terça-feira, 11 de outubro de 2016

Guilherme de Almeida (Poemas Escolhidos)



NÓS, I

O pequenino livro, em que me atrevo
a mudar numa trêmula cantiga
todo o nosso romance, ó minha amiga,
será, mais tarde, nosso eterno enlevo.

Tudo o que fui, tudo o que foste eu devo
dizer-te: e tu consentirás que o diga,
que te relembre a nossa vida antiga,
nos dolorosos versos que te escrevo.

Quando, velhos e tristes, na memória
rebuscarmos a triste e velha história
dos nossos pobres corações defuntos,

que estes versos, nas horas de saudade,
prolonguem numa doce eternidade
os poucos meses que vivemos juntos.

PERCEVAL

Ele, o monge, dizia: "Eu fui glorioso e forte:
chamavam-me, no mundo, o Belo Perceval...
Muito alfanje inimigo, embaixador da morte,
estalou no broquel pregado ao meu braçal!

Por Brancaflor venci, sozinho, uma coorte;
zombei do Rei Artur, matando-lhe o rival;
ao brilho do meu nome e esplendor do meu porte
eu conquistei a glória, um trono e o Santo Graal!

Depois... fiz-me eremita. E, à sombra de uma penha,
eu vesti, sem amor, sem fé, sem esperança,
sobre a armadura de aço o manto de estamenha...

Porque — ai de mim! — se o meu arnês nunca sequer
deixou que perpassasse a ponta de uma lança,
também não quis que entrasse o olhar de uma mulher!"

DOR OCULTA

Quando uma nuvem nômade destila
gotas, roçando a crista azul da serra,
umas brincam na relva; outras, tranquila,
serenamente entranham-se na terra.

E a gente fala da gotinha que erra
de folha em folha e, trêmula, cintila,
mas nem se lembra da que o solo encerra,
da que ficou no coração da argila!

Quanta gente, que zomba do desgosto
mudo, da angústia que não molha o rosto
e que não tomba, em gotas, pelo chão,

havia de chorar, se adivinhasse
que há lágrimas que correm pela face
e outras que rolam pelo coração!

FELICIDADE

Ela veio bater à minha porta
e falou-me, a sorrir, subindo a escada:
"Bom dia, árvore velha e desfolhada!"
E eu respondi: "Bom dia, folha morta!"

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando, pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então, chamou-me e disse: "Vou-me embora!
Sou a Felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz!"

E foi assim que, em plena primavera,
só quando ela partiu, contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!

SONETO ÚNICO

Vejo a sombra partir-se pelo meio
e pôr-me duas pálpebras na face;
minha boca de sede bebe o seio
de alguma estrela que me amamentasse;

tem um peso de terra o corpo alheio
que há no meu corpo; em meus ouvidos nasce
uma árvore cantando um vento cheio
de céu em cada enlace e desenlace;

em minhas mãos paradas pousam ninhos;
vão os passos de todos os assombros
andando as minhas veias de caminhos;

e há, para o vôo aceso numa aurora,
pressentimentos de asas nos meus ombros
— quando a Moça da Foice me namora.

LÍRICA CAMONIANA
A Camoniana é composta por 26 sonetos de sabor camoniano que registram estados emocionais de um  breve mas intenso e atribulado caso de amor do poeta, já na meia idade.

[TRISTEZA]

Tristes versos que a pena entristecida
Foi, por o gosto de penar, traçando,
Sem saber que me estava retalhando,
A alma, o peito, a razão, o sonho, a vida:

Em quais terras da terra será lida
A confidência que ides confiando?
E, bem mais e melhor que lida, quando,
Em qual tempo dos tempos, entendida?
Às terras, e ainda aos tempos mais diversos,
Ide, sem pressa aqui, ali sem pausa,
Pois só por o partir foi que partistes.

Qual glória heis de esperar, meus tristes versos,
Se já vos falta aquela vossa causa
De serdes versos e de serdes tristes?

[PAIXÃO]

Se isto de amar é só viver morrendo
E achar-me de tal morte satisfeito;
Não do meu ser, mas de outro, ser sujeito,
Sendo menos quem sou do que outrem sendo;

Se é ao meu coração ir prometendo
Lugar conforme num alheio peito,
E, em se ele mais mostrando, de tal jeito,
Das suas mostras mais ir-me escondendo;

Se isto é amor, e se a Fortuna é essa
Que se exp'rimente em mim a sua lei;
Se uma esquivança após de uma promessa

E o nada ter é tudo o que terei:
Que lhe sei já pedir, que me não peça?
Que me pode já dar, que lhe não dei?

[POSSE]

Tanto de vossa vida vivo ausente,
Quanto perto viveis de minha vida:
Onde presente sou, sois escondida,
Onde sou escondido, sois presente.

Mandais que vossa vida se acrescente,
Não de alguma outra coisa prometida,
Que não da coisa que não for vivida,
E com coisa outra alguma se contente.

Porém, se tenho eu pouco e tendes muito,
Igual parte provamos de igual fruito,
Pois responde o que quero ao que podeis.

Vede que um mesmo engano é o meu, e é o vosso:
Por minha quero ter-vos, e não posso,
Por vosso podeis ter-me, e não quereis.

[AUSÊNCIA]

A qual parte vos fostes, que vos vejo
Mais que nunca presente em toda parte?
Tanto sois para mim que, se o que parte
É muito, inda o que fica me é sobejo.

A cada instante meu, a cada ensejo,
Tão bem, por formas tais e de tal arte
Vossa apartada imagem se reparte,
Que nada mais já sobra ao meu desejo.

Qual, fugindo da terra, pela altura
Vai-se o sol, tal vos fostes, ordenando
Que a meus pés fique a sombra sobre o pó.

Tanto o vosso rigor nisso se apura,
Que em vos partindo só, e em me deixando,
Nem me deixais o gosto de ser só.

[IMORTALIDADE]

Alma que de meu corpo te apartaste,
Corpo que de minh'alma te partiste,
E que dest'arte em dois me repartiste,
E numa só desdita a ambos juntaste:

Qual vida é igual à morte que inventaste?
Qual morte mais do que tal vida é triste?
Que humano ser tão desumano existe
Que haja sua igualdade em tal contraste?

Ante a razão porque a razão cativa
No próprio cativeiro acha conforto,
E às vezes se abandona, outras se esquiva,

Chego a quedar-me ante mim mesmo absorto,
Alma sem corpo, que não sei se é viva,
Corpo sem alma, que não sei se é morto.

[DIVAGAÇÃO]

Naquela solidão, naquela altura
Onde os olhos nos montes apascento,
E é o sonho, no seu doce alheamento,
Mais verde d'esperança que a verdura;

Onde a vida adormece, e de mistura
Aos sentidos se afaz o entendimento,
Ali me vos figura o pensamento,
Branda de pensamento e de figura.

Que é minha condição, meu mal sobejo
Andar a minha vista revistando
Apenas o que avista o meu desejo.

Sem ventura de mim que, imaginando,
Se vos não vejo, sonho que vos vejo,
E se vos vejo, cuido estar sonhando!

Guilherme de Almeida (1890 - 1969)

Guilherme de Almeida (G. de Andrade e A.), poeta e ensaísta, nasceu em Campinas, SP, em 24 de julho de 1890, e faleceu em São Paulo, SP, em 11 de julho de 1969.
         Filho do jurista e professor de Direito Estevam de Almeida, estudou nos ginásios Culto à Ciência, de Campinas, e São Bento e N. Sra. do Carmo, de São Paulo. Cursou a Faculdade de Direito de São Paulo, onde colou grau de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1912. Dedicou-se à advocacia e à imprensa em São Paulo e no Rio de Janeiro. Foi redator de O Estado de São Paulo, diretor da Folha da Manhã e da Folha da Noite, fundador do Jornal de São Paulo e redator do Diário de São Paulo.
         A publicação do livro de poesias Nós (1917), iniciando sua carreira literária, e dos que se seguiram, até 1922, de inspiração romântica, colocou-o entre os maiores líricos brasileiros. Em 1922, participou da Semana de Arte Moderna, fundando depois a revista Klaxon. Percorreu o Brasil, difundindo as ideias da renovação artística e literária, através de conferências e artigos, adotando a linha nacionalista do Modernismo, segundo a tese de que a poesia brasileira “deve ser de exportação e não de importação”. Os seus livros Meu e Raça (1925) exprimem essa orientação fiel à temática brasileira.
         A essência de sua poesia é o ritmo “no sentir, no pensar, no dizer”. Dominou amplamente os processos rímicos, rítmicos e verbais, bem como o verso livre, explorando os recursos da língua, a onomatopeia, as assonâncias e aliterações. Na época heroica da campanha modernista, soube seguir diretrizes muito nítidas e conscientes, sem se deixar possuir pela tendência à exaltação nacionalista. Nos poemas de Simplicidade, publicado em 1929, retornou às suas matrizes iniciais, à perfeição formal desprezada pelos outros, mas não recaiu no Parnasianismo, porque continuou privilegiando a renovação de temas e linguagem. Sobressaiu sempre o artista do verso, que Manuel Bandeira considerou o maior em língua portuguesa.
         A sua entrada na Casa de Machado de Assis significou a abertura das portas aos modernistas. Formou, com Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Menotti del Picchia e Alceu Amoroso Lima, o grupo dos que lideraram a renovação da Academia.
         Em 1932 participou da Revolução Constitucionalista de São Paulo e esteve exilado em Portugal. Distinguiu-se também como heraldista. É autor dos brasões-de-armas das seguintes cidades: São Paulo (SP), Petrópolis (RJ), Volta Redonda (RJ), Londrina (PR), Brasília (DF), Guaxupé (MG), Caconde, Iacanga e Embu (SP). Compôs um hino a Brasília, quando da inauguração da cidade.
         Em concurso organizado pelo Correio da Manhã foi eleito, 16 de setembro de 1959, “Príncipe dos Poetas Brasileiros” (4o do título).
         Era membro da Academia Paulista de Letras; do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo; do Seminário de Estudos Galegos, de Santiago de Compostela; e do Instituto de Coimbra.
         Traduziu, entre outros, os poetas Paul Géraldy, Rabindranath Tagore, Charles Baudelaire, Paul Verlaine e, ainda, a peça a peça Huis clos (Entre quatro paredes) de Jean Paul Sartre.
 
Obras:
Nós, poesia (1917); A dança das horas, poesia (1919); Messidor, poesia (1919); Livro de horas de Soror Dolorosa, poesia (1920); A flor que foi um homem: Narciso (1921); Era uma vez..., poesia (1922); Natalika (1924); A flauta que eu perdi, poesia (1924); Meu, poesia (1925); Raça, poesia (1925); Encantamento, poesia (1925); Do sentimento nacionalista na poesia brasileira, ensaio (1926); Ritmo, elemento de expressão, ensaio (1926); Simplicidade, poesia (1929); Gente de cinema (1929); Carta à minha noiva (1931); Você, poesia (1931); Poemas escolhidos (1931); Cartas que eu não mandei (1931); Hino paulista (1932); Nova bandeira (1932); O meu Portugal (1933); A casa (1935); Acaso, poesia (1938); Cartas do meu amor (1941); Estudante poeta (1943); Tempo (1944); Poesia vária (1947); Gonçalves Dias e o romantismo (1948); Joca (1948); Histórias talvez (1949); O anjo de sal (1951); Toda poesia (1952); Acalanto de Bartira (1954); Camoniana (1956); Pequeno romanceiro (1957); A rua (1961); Cosmópolis (1962); Rosamor (1966); Os sonetos de G. A (1968); O sonho de Marina (s.d.).

Lendas da Índia (A Busca das Plantas Medicinais)

No cerco de Lanka, o chão ficou coalhado de mortos e de feridos. Lakshman foi gravemente atingido e Rama entrou em desespero com o estado que se encontrava o irmão.

Nesse momento Hanuman atravessou o mar, dessa feita voando em direção ao norte, até o Himalaia, em busca da montanha da vida, coberta de plantas medicinais capazes de curar todo tipo de ferimento e ainda devolver a vida aos mortos.

Vindas da lua, as plantas brilhavam com luz própria. Lá de cima, Hanuman viu a montanha faiscando. Mas as plantas se esconderam debaixo da terra e as luzes se apagaram, quando sentiram que alguém se aproximava.

Como não havia tempo para desenraizá-las, Hanuman arrancou a montanha inteira, com as ervas, árvores, os minérios, rios, animais e,  levantando-a com as mãos acima da cabeça, retornou a Lanka. O voo rápido aqueceu as ervas que começaram a exalar vapores. Enquanto pairava no ar, à procura de um lugar apropriado para depositar a montanha, o cheiro das plantas se espalhou por todo o campo de batalha e isso foi o bastante para que os mortos recuperassem a vida e os feridos se curassem. Todos se salvaram, romperam o cerco e conquistaram Lanka.

Vencida a guerra contra o Demônio de Dez Cabeças, Sita foi liberada e voltou para a companhia de Rama, de Lakshman, agora completamente curado, de Hanuman, Sugriva, Jambavat e do vitorioso exercito de macacos e ursos.

Fonte: