se, desta forma, então, que o enredo transcorre em um mundo mágico envolto por florestas e castelos, sendo que a temática central do mesmo é a luta do bem contra o mal. Assim, esse último acaba perdendo a batalha, e o castigo é aplicado ao malfeitor. Convém salientar que nos contos o fracasso também é castigado, e a coragem enaltecida, como em Rosinha dos espinhos, dos Irmãos Grimm, sendo que nesse muitos homens que vieram salvar a princesa pereceram nos espinheiros, porém, o príncipe, que era destemido, alcançou tamanha proeza: acordar e conquistar a princesa. Essa função heroica do príncipe foi assim enfatizada pelos Irmãos Grimm e, dessa mesma maneira, outros também o fizeram, uma vez que o território para os escritores de contos de fadas tinha a demarcação masculina.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte II

1.2 Origens: obras primeiras e seus enfoques

E como encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei!...
CASCUDO, 2004, p. 23.

                                                                 
      Observa-se que a data exata em relação às origens dos contos não se sabe bem ao certo precisar, uma vez que, a partir do momento em que o homem descobriu e aprendeu as diferentes formas de comunicação, o seu universo interno e externo adquiriu forma, cor, simbologia e, assim, migrou como em ondas sonoras, acentuando o imaginário dos povos que no mundo habitavam. Consoante a isso, os registros escritos remontam a séculos antes de Cristo, tendo-se, como exemplo, o século II a.C, em Amor e Psiquê, do escritor latino Apuleio, uma vez que nesse já havia indícios que, posteriormente, poderiam constituir os contos de fadas e, dentre eles, A bela adormecida, A Bela e a Fera, entre outros. No entanto, o que realmente se comprova é que as origens dos contos de fadas provêm de fontes célticas.

      Novaes Coelho cita que Calila e Dimna, obra difundida em inúmeras versões pelo mundo, teve, posteriormente, Abn Al-Mukafa como responsável pela versão e registro árabe fiel da coletânea, no século XVIII, uma vez que “resulta de narrativas pertencentes originalmente ao Pantshatantra (apólogos usados pelos pregadores budistas, a partir do século V) e à primitiva    epopeia indiana Mahabarata, escrita entre os séculos IV a.C. e IV d.C.)” (COELHO, 1987, p.17).

Abdallah, Abn Al-Mukafa, significa o filho do homem de mão atrofiada, ou seja, seu pai recebeu esse castigo em torturas por não se portar de acordo com os preceitos muçulmanos. Abn Al-Mukafa nasceu em Firuzabad, na Pérsia, por volta do ano 724, porém viveu na cidade iraquense de Bassora, conforme Mansour Challita. (1967, p. 206)

      Mansour Challita acrescenta ainda qual o momento histórico vivido na escritura da obra Calila e Dimna, bem como a sua avaliação a respeito da mesma:

A lenda faz remontar a gênese desse livro, numa versão hindu, à época de Alexandre. Dessa data até Abn Al-Mukafa, estende-se um milênio de lutas e tormentas, durante o qual a obra evoluiu e aprimorou-se: o que explica, sem dúvida, a riquíssima experiência política e humana nela concentrada. Assim, Calila e Dimna se distingue por três superioridades: é uma das maiores obras da literatura árabe; é uma das grandes obras da ciência política; é uma das três maiores coletâneas de fábulas de todos os tempos: igual, em beleza, às fábulas de Esopo e La Fontaine, superior a elas em sabedoria e profundidade. (CHALLITA, 1967, p. 207)
                     
      Calila e Dimna pode ser percebido de duas formas, como um tratado de política ou como um receituário de boa conduta. A obra é composta por vinte e seis narrativas e, conforme Novaes Coelho:

O fio condutor de cada grupo de narrativas (= um livro) é “Dabshalim, rei da Índia,” que pede uma estória a “Báidaba, príncipe dos filósofos,” para ilustrar uma situação “exemplar”: os males da intriga, do ciúme ou da inveja; a ambição desmedida; a precipitação imprudente no agir; a irreflexão das palavras, etc. (COELHO, 1991, p.16)
                     
A referida obra traz como personagens principais dois animais, os chacais, que agem de acordo com as características humanas. Estes se denominam Calila e Dimna, atribuindo o nome à coletânea.

Os dois animais representam a personalidade humana, ora voltada para o bem-fazer e para as virtudes, ora voltada para as atitudes pecaminosas. Durante essas variações de temperamento, o conflito da narrativa se instala, quando o personagem chacal Dimna mata um boi. Ato considerado gravíssimo, pois esse animal é sagrado na Índia.

Contudo, Dimna só realiza esse ato grotesco por ser um mau-caráter, ambicionando o que não lhe é devido. Já Calila representa o equilíbrio, a sabedoria, o conhecimento, é o exemplo de integridade que a maioria dos seres humanos deseja alcançar. Em suma, a narrativa representa a complexidade da mente humana.

Conforme Novaes Coelho, Calila representa o homem prudente que se contenta com as circunstâncias em que vive; Dimna representa o ambicioso e astuto que está constantemente desejando ultrapassar-se e se igualar aos poderosos. Neles, estão simbolizadas as duas tendências polares que desde sempre diferenciaram os homens: a que os leva a se contentarem em satisfazer suas necessidades básicas, materiais... e a que os incita a almejarem planos mais altos de realização pessoal (seja através da astúcia e da ação nefasta; seja através da Sabedoria, Conhecimento, grandes ações, conquista de posições superiores aos demais, etc. (COELHO,1991, p.17, reticências da escritora)
                     
Já segundo Menendez Pelayo, em Orígenes de la novela, citado por Novaes Coelho, a moral da referida obra não tem nada a acrescentar aos que o leem, porém atribui às vicissitudes, como a astúcia e a manha, valor indevido.

A moral de Calila e Dimna não é, por certo, muito elevada nem muito severa. Na fábula tem predominado, desde sua mais remota origem, um certo sentido utilitário, um conceito de vida muito pouco desinteressado e que concede mais do que seria justo à astúcia e à manha. (PELAYO apud COELHO, 1991, p. 17)
                     
De acordo com a moral de Calila e Dimna, há uma fábula tunisiana que se assemelha à mesma. A raposa e a gazela, assim denominada, em As mais belas páginas da literatura árabe: amor, humorismo, sabedoria, espiritualidade, (p. 279– 280), a fábula aborda como eixo temático a busca por água, uma vez que a raposa tenta aproveitar-se da ingenuidade da gazela, objetivando sorver sozinha toda a água constante em um poço. Contudo, a raposa que se precipita à frente do dócil animal, é impedida de realizar seu plano, tendo em vista que os animais da floresta cortam-lhe o caminho, atrasando-a. Em consequência disso, a gazela chega primeiro e desfruta daquela água cristalina. Provavelmente, essas narrativas sejam reminiscência das fábulas do Esopo, muito anteriores à tunisiana, uma vez que em Esopo encontra-se a fábula do lobo e da ovelha, sendo que o lobo trata de culpar a ovelha por turvar a água que ele quer beber sozinho.

Constata-se então, assim como em Calila e Dimna, que a astúcia e a manha são valores negativos que jamais devem ser cultuados, vindo a trazer sofrimento a quem os pratica.

Novaes Coelho salienta ainda que dentre a coletânea de narrativas que compõem Calila e Dimna há, “pelo menos duas, que são consideradas precursoras dos contos de fadas: O anacoreta e a rata e Ilaz, Chadarm e Irakht” (1987, p.19). Além disso, faz-se necessário ressaltar que Calila e Dimna não é uma obra única, mas sim uma coleção, dividida em três livros: Pantschatantra, Mahabarata e Vischno Sarna. Coelho cita ainda as histórias que compõem cada um desses livros:

1. Pantschatantra – As Cinco Histórias, englobando as estórias: “O Leão e o Boi”; “Os Corvos e os Corujões”; “A Pomba-de-Colar”; “O Corvo, o Rato, o Cágado e o Veado”; “O Macaco e o Cágado” e “O Eremita e o Mangusto”[...]

2. Mahabarata, com três tábuas: “O Rato e o Gato”; “O Rei e a Ave Fanza” e “O Leão e o Chacal”. 3.Vischno Sarna, com a estória da “Cobra e o Rei dos Sapos”. (COELHO, 1991, p. 26)
                     
Sendebar ou O livro dos enganos das mulheres é também originário da Índia, de autoria do escritor hindu Sendabad, e é a segunda obra oriental citada por Coelho como gênese dos contos de fadas. Essa obra foi traduzida para muitas línguas entre os séculos IX e XIII e apresenta a mesma estrutura temática e elementos que se desenvolvem a partir da tríplice aliança paixão-ódio-sabedoria, características essas próprias de um conto de fadas, de acordo com a autora:

[...] embora não tenha fadas como personagens, pode ser incluído entre os precursores do conto de fadas, uma vez que o seu conflito básico é de natureza existencial: a Paixão amorosa e a Sabedoria da palavra são postos em jogo para a preservação ou a destruição de uma vida. (COELHO, 1987, p. 22, grifos da autora)

Convém salientar que a Índia foi o berço de duas preciosidades que delinearam o mundo literário, uma vez que, a partir dessas obras iniciais, inúmeras outras surgiram, as quais deram continuidade ao ciclo dos contos de fadas.

Quanto à segunda obra que serviu como semente aos contos de fadas, Novaes Coelho refere-se à origem escrita de Sendebar:

A menção mais remota da coletânea dessa obra é a de Almasudi, no século X, em sua famosa compilação Prados de Ouro, onde, ao tratar dos antigos reis da Índia, menciona o filósofo hindu, Sendabad, autor do livro Os Sete Visires, o Pedagogo, o Jovem Príncipe e a Mulher do Rei, - título que corresponde exatamente ao argumento do Sendebar atual. [...] Foi descoberto também um poema persa, traduzido para o árabe, Baktiar– Nameh (ou História dos dez vizieres), que é idêntico às narrativas de Sendebar, e entrou em algumas versões das Mil e Uma Noites. (COELHO, 1991, p. 26-27)
                     
      Sendebar possui vinte e seis narrativas que se entrelaçam ao mesmo tempo, sendo que cada história é uma novidade, surpreendendo e envolvendo a quem a lê. Esse livro alcançou a Península Ibérica juntamente com Calila e Dimna, porém, o que realmente deve ser ressaltado é que, a partir de Sendebar se passou a conceber a mulher como portadora de características pouco virtuosas, em consequência do enredo tratado pela referida obra. Nela já se observa de antemão a presença de uma madrasta, mentirosa e ambiciosa, esposa de um rei. O rei, por sua vez, tinha um filho já adulto, fruto de seu primeiro casamento. A rainha-madrasta, talvez apaixonada pelo seu enteado, ou objetivando somente prejudicá-lo, ou ainda, apaixonada e rejeitada pelo jovem, querendo vingar-se, arquitetou um astuto plano. Acusou-o de ter tentado violentá-la. Assim, o pai-rei, seguindo as leis vigentes da época e, além do mais, já que o fato havia se tornado público, condenou o filho à morte. A penalidade seria a execução do filho-príncipe, a qual foi adiada por sete dias. Durante esse tempo, a defesa, representada por sete sábios, e a acusação, pela madrasta-rainha, julgavam o caso. Enquanto isso, o príncipe-enteado a tudo assistia calado. Essa atitude foi-lhe ordenada, pois os sábios previram que um grande mal o cercaria se alguma palavra dissesse. No oitavo dia, o desfecho acontece. Como o prazo para o perigo acontecer já havia expirado, o príncipe, então, defende-se e a rainha-madrasta tem um final infeliz, tal como em A Bela dormindo no bosque de Perrault e Sol, Lua e Tália de Giambattista Basile, uma vez que os sentimentos e as atitudes das velhas-rainhas também se assemelham, bem como a omissão e fraqueza de caráter do rei.

      Posteriormente, a obra Sendebar fez-se semente em uma terra fértil, repleta de homens sedentos por contarem suas histórias. A partir dessa obra surgiu o conto As aventuras de Simbad, o marujo, inserido em As mil e uma noites. Na verdade, a obra As mil e uma noites é o somatório das duas obras origem Calila e Dimna e Sendebar, pois apresenta a mesma estrutura narrativa das anteriores ou “a idêntica estrutura-em-cadeia”, como afirma Novaes Coelho (1991, p. 20).

      Marina Warner, em um movimento de busca do passado, em Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores, também cita a origem dos contos e quais as obras que se constituíram a partir da obra embrionária.

A Índia, por exemplo, é citada como a fonte de uma coletânea seminal de setenta contos, o Panchatantra (os cinco livros), que foi compilado por volta do século VI a. C. e atribuída a Bidpai (ou Pilpay), um lendário sábio brâmane. Jean de La Fontaine, enquanto passeava pelas margens do Sena em Paris na década de 1660, encontrou um livro de autoria de Bidpai, comprou-o, e os contos que leu tornaram-se uma das fontes de inspiração fundamentais de suas próprias fábulas, que comumente são consideradas o apogeu da urbanidade gálica [...] (WARNER, 1999, p. 20)
                     
      De acordo com Warner, o Panchatantra foi compilado por um sábio brâmane por volta do século VI a. C. Novaes observa que as narrativas contidas no mesmo passaram a ser pregadas nos primeiros séculos d.C. Verificou-se ainda que os contos de fadas se originaram de povos indo-europeus, os quais eram oriundos do sudoeste da Alemanha, mas foram expulsos de seu território pelos romanos, entre os séculos II a. C e o I d. C, vindo esses povos a se espalharem pela Europa e Ásia e migrarem para diversos países. Além disso, constatou-se que as obras Calila e Dimna e Sendebar foram as primeiras que deram origem aos contos de fadas de que se tem registro na história.

      A partir dessas duas obras, consideradas mães dos contos de fadas, torna-se possível inferir que, através delas, um mundo primitivo está representado, onde a lei do mais forte é considerada fato comum. Sendo assim, escritores e estudiosos, embasados na análise dessas obras embrionárias e em suas ramificações, buscaram a significação dos contos procurando, dessa forma, adentrar na trama atemporal, fictícia e real humanas, registrada nos contos de fadas.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

Jorge Luis Borges (A Rosa de Paracelso)

Em sua oficina, que abarcava os dois cômodos do porão, Paracelso pediu a seu Deus, a seu indeterminado Deus, a qualquer Deus, que lhe enviasse um discípulo.

Entardecia. O escasso fogo da lareira arrojava sombras irregulares. Levantar-se para acender a lâmpada de ferro era demasiado trabalho. Paracelso, distraído pela fadiga, esqueceu-se de sua prece. A noite havia apagado os empoeirados alambiques e o atanor quando bateram à porta. O homem, sonolento, levantou-se, subiu a breve escada de caracol e abriu uma das portadas. Entrou um desconhecido. Também estava muito cansado. Paracelso lhe indicou um banco; o outro sentou-se e esperou. Durante um tempo não trocaram uma palavra.

O mestre foi o primeiro que falou:

— Lembro-me de caras do Ocidente e de caras do Oriente — falou, não sem certa pompa — Não me lembro da tua. Quem és e que desejas de mim?

— O meu nome não importa — replicou o outro — Três dias e três noites tenho caminhado para entrar em tua casa. Quero ser teu discípulo. Trago-te todos os meus bens — e tirou um taleigo que colocou sobre a mesa. As moedas eram muitas e de ouro.

Fê-lo com a mão direita. Paracelso lhe havia dado as costas para acender a lâmpada. Quando se voltou, viu que na mão esquerda ele segurava uma rosa, que o inquietou. Recostou-se, juntou as pontas dos dedos e falou:

— Acreditas que sou capaz de elaborar a pedra que transforma todos os elementos em ouro e ofereces-me ouro. Não é ouro o que procuro, e se o ouro te importa, não serás meu discípulo.

— O ouro não me importa — respondeu o outro. — Essas moedas não são mais do que uma parte da minha vontade de trabalho. Quero que me ensines a Arte; quero percorrer a teu lado o caminho que conduz à Pedra.

Paracelso falou devagar:

— O caminho é a Pedra. O ponto de partida é a Pedra. Se não entendes estas palavras, nada entendes ainda. Cada passo que deres é a meta.

O outro o olhou com receio. Falou com voz diferente:

— Mas, há uma meta?

Paracelso riu-se.

— Os meus difamadores, que não são menos numerosos que estúpidos, dizem que não, e me chamam de impostor. Não lhes dou razão, mas não é impossível que seja uma ilusão. Sei que há um Caminho.

— Estou pronto a percorrê-lo contigo, ainda que devamos caminhar muitos anos. Deixa-me cruzar o deserto. Deixa-me divisar, ao menos de longe, a terra prometida, ainda que os astros não me deixem pisá-la. Mas quero uma prova antes de empreender o caminho.

— Quando? — falou com inquietude Paracelso.

— Agora mesmo — respondeu com brusca decisão o discípulo.

Haviam começado a conversa em latim; agora falavam em alemão. O garoto elevou no ar a rosa.

— É verdade — falou — que podes queimar uma rosa e fazê-la ressurgir das cinzas, por obra da tua Arte. Deixa-me ser testemunha desse prodígio. Isso te peço, e te dedicarei, depois, a minha vida inteira.

— És muito crédulo — disse o mestre — Não és o menestrel da credulidade. Exijo a Fé!

O outro insistiu.

— Precisamente por não ser crédulo, quero ver com os meus olhos a aniquilação e a ressurreição da rosa.

Paracelso a havia tomado e ao falar, brincava com ela.

— És um crédulo — disse. — Perguntas-me se sou capaz de destruí-la?

— Ninguém é incapaz de destruí-la — falou o discípulo.

— Estás equivocado. Acreditas, porventura, que algo pode ser devolvido ao nada? Acreditas que o primeiro Adão no Paraíso pode haver destruído uma só flor ou uma só palha de erva?

— Não estamos no Paraíso — respondeu teimosamente o moço — Aqui, abaixo da lua, tudo é mortal.

Paracelso se havia posto em pé.

— Em que outro lugar estamos? Acreditas que a divindade pode criar um lugar que não seja o Paraíso? Acreditas que a Queda seja outra coisa que ignorar que estamos no Paraíso?

— Uma rosa pode queimar-se — falou, com insolência, o discípulo.

— Ainda fica o fogo na lareira — disse Paracelso — Se atiras esta rosa às brasas, acreditarías que tenha sido consumida e que a cinza é verdadeira. Digo-te que a rosa é eterna e que só a sua aparência pode mudar. Bastar-me-ia uma palavra para que a visse de novo.

— Uma palavra? — perguntou com estranheza o discípulo — O atanor está apagado e estão cheios de pó os alambiques. O que farías para que ressurgissem?

Paracelso olhou-o com tristeza.

— O atanor está apagado — reiterou — e estão cheios de pó os alambiques. Nesta etapa de minha longa jornada uso outros instrumentos.

— Não me atrevo a perguntar quais são — falou o moço, deixando Paracelso na dúvida se foi com astúcia ou com humildade. E continuou — Falastes do que usou a divindade para criar os céus e a terra. Falastes do invisível Paraíso em que estamos e que o pecado original nos oculta. Falastes da Palavra que nos ensina a ciência da Cabala. Peço-te, agora, a mercê de mostrar-me o desaparecimento e o aparecimento da rosa. Não me importa que operes com alambiques ou com o Verbo.

Paracelso refletiu. Depois disse:

— Se eu o fizesse, dirias que se trata de uma aparência imposta pela magia dos teus olhos. O prodígio não te daria a Fé que buscas: Deixa, pois, a Rosa.

O jovem o olhou, sempre receoso. O mestre elevou a voz e lhe disse:

— Além disso, quem és tu para entrar na casa de um mestre e exigir um prodígio? Que fizeste para merecer semelhante dom?

O outro replicou, temeroso:

— Já que nada tenho feito, peço-te, em nome dos muitos anos que estudarei à tua sombra, que me deixes ver a cinza, e depois a Rosa. Não te pedirei mais nada. Acreditarei no testemunho dos meus olhos.

Tomou com brusquidão a rosa encarnada que Paracelso havia deixado sobre a cadeira e a atirou às chamas. A cor se perdeu e só ficou um pouco de cinza. Durante um instante infinito, esperou as palavras e o milagre.

Paracelso não havia se alterado. Falou com curiosa clareza:

— Todos os médicos e todos os boticários de Basiléia afirmam que sou um farsante. Talvez eles estejam certos. Aí está a cinza que foi a rosa e que não o será.

O jovem sentiu vergonha. Paracelso era um charlatão ou um mero visionário e ele, um intruso que havia franqueado a sua porta e o obrigava agora a confessar que as suas famosas artes mágicas eram vãs.

Ajoelhou-se, e falou:

— Tenho agido de maneira imperdoável. Tem-me faltado a Fé que exiges dos crentes. Deixa-me continuar a ver as cinzas. Voltarei quando for mais forte e serei teu discípulo e no final do Caminho, verei a Rosa.

Falava com genuína paixão, mas essa paixão era a piedade que lhe inspirava o velho mestre, tão venerado, tão agredido, tão insigne e portanto tão oco. Quem era ele, Johannes Grisebach, para descobrir com mão sacrílega que detrás da máscara não havia ninguém? Deixar-lhe as moedas de ouro seria esmola. Retomou-as ao sair.

Paracelso acompanhou-o até ao pé da escada e disse-lhe que em sua casa seria sempre bem-vindo. Ambos sabiam que não voltariam a ver-se. Paracelso ficou só. Antes de apagar a lâmpada e de se recostar na velha cadeira de braços, derramou o tênue punhado de cinza na mão côncava e pronunciou uma palavra em voz baixa. A Rosa ressurgiu.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.