quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Folclore de Campos dos Goytacazes (Ururau, da Lapa)

Entende-se por FOLCLORE o conjunto de crenças, lendas, festas, trava-línguas, parlendas, advinhas, superstições, artes e costumes de um povo. Muitos nascem da pura imaginação das pessoas, principalmente dos moradores das regiões do interior do Brasil. Tal conjunto, normalmente é passado de geração a geração, por meio dos ensinamentos e da participação real dos festejos e dos costumes. De origem inglesa, o folclore é uma palavra originada pela junção das palavras folk, que significa povo; e lore, que significa sabedoria popular. Formou-se então a palavra folclore que quer dizer sabedoria do povo. 

A cidade de Campos dos Goytacazes tem um total de mais de 150 bairros. A LAPA é um bairro da cidade, de origem operária, formada em torno de uma fábrica de tecidos que existia, na cidade. Neste bairro, em uma curva do rio Paraíba do Sul, existe a Igreja da Lapa, onde havia um orfanato, que foi mantido por uma ordem religiosa, cujas irmãs de caridade cuidavam de meninas órfãs, algumas abandonadas à porta da Igreja, outras colocadas na Roda dos Enjeitados, existente no antigo prédio da Santa Casa de Misericórdia de Campos (no centro da cidade), instituição que essas freiras ajudavam a administrar. Esse prédio, patrimônio histórico de Campos, foi demolido, seu espaço serviu como um estacionamento, durante muitos anos e hoje é um shopping.

Em Campos destacam-se algumas manifestações folclóricas, tais como: Jongo,Cavalhada, Mana-Chica, danças típicas, Folia de Reis, Boi Pintadinho, que a cultura transformou em Boi-de-Samba, além da lenda do URURAU DA LAPA, que passaremos a narrá-la a seguir.

Essa lenda campista possui várias versões diferenciadas. Uma dessas versões conta que aconteceu, por volta de 1700, uma história de amor proibido entre um rapaz pobre e uma moça rica. O rapaz passou a ser perseguido pela ira do Coronel, pai da moça, protagonista desse amor proibido.

Combinados de fugir no dia da festa de São Salvador, padroeiro da cidade, foram surpreendidos pelos capangas do coronel que matam o rapaz e o jogam no Rio Paraíba do Sul. O deus das águas, vendo a maldade do coronel, eternizou a vida do rapaz e o encantou, transformando-o em um Ururau. Ururau é um enorme jacaré, de papo amarelo, que vive nas proximidades da curva da Lapa, assombrando as pessoas.  De vez em quando, quando é noite de Lua cheia, o Ururau  vem à superfície do rio, para matar a saudade de sua amada. Não a encontrando, pega algumas meninas (geralmente desse orfanato) para levá-las com ele. 

O coronel, arrependido, por medo de receber o castigo divino, como penitência desse seu pecado, mandou vir um sino de ouro de Portugal, para a Igreja da Lapa. Mas o Ururau, sem querer deixar que o coronel se penitenciasse pelo seu pecado, atacou e virou o navio que trazia o sino, que naufragou. O sino foi parar no fundo do rio Paraíba do Sul. Este sino de ouro está lá, no fundo deste rio, na curva da Lapa, até hoje. E o Ururau é o seu guardião.

Fontes:
Talita Batista – Seção da U.B.T. de Campos dos Goytacazes.
Imagem: https://www.behance.net/gallery/A-Lenda-do-URURAU-da-LAPA

Cidade de Campos dos Goytacazes/RJ (alguns aspectos)


Campos dos Goytacazes é um município do interior do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil. De acordo como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, possui uma população de 487 186 habitantes. É a mais populosa cidade do interior do Estado. Este é o município de maior extensão territorial do Estado do Rio de Janeiro, ocupando uma área de 4 826,696 quilômetros quadrados. 

Localizam-se no município, importantes universidades públicas. Segundo o IBGE, Campos dos Goytacazes teve, em 2013, o sétimo maior PIB do Brasil, sendo a cidade brasileira, que não é capital, com o maior PIB nacional, naquele ano.

Originalmente foi habitada pelos índios da tribo Goitacá, que se caracterizavam por ter um porte atlético, serem exímios nadadores e muito hábeis na arte de lidar com cavalos. Guerreiros, defendiam o seu chão do domínio estrangeiro, com muita garra, chegando a ter fama de antropófagos. 

Com a chegada dos padres jesuítas e beneditinos, na região e da pacificação junto aos índios é que as terras passaram a ser conhecidas pelos colonizadores e senhores de engenhos. A colonização de origem portuguesa porém, só se iniciou a partir de 1627, quando o governador Martim Correia de Sá, em reconhecimento ao heroísmo nas lutas contra os índios, doou algumas porções de terra da capitania aos SETE CAPITÃES, que, em 1633, construíram currais para o gado, próximos da Lagoa Feia e da ponta de São Tomé.

A partir de então, começou a verdadeira ocupação de origem portuguesa na cidade de Campos. Os capitães moravam em seus engenhos, no Rio de Janeiro e Cabo Frio, arrendando quinhões de suas sesmarias, contribuindo, assim, para o crescimento da população. A criação do gado, neste período, se multiplicou de forma assombrosa, assim como a diversificação de atividades.

Os canaviais começaram a aparecer nas regiões mais elevadas da planície. A política, até então estável, foi quebrada com a chegada de latifundiários poderosos, entre eles Salvador Corrêa de Sá e Benevides, que abusou do poder e da posição (pois era o governador da capitania na época), estabeleceu parcerias com os religiosos, que se beneficiavam na partilha da planície. Começaram, então, as lutas pelas terras. 

De um lado, herdeiros dos SETE CAPITÃES, pioneiros, colonos, campeiros e vaquejadores; de outro, os ASSECAS, herdeiros de Salvador de Sá. Durante aproximadamente 100 anos, a capitania viveu em conflitos pela posse das terras. A Coroa chegou a retomar a terra várias vezes, mas, devido às crises vividas pela mesma, voltou para as mãos dos Assecas. Somente em 1752, com a compra da capitania e a contribuição pecuniária da própria população, é que a região foi finalmente pacificada.

No decorrer do domínio dos Assecas, predominava a pequena propriedade, mas também condicionada pelo meio natural, devido à inexistência de áreas contínuas de grande extensão, já que havia inúmeras lagoas. Campos possui um importante bacia hidrográfica, formada pela Lagoa de Cima, Lagoa do Vigário, Lagoa Limpa, Lagoa do Sapo, Rio Paraíba do Sul e Lagoa Feia.

A partir do domínio da CANA-DE-AÇÚCAR, a região passou por um período de recuperação, mas continuava isolada da capital do Estado do Rio de Janeiro. No início dos anos 1800, toda a planície encontrava-se ocupada e partilhada, mas ainda restavam quatro latifúndios: Colégio dos Jesuítas e São Bento (correspondentes à cidade de Campos e seu entorno), Quiçamã, além da fazenda dos Assecas, onde surgiu o povoado da Barra Seca (atual município de São Francisco de Itabapoana).

No ano de 1833, foi criada a Comarca de Campos e, em 28 de março de 1835, a Vila de São Salvador é elevada à categoria de cidade, com o nome de CAMPOS DOS GOYTACAZES. A pecuária e o cultivo da cana-de-açúcar se estenderam pela planície entre o Rio Paraíba do Sul e a Lagoa Feia. Em 1875, a cidade tinha 245 engenhos de açúcar, com 3 610 fazendeiros estabelecidos na região. 

A primeira USINA foi construída em 1879, com o nome de Usina Central do Limão, pertencente ao doutor João José Nunes de Carvalho. Devido à sua importância, a cidade de Campos recebeu a visita de D. Pedro II quatro vezes. Na primeira, em 1883, o imperador inaugurou a luz elétrica na cidade, passando assim a ser a primeira cidade da América do Sul a ter luz elétrica.

Ao final dos anos 1980, os municípios de Campos, Macaé e Conceição de Macabu, tinham uma agroindústria açucareira expressiva. A ascensão de São Paulo como maior produtor nacional, seus altos níveis de produtividade, além da expansão da área cultivada pela cana-de-açúcar no Nordeste do país, aliados à falta de modernização do complexo campista, fizeram com que a região passasse a ser coadjuvante no contexto nacional. 

O endividamento de algumas usinas obrigou muitas delas a se fecharem, atingido, consequentemente, a economia da região Norte Fluminense. A descoberta do PETRÓLEO na bacia de Campos, nos anos 1970, e a construção do Superporto do Açu têm contribuído para a recuperação da região, nos dias de hoje.

A história de Campos é rica em importantes acontecimentos políticos. Foi um dos primeiros do Brasil a embarcar voluntários para a guerra do Paraguai, em 28 de janeiro de 1865, pelo vapor Ceres.

Foi a primeira cidade da América Latina a ter energia elétrica, em 24 de julho de 1883. O movimento abolicionista também encontrou eco em Campos. A campanha abolicionista teve seu ponto alto em 17 de julho de 1881, com a fundação da Sociedade Campista Emancipadora, que propagava a luta pela emancipação dos negros, tendo, na pessoa do jornalista Luiz Carlos de Lacerda, o seu maior expoente. 

O grande vulto José Carlos do Patrocínio, o "tigre da abolição", foi também um dos principais nomes da luta pelo fim da escravidão, que mudaria os destinos políticos do Brasil imperial, preparando-o para a proclamação da República do Brasil.

Vários campistas governaram o Estado do Rio de Janeiro, como Nilo Peçanha, eleito pela primeira vez para o período de 1903 a 1906 e, pela segunda vez, de 1914 a 1917. Nilo Peçanha foi eleito vice-presidente do Brasil e assumiu o mandato, de 1909 a 1910, com a morte de Afonso Pena. Mais recentemente, o ex-prefeito de Campos, o radialista Anthony Garotinho foi eleito governador, em 1998. A sua esposa Rosinha Garotinho concorreu à sua sucessão e foi eleita em 2002. Esse mesmo grupo político permaneceu no poder até 2016, quando foi eleito o jovem vereador Rafael Diniz, por uma expressividade esmagadora de votos e passará a ser o novo prefeito da cidade a partir de 2017.

A cidade de Campos dos Goytacazes tem um total de mais de 150 bairros. A LAPA é um bairro da cidade, de origem operária, formada em torno de uma fábrica de tecidos que existia, na cidade. Neste bairro, em uma curva do rio Paraíba do Sul, existe a Igreja da Lapa, onde existia um orfanato, que foi mantido por uma ordem religiosa, cujas irmãs de caridade cuidavam de meninas órfãs, algumas abandonadas à porta da Igreja, outras colocadas na Roda dos Enjeitados, existente no antigo prédio da Santa Casa de Misericórdia de Campos (no centro da cidade), instituição que essas freiras ajudavam a administrar. Esse prédio foi demolido, junto com esse patrimônio histórico de Campos.

Campos tem muitas bordadeiras e artesãs. Existe uma feira municipal, cujas barracas são montadas no centro da cidade, com os mais variados trabalhos artísticos de bordados em ponto de cruz, tricô e crochê. Encontram-se lá também barracas de doces e salgados. 

Cidade do açúcar e do petróleo, Campos notabiliza-se, além da produção da cachaça. pela produção de muitos DOCES, como a GOIABADA e melado. Entre os doces típicos de Campos, destaca-se o CHUVISCO. Sabemos que as portuguesas são notáveis na habilidade de preparar doces, utilizando-se da gema e da clara de ovos. No Brasil, somente as campistas e as gaúchas de uma forma geral dominaram a arte de fabricar, além dos chuviscos a ambrosia e o papo de anjo. Além de docerias e fábricas, o doce é produzido de forma artesanal e caseiro por diversas cozinheiras, residentes em diversos pontos do município, que fabricam o doce por encomenda, para as festas de casamento, aniversário, batizado e jantares especiais. 

O doce chamado CHUVISCO já foi tema de teses e pesquisas em universidades campistas. Em 2011, foi tombado como patrimônio imaterial da cidade pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Municipal (Coppam). O doce é parte da culinária portuguesa e chegou ao Rio com a vinda da Família Real, em 1808. Diz-se que os portugueses utilizavam claras de ovos para engomar as roupas e, para aproveitar as gemas, faziam o chuvisco. 

A receita foi parar em Campos e, mais de cem anos depois, pelas mãos de Nilze Teixeira de Vasconcellos, a Mulata Teixeira ficaram ainda mais famosos. Conta-se que os ex-presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek teriam saboreado a guloseima da Mulata Teixeira quando visitavam Campos. 

O chuvisco pode ser cristalizado (como é este da foto abaixo), caramelado, em calda, com nozes, passas ou chocolate. Ele é produzido, em larga escala, por fábricas do município e também de forma artesanal por pequenas docerias. As gemas são batidas pelo menos cem vezes até a massa engrossar. De colherinha em colherinha, o doce é frito na calda de açúcar, três vezes, passa-se o chuvisco no primeiro tacho para ressecar. No segundo, para incorporar o açúcar. E no terceiro, para ficar molhado, com uma calda mais fina. Existem clientes campistas que moram no exterior e encomendam esse doce. 

Fonte:
Talita Batista – Seção da UBT de Campos dos Goytacazes.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos)


A VIDA É UM FIO NEGRO D’ AMARGURAS

A vida é um fio negro de amarguras
Que usamos ao pescoço, como adorno
E tão difícil é dar-lhe um contorno
Que a dor que traz não cabe entre molduras.

Fio de que descendem as nervuras
Que os nervos nos esmagam, como um torno
E o mal que nos provocam, sem retorno
Despedaça os sentidos com fraturas.

Lenitivos são poucos e fugazes
E mostram-se impotentes e incapazes
De um alívio nos dar a tal sofrer.

Inocentes de culpas e algemados
À triste sina somos condenados
De nunca desistirmos de viver.

SÓ SÃO CAMINHOS OS CAMINHOS ABERTOS

Só são caminhos os caminhos abertos
Pela força invisível da Poesia
Varinha de condão da fantasia
Que os corações cativos faz libertos.

Atalhos retalhados descobertos
Pelos sons mais a sua ortografia
Que grava dos fonemas a harmonia
Que os sentidos nos trazem tão despertos.

Por nós fala a palavra que é escrita
Pela mão desse amor que em nós habita
Como a pedra se entrega a um cinzel.

Já morto fica vivo na palavra
Um homem quando a sua mente lavra
O chão fértil das folhas de papel.

DEPOIS DO CIRCO JÁ TER IDO EMBORA

Depois de o circo já ter ido embora
Quedou-se por aqui, abandonado
Um trágico palhaço desolado
Que a pintura esborrata quando chora.

Vivendo a praguejar a negra hora
Em que o emprego sujo o pôs de lado
Gasta os seus dias, porco e ensebado
À margem da cidade que o devora.

Crianças, risos, músicas e palmas
São visões do passado, mas sem almas
Fantasmas que no peito ele escondeu.

Acordo, estremunhado, já noite alta
Preso à dúvida atroz que então me assalta:
Saber se esse palhaço não sou eu…

NUNCA A AUSÊNCIA FOI TÃO VIVA E TÃO LEMBRADA

Nunca a ausência foi tão viva e tão lembrada
Como na hora em que a noite me envolvia
E entre os lençóis da cama eu não te via 
Leve e linda, despida e perfumada.

Não estava franzida a tua almofada
E o vulto do teu corpo não crescia
No leito onde o meu, só, permanecia
Abraçado a tudo que agora é nada.

Partiste, sem aviso e sem adeus
Dos meus olhos que tu fizeste ateus
Pois a fé que eu tinha tu a levaste.

Que voltes sem demora eu peço e rogo
Se o não fizeres penso que me afogo
Neste imenso vazio que deixaste.

MEU CANTO MAIS LAMENTO DO QUE ALERTA

Meu canto, mais lamento do que alerta
Morre ao sereno nesta noite fria
Que prolonga no tempo essa agonia
De não achar qualquer janela aberta.

Meu canto, menos prece e mais oferta
Andou de porta em porta em afonia
Sofrendo as agressões da invernia
Que castiga a minha alma descoberta.

Guardo as notas, a pauta, a melodia
Da trova, da canção ou elegia
Que ninguém se dispôs a escutar.

Se um dia alguém me perguntar por ela
Direi que era a luz de uma frágil vela
Que se apagou por não ter um altar.

PÓ DE ESTRELAS LANÇADO PELO CHÃO

Pó de estrelas lançado pelo chão
Havia nos caminhos onde errei
Sem respeitar as regras nem a lei
Carregando pecados sem perdão.

Sem uma companhia, nem de um cão
Corri montes e vales que eu nem sei
Levando o medo às sendas que trilhei
Pois me achavam com cara de ladrão.

De pouco vale o berço ou nascimento
Para ter honra, fama ou luzimento
A acrescer à fortuna já herdada.

Das estrelas o pó meu chão juncou
Mas sei que valho apenas o que eu sou
E tudo é muito pouco ou quase nada…

LÁ ONDE A LUZ DO ÚLTIMO LAMPIÃO

Lá onde a luz do último lampião
Se esmaga contra os vidros das janelas
Moram casas de portas amarelas
Sempre abertas ao pó da solidão.

Portas sem trinco em casas sem ter cão
Qualquer um pode entrar sem mais cautelas
Nas mucosas vazias dessas goelas
Onde as mágoas e dores servem de pão.

O fundo dessa rua é dos fantasmas
Vizinhos são os vícios e os miasmas
Que ali acham o fim do seu caminho.

A noite fica tão negra e deserta
Que até o lampião de chama incerta
Tem receio de ali viver sozinho.

NA RUA EM QUE O POEMA É ORAÇÃO

Na rua em que o poema é oração
As rimas ordenadas se repetem
Na cadência dos sons que nos remetem
Para o ritmo do próprio coração.

A luz morta de um velho lampião
Vela pelas estrofes que refletem
A alma das palavras que prometem
Um mundo de magia e de emoção.

O poema assim rezado ganha vida
Em cada ladainha repetida
Com devoção, calor, carinho e fé.

E o poeta que, inspirado, o escreveu
Um pedaço de si a todos deu
Pois nele é que se mostra tal qual é.

PEDI AO CORAÇÃO QUE SE CALASSE

Pedi ao coração que se calasse
E se tornasse um mestre da mudez
Que os olhos falam mais na limpidez
Do brilho com que veste a tua face.

Ficamos ambos quedos nesse impasse
De passos presos pela timidez
Mas o amor, na verdade da nudez
Fez-se eterno no tempo desse enlace.

Mas, feliz, ele não me obedeceu
E o claro dia não entardeceu
Suspenso do pulsar dos corações.

A luz nos ilumina, de mansinho
Para que não se perca no caminho
A alegria que ri sem ter razões.

Fonte: CARDOSO, Domingos Freire. Por entre poetas. Aveiro/Portugal: Edição do autor, 2016

Domingos Freire Cardoso (1946)

Domingos Freire Cardoso nasceu em Ílhavo, Portugal, no dia 20 de outubro de 1946. Cursou Engenharia na Faculdade de Coimbra, onde se licenciou em Física, disciplina que lecionou durante 30 anos. Poeta bastante premiado em Portugal e no Brasil. Tem um livro de poesia, "O terceiro vértice". Visita o Brasil com regularidade.
Domingos Freire Cardoso nasceu no em Chousa-Velha, em Ílhavo/Portugal, em 1946. Frequentou o Liceu Nacional de Aveiro e concluiu o curso de Engenharia Químico-Industrial no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, no ano de 1971. Iniciou carreira no Liceu Nacional de Leiria e mais tarde desenvolvendo parte de sua atividade profissional na cidade do Porto onde fixara residência.
         Em 1983 começou a participar em Jogos Florais e Concursos Literários, até os dias de hoje.
         Em 2003, para comemorar os vinte anos dessa atividade, reuniu em um livro alguns dos trabalhos premiados nesses concursos literários, surgindo assim a sua primeira publicação, intitulada “O Terceiro Vértice”.
         Representante, em Portugal, do Boletim Informativo da União Brasileira de Trovadores (U.B.T.), seção de S. Paulo, que lhe conferiu, em 1993, o prêmio “Vasques Filho” pelo “seu trabalho em favor da Trova e da U.B.T.”
         Em 2000 regressou à Chousa-Velha.
         Em 2012, lança “Pedras sem Tempo do Cemitério de Ílhavo", uma homenagem aos seus antepassados ali sepultados, e aos artistas que idealizaram as campas e jazigos e aos artífices que os trabalharam em pedra e em ferro.
         Em 2016 lançou o livro “Por entre poetas”, com 70 sonetos, comemorando seu 70o aniversário.

Olivaldo Junior (O Louco)

O rapaz, quando criança, era tido como superimaginativo. Vivia inventando histórias, um prodígio. "Isso ainda vai dar num escritor!", profetizava uma das tias. Tinha sido pedra, cavalo e navio. Não havia limites para tanto imaginar. 

Depois, quando crescido, deu de falar que era Jesus, Gandhi, Kennedy, Cabral e Maomé. Mas, como não era mais criança, foi levado ao médico, que lhe deu pílulas de realidade. Realidade? Sim, como dizia Clarice, seja lá o que isso seja. 

Porém, com o tempo, tais pílulas passaram a não surtir mais nenhum efeito em seu sistema, tão nervoso quanto o vento de agosto, e, em debandada, suas sinapses "deram pau", e já se achava capaz de voar, sagrou-se a sabiá, surtou. 

Hoje, preso numa clínica para doentes mentais, mentaliza que vai fugir quando lhe abrirem a gaiola (já assistiu ao filme Asas da Liberdade?), soltarem seus passos do quadrado pátio da velha casa de repouso, onde só pousa a (in)sanidade. 

Homem feito, da pedra que foi fizera um castelo, que guarda um cavalo, que puxa um navio, onde vão Jesus, Gandhi, Kennedy, Cabral, Maomé e, lá na proa, com seu chapéu de soldado, reluzente, superimaginativo, ao sol, o "menino".

Fonte:
O Autor

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte V

Turco Nacib (Armando Bógus) e
Gabriela (Sonia Braga) no filme
"Gabriela"
Nessa transfiguração do imigrante em tipo nacional, Jorge Amado consegue não apenas naturalizá-lo, mas inseri-lo em todas as esferas da vida brasileira, sejam elas públicas ou privadas. Nesse intento, desfilam pela obra de Jorge Amado o brasileiro-árabe mascate, o comerciante, seja proprietário de bares (como Nacib) seja proprietário de loja de calçados ou de outros tipos de comércio; o fazendeiro, o vagabundo, o contrabandista, o intelectual, o poeta, o alfaiate, a prostituta, a dançarina, o revolucionário, o estudante, o cirurgião-dentista, o advogado, o menor abandonado, o conquistador da terra baiana, em meio aos diversos tipos étnicos que formam o nosso mosaico cultural, como já percebera Jorge Medauar ao se voltar para a movimentação árabe no tecido romanesco de Jorge Amado:

Movimentando-se entre negros, crioulos, espanhóis ou portugueses criados para viverem o drama, a tragédia ou o amor que palpita nos romances desse autor que é o mais expressivo escritor da ‘nação grapiúna’ definida por Adonias Filho, outra não menos significativa expressão daquela ‘civilização’ tão particular. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Na realidade, ao privilegiar a presença árabe, em meio à sua construção identitária do sul da Bahia, Jorge Amado inauguraria um caminho estético, marcado pela ausência de estranhamento e por uma perspectiva de mão dupla, que ora realça o agudo sentimento árabe de pertencimento à nossa terra, com a correspondente e efusiva aprovação das personagens
brasileiras, o que só é possível graças ao apagamento das diferenças e ao realce das similaridades culturais entre nós e os árabes; ora o caminho em que, numa estratégia claramente mais complementar, tanto o árabe quanto o brasileiro reconstroem, solidariamente, o espaço nacional, como se verifica, hoje, em Milton Hatoum.

Nesse itinerário narrativo, Jorge Amado tematiza o abrasileiramento árabe no interior da Bahia, enquanto põe e repõe em circulação um assimilacionismo de correspondência, o mesmo do qual se nutririam Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, mais ambiguamente, e Milton Hatoum, no século atual.

Ignorada e ocultada, ainda hoje, pelas mais variadas perspectivas acadêmicas que, ao renegarem a perspectiva do Naturalismo adotada por Jorge Amado, e por outros importantes autores de nossa literatura, condenam a obra do autor baiano a uma quase esterilidade crítica, ou a uma leitura de depreciação, a significativa contribuição estética do escritor grapiúna é, geralmente, encoberta por essas interpretações que a rebaixam à categoria de expressão menor, como exemplifica as observações críticas de Alfredo Bosi:

Cronista de tensão mínima, [Jorge Amado] soube esboçar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco; pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos ‘folclóricos’ em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... [...] O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. (BOSI, 1980, p. 456-457)

Considerando Jorge Amado como cronista de tensão mínima e a sua obra como uma mistura de equívocos, Alfredo Bosi procede a uma dura crítica às narrativas amadianas.

Assim, ressalta como caracteres dos romances amadianos o descuido formal, a orientação populista, a pieguice e a velha perspectiva pitoresca, comum às nossas primeiras elaborações identitárias. Nessa visão, procede a uma classificação, ou mais precisamente a uma desclassificação, das narrativas de Jorge Amado:

Na sua obra podem-se distinguir: a) um primeiro momento de águas-fortes da vida baiana, rural e citadina (Cacau, Suor) que lhe deram a fórmula do “romance proletário”; b) depoimentos líricos, isto é, sentimentais, espraiados em torno de rixas e amores marinheiros (Jubiabá, Mar Morto, Capitães da Areia); c) um grupo de escritos de pregação partidária (O Cavaleiro da Esperança, O Mundo da Paz); d) alguns grandes afrescos da região do cacau, certamente suas invenções mais felizes, que animam de tom épico as lutas entre coronéis e exportadores (Terras do Sem-Fim, São Jorge dos Ilhéus); e) mais recentemente, crônicas amaneiradas de costumes provincianos (Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos) [...] Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e 40; e tudo se dissolve no pitoresco, no “saboroso”, no “gorduroso”, no apimentado do regional. (BOSI, 1980, p. 457)

Longe de se constituir como uma visão particular e isolada, a leitura de Alfredo Bosi é paradigmática da recepção acadêmica à obra de Jorge Amado, como demonstram as observações da ensaísta Walnice Nogueira Galvão e as de Tânia Pellegrini, professoras de Literatura de importantes centros acadêmicos. Nessas observações, abaixo descritas, essas duas intérpretes assinalam, à maneira de Bosi, a ausência do trabalho e do rigor formal na obra amadiana, enquanto apontam a perspectiva mercadológica como norteadora da produção do escritor baiano:

Quanto nós, entra ano sai ano, aguarda-nos mais um romance de Jorge Amado, reiterando seu amaneiramento, apenas aguçando seus instrumentos para pior. Os livros são cada vez mais volumosos, o que lhes aumenta o preço e a decorrente quantia para o autor sobre o total da venda. Há, cada vez mais, trechos obviamente repetidos; percebe-se que são três ou quatro versões de um mesmo episódio [...] Cada vez mais, há menor elaboração artística [...] A bandeira progressista de Jorge Amado é o populismo. (GALVÃO, 1976, p. 15-16)

Tomando o conjunto da obra de Jorge Amado, o que na verdade se percebe é uma acentuação gradativa daquilo que era apontado como fragilidade ou deslize, na mesma proporção em que se dilui seu traço de força maior, a saber, a fusão harmoniosa entre documento e poesia, espécie de chave de sua fórmula estética, nos primeiros romances. O que prevaleceu parece  ter sido o “mínimo de literatura” como compromisso estético, enquanto o “máximo de honestidade”, como compromisso ético, foi aos poucos adquirindo conotações mais ligadas à lógica da mercadoria. (PELLEGRINI, 1999, p. 128)

Leitor atento de Jorge Amado, Paulo Bezerra, estudioso e tradutor da literatura e da teoria russa entre nós, se contrapõe, com indignação, a essa corrente do pensamento crítico-acadêmico, reconhecendo-a como absurda, responsável por uma lacuna injustificável em nossas interpretações do acervo literário nacional, segundo denuncia em seu prefácio à obra de Eduardo Assis Duarte, Jorge Amado: romance em tempo de utopia, publicada em 1995:

Entre os absurdos que a universidade brasileira comete, há um que certamente chega ao paroxismo: a ausência de estudos sistemáticos e abrangentes sobre a obra de Jorge Amado, o nosso escritor mais lido dentro e fora do país. Essa lacuna, injustificável sob qualquer motivo, deve-se a vários fatores, um dos quais ligado ao falacioso argumento de que a obra do romancista baiano seria de baixa qualidade estética, o que a tornaria desmerecida de integrar o Olimpo das obras pesquisáveis. Daí a ausência ou o número ridiculamente irrisório de teses sobre Jorge Amado nas nossas universidades. (BEZERRA, 1995, não paginado)

Nesse entendimento. Paulo Bezerra afirma que essa posição teórico-acadêmica seria decorrente do preconceito estético, em face da convenção estética adotada por Amado, mascarador, por sua vez, do preconceito ideológico, que vitima, freqüentemente, a obra amadiana. Em sua interpretação da recepção crítica a Jorge Amado, acusaria também o despreparo teórico dessa postura crítica que a incapacitaria, segundo Bezerra, à compreensão das convenções que sedimentam o projeto amadiano:

Por sua vez, a crítica da obra amadiana tem-se caracterizado, com raras exceções, pela falta de abrangência e profundidade, por um preconceito estético que frequentemente mascara o preconceito ideológico e, principalmente, pelo despreparo teórico para compreender o real significado da obra, além do desconhecimento das matrizes populares que a alimentam. Em vista disso, mantém-se quase sempre alheia à natureza do projeto amadiano, passando à margem ou simplesmente ignorando as convenções de que o autor lançou mão para concretizá-lo. (BEZERRA, 1995, não paginado)

De forma similar, Eduardo de Assis Duarte se debruçaria sobre a questão da recepção crítica a Jorge Amado. Numa clara demonstração de confluência entre a sua perspectiva e a do prefaciador de sua obra, Assis Duarte acentuaria na “Apresentação” de sua obra o alheamento crítico em face da natureza do projeto amadiano e das convenções adotadas pelo autor baiano para concretizá-lo. Esse alheamento, somado a uma perspectiva critica que privilegia os parâmetros estéticos do modernismo, seria, segundo Assis Duarte e Paulo Bezerra, a razão da reserva crítico-acadêmica e da incompreensão do discurso romanesco de Jorge Amado:

A crítica brasileira, salvo raras exceções, poucas vezes dedicou-se a uma leitura do romance amadiano que levasse em conta a natureza de seu projeto ou as convenções adotadas para a sua concretização. Marcada pelas balizas estéticas do modernismo, dedicou-se em grande parte ora uma crítica dos defeitos, ora a uma crítica das belezas, para ficarmos com as expressões de Agripino Grieco. No primeiro caso, buscando ressaltar tão somente as fragilidades, no segundo, apenas os méritos e, em ambos, não conseguindo uma compreensão mais profunda e global desses escritos. (DUARTE, 1995, p. 37 – grifos do autor)

Nesse caminho interpretativo, Assis Duarte procederia a uma leitura dos textos críticos acerca de Amado, em especial dos ensaios de Álvaro Lins, depreciador da obra amadiana, e do texto de Roger Bastide que, levando em conta a convenção naturalista de Jorge Amado, acentua a inovadora contribuição efetuada pelo escritor nordestino, na transformação dessa herança estética entre nós. A partir dessa leitura de revisão, Eduardo Duarte se voltaria para o projeto amadiano e dos recursos utilizados para a sua concretização. Em sua apreciação do projeto amadiano, problematizaria, novamente, as pesquisas elaboradas acerca do conjunto da obra de Jorge Amado:

Tal projeto tem como premissa básica a ampliação do horizonte recepcional da obra. ‘Escrever para o povo’ constitui-se como meta primordial e ponto de partida para a adoção de uma linguagem marcada pela oralidade, com o uso do coloquial configurando-se grande traço distintivo da expressão amadiana. No plano do enredo, essa busca do popular leva à absorção dos esquemas de aventura e heroísmo amplamente disseminados, seja no cordel ou no romance de folhetim, seja no melodrama, na novela radiofônica ou no cinema popular da época. Ao lado disso, há um inconfundível acento emotivo, de origem melodramática, perpassando os enredos. Ao invés de pesquisar o porquê desses recursos, alguns críticos preferiram o caminho mais cômodo de apontar a ‘pieguice’ ou o ‘romantismo’ de determinadas soluções, pouco contribuindo para o entendimento da questão. (DUARTE, 1995, p. 39)

Mais recentemente, Lúcia Lippi Oliveira (2002), numa leitura orientada pelo recorte étnico-identitário, se aproximaria das perspectivas de Eduardo de Assis Duarte e de Paulo Bezerra. Ao se deter sobre Jorge Amado, especialmente sobre as suas representações das gentes baianas, reconhece a importância de Jorge Amado, tanto como romancista, quanto como intelectual. Observando a constituição do povo baiano, na qual se verifica a ostensiva presença de negros e mestiços, e os preconceitos que, historicamente, cercam essas populações, Lúcia Lippi veria a obra amadiana como signos literários responsáveis pela redefinição e pela reinterpretação dos traços culturais baianos, ao mesmo tempo em que assinala a ruptura amadiana com as idéias que alimentaram a escola Baiana de Medicina, especialmente com a visão de Nina Rodrigues:

Não por acaso é na Bahia, profundamente impregnada de preconceitos raciais, que se desenvolve a Escola Baiana de Medicina, com Nina Rodrigues à frente, absorvendo da Europa a ciência racialista que classifica os povos a partir de traços raciais! É também na Bahia, pela obra de Jorge Amado, que se reconstrói nova versão da mistura das três raças originais e se produz a imagem do paraíso racial. Os personagens de seus romances, na maioria figuras populares, mestiças, falam da alegria, da sensualidade, da sexualidade, do sincretismo religioso. Jorge Amado, entre outros, pode ser tomado como romancista, como intelectual, que produziu uma mudança de sinal interpretação dos traços da cultura baiana. (OLIVEIRA, 2002, p. 44)

Escritor engajado, atento às vicissitudes de seu tempo, Jorge Amado entranha, à sua tessitura narrativa, as suas perspectivas e anseios políticos. Nesse entranhamento, nos legaria um conjunto textual no qual se pode aferir, simultaneamente, as suas opções estéticas e as suas reivindicações políticas, num comportamento pouco raro entre os nossos literatos, como assinala Eduardo de Assis Duarte ao se voltar para o contexto escritural brasileiro, dos fins do século dezenove e inícios do século vinte:

No Brasil, em cuja história a literatura e a política andaram quase sempre de mãos dadas, este é o momento em que muitos escritores começaram a querer dar as mãos aos operários. A onda de agitações e greves do período 1917-1920, encabeçada pelos anarquistas e anarco-sindicalistas, funciona como reflexo, embora longínquo, dos acontecimentos russos, e dá oportunidades a intervenções como as de Lima Barreto [...] Avançando um pouco o retrospecto histórico, pode-se notar que o ano de 1922 enseja três acontecimentos de importância decisiva na carreira de Jorge Amado: a Semana de Arte Moderna, o levante do Forte de Copacabana e a fundação do PCB [...] No caso específico de Jorge Amado, modernismo, tenentismo e comunismo funcionarão como referenciais muito precisos numa trajetória em que política e literatura vão caminhar lado a lado. (DUARTE, 1995, p. 22-23)

Na verdade, não obstante as diversidades, de objetivos e de organização textual, verificadas entre o discurso literário e o discurso científico da sociedade, essas modalidades discursivas apresentam um contínuo diálogo que acirra o debate sobre o contraponto entre o discurso artístico e o discurso sociológico, principalmente quando a temática trabalhada, a exemplo da de Jorge Amado, diz respeito às questões nacionais, como ressaltam o filósofo Octávio Ianni, ao discorrer sobre as afinidades entre a literatura e a sociologia e o crítico Antonio Candido, ao ressaltar o caráter empenhado de nossa literatura:

É mais do que evidente que a sociologia e a literatura nascem e desenvolvem-se desafiadas, influenciadas ou fascinadas pela questão nacional. Colaboram decisivamente na elaboração do mapa da nação, ajudando a estabelecer o território e a fronteira, a história e a tradição, a língua e os dialetos, a religião e as seitas, os símbolos e as façanhas, os santos e os heróis, os monumentos e as ruínas. (IANNI, 1999, p. 14)

Tanto no caso da literatura messiânica e idealista dos românticos, quanto no caso da literatura realista, na qual a crítica assume o cunho de verdadeira investigação orientada da sociedade estamos em face de exemplos de literatura empenhada numa tarefa ligada aos direitos humanos. No Brasil isto foi claro nalguns momentos do Naturalismo, mas ganhou força real sobretudo no decênio de 1930, quando o homem do povo com todos os seus problemas passou a primeiro plano e os escritores deram grande intensidade ao tratamento literário do pobre. Isso foi devido sobretudo ao fato do romance de tonalidade social ter passado da denúncia retórica, ou da mera descrição, a uma espécie de crítica corrosiva, que podia ser explícita, como em Jorge Amado, ou implícita, como em Graciliano Ramos [...] mas que contribuíram para formar o batalhão de escritores empenhados em expor e denunciar a miséria, a exploração econômica, a marginalização, o que os torna [...] figurantes de uma luta virtual pelos direitos humanos. (CANDIDO, 1995, p. 255-256)

Voltado para as questões identitárias no Brasil, em cujas representações deixa as marcas de sua trajetória literária e política em nossa vida contemporânea, no Brasil e no exterior, Jorge Amado vai impregnar a sua obra de um realismo manifesto, que o filiará ao naturalismo francês, em especial ao de Émile Zola, autor de sua admiração e de sua predileção sentimental, segundo afirma, em 1992, em entrevista à Folha de São Paulo:

Divido os escritores franceses entre os que amo e admiro e aqueles a quem simplesmente admiro. Flaubert não é do meu amor. Mesmo Balzac, um imenso escritor, não é dos meus preferidos. Entre os franceses, o que me diz mais mesmo é Zola. (AMADO, 9.8.1992)

As escolhas ou preferências de Jorge Amado, no que diz respeito à perspectiva literária do Naturalismo e a Zola, longe de serem gratuitas se adéquam ao seu projeto e aos seus intentos literários, como se apreende da leitura de suas obras e da observação das linhas norteadoras da vertente naturalista. Para essa compreensão, concorre a obra de Flora Süssekind, Tal Brasil, qual romance?: uma ideologia estética e sua história: o naturalismo, publicada em 1984.

Longe de ver a gratuidade e/ou o mero prestígio das idéias européias como elementos motivadores da calorosa e duradoura recepção ao Naturalismo entre nós, Flora Süssekind procede a um verdadeiro inventário crítico acerca do Naturalismo, utilizando-se das mais variadas fontes críticas. Em sua leitura, ressalta a filiação de Jorge Amado a essa tradição estética, aproximando-a a Aluísio Azevedo, a José Lins do Rego e a Zola:

Em O Cortiço, romance exemplar da virada do século, usa Aluísio Azevedo como uma de suas epígrafes um dos mais conhecidos enunciados do Direito Criminal: ‘La vérité, toute la vérité, rien que la vérité’. Na nota introdutória de 1933 a Cacau, avisa, por sua vez, Jorge Amado: ‘Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia’ [...] Diante da ênfase nos ciclos se poderia perguntar [...] Por que Cacau se desdobra em Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus? Por que Menino de Engenho continua em Doidinho, Bangüê, Moleque Ricardo e Usina? Por que um ‘ciclo’ do cacau e um ‘ciclo’ da cana-de-açúcar? A idéia do ciclo não chega a ser exclusiva dos anos Trinta. Basta lembrar o ciclo dos Rougon-Macquart de Zola. Ou o esboço de um ciclo romanesco que Aluísio Azevedo apresentara num artigo de 1885, publicado em A Semana. (SÜSSEKIND, 1984, p. 36; 162-163)

Apoiada em Adonias Filho, Antonio Candido, José Guilherme Merquior, Nelson Werneck Sodré, Otto Maria Carpeaux, entre outros, Flora Süssekind reconhece os vínculos de afinidades entre o discurso literário brasileiro, recorrente na incessante busca de nossas identidades, e as linhas norteadoras da estética naturalista, em especial as da busca da referencialidade, do documental, apropriadas às construções de nacionalidade, como se lê em seu discurso abaixo, no qual insere a leitura de Adonias Filho:

Normalmente, procura-se uma literatura que, ao documentar o país, pareça acreditar na existência de uma identidade nacional. Uma literatura que, não se indagando como linguagem, funcione no sentido de exterminar quaisquer dúvidas, digam elas respeito à ficção ou ao país. O que corrobora algumas observações de Adonias Filho a respeito da vinculação do romance brasileiro ao documentário: “O país nele pode encontrar a sua identidade. E pode encontrá-la sobretudo porque, em estado de testemunho, guardando as imagens como em um espelho, não anula em sua fixação as percepções dos romancistas”. A estética naturalista funciona, portanto, no sentido de representar uma identidade para o país, de apagar, via ficção, as divisões e dúvidas [...] É em sentido literalmente oposto a essa fragmentação que se constroem os textos pautados numa estética naturalista. (SÜSSEKIND, 1984, p. 43-44 – grifos da autora)

Em relação à preferência brasileira por Émile Zola, como a manifesta explicitamente Jorge Amado, Flora Süssekind, utilizando-se das ponderações de Merquior, ressalta o caráter pragmático da acolhida dos nossos escritores à estética de Zola, descartando, mais uma vez, o simples prestígio das idéias européias como fator determinante das escolhas brasileiras:

Não se procura observar por que justamente o naturalismo entrou em moda e que vínculos orgânicos mantinha com o sistema intelectual brasileiro para que adquirisse tão grande repercussão. Não é qualquer “idéia estrangeira” que recebe acolhida tão boa. Em meio às diversas sementes intelectuais lançadas à terra nem sempre tudo “dá”. Em meio a Flaubert e Zola, escolheu-se o último. Coisa de que o próprio Merquior se dá conta na sua Breve História da Literatura Brasileira: “Foi o romance naturalista à Zola, que trocou a objetividade esteticista de Flaubert pela análise de pretensões científicas, que constituiu, entre nós, a primeira manifestação de peso de um estilo pós-romântico”. Prefere-se Zola a Flaubert, como entre Marx, Comte e Spencer, escolhem-se os dois últimos. Não é muito difícil perceber o que se repete nas escolhas. Não se trata de “plágio” ou de “imitação” indiscriminados. A preferência é sempre por qualquer pensamento que ajude a estabelecer um conjunto de identidades, leis e semelhanças. (SÜSSEKIND, 1984, p. 53)

__________________
continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (Até a metade do céu)

Quando o rei de Wei decidiu construir uma torre que iria chegar até a metade do céu, ele deu uma ordem:

- Quem tentar me dissuadir, será condenado à morte.

Xu Wan, um ministro de Wei, procurou-o com um cesto nas costas e uma lança na mão.

- Senhor, ouvi que está querendo construir uma torre que vai chegar até a metade do céu - disse Xu,- e seu humilde servo veio lhe oferecer ajuda.

- O que de forte tem para me oferecer?- quis saber o rei.

- Eu não sou forte - respondeu Xu- mas eu posso trabalhar no projeto da construção.

- Sim - disse o rei.

- Senhor, ouvi dizer que a distância entre o céu e a terra é de 15 mil li. Como quer construir uma torre que chega até a metade da distância entre a terra e o céu, a torre deve ter 7.500 li de altura. Para aguentar essa estrutura, os alicerces devem ter a circunferência de oito mil li. Toda a suas terras juntas, senhor, não são suficientes para os alicerces. Há muito tempo atrás, os reis Yao e Shun estabeleceram ducados com a circunferência de cinco mil li. Se estiver determinado a construir essa torre, deve primeiro atacar os duques e pegar todas as terras deles. Mas ainda não vai ser o bastante. Deve também expulsar várias tribos que vivem em longínquas regiões ao norte, ao sul, a leste e a oeste. Quando conseguir uma áreas com limites de oito mil li, aí, sim, será o suficiente para os alicerces. Quanto a questão do material de construção, trabalhadores e depósitos de comida, tudo isso deve ser calculado em algumas centenas de milhões. For a da área cercada de 8 mil li, uma grande extensão de campos deve ser escolhida para a produção de comida para os trabalhadores se alimentarem enquanto estiverem construindo a torre. Quando todas essas condições para a construção das torres forem preenchidas, o trabalho pode começar.

O rei ficou calado, sem encontrar uma resposta. Ele abandonou a ideia da construção da torre.

Fonte: 

Concurso Internacional de Trovas da UBT França (Resultado Final)


Tema: Mulher

1º Lugar:
Da mulher, exige a vida
nobre missão que requer
essa força desmedida
que é ser tudo... e só, mulher!
Carolina Ramos

2º Lugar:
Mulher - teus lábios maduros,
guardam o eterno sabor,
dos lábios virgens, mais puros,
da essência eterna do amor
Professor Garcia

3° Lugar:
Pense de modo profundo 
e em tudo quanto quiser; 
e nos diga o que há no mundo 
mais lindo do que mulher!
Amilton Maciel Monteiro

4° Lugar:
A roupa é só complemento,
como outro adorno qualquer...
O brilho, a graça, o talento
é que dão charme à mulher!
Antonio Augusto de Assis

5° Lugar:
Mulher, tu foste escolhida
pelo nosso Criador,
pra seres fonte da vida,
do bem, da paz e do amor!
Delcy Canalles

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte IV

Jorge Amado: Bar do Nacib 
CAPÍTULO II

JORGE AMADO E A REPRESENTAÇÃO DO MUNDO ÁRABE

Os turcos descobriram a América, desembarcaram no Brasil e se fizeram brasileiros dos melhores. 
Jorge Amado

A FREQUENTAÇÃO ÁRABE NOS ROMANCES DE JORGE AMADO 

Os anos 30 foram de engajamento político, religioso e social no campo da cultura [...] Os decênios de 1930 e 1940 assistiram à consolidação e difusão da poética modernista, e também à produção madura de alguns de seus próceres, como Manuel Bandeira e Mário de Andrade.
Antônio Cândido

Em seu texto, Menino de engenho: a memória das perdas, Heloísa Toller Gomes procede a uma leitura do Modernismo brasileiro, em especial de suas duas vertentes mais conhecidas e estudadas, a de São Paulo e a do Nordeste, buscando precisar as diferenças que separam essas experimentações modernistas em nosso país:

Delinearam-se, naqueles anos, as duas vertentes principais do modernismo literário brasileiro: a vertente do Sul, com seu nacionalismo irreverente e sua escrita iconoclasta, geradora e herdeira da “Semana”; e o modernismo regionalista do Nordeste, mas carrancudo e introspectivo, desconfiado do humor desbragado da nova literatura paulista e menos explicitamente ousado em termos formais. Esse segundo modernismo desdenhava a “calçada das cidades inacessíveis”, optando pelo cenário das grandes plantações e pelos ermos do agreste e da caatinga. Insistindo no meio físico e antropo-social da seca, do brejo e do sertão, ele também procurou, à sua maneira, sons, gostos e cheiros a partir dos quais modelar espaços, personagens e dramas entranhadamente brasileiros. Surgiu, assim, o chamado “romance de 30”. (GOMES, 2003, p. 646)

Embora ainda marcado por um olhar hierarquizante, através do qual situa essas tendências literárias numa ordem sucessiva, cabendo ao movimento de São Paulo o estatuto de primeiro modernismo e ao do Nordeste o lugar de segundo, o texto de Heloísa Gomes se constitui como uma espécie de inventário crítico do Modernismo brasileiro. Nele, a autora assinalaria tanto as diferenças quanto as similaridades entre essas modalidades literárias.

Nesse caminho, chegaria à tese da complementaridade entre essas duas vertentes, vendo no comum esforço de construção (e reconstrução) identitária, o eixo unificador dessas duas tendências modernistas:

O sentido de brasilidade da produção literária nordestina, embora bem diferente daquele exibido pelos modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, era também ambicioso em suas propostas estéticas, indo além da manipulação do rico repertório imagístico e temático nacional – este, aliás, já intensamente explorado desde o romantismo e agora coloridamente reinaugurado na novidade das diversas nuanças modernistas. Na verdade, complementavam-se as duas perspectivas, a do Sul e a do Nordeste, em relação a um Brasil que, encaminhando-se de maneira incerta para uma controvertida e avassaladora modernidade, necessariamente dramatizaria e confrontaria, na cena literária de então, e das décadas subsequentes, a sofisticação e a miséria das metrópoles aos grandes sertões e às decadentes casas-grandes, com sua “senzala dos tempos do cativeiro”.
(GOMES, 2003, p. 646)

Na verdade, o Modernismo do Nordeste, denominado também de Romance de Trinta ou de Regionalismo Nordestino, operou uma ruptura de maior porte. Rompeu, como destaca Antônio Cândido, com a perspectiva mistificadora do Brasil, com a qual se tecia, em nossos textos literários e culturais, de forma geral, as elaborações de brasilidade, atuante na escritura nacional, desde o Romantismo. Ao se voltarem para a tematização do espaço nordestino, os modernistas do Nordeste além de inaugurarem um novo olhar sobre o Brasil, dotam o romance de uma força desmistificadora, como salienta Antônio Cândido:

A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dada a sua generalidade e persistência. Ela abandona, então, a amenidade e a

curiosidade, pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou no cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem rústico. Não é falso dizer que, sob esse aspecto, o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos. (CÂNDIDO, 1987, p. 142)

Não obstante a atitude pessimista e desmistificadora em face das possibilidades brasileiras, os modernistas nordestinos, a exemplo dos modernistas do Sul, também retomariam a tradição romântica em suas apreensões de brasilidade, como aponta Antônio Cândido, ao analisar a importância do romântico Franklin Távora, primeiro romancista do Nordeste, na formação da vertente nordestina do Modernismo:

O seu regionalismo parece fundar-se em três elementos, que ainda hoje constituem, em proporções variáveis, a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste. Primeiro o senso da terra, da paisagem que condiciona tão estreitamente a vida de toda a região, marcando o ritmo da sua história pela famosa ‘intercadência’ de Euclides da Cunha. Em seguida, o que se poderia chamar patriotismo regional, orgulhoso das guerras holandesas, do velho patriarcado açucareiro, das rebeldias nativistas. Finalmente, a disposição polêmica de reivindicar a preeminência do Norte [...] Távora foi o primeiro ‘romancista do Nordeste’, no sentido em que ainda hoje entendemos a expressão; e deste modo abriu caminho a uma linhagem ilustre, culminada pela geração de 1930. (CÂNDIDO, 1981, p. 268 – grifos do autor)

Integrante do Modernismo do Nordeste, movimento oficialmente iniciado por José Américo de Almeida, em 1928, com a publicação de A bagaceira, Jorge Amado, como a maioria de seus pares, traria à sua obra, o senso da terra e da paisagem nordestina, o sentimento de patriotismo  regional, o desejo de exprimir a preeminência do Nordeste, como se refere Antônio Cândido, ao voltar-se para as linhas do pensamento de Távora, retomadas desde 1921, com a publicação de Senhora de engenho: romance, do pernambucano Mário Sette.

Surgida na década de 30, com a publicação de O país do carnaval (1931), a obra de Jorge Amado, pela importância e pela frequentação da presença árabe, representa uma curiosa especificidade, tanto no conjunto de obras elaboradas pelos romancistas modernistas do Nordeste, como também no universo de nossa própria literatura, como comprova o dicionário biográfico das personagens de Jorge Amado, Criaturas de Jorge Amado (1985), elaborado por Paulo Tavares.

Procurando, confessadamente, seguir o exemplo de Fernand Lotte, responsável pela identificação e relação dos personagens anônimos da Comédia Humana, de Honoré de Balzac, Paulo Tavares relaciona todas as personagens, reais ou imaginárias, das narrativas de Jorge Amado, se voltando, ainda, para a discussão dos títulos das obras amadianas, como
afirma a seguir:

Seguindo o exemplo de Fernand Lotte, que relacionou os personagens anônimos da Comédie Humaine – publicado em suplemento ao seu Dicionnaire, quatro anos mais tarde – organizou-se também idêntico repertório de personagens sem nome encontrados nas páginas do romancista patrício. Tal relação, em separado, acompanha a lista alfabética dos nominativos, complementando o recenseamento das criaturas de Jorge Amado. Mas a pesquisa não se ateve somente às criaturas – prossegui na garimpagem através do rico manancial que são os vinte e sete títulos de ficção de Jorge Amado e deles recolheu as informações agrupadas nos três apêndices anexados a este trabalho. (TAVARES, 1985, não paginado)

Pioneiro em nosso mundo editorial, o recenseamento das criaturas de Jorge Amado, procedido por Paulo Tavares, terminaria por nos apresentar uma variedade de perfis árabes no universo narrativo amadiano que, mesmo confirmando as nossas leituras, nos surpreenderia pela explícita assiduidade e pela diversidade que emolduram os perfis árabes, na obra do escritor baiano.

Mais tarde, num outro caminho, o romancista, contista e poeta Jorge Medauar, objetivando a identificação das marcas árabes nas várias culturas do mundo, ratificaria a pesquisa precedida por Paulo Tavares. Em seu artigo, “Introdução: aspectos gerais da cultura árabe”, publicado originalmente pela Revista de Estudos Árabes – DLO-FFLCHUSP, em 1993, Medauar veria, com naturalidade, a ostensiva presença árabe nos textos de Amado, resultante, segundo ele, do caráter popular da obra de Jorge Amado, como se apreende nessa passagem do seu discurso:

É mais do que natural que um escritor, com raízes tão populares quanto Jorge Amado, traga, no bojo de sua tão extensa obra, a presença marcante dessa influência não apenas na língua, seu preponderante instrumento de expressão, como nos personagens árabes ou de origem árabe que se misturam. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Em relação à influência do popular na obra de Jorge Amado, traço importantíssimo às elaborações românticas, sua presença seria reconhecida pelo próprio autor baiano, em entrevista a Eduardo de Assis Duarte, em dezembro de 1988, na qual também se refere ao contexto de atraso e de injustiça social no qual o Brasil estava inserido:

Na minha primeira juventude, minha quase meninice, quando comecei a trabalhar na imprensa e a ter contato com outros jovens ‘subliteratos retados’, nós vivíamos intensamente a vida popular baiana e nos revoltávamos contra as condições existentes de atraso e injustiça social, mas de uma forma muito vaga. Não havia nenhuma ideia mais precisa de ordem revolucionária, era uma rebeldia natural da juventude e muito literária, no sentido de fora da realidade. (AMADO, apud DUARTE, 1995, p. 339 – grifos nossos)

Na verdade, nascido em 1912, período do grande boom do cacau, que se iniciara na virada do século XIX, Jorge Amado assistiria à chegada dos imigrantes árabes, testemunhando seus esforços e suas estratégias de acomodação e sobrevivência na nova terra.

Convivendo com os árabes desde a sua infância, o escritor baiano alimenta as suas narrativas com as lembranças dessa convivência amigável e duradoura, tornando-os importantes e significativos personagens de suas obras, como testemunha o poeta Jorge Medauar:

Quem poderá dizer que Jorge Amado não conviveu, no Vesúvio, na cidade de Ilhéus, com Nacib e Gabriela, por exemplo, já que a casa do grande romancista (hoje Fundação Cultural de Ilhéus) era vizinha daquele bar? Os Nazal, Medauar, Maron, Daneu, Chalub, eram famílias de Ilhéus, portanto pessoas de seu convívio. Daí a matéria prima. O retrato. A matriz. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Elemento recorrente na obra do escritor nordestino, a presença árabe encontra-se desde as suas primeiras narrativas, O país do carnaval, de 1931; Cacau, de 1933 e Suor, de 1934.

Primeiras manifestações da escrita amadiana, esses primeiros textos seriam denominados, pelo próprio Jorge Amado, como cadernos de aprendiz de romancista, segundo afirma Assis Eduardo Duarte, estudioso da obra amadiana:

Jorge Amado costuma demarcar o início efetivo de sua obra romanesca a partir da publicação de Jubiabá em 1935. Os livros anteriores, País do Carnaval (1931), Cacau (1933) e Suor (1934), considera-os como experiência da juventude, simples ‘cadernos de aprendiz de romancista’, opinião de resto semelhante à boa parte da crítica. (DUARTE, 1995, p. 45)

Desses cadernos de aprendizagem romanesca, vítimas de desqualificação crítica do próprio autor, se iniciaria um modelo narrativo, marcado, acintosamente, pela presença árabe, em íntimo contato e solidariedade com o mundo brasileiro. Ironicamente, essas obras, responsáveis por um modelo narrativo incomum, tanto no conjunto de obras do Modernismo do Nordeste, quanto no acervo dos modernistas de São Paulo, seriam descartadas por Jorge Amado, apesar de desenharem, originalmente, as feições-mestras da maioria dos personagens de Jorge Amado, como se confere abaixo:

(Dona Maria era uma árabe muito magra que alugava todo o sótão e realugava os quartos. “Ganhava fortuna...” cochichavam pelos cantos os inquilinos) [...] Tão pequeno aquele sótão... E morava tanta gente  nele! Na sala da frente D. Maria, a árabe, com dois filhos pequenos, chorões e sujos que punham o sótão e a escada em polvorosa com as suas brincadeiras [...]
No quarto defronte morava outra árabe, que tinha um nome complicado que se reduzira a Fifi. D. Fifi, mãe de um filho malandrão, já homem (seus dezessete anos), que só vinha em casa buscar dinheiro para a farra. Vivia no meio de moleques da pior espécie, a calotear mulheres nojentas da Ladeira do Tabuão. Quando dormia em casa vez por outra, ficava nu no mesmo quarto com a mãe que, deitada [...] não cansava de reclamar o seu modo de vida. Ele a xingava muito em árabe. Às vezes, escapava alguma palavra em português que as vizinhas atentas percebiam. (AMADO, 1979 1, p. 70-71)

A casa acordava aos poucos. Na pia do sótão lavavam os rostos. A venda de Fernandes abria as portas, homens apareciam no pé da escada. Toufik juntou-se à negra: – Bom dia, sinhá Maria. – Bom dia meu branco. – Não vai descer? Ela esticou o dedo apontando o embrulho de papel de jornal.
Toufik assobiou. – Um feitiço, puxa! Pra quem será? O árabe também acreditava. E quem não era dominado pela religião bárbara dos negros? (AMADO, 1980, p. 69)

Inaugurando, no Modernismo do Nordeste, uma recorrência que chegaria à literatura de nossos dias, como comprova a obra de Milton Hatoum, Jorge Amado inunda suas narrativas de criaturas árabes, tematizando, dessa forma, a nossa própria constituição cultural, que se vai configurando pelas tintas da mestiçagem, da interação cultural.

Nesse patriotismo regional, como classifica Antônio Cândido, Jorge Amado cria um mundo ficcional habitado pelos imigrantes árabes, tornados, em suas ficções, elementos de nossa própria identidade cultural, numa configuração de suas personagens árabes, como membros do corpo brasileiro, posto que íntima e indissoluvelmente entranhadas ao Brasil.

Nesse entranhamento, circulam na obra de Amado, apesar do sotaque árabe, os mais variados tipos nacionais, do malandro ao capitão da areia, atendendo ora por nomeações brasileiras, como é o caso de Dona Maria e de Dona Fifi, personagens árabes femininas d’O país do carnaval, primeiro romance amadiano, ora por nomes e sobrenomes árabes, como é o caso do próprio Nacib que, representado, ao longo da narrativa, continuadamente como bom brasileiro, se manifesta, em momentos de emoção, na língua árabe:

E por mais espantoso que pareça, naqueles dias vibrantes do comício, no maior deles, quando dr. Ezequiel bateu todos os recordes anteriores de cachaça e inspiração, Nacib pronunciou um discurso. Deu-lhe uma coisa por dentro, depois de ouvir Ezequiel. Não aguentou, pediu a palavra. Foi um sucesso sem precedentes sobretudo porque, tendo começado em português e faltando-lhe as palavras bonitas, pescadas dificilmente na memória, ele terminou em árabe, num rolar de vocábulos sucedendo-se em impressionante rapidez. Os aplausos não findavam. – Foi o discurso mais sincero e mais inspirado de toda a campanha – classificou João Fulgêncio. (AMADO, 1979 1, p. 327)
_______________
continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008
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