sábado, 25 de junho de 2016

Contos Populares Portugueses (Os Dois Amigos)

Dois casais de lavradores, muito amigos, tiveram dois filhos nascidos no mesmo dia - uma das crianças era muito boa, a outra tinha um caráter muito mau. No entanto, eram ambos amigos. Entraram no mesmo ano ao serviço militar.

O mau, depois de estar na praça seis meses, começou a desinquietar o bom para ambos desertarem. Este quis dissuadir o amigo e afinal acedeu, e ambos desertaram mesmo. Levavam nas marmitas o rancho do dia.

Depois de andarem muito tempo perdidos pelos matos, foram descansar sob uma árvore. O mancebo bom tirou da sua marmita o rancho e ambos o comeram a meias. Adormeceram depois, acordando já tarde, e seguiram o seu caminho, fugindo sempre das estradas, com receio de serem presos.

No dia seguinte, quase ao sol-posto, foram descansar sob uma árvore. O mancebo mau tirou da sua marmita o rancho e pôs-se a comê-lo sozinho.

- Não me dás do teu rancho?

- Não - respondeu o mau.

- Mas eu dividi o meu rancho contigo.

- E eu dou-te um bocado de pão se me deixares tirar-te um olho com a ponta da minha navalha.

Estranhou o companheiro tal proposta, mas, como tinha muita fome, deixou tirar um olho a troco de uma fatia de pão. Mais logo deixou tirar o outro por idêntico motivo. E o mariola, depois de ver o companheiro cego, desamparou-o.

O infeliz ficou por algum tempo junto da árvore; depois, porém sentindo uivar as feras, aproximou-se do tronco e trepou pela árvore a esconder-se por entre as folhas. À meia-noite ouviu o galopar de um cavalo. Era um sujeito que vinha montado e parou sob a árvore. Esperou algum tempo até que chegaram outros indivíduos também montados.

- Demoraram-se - disse o primeiro.

- É verdade - respondeu um dos que acabavam de chegar. 

- Estive numa cidade e vi que os seus habitantes andam desesperados por falta de água. Temos dali boa colheita.

- E todavia passa ao lado da Capela de S. Sebastião um rio de água esplêndida - observou um terceiro.

- Quanto a mim - disse o quarto - venho satisfeito, pois o rei de certo país está cego por virtude da lepra que lhe corrói o corpo.

- Bem sei - disse o primeiro - e mal sabe ele que estamos à sombra de uma árvore cujas folhas não só curam todas as doenças, mas têm a virtude de dar olhos a quem os perdeu.

- Fazes mal em falar alto! Às vezes, as moitas têm olhos e as pedras têm ouvidos.

- Neste deserto não pode estar ninguém - observou o primeiro.
E todos se foram embora.

Logo que amanheceu, desceu o infeliz da árvore, colheu umas folhas, picou-as em duas pedras e aplicou o sumo sobre os olhos. Ficou completamente curado. Colheu mais folhas e guardou-as no lenço.

Partiu para a terra onde havia falta de água e fez o milagre de lhe dar uma boa nascente. Saiu dali para o país onde reinava o rei leproso e curou-o da doença, restituindo-lhe também a vista.

Se no primeiro sítio o compensaram com muito dinheiro, no segundo o rei deu-lhe a filha em casamento.

Andava o genro do rei visitando as suas tropas, quando viu o seu desalmado companheiro alistado em um dos batalhões do reino. Mandou-o ir ao palácio e deu-se a conhecer. Ficou o malvado aflito, mas o príncipe disse-lhe que não lhe tencionava fazer mal algum, apesar da infâmia que ele praticara.

- Mas - disse o mau - como foi que Vossa Alteza readquiriu a vista e veio a casar com a princesa?

O mancebo contou-lhe toda a verdade, omitindo o incidente relativo ao descobrimento da água.

Nessa mesma noite, desertou o soldado e foi logo postar-se sob a árvore milagrosa.

Esperou a meia-noite. Eis senão quando ouve ele o tropel de cavalos. Eram diversos cavaleiros que vinham muito irritados. Chegaram ao pé da árvore e disse um:

- Quando tu respondeste que por detrás da Capela de S. Sebastião corria um rio de água esplêndida e que a lepra do rei se curava com as folhas desta árvore, fiz logo sentir a inconveniência da tua resposta, dizendo-te que muitas vezes as moitas têm olhos e as pedras ouvidos. Infelizmente, alguém te ouviu!

- E talvez - respondeu o increpado - que hoje aqui esteja de novo a espiar-nos!

Foram acima da árvore e encontraram o soldado. Fizeram-no em pedaços.

Fonte:
Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Olivaldo Júnior (Devaneios Poéticos)

Fonte: Espaço Das

POEMA LIVRE 

Mastigo um pedaço de lua 
e como um segredo de Deus, 
que é dia de festa: 
no céu, 
no mar, 
no lar. 

Rumino um bocado de sol 
e tomo um refresco de azul, 
que é dia o que resta: 
do bem, 
do mal, 
do caos. 

No céu que a gente faz dentro, 
concentro todo o mar 
que não vi, 
o lar 
que eu vivi, 
o céu 
que eu cri. 

Do bem que a gente concentra, 
contemplo todo o mal 
que não cri, 
o caos 
que eu vivi, 
o bem 
que eu vi. 

Lua, Deus, sol e azul, livres, são 
de mim o mais humano 
que experimento, 
o mais de mim que eu reinvento, 
e os tento, 
não como sendo um herege, 
mas como sendo um discípulo, 
alguém.

CORAÇÃO PEQUENINO

No pequenino coração que Deus me dera, couberam, cabem e caberão todas as coisas. Todas as coisas?! Não!... Todas as formas, cores, cheiros, sabores e ruídos de todas as coisas... 

De barbante e papel,
em perfeito destino,
levo em mim o troféu:
coração pequenino.

Não me deixam o céu,
as nuances do sino,
mas escuto o escarcéu:
coração pequenino.

Fosse grande o bastante
para honrar seu intento,
eu, menino e gigante,

dava a si este alento,
de bater com quem cante
seu pequeno lamento.

TODO ADEUS

Num adeus que nunca digo,
digo mais do que já disse,
calo mais do que eu queria,
só me resta, então, poesia.

Num adeus que nunca sigo,
sigo mais do que seguiste,
paro mais do que a poesia,
que me move o dia a dia.

Sob os pés, já sinto os egos
que me espetam; sem alarde,
piso em ovos: tantos eus!...

Lenços brancos, elos cegos,
e uma cor me diz que é tarde,
mudo e cinza todo adeus.

UM PEQUENO AMOR

Num canteiro assim,
entre a pedra e a flor,
foi que eu fiz pra mim
um pequeno amor.

Num cantinho assim,
entre a terra e o andor,
foi que eu quis sem fim
um pequeno amor.

Sob as asas mágicas
de um perfeito anjinho,
enxuguei as lágrimas

de uma flor sem ninho,
pequeninas páginas,
grande amor mindinho.

DE CINZAS 

de sonhos, a quinta 
de chopes, a sexta 
de churros, o sábado 
de reza, o domingo 
de trampo, a segunda 
de sambas, a terça 
de cinzas, a quarta

UM AMIGO VAI-SE EMBORA...

Numa noite sem estrelas,
um amigo vai-se embora,
e eu me privo de retê-las
neste colo, feito a aurora.

Numa noite sem estradas,
um amigo vai-se embora,
e eu me privo das amadas
que me olham toda hora.

Numa noite sem ninguém,
um amigo vai-se embora,
e eu embarco nesse trem

que só parte e até decora
meu trajeto para o além:
longe, muito longe, agora...

O PEQUENO PEREGRINO 

O pequeno peregrino 
pede pão em cada esquina; 
molecote, tão menino, 
e já sofre, e cumpre a sina! 

O pequeno peregrino 
nem seu nome não assina; 
o corpinho, pequenino, 
n'alma, grande, peregrina. 

Já faz tempo, velho amigo, 
que esse pobre perambula, 
mas não pede mais abrigo... 

Quando pede, se encabula, 
volta os olhos, vem comigo; 
sem remédio, a vida é bula.

UMA CAIXA DE SAPATO

Entre lobos sem estepe,
surge a caixa de sapato;
numa esquina, puro rap,
pressa, caixa, desacato.

Um pedestre, um "serelepe",
cheira a caixa de sapato;
não importa que se estrepe,
deixa a caixa: triste fato.

Entre lobos de gravata,
chapeuzinhos de Ray-Ban,
"patricinhas" de regata,

dorme a caixa, serenata;
nela, um baby sem mamã
morde a caixa, se desata.

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta

Sérgio Alves Peixoto (São Francisco de Assis e a Poesia Brasileira) Parte 2


A poesia brasileira “erudita” também acolheu São Francisco. Se começarmos pelo Barroco, quando a literatura brasileira passa a existir como tal, vemos que, por exemplo, Botelho de
Oliveira a ele dedicou um soneto, seu livro Lira sacra . Um soneto blasfemo, como gostavam os barrocos, já que Botelho vê, no sofrimento do santo, sofrimento maior que o do próprio Cristo:

A São Francisco 

Soneto XV 

Excelso patriarca que ordenastes 
Melhor arca no mundo em graças certas 
Se esta foi ordenada em três cobertas 
A vossa com três ordens fabricastes. 

Como a paixão de Cristo tanto amastes 
Vos deu no corpo as chagas descobertas 
E estando vivas nele, estando abertas, 
No mesmo Cristo em Cruz vos transformastes. 

Tivestes melhor Cruz que Cristo amado 
Nesta impressão das chagas, porque nisto 
A Cristo pareceis avantajado. 

Visto pois o favor, o empenho visto, 
Cristo em um lenho foi crucificado, 
Francisco foi crucificado em Cristo. 

De Humberto de Campos, poeta parnasiano hoje totalmente esquecido, selecionamos a passagem em que São Francisco fala às aves, excerto do longo poema sobre o qual falamos acima. Neste trecho, São Francisco “passa um sermão” nas aves, que, parece, não dão valor à felicidade que têm, principalmente quando se assiste a tanto sofrimento humano:

O apóstolo das aves 

No cimo do Subásio, ante a áspera caverna, 
Em lugar que somente o sol visita e banha, 
São Francisco de Assis sonha a vida ampla e eterna 
Falando ao céu azul e às cousas da montanha.

Ante a morte do Sol fecha as asas o Dia. 
O Vale, em derredor, é um turíbulo que arde; 
Sobem, leves, da terra, entre a diurna agonia, 
A alva bruma da fonte e os suspiros da Tarde. 

São Francisco, entretanto, a loura barba ao vento, 
Olhar vago, a beber o fogo o horizonte, 
Mandando a asas e céus a voz e o pensamento, 
Continua a pregar aos pássaros do monte. 

Para ouvi-lo falar, tudo em roda se aquieta; 
O vento, ainda a fugir, atenta o ouvido, e escuta. 
A ave pára; a flor cisma; e aos seus surtos de poeta, 
Trepida o coração da própria pedra bruta. 

E ele fala, a voz doce: “Asas, irmãs desta alma, 
Aves que me escutais neste alto de montanha, 
Sede boas, cantai e amai, na vida calma 
A árvore que vos dá fruto e a áurea luz que vos banha. 

Sede humildes, e amai; a árvore anosa e o ramo 
Do arbusto fraco, amai; amai a terra, cheia 
De doçura e de paz; e amai, como eu vos amo, 
A água que Deus dá à fonte e o grão que Deus semeia. 

E amai-vos. A ninguém, Deus, o senhor do Espaço, 
O criador do que hoje há nas águas e arvoredos, 
Como a vós, dando a fronde, ergue um lar com o seu braço 
E o alimento vem dar nas pontas dos seus dedos. 

Olhai o homem rebelde, olhai o tigre, a fera 
Sanguinária; acordai na alta noite tristonha, 
E escutai o subir da queixa humana e austera, 
As palavras de Dor do homem que vela ou sonha. 

Escutai: tremereis ante o clamor que expande 
A angústia humana; e haveis de abençoar a humildade, 
Vendo, enfim, como é bela, alta, límpida, grande, 
Junto à mágoa dos mais, vossa felicidade.

Por que os homens não são como vós sois? A gruta 
Não seria, talvez, lar mais doce e risonho 
Que o castelo e o palácio, onde morrem na luta 
Que destrói todo Amor, que extingue todo sonho? 

A mão sábia que abriu este velário pela 
Altura, e a árvore pôs sobre o solo atro e bruto, 
Se a terra tinha luz, por que pôs no alto a estrela? 
E se o sangue é melhor, por que a bênção do fruto? 

Não sereis, porventura, aves do espaço, amando 
E cantando pelo ar, mais que os homens, felizes? 
Pois, se tínhamos nós de viver batalhando, 
Por que o ramo dá sombra e o tronco tem raízes? 

O homem morre faminto, e vós, no entanto, vede: 
Cantando a Sua glória e exaltando o Seu nome, 
Já vistes um pardal a queixar-se de sede 
Ou um frágil rouxinol expirando de fome? 

Doces aves do céu, amai, portanto, a Vida, 
Louvai, portanto, a Deus, que vos dá, neste monte, 
Grande e anônimo, a abrir a ampla mão comovida, 
A luz do sol, o grão da terra, a água da fonte!...” 

E, assim, transfigurado, a loura barba ao vento, 
São Francisco, a surgir da luz que o envolve e o banha, 
Mandando a asas e céus a voz e o pensamento, 
Continua a pregar às cousas da Montanha...

O momento simbolista no Brasil, nos deu, por exemplo, dois poemas “franciscanos”. O primeiro deles, um soneto de Durval de Moraes, tematiza os estigmas no Monte Alverne:

São Francisco 

Mãos e pés a sangrar; o flanco, aberto; o gosto 
Do fel no coração, e na alma a solitude... 
À bruta bofetada, impassível o rosto! 
O espírito sereno, ante o insulto mais rude! 

O escarro, a negação, o abandono, o desgosto: 
Dá-me tudo, Senhor, para que se transmude, 
Na minha alma de vil, a amarugem do mosto 
Fervente do Pecado, em vinho da Virtude!... 

São Francisco, chorando, em êxtase exclama. 
Desce, para colher-lhe as pérolas do pranto, 
Vibrante Serafim de seis asas de chama! 

Jardineiro do Amor, que abre em flores as fragas, 
Jesus vinha plantar pelo corpo do Santo 
O celeste rosal das Suas Cinco Chagas!

O segundo, poema à la Rimbaud de Pethion de Vilar, intitulado “Poema das Vogais”, insere o sofrimento de São Francisco quando vai “colorir” a vogal U: 

U – lúgubres clarões agônicos de enxofre; 
Cor do Mistério; cor das paixões sem consolo; 
Soluço há muito preso, estourando de chofre; 
Último beijo, olhar vesgo e triste de goulo. 

Olheiras de Saudade; olheiras de Ciúme; 
Chagas místicas de S. Francisco de Assis; 
Clangores d’órgão que poeta algum resume; 
Desilusões de amor que nenhum verso diz.

continua...

Fonte:
Revista do Centro de Estudos Portugueses. v. 29, n. 42. Belo Horizonte/MG: UFMG, jul./dez. 2009.

domingo, 12 de junho de 2016

Sérgio Alves Peixoto (São Francisco de Assis e a Poesia Brasileira) Parte 1


Fernando Sabino nem se lembrava. Mas em 1932, 
com 7 anos de idade, ele fez um poema dedicado a 
São Francisco de Assis. No texto, descoberto por 
um amigo mineiro, dizia que queria ficar amigo de 
verdade do santo. Tão íntimo que passaria a chamar 
São Francisco de “Chiquinho” e o santo trataria Sabino 
de “Nandinho”.

Conhecido, também, como São Francisco das Chagas e São Francisco Seráfico, São Francisco de Assis é um dos santos católicos mais populares da cultura brasileira. Sendo assim, não é de se estranhar que poetas escrevessem sobre ele ou, até mesmo, com ele se identificassem, já que o Santo também, diz mais a lenda do que a verdade histórica, foi poeta. 

Na pesquisa que fizemos, encontramos duas biografias do santo: uma, em prosa, e dedicada à juventude, do alagoano Jorge de Lima, escritor do nosso modernismo; outra do mineiro Augusto de Lima, em forma de um longo poema.  Os trovadores brasileiros o elegeram como patrono e, na Literatura de Cordel, sua pobreza e sofrimento são temas recorrentes do imaginário do povo nordestino, como atestam a romaria e os festejos de Canindé, no Ceará.

Do trovadorismo, selecionamos a seguinte “interpretação” de autor desconhecido da famosa “Oração de São Francisco”:

1-Faze-me agente, Senhor, 
De vossa radiosa Paz! 
Permiti que eu leve Amor, 
Onde o ódio esteja a mais... 

2-Por onde estiver a Ofensa, 
Que eu leve sempre o Perdão... 
Onde houver Discórdia, intensa, 
Que eu sempre faça a União. 

3-Onde a dúvida existir 
Que eu possa levar a Fé, 
E onde o erro persistir, 
Toda a Verdade da Sé. 

4-Ó Mestre-Amor singular, 
Concedei seja meu fado, 
Consolo a todos levar, 
Mais do que ser consolado. 

5-E que eu possa Compreender, 
Mais do que ser compreendido. 
Possa AMAR, com todo o Ser, 
Muito mais que ser Querido. 

6-Pois, dando é que se recebe, 
Ao irmão necessitado, 
Perdoando é que se percebe 
Que também se é perdoado. 

7-Dai-me Senhor, a Esperança, 
Pela maneira mais terna, 
Pois morrendo é que se alcança 
A glória da Vida eterna

Quanto à Literatura de Cordel, descobrimos o seguinte texto de Wellington Vicente: 

Giovanni Bernardone 
Foi jovem muito feliz 
E enquanto adolescente 
Fez da vida o que bem quis, 
Por “Francesco” apelidado, 
Depois, por Deus transformado 
Em Francisco de Assis. 

Em mil, cento e oitenta e dois 
Nasceu este italiano, 
Pietro e Picca Bernardone 
Foram pais deste ente humano, 
Que numa lição de amor, 
Rejeitou ser mercador 
Para seguir outro plano. 

Como era moda na época, 
Desejou ser cavaleiro, 
O pai doou-lhe armadura 
E um cavalo ligeiro, 
Ele daí animou-se, 
Neste instante transformou-se 
Num combativo guerreiro. 

Combatendo com Perugia 
Assis não via os perigos 
E mandava seus habitantes 
Enfrentar os inimigos, 
Nesses confrontos guerreiros, 
Fizeram prisioneiros 
Francisco e alguns amigos.

Assim Francisco passou 
Quase um ano na prisão, 
Mas seu pai, homem abastado, 
Decidiu entrar em ação: 
Gastou enorme quantia 
Mas livrou da enxovia 
Seu filho do coração. 

Numa noite em que estava 
Com seus amigos na rua 
Fazendo uma serenata 
Sob a beleza da lua, 
Sentiu que algo o tocava 
E bem sutil penetrava 
No fundo da alma sua. 

A partir deste episódio 
Nasceu Francisco de Assis 
O pai de toda a pobreza, 
Protetor do infeliz, 
O amante dos animais, 
Inspira a quem sofre mais 
A uma vida feliz. 

Oitenta anos após 
Cabral descobrir a gente, 
A Ordem dos Franciscanos 
Radicou-se em São Vicente, 
Com um pensamento nobre: 
Transformar o homem pobre 
Em cristão bem diferente. 

Dali pra outros Estados 
A ordem se espalhou, 
Inspirada no seu Mestre 
E no que ele pregou: 
A justiça, dignidade, 
Compreensão, caridade, 
Pelas quais tanto lutou.

Os devotos de São Francisco 
Quando se acham doentes, 
Imploram pelos milagres 
Do Santo dos Penitentes, 
Ele, com sua bondade, 
Retira a enfermidade 
Do corpo desses viventes. 

Inspirados em Francisco 
E nas leis da Santa Sé, 
Transformaram as romarias 
Numa Profissão de Fé, 
Onde a maior louvação 
Percebe-se na procissão 
Existente em Canindé. 

Por são Francisco das Chagas 
Este Santo é conhecido, 
Pois Canindé lembra bem 
O mal por ele sofrido, 
Quem se achar adoentado, 
Pedindo será curado 
Por este Santo querido. 

Em Porto Velho, Rondônia, 
Este Santo é venerado: 
Dia 4 de outubro 
É esse dia marcado, 
Onde o povo em cada canto 
Reza, agradecendo ao Santo, 
Mais um milagre alcançado. 

Mas ao falar em Francisco 
Sinto-me na obrigação 
De relembrar seus discípulos:
 Bernardo, Pedro e Leão, 
Filipe, Egídio e Rufino, 
Clara, no mesmo destino 
De Masseo, na pregação.

Seja de Assis ou das Chagas 
É o Santo mais popular, 
Quem for devoto que reze 
Pra nosso mundo mudar: 
Mais justiça social 
E a consciência geral 
Do perigo nuclear. 

Para a paz reinar nas ruas 
E pra chover no sertão, 
Pra melhorar da coluna 
E curar-se do coração; 
Quem pediu foi atendido, 
É isto que tem trazido 
Milhares à procissão. 

Como o provo brasileiro 
Tem fé e convicção, 
Roga ao Santo que auxilie 
Nas horas de aflição, 
Porto Velho ou Canindé: 
Irmanados pela fé, 
Unidos na devoção. 

Porto Velho – RO, outubro de 1996. 

continua...

Fonte:
Revista do Centro de Estudos Portugueses. v. 29, n. 42. Belo Horizonte/MG: UFMG, jul./dez. 2009.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 5a. Parte, final

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Já em A serpente, encontramos apenas elementos trágicos, tanto no sentido acadêmico quando no senso comum. Aqui é um exemplo prático de que o segundo constitui o primeiro, pois a peça é repleta de situações trágicas, o que vai confluir na fundamentação de uma tragédia. O clima é de tensão do início ao fim da peça, causando até um certo desconforto e mal estar em quem a lê. Já de início, Décio e Lígia discutem, enquanto Décio arruma as malas para ir embora:

(É a separação. Décio está fechando a mala. Fecha, levanta-se e vira-se para Lígia, a mulher, que olha com maligna curiosidade.)
DÉCIO – Pronto.
LÍGIA – Você não vai falar com papai?
DÉCIO – Pra que falar com teu pai? Não falei com a principal interessada, que é você? Perde as ilusões sobre teu pai. Teu pai é uma múmia, com todos os achaques das múmias.
LÍGIA – Então por que você não desaparece? Pode deixar que eu mesma falo. Como é suja a nossa conversa.
DÉCIO – Não me provoque, Lígia!
LÍGIA – Acho gozadíssima sua insolência. Não se esqueça que nós estamos casados há um ano e que você.
DÉCIO – Para!
LÍGIA – Me procurou só três vezes. Ou não é?
DÉCIO – Continua e espera o resto.
LÍGIA – Três vezes você tentou o ato, o famoso ato. Sem conseguir, ou minto?
(Décio avança para a mulher. Segura Lígia pelo pulso.) (Idem, ibidem:57)

Esse é o clima no qual transcorrerá toda a ação da peça, com brigas, discussões. Como toda a peça é composta assim, logo a sua estrutura é também de uma tragédia. Dialeticamente, ela é composta pela esfera do “inter”, pois toda a ação é decorrente das vontades das personagens: tanto de Lígia quanto de Guida e de Paulo. Inclusive o fim trágico, quando Paulo mata sua esposa Guida por causa do seu ciúme doentio, jogando-a do alto do prédio onde moram, era uma vontade iminente de Paulo e Lígia. A peça se desenvolve toda no presente, pois desde o início da ação até o seu final é tudo o que precisamos para compreendê-la e ela se forma. Apesar desta peça ser a que mais deixa a desejar, tanto na questão estética quanto temática, ela não escapa do seu lado moderno. Algumas vezes percebem-se cenas forçadas, diálogos simples numa temática que exige mais recursos do autor. Em relação à esfera do “inter”, ela não é pura como no teatro expressionista, apenas podemos nos remeter às vontades intrínsecas das três personagens que movem a ação da peça: Guida deseja Paulo, que deseja Lígia, que deseja Paulo. Como uma quadrilha, os desejos recíprocos de cada um são responsáveis pelas atitudes deles, e, consequentemente, conduzem a trama da peça. O diálogo também não tem sua constituição pura, pois há momentos em que as personagens vêm à boca da cena para um aparte monologado.

(Lígia cai de joelhos. Guida vai fazer sua ária.)
GUIDA – Você foi sempre tudo para mim. Um dia, eu te disse: – “Vamos morrer juntas?” E você respondeu: – “Quero morrer contigo”. Saímos para morrer. De repente eu disse: – “Vamos esperar ainda”. E eu preferia que todos morressem. Meu pai, minha mãe, menos você. E se você morresse, eu também morreria. Mas tive medo, quando você se apaixonou e eu me apaixonei.(Idem, ibidem:61)

Quanto ao tempo, ele sim é absoluto. Linearmente narrada, a peça transcorre unicamente no tempo presente, sem recursos adicionais ou inovadores.
 
Por fim, Toda nudez será castigada, encenada em 1965, foi chamada, por Nelson, de obsessão. Talvez, ao lado de A falecida e Beijo no asfalto, essa seja a peça mais bem estruturada e desenvolvida do dramaturgo. Nessa peça, o herói – Herculano – é casado com uma prostituta, Geni.

Considerando-se que toda a narrativa acontece em flashback, contada por Geni a partir de uma fita cassete gravada, poder-se-ia dizer, num primeiro momento, que tal peça não pertence à gama dos dramas modernos, tal qual descrito por Peter Szondi. Porém, se formos atentar mais detalhadamente em sua estrutura, verifica-se que todo o passado narrado torna-se presente a partir da reconstituição em cena dos acontecimentos descritos pela prostituta. Ou seja, sob uma estrutura dialética interna do texto, os fatos transcorrem coerentemente num tempo presente, pois se tornam conhecidos naquele momento em que são representados em cena. Sendo assim, o terceiro elemento necessário à constituição do drama está presente nesta tragédia. Ao segundo, o diálogo, creio que não seja necessário me ater muito, visto que todas as Tragédias Cariocas de Nelson são construídas a partir do diálogo das personagens, e essa não foge à regra. Além disso, são diálogos criativos e dinâmicos, conforme já foi explicitado antes. Sendo assim, restaria verificar o primeiro elemento do drama, que é a ação intersubjetiva. Vejamos bem: toda a narrativa parte da voz de Geni. Então, tudo o que acontece é sob a ótica de Geni, na perspectiva dela, representando o que ela sofre e o que ela pensa. Assim, as ações da peça são desenvolvidas em uma esfera interna, própria da personagem, ou como preferiu chamar Szondi, de esfera do “inter”.

Mas é esta tragédia uma peça moderna? Evidentemente. Nelson foi, literariamente, moderno. Principalmente no que concerne à estrutura, falando-se de dramaturgia. Vários são os exemplos da sua modernidade, desde os elementos dos sentimentos trágicos até o isolamento do herói e a condução da ação trágica por meio do herói.

Em vários momentos da peça a ação é levada à tensão máxima, provocando um sentimento trágico recorrente no desenvolvimento. Já no início, as tias estão pesarosas com a sanidade de Herculano. Devido ao falecimento de sua esposa, as tias têm medo de que ele se mate, pois está em estado de choque e depressão. Um dos momentos mais trágicos da peça é quando uma das tias revela a Herculano o estupro de seu filho na cadeia:

TIA (contida mas tiritando) – Estou dizendo coisa com coisa. Serginho bebeu e brigou.
HERCULANO – Mas está vivo? Está vivo?
TIA – Prenderam o menino. Botaram o menino no xadrez junto com o ladrão boliviano. O outro era muito mais forte. (Exaltando-se) E, então (tem um verdadeiro acesso), o resto não digo! Vocês não vão saber! (Recua diante de Geni) – Essa mulher não vai ouvir de mim, nem mais uma palavra.
HERCULANO – Mas está vivo?
TIA (incoerente, cara a cara com o sobrinho) – Teu filho foi violado! Violado! Não é isso o que você queria saber? (Vai até Geni e repete para Geni) Violado! Violaram o menino!
HERCULANO (soluçando) – Não! Não!
TIA (mudando de tom. Um lamento quase doce) – O menino serviu de mulher para o ladrão boliviano! Gritou e foi violado! O guarda viu, mas não fez nada. O guarda viu. Os outros presos viram.(Idem, ibidem:208)

Podemos perceber que as ações giram em torno das personagens e do que elas sentem e sofrem. E uma das marcas do moderno é justamente a ação se centrar na necessidade individual do herói. Assim vemos em Toda nudez será castigada a necessidade de Herculano em liberar-se de um enquadramento sexual determinado pela instituição do casamento; ou então, a necessidade de Geni de satisfazer-se, não somente com Herculano, mas com Serginho. O desejo de Serginho de vingar-se do pai o transforma em amante da madrasta. Logo, vemos que as ações são conduzidas pelas vontades das personagens, assim como nas outras peças aqui analisadas também o são. No caso de Toda nudez, principalmente pela necessidade de Patrício se vingar de Herculano.

Nelson Rodrigues, ao extrapolar alguns conceitos do trágico – e até mesmo do moderno –, fundou o que eu prefiro chamar de trágico rodrigueano. O dramaturgo conseguiu, ao menos no ciclo das Tragédias Cariocas, mesclar objetos do trágico antigo e do moderno, mas, não satisfeito, foi buscar recursos de outros gêneros dramáticos para embasar o seu próprio estilo, trágico, tragicômico, melodramático. E, ironicamente, é esse misto de gêneros que o faz grande, complexo e, contraditoriamente, unânime.

 3. Referências bibliográficas
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Tradução e notas de J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______. Teatro completo de Nelson Rodrigues. vol. 3. 6. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
______. Teatro completo de Nelson Rodrigues. vol. 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
ROSENFELD, Anatol. Introdução. In: Schiller. Teoria da tragédia. São Paulo: EPU, 1991.
SALOMÃO, Irã. Nelson, feminino e masculino. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.
SCHILLER, Friedrich. Teoria da tragédia. São Paulo: EPU, 1991.
WILLIAMS, Raymond. Trágico moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.


Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Carlos Lúcio Gontijo (Sentimento do mundo)


Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas... Há muito se ouve essa frase de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, que parafraseou ensinamento de Jesus Cristo: “Não lanceis pérolas aos porcos”. E que, mais modernamente, está em música cantada pela banda Titãs: Só quero saber/ Do que pode dar certo/ Não tenho tempo a perder.

Os ditados e filosofias vão sofrendo mudanças de linguagem, mas a essência é alicerce permanente e, no caso em pauta, nos sugere que nosso tempo de vida terrestre é breve e que não devemos desperdiçá-lo com questões imutáveis, como canta Chico Buarque na música À flor da pele: “O que não tem conserto nem nunca terá.../ O que não tem governo nem nunca terá/ O que não tem vergonha nem nunca terá/ O que não tem juízo”.

Nunca foi tão difícil editar livros e dar-lhes a eficiente circulação, contudo os autores que têm literatura e poesia no sangue e as abraçam como o próprio ar que respiram não encontram outra saída que não seja enfrentar os custos gráficos, a indiferença, falta de gosto pela leitura da população e a inexistência de incentivo oficial à propagação da leitura como fator fundamental para a elevação da qualidade educacional, que não tem como ser ampliada sem a moldura da cultura dando sentido prático, emocional e, ao mesmo tempo, sensibilizando os alunos de todos os níveis de ensino, do ensino fundamental aos cursos universitários.

Ir aonde o leitor está e evitar a perda de esforço, além de possíveis decepções, é a meta de todo autor independente, mas como alcançar essa busca, se os leitores estão dispersados de maneira tão rarefeita Brasil afora: temos gente com diploma de curso superior que nada lê, enquanto pessoas de pouco estudo adoram livros; assistimos a gente de alto poder aquisitivo que não passa nem perto de livro, ao passo que trabalhador assalariado faz todo sacrifício para ter acesso à literatura e à poesia. 

Dessa forma, pelo menos no caso da atividade de escriba (maior ou menor) não há como ele evitar a possibilidade de, uma vez ou outra, passar sua obra literária a mãos ignaras que não darão o menor valor ao empenho intelectual e ao dispêndio financeiro carreados na trabalhosa materialização de produto cultural gráfico, seja ele um livro, uma revista ou até um jornal. Entretanto, são os ossos do ofício e, a bem da verdade, tais dificuldades é que garantem aos poetas e escritores carregarem no peito o "Sentimento do mundo", terceira obra poética de Carlos Drummond de Andrade, na qual o poeta nos revela sua limitação e impotência perante este mundão de meu Deus, onde as supostas certezas se perdem no caudaloso mar do contraditório em que banham os seres humanos: "Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo". 

Por outro lado, “Sentimento do mundo" pode ser entendido também como um poema sobre o próprio fazer literário ("minhas lembranças escorrem"), onde os poemas ("escravos") surgem como armas ("havia uma guerra/ e era necessário/ trazer fogo e alimento"). É nesse digladiar contra a realidade perversa e injusta que os poetas e escritores vão enchendo-se de sentimento do "sentimento do mundo", que dão origem a uma visão pessimista tão magnificamente grafada pelos versos de Drummond, clareando-nos a mente, metaforicamente, com um amanhecer "mais noite que a noite".

Engana-se, porém, quem imagina que o poeta maior deixou algum dia o pessimismo lhe sufocar as luzes de esperança que povoam toda escuridão. Foi ele quem um dia, recebendo o meu primeiro livro, cometeu o humano sentimento de mundo, ao me ungir com a possibilidade de algum horizonte em meio às pedras do caminho: ”Rio de Janeiro, 15 de junho de 1977. Prezado Carlos Lúcio Gontijo: Ventre do Mundo está aqui sobre a mesa, com a sua carta informativa e simpática. Obrigado pela lembrança gentil. Um livro de poemas e aforismos que se esgota em quinze dias é sinal de que o seu autor soube dar o recado. E você o fez numa forma gráfica elegante e nova. Deve estar contente. Parabéns, e vá em frente, xará. O abraço e a simpatia cordial de Carlos Drummond de Andrade”.

Fontes:
Colaboração do autor
Imagem do Livro = www.carlosluciogontijo.jor.br