domingo, 10 de dezembro de 2017

Rita Mourão (Poemas Escolhidos)


AMOR

O gato chegou de esguelha, moroso, amorado.
Chegou, gateou, miou um miado de desejo.
Derramou um olhar de sultão, denunciando volúpia.
Palmeou o terreno, miou mais afinado.
Saracoteou exibindo felinidade.
Agradou, submeteu-se.
A lua romântica prateou o gato.
O miado se alongou, alcançou a lua e se fez orgasmo.

REGRESSO

Na bica de água fresca me debruço.
Bebo o tempo e a espera, me farto de renovo.
Foi então que colhi gotas d’água e com elas 
quis me fazer represa, eternizar o momento.
Mas elas não se prenderam em meu corpo
gasto pelos climas de outras paisagens.
Meu chão se empedrou, ficou cinzento
e minha alma sofre de um matagal sufocante.
Só na poesia me desbravo e me despedro.

TERRA MINHA 

Este meu jeito de engaiolar lembranças
é para guardar um punhado da Terra em que nasci.
É a maneira de reduzir meu isolamento rodeado de distâncias.
Todas as manhãs meus ouvidos varam os confins do passado 
e ouvem um passaredo barulhando dentro de mim.
Aí, eu me encanto com o encantamento que tem gosto de barulhar.
Coisas de alumbramentos, renovo de poeta para encurtar lonjuras. 
Lá o amanhecer põe glorias nos horizontes
que do lado de cá, só enxergo no pensar.
Ali também ficou meu despropósito de corça
correndo lampeira, relvada da de capim gordura,
desapegada de medos e futuros.
Os medos acordaram e até botaram trancas em meus sonhos.
Perdi o gosto de gostar.
Gostar é correr livre, ser rio descompromissado
derramando levezas sobre o corpo da Terra amante.
Isso já não sou.  Hoje quem me relva é a saudade.
Saudade de você Terra minha, berço de renomados estadistas,
JK, Tancredo e tantos outros que não tiveram medo de se exercer.
Oh, Minas Gerais, quem nasce em suas paisagens assina contrato de fidelidade,
carrega no peito seus aconselhamentos  e a bravura de seus heróis.
Boa Terra, sou cria do seu sertão.
O seu chão me fez árvore, me enraizou e os pássaros em mim gorjeiam
Mas a distância me corrói e me soma para menos.

REFLEXÃO

Neste Natal, Senhor meu Deus,
quero me despir de mim para me revestir da tua rica presença.
Quero ostentar em todos os dedos das minhas mãos
o brilho da fraternidade, o desapego do egoísmo e as chaves da sabedoria
para que meu coração  esteja aberto às tuas palavras.
Sei que nada sou, nada posso sem a graça da tua luz que me transmuda e me transcende.
Somente Tu, Senhor, conheces as minhas fragilidades e o prazo de validade    
dos dias do meu tempo. 
Sei que o futuro a Ti pertence e que o presente é uma dádiva tua.
Dou-Te glórias por teres me permitido chegar até aqui e reconheceres a minha fraqueza.
Perdoa a minha insensatez, perdoa-me pela fé  não professada
e pelo amor   que neguei ao irmão abandonado, sem ilusão e sem esperança.
Ensina-me a repartir os dons que me destes e a deixar por onde passo
o sinal da tua presença.
Despoja-meda vaidade, da ganância e faça do meu coração uma nova manjedoura sem  ouro e sem prata,
mas rica  em  atos e palavras  que  traduzam  a minha fé.
Que este Natal, chegue frondoso de esperança e recheado do amor
que abastece os corações vazios  de Ti.
 Senhor meu Deus, fica comigo, a noite já desce, o mar se avoluma.
Eu preciso da tua presença para o êxito da minha travessia. 
Feliz e Santo Natal a todos.

Fonte: A Autora

Rita Mourão (Resumo de Vida)

Rita teve uma infância feliz. Cresceu entre árvores frutíferas e pássaros.

Nesse convívio com a natureza teve seus primeiros contatos com a Poesia.

Aos dez anos foi para Piumhi estudar no Grupo Escolar Dr. Avelino de Queiroz onde terminou  o quarto ano do Ensino fundamental com destaque e diploma de honra ao mérito. 

Seu desejo era continuar os estudos, queria ser professora, mas o pai preferiu que voltasse à fazenda. Casou-se aos 19 anos com Aurélio Mourão, teve 7 filhos e aos 35 anos mudou-se com a família para Ribeirão Preto. Aos 56 anos voltou a frenquentar o Centro Supletivo Cecília Dutra Caran e logo após o Magistério na escola Estadual Otoniel Mota. Frequentou por vários anos o Grupo Flanboyan, dirigido pela escritora e professora Ely Vieitez e, nesse grupo, desenvolveu suas aptidões literárias.

Enfim, aos 60 anos realizou o tão esperado sonho. Ingressava no Colégio Metodista de Ribeirão Preto como professora de Produção e Interpretação de textos com alunos dos quartos e quintos anos onde deixou editadas 14 Antologias com trabalhos dessas crianças.

Rita é poeta, cronista e contista premiada em Ribeirão Preto e região. Possui 4 livros de poemas editados, sendo que o último foi o vencedor em 2010, do Prêmio “Literatura nas Grandes Empresas.” Em maio de 2014 lançou seu quinto livro, “E A PALAVRA HABITOU EM MIM.

É membro da Academia Ribeirãopretana de Letras, da União Brasileira de Escritores, da Academia da Educação e da União Brasileira de Trovadores.

Essa é a menina, a jovem e a mulher, que nunca deixaram de lutar por seus ideais. 

Viver é uma ordem, mas vencer, é privilégio de quem jamais desiste de um sonho.

Fonte: A Autora

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) II – A Chave do Tamanho

II

A Chave do Tamanho


Fiunnn!!!

Quando Emília abriu os olhos e foi lentamente voltando da tonteira, deu consigo num lugar nebuloso, assim com ar de madrugada. Não enxergou árvores, nem montanhas nem coisa nenhuma — só havia lá longe um misterioso casarão.

— Isto deve ser o Fim do Mundo, e aquela casa só pode ser a Casa das Chaves. Que pó certeiro o do Visconde!

Ergueu-se, ainda tonta, e aproximou-se do casarão. Certinho! Um grande letreiro na fachada dizia simplesmente isto: "CASA DAS CHAVES."

Emília esteve algum tempo de nariz para o ar, com os olhos naquelas estranhas letras de luz. Viu uma porta aberta. Enchendo-se de coragem, entrou. Não havia coisas lã dentro, objeto nenhum, nem máquinas. Só aquele mesmo nevoeiro de lá fora mas numa espécie de parede distinguiu um correr de chaves como as da eletricidade, todas erguidas para cima.

— Hão de ser as chaves que regulam e graduam todas as coisas do mundo — pensou Emília. — Uma delas, portanto, é a chave que abre e fecha as guerras Mas qual?

Emília segurou o queixo, a refletir Pensou com toda a força. Não havia diferença entre as chaves.Todas iguaizinhas. Nada de letreiros ou números. Como saber qual a chave da guerra?

— A única solução é aplicar o método experimental que o Visconde usa em seu laboratório. É ir mexendo nas chaves, uma a uma, até dar com a da guerra.

Mas as chaves ficavam numa fileira a oito palmos do chão, fora, pois, do alcance duma criaturinha
de apenas dois palmos de altura. Como alcançar as chaves?

Emília correu os olhos em redor. Não viu nenhuma escada nem cadeira, nem caixão em que pudesse trepar. Não havia sequer uma vara. O remédio seria recorrer novamente ao superpó. "Se eu cheirar a metade do menor dos grãozinhos trazidos nesta caixa, subo até lá e agarro-me a qualquer das chaves."

E assim fez. Escolheu o grãozinho de pó menor de todos, partiu-o ao meio e aspirou metade. Deu certo. Bastou o cheiro daquela isca de superpó para erguê-la até às chaves, permitindo-lhe pendurar-se numa. Nem precisou fazer força. Bastou o seu peso para que a chave descesse quase até o fim.

Mas o que aconteceu foi a coisa mais imprevista do mundo. Tudo se transformou diante de seus olhos, e um pano enorme, como o toldo dum circo de cavalinhos, desabou sobre ela. Emília sentiu-se rodeada de pano; o chão era de pano; por cima só havia pano; dos lados, pano, pano e mais pano. E com o peso de tanto pano ela nem podia conservar-se de pé. Ficou deitadinha, como achatada. Mas era preciso sair dali ou pelo menos fazer esforços para sair, porque já estava sentindo falta de ar. E começou a engatinhar debaixo da panaria, numa cega tentativa de fuga. As dobras eram muitas, de modo que a cada momento, tinha de fazer rodeios para poder avançar. E foi engatinhando, flanqueando as dobras atrapalhadoras; às vezes até ficava de pé, quando uma dobra maior lhe dava espaço. Emília lembrou-se do Labirinto de Creta, onde morava o Minotauro. É escuro ali dentro. Nem ao menos aquela penumbra de madrugada de lá fora. Emília teve a impressão de haver passado um século naquele engatinhamento labiríntico. Por fim divisou em certa direção uma claridade. "Deve ser ali a bainha ou fim deste maldito pano", pensou ela, e para lá se arrastou. Era de fato a bainha — e Emília já quase sem fôlego, lavada em suor, saiu do labirinto e caiu exausta no chão, com um Uf!

Ficou algum tempo deitada de costas, os braços estendidos, sem pensar em coisa nenhuma. Primeiro descansar; depois o resto. Ergueu os olhos para as chaves da parede. Não viu na parede chave nenhuma. "Que história é esta? Será que as chaves se evaporaram?" Firmando a vista, verificou que não. As chaves lá estavam, mas em ponto muitíssimo mais alto. A parede crescera tremendamente. Parecia não ter fim. Tudo aumentara dum modo prodigioso. E no chão viu uma coisa nova, que não existia antes; um pedestal atapetado de papel amarelo.

Emília achava-se deitada justamente sobre esse pedestal. Depois, olhando para o seu corpinho, verificou que estava nua.

— Que história é esta? Eu, nua que nem minhoca, em cima deste pedestal amarelo cheio de riscos pretos, ao lado duma montanha de pano —e as chaves lá em cima — e tudo enormíssimo... Será que estou sonhando?

Pôs-se a pensar com toda a força. Examinou o tapete do pedestal.

Percebeu que os riscos eram letras e teve de ficar de pé para lê-las uma por uma. A primeira era um F; a segunda, um O; a terceira um S. Chegando à última, viu que formava a palavra FÓSFOROS. Em seguida vinha um D e um E, formando a palavra DE. E as últimas letras formavam a palavra SEGURANÇA. Tudo reunido dava a expressão FÓSFOROS DE SEGURANÇA.

— Será possível? — exclamou Emília consigo mesma. — Será que estou em cima da maior caixa de fósforos que jamais houve no mundo? Mas se é assim, então cada pau de fósforo deve ser uma verdadeira vigota de pinho — e como a caixa estivesse aberta, espiou. Não viu lá dentro vigota nenhuma, sim uma espécie de areia grossa, da cor exata do superpó do Visconde.

Nesse momento um raio de luz iluminou-lhe o cérebro.

— Hum! Já sei. Isto é a caixa de fósforos que eu trouxe e está do tamanho que sempre foi. Eu é que diminuí. Fiquei pequeníssima; e, como estou pequeníssima, todas as coisas me parecem tremendamente grandes.

Aconteceu-me o que às vezes acontecia a Alice no País das Maravilhas. Ora ficava enorme a ponto de não caber em casas, ora ficava do tamanho dum mosquito. Eu fiquei pequenininha. Por quê?

E pôs-se a pensar mais forte ainda.

— Só pode ser por uma coisa: por causa da descida da chave.

Logo, aquela chave é a que regula o meu tamanho. Regula só o meu tamanho, ou regula o tamanho de todas as criaturas vivas? Regula o tamanho de todas as criaturas vivas, ou só o das criaturas humanas?

Quantos problemas, meu Deus!

Pensou, pensou.

— Se todas as criaturas ficaram pequeninas como eu fiquei, então o mundo inteiro deve estar na maior atrapalhação e com as cabeças tão transtornadas quanto a minha. Mas a guerra acabou! Ah, isso acabou! Pequeninos como eu, os homens não podem mais matar-se uns aos outros, nem lidar com aquelas terríveis armas de aço. O mais que poderão fazer é cutucar-se com alfinetes ou espinhos. Já é uma grande coisa...

Pensou, pensou, pensou.

— Sim, eu mexi na Chave do Tamanho e todas as criaturas vivas ficaram pequenas porque seria absurdo haver uma chave só para minha pessoa. Se houvesse uma chave para cada pessoa, nesta sala deviam existir três bilhões e meio de chaves, porque a população do mundo é de três bilhões e meio de pessoas. Logo, a mesma chave serve para  todas as pessoas. Logo, toda a humanidade está "reduzida" — e impedida de fazer guerra. Uf! Acabei com a guerra! Viva! Viva!... Pensou, pensou, pensou.

— A prova de que essa chave só regula o tamanho das criaturas vivas, está aqui nesta caixa de fósforos. Se esta caixa de fósforos também tivesse diminuído, estaria proporcional ao meu corpo, e não imensa como está.

A situação era tão nova que as suas velhas ideias não serviam mais. Emília compreendeu um ponto que Dona Benta havia explicado, isto é, que nossas ideias são filhas de nossa experiência. Ora, a mudança do tamanho da humanidade vinha tornar as ideias tão inúteis como um tostão furado. A ideia duma caixa de fósforos, por exemplo, era a ideia duma coisinha que os homens carregavam no bolso. Mas com as criaturas diminuídas a ponto duma caixa de fósforos ficar do tamanho dum pedestal de estátua, a "ideia-de-caixa-de-fósforos" já não vale coisa nenhuma. A "ideia-de-leão" era a dum terrível e perigosíssimo animal, comedor de gente; e a "ideia-de-pinto" era a dum bichinho inofensivo. Agora é o contrário. O perigoso é o pinto.

Emília sentiu um friozinho no coração. Começou a desconfiar que havia feito uma coisa tremenda, a coisa mais tremenda jamais acontecida no mundo.

Pensou, pensou, pensou. Depois resolveu calcular que tamanho teria.

— Posso calcular o meu tamanho por comparação com as letras da palavra FÓSFOROS. Essas letras tinham um terço de centímetro no tempo em que eu tinha 40. Ora, se eu tinha 40 centímetros, era 120 vezes maior que um terço de centímetro. E agora? Qual o meu tamanho em relação a essas letras?

Para fazer a medição, Emília deitou-se sobre o F, e viu que aquele F tinha um terço da sua altura. Logo, ela estava reduzida a justamente um centímetro de altura.

— Que coisa — exclamou. Reduzida a um centímetro apenas, eu que tinha 40! Diminui 40 vezes. Nesse caso, Pedrinho, que tinha l,40m. — e contava tanta prosa — deve estar reduzido a 3 centímetros e meio. E o coronel Teodorico, que tanto se gabava de ter l,80m está reduzido a 4 centímetros e meio — do tamanho dum simples gafanhotinho...

Emília pensava, pensava.

— Que fazer agora? Tenho várias soluções a escolher. Uma, é largar tudo como está. Outra, é levantar novamente a chave e deixar as coisas como eram. Isto me parece o melhor, porque se eu voltar para o sítio deste tamanho é provável que nem possa atravessar o terreiro. O pinto sura não sai de lá. Devora-me, como se eu fosse uma formiga. Olhou para cima. A chave baixada parecia muito no alto — quarenta vezes mais alta que antes. Mas isso não tinha importância para quem ainda dispunha de tanto superpó. E, enfiando a mão dentro da abertura da caixa, Emília apanhou um grão e aspirou-o. O pó levou-a até à altura da chave, mas a sua forcinha, diminuída quarenta vezes, já não dava para mais nada.

Nem jeito de segurar na chave teve, a qual lhe pareceu como enorme maçaneta, de diâmetro igual à altura do seu corpo — o mesmo que a tora de um grande jequitibá para um homem dos antigos.

Dos antigos, sim, porque, se todos os homens estavam agora tão reduzidos de tamanho quanto ela, quem quisesse referir-se aos homens da véspera tinha de dizer "os homens antigos".

Emília sentou-se em cima daquela enorme tora de jequitibá, sem saber como descer.

— E agora?

Pensou, pensou, pensou.

— Vou atirar-me — resolveu. — Meu peso deve estar igual ao peso duma formiga saúva e portanto, se me atirar, devo cair com a leveza de um cisquinho — além de que há lá embaixo aquela montanha de pano.

E assim fez. Atirou-se em cima da montanha de pano.

E foi então que descobriu uma grande coisa: o pano daquela montanha era uma fazenda de enormes ramos de rosas vermelhas — iguais aos ramos de rosinhas do seu vestido evaporado — e compreendeu tudo. A enorme montanha de pano não era mais que o seu próprio vestido largado no chão. Quando baixou a chave e sofreu o instantâneo apequenamento, achou-se no meio do vestido o qual, sem o apoio do corpo que o sustinha, desabou, dando à minúscula dona lá dentro aquela impressão de circo que vinha abaixo.

— Que coisa! -- exclamou Emília. — Aquele imenso pano que formou o labirinto em redor de mim era o meu vestido. Felizmente a caixa do superpó estava na minha mão e não no bolso. Se tivesse no bolso, como poderia eu tirá-la agora do seio desta enorme montanha? Que coisa formidável!...

Emília pensou por mais uns instantes. Tinha de abandonar ali todo aquele precioso pó, apesar de ser o único que havia lá no sítio. Pois como levar de volta a caixa-pedestal? Se estivesse vestida, em seus bolsos ainda caberiam algumas pitadinhas. Mas daquele modo, nua que nem minhoca, o mais que poderia levar era o que coubesse em suas mãos — um grãozinho apenas em cada uma.

Mas antes isso do que nada — e Emília tomou um grão de pó em cada mão.

Depois aspirou um terceiro grãozinho e — fiun!... lá se foi pelos ares, de volta ao sítio de Dona
Benta.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) I – Pôr de sol de trombeta

I


Pôr de sol de trombeta

O pôr do sol de hoje é de trombeta — disse Emília, com as mãos na cintura, de pezinha sobre o batente da porteira onde, naquela tarde, depois do passeio pela floresta, o pessoal de Dona Benta havia parado. Eles nunca perdiam ensejo de aproveitar os espetáculos da natureza. Nas chuvas fortes,

Narizinho ficava de nariz colado à janela, vendo chover. Se ventava, Pedrinho corria à varanda com o binóculo para espiar a dança das folhas secas — "quero ver se tem saci dentro". E o Visconde dava as explicações científicas de todas as coisas.

O pôr do sol daquele dia estava realmente lindo.

Era um pôr de sol de trombeta. Por quê? Porque Emília tinha inventado que em certos dias o Sol "tocava trombeta a fim de reunir todos os vermelhos e ouros do mundo para a festa do acaso".

Diante dum pôr de sol de trombeta ninguém tinha ânimo de falar, porque tudo quanto dissessem saía bobagem. Mas Dona Benta não se conteve.

— Que maravilhoso fenômeno é o pôr do sol! — disse ela.

Emília deu um pisco para o Visconde por causa daquele "fenômeno", e resolveu encrencar.

— Por que é que se diz "pôr do sol", Dona Benta? — perguntou com o seu célebre ar de anjo de inocência. — Que é que o Sol põe? Algum ovo?

Dona Benta percebeu que aquilo era uma pergunta-armadilha, das que forçavam certa resposta e preparavam o terreno para o famoso "então" da Emília.

— O Sol não põe nada, bobinha. O sol põe-se a si mesmo.

— Então ele é o ovo de si mesmo. Que graça!

Dona Benta teve a pachorra de explicar.

— Pôr do sol" é um modo de dizer. Você bem sabe que o Sol não se põe nunca; a Terra e os outros planetas é que se movem em redor dele. Mas a impressão nossa é de que o Sol se move em redor da Terra — e portanto nasce pela manhã e põe-se à tarde.

— Estou cansada de saber disso — declarou Emília. — A minha implicância é com o tal de pôr. "Pôr" sempre foi botar uma coisa em certo lugar. A galinha põe o ovo no ninho. O Visconde põe a cartola na cabeça.

Pedrinho põe o dedo no nariz.

— Mentira! — gritou Pedrinho desapontado, tirando depressa o dedo do nariz.

— Mas o Sol — continuou Emília — não põe cartola na cabeça, nem tem o péssimo costume de tirar ouro do nariz.

— É um modo de dizer, já expliquei — repetiu Dona Benta.

— Estou vendo que tudo que a gente grande diz são modos de dizer, continuou a pestinha. Isto é, são pequenas mentiras — e depois vivem dizendo às crianças que não mintam! Ah! Ah! Ah!... Os tais poetas, por exemplo. Que é que fazem senão mentir? Ontem à noite a senhora nos leu aquela poesia de Castro Alves que termina assim:

Andrada! Arranca esse pendão dos ares1
Colombo! Fecha a porta dos teus mares!

Tudo mentira. Como é que esse poeta manda o Andrada, que já morreu, arrancar uma bandeira dos ares, quando não há nenhuma bandeira nos ares, e ainda que houvesse, bandeira não é dente que se arranque? Bandeira desce-se do pau pela cordinha. E como é que esse poeta, um soldado raso, se atreve a dar ordens a Colombo, um almirante? E como é que manda Colombo fechar a "porta" dos "teus" mares, se o mar não tem porta e Colombo nunca teve mares — quem tem mares é a Terra?

Dona Benta suspirou.

— Modos de dizer, Emília. Sem esses modos de dizer, aos quais chamamos "imagens poéticas", Castro Alves não podia fazer versos.

— Mas é ou não é mentira?

Dona Benta ia abrindo a boca para a resposta, quando um homem a cavalo apontou na curva da estrada. Era o estafeta que, um dia sim, um dia não, portava ali para entregar a correspondência. Todos tiraram os olhos do pôr do sol para pô-los no estafeta.

O homem chegou. Deu boa tarde. Apeou com ar de eterno descadeirado e abriu o encardido saco de lona para tirar os jornais de Dona Benta.

— Há também uma carta para o Sr. Visconde de Sabugosa — disse ele entregando o pacote.

Emília atirou-se para cima da carta como um gato se atira a uma cabeça de sardinha, e arrancou-a das mãos de Dona Benta, como o poeta queria que o Andrada arrancasse a bandeira dos ares.

— Deve ser resposta a uma consulta que fiz sobre as vitaminas do pó de pirlimpimpim — explicou modestamente o Visconde, enquanto Emília se preparava para rasgar o envelope e Pedrinho suspirava pelo bodoque.

— Não abra, Emília! — gritou Narizinho. — Vovó já disse que o sigilo da correspondência é inviolável. Carta é uma coisa sagrada. Só o destinatário pode abri-la.

Emília fez um muxoxo de pouco caso e enfiou a carta no nariz do Visconde, dizendo:

— Coma, beba o seu sigilo.

Enquanto isso, Pedrinho desdobrava o jornal e lia os enormes títulos e subtítulos da guerra.

— Novo bombardeio de Londres, vovó. Centenas de aviões voaram sobre a cidade. Um colosso de bombas. Quarteirões inteiros destruídos. Inúmeros incêndios. Mortos à beca.

O rosto de Dona Benta sombreou. Sempre que punha o pensamento na guerra ficava tão triste que Narizinho corria a sentar-se em seu colo para animá-la.

— Não fique assim, vovó. A coisa foi em Londres, muito longe daqui.

— Não há tal, minha filha. A humanidade forma um corpo só. Cada país é um membro desse corpo, como cada dedo, cada unha, cada mão, cada braço ou perna faz parte do nosso corpo. Uma bomba que cai numa casa de Londres e mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha como você ou deixa aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto como se caísse aqui. É uma perversidade tão monstruosa, isso de bombardear inocentes, que tenho medo de não suportar por muito tempo o horror desta guerra. Vem-me vontade de morrer. Desde que a imensa desgraça começou não faço outra coisa senão pensar no sofrimento de tantos milhões de inocentes. Meu coração anda cheio da dor de todas as avós e mães distantes, que choram a matança de seus pobres filhos e netinhos.

Aquela tristeza de Dona Benta andava a anoitecer o Sítio do Picapau, outrora tão alegre e feliz. E foi justamente essa tristeza que levou Emília a planejar e realizar a mais tremenda aventura que ainda houve no mundo. Emília jurara consigo mesma que daria cabo da guerra e cumpriu o juramento — mas por um triz não acabou também com a humanidade inteira.

Na noite daquele dia, em sua caminha de paina, ela perdeu o sono. Quem entrasse em sua cabeça leria um pensamento assim: "Esta guerra já está durando demais, e se eu não fizer qualquer coisa os famosos bombardeios aéreos continuam, e vão passando de cidade em cidade, e acabam chegando até aqui. Alguém abriu a chave da guerra. É preciso que outro alguém a feche. Mas onde fica a chave da guerra? Pessoa nenhuma sabe. Mas se eu tornar uma pitada do superpó que o Visconde está fabricando, poderei voar até o fim do mundo e descobrir a Casa das Chaves. Porque há de haver uma Casa das Chaves, com chaves que regulem todas as coisas deste mundo, como as chaves da eletricidade no corredor regulam todas as lâmpadas duma casa."

O Visconde, de fato, andava estudando um misterioso superpó, capaz de maravilhas ainda maiores que o velho pó de pirlimpimpim; por isso passava as noites em claro e até recebia cartas científicas do estrangeiro.

Mas naquela noite Emília ouviu uns ronquinhos.

"Será o Visconde?" — disse ela — e foi ver. Era o Visconde, sim, que, depois de noites e noites passadas em claro, dormia um sono de Rabicó.

"Se ele está ferrado no sono a ponto de roncar" — pensou Emília, "é que já resolveu o problema do superpó. Ronco de sábio quer dizer cabeça fresca, invenção já inventada."

Pensando assim, Emília foi pé ante pé ao laboratorinho do Visconde e remexeu tudo até encontrar numa pequena caixa de fósforos uma substância parecida com cinza. Cheirou-a. Lembrava o cheiro do pó de pirlimpimpim. "Deve ser isto mesmo" — disse ela — e corajosamente tomou uma pitada.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Mário Quintana (Se o poeta falar num gato)


V Prêmio Escambau de Microcontos (Resultados I)

Elias Alves da Silva

Nos últimos metros da maratona, olhou para trás para conferir sua posição. Ninguém à vista. Faltava pouco. Era agora ou nunca – o sonho de uma vida. Ao cruzar a linha de chegada, os funcionários, que já retiravam os equipamentos do evento, assistiram ao seu momento de glória.

Laurel Cantuária

Achava que não sentiria mais nada. Porém, a nostalgia o abraçou quando a esposa lhe trouxe flores. Desejou estar vivo para recebê-las.

Zé Ronaldo

Ouviu o clique. Suou frio. Saci nunca poderia imaginar que membro fantasma pudesse acionar mina terrestre.

Francisco Petrônio

Adorava a casa dos tios: guerras de travesseiros, implicâncias mútuas. Bastou a primeira espinha, uns finos pelos no sovaco e as primeiras alterações na voz do primo para ser proibida de “ir para dormir”. Defrontava-se com a realidade de que sua liberdade termina quando começa a puberdade do outro.

Erinilton Gomes Soares

A prancha de surfe na parede. Recordação do tempo em que a filha era dele e não do mar.

Victor Tsuneichi Chida

A flauta empoeirada no canto da sala era um lembrete constante dos sonhos da juventude. Em seus ouvidos hoje, somente o apito marcando o início de mais um turno.

Thyago Costa

Essa foi a votação mais acirrada que já vi. Os a favor tinham total certeza que era o certo a se fazer, os contrários gritavam com raiva ao discordar. No fim o primeiro grupo venceu e eu já estava fora do meu corpo quando as máquinas que ainda faziam meu coração bater foram desligadas.

Thadeu Melo

Ariel, diante da tela, congela. “Não tenho certeza”, pensa. Recorda de sua vida. Que nunca ficou doente; Da sua aptidão nata para as exatas; De sua paixão pelo sci-fi. É a primeira vez que baixa nesse servidor e não sabe como proceder diante da frase no pop-up que pede seu clique: “Não sou um robô”.

Claudia Jeveaux Fim

Aquele café que a esposa serviu, lembrou sua infância.  A nostalgia disfarçou o sabor amargo do veneno.

Cristiane Dias

Respirou fundo e relaxou assim que a maratona acabou. Só de olhar aqueles atletas correndo já estava ficando sem ar.

Mariana Carolo

O amor é milagroso, ela disse. Tocando flauta, ele não a escutou. Sorrindo, ela entendeu que a supernova que criaram começava a se apagar. Nem os milagres são eternos. Ao final daquele ano, restou a escuridão do espaço e um silêncio que soprava ao longe.

Romeu Martins

“O surfe está nas minhas veias!”
“Percebi”, respondeu Drácula cuspindo parafina e fiapos de prancha.

Luiz Antonio Caldas Filho

Na noite boêmia, Lúcio encantava chorinhos em sua flauta transversal. No escuro do quarto, mais tarde, chorava baixinho a falta de Ester.

Emerson Conto

Terminada a votação, recebeu dos colegas de cela um olhar nulo. O código de honra havia sido quebrado e, para que a ordem fosse restabelecida, o eleito deveria morrer. No cárcere, o branco da paz se pintava com mais sangue.

Sá Tiro

Numa História alternativa, o soldado grego partiu de Maratona em corrida, para anunciar a vitória, mas enganou-se no caminho. Quando conseguiu chegar a Atenas, encontrou todas as mulheres e crianças degoladas. Era o combinado, para evitar a violação pelos Persas vencedores. Morreu de remorsos.

Isaac Morais

Com um corte resolveu o problema. Só assim para ter o poder de escolher não virar homem na puberdade.

Tatiana Alves

Achava que tudo na vida era passível de votação, com direito a recurso e a recontagem. Mas se meteu numa terra sem lei, pleito ou sufrágio. E nos olhos da amada vislumbrou abstenção.

Edweine Loureiro

Concluiu o percurso de quarenta e dois quilômetros em duas horas, dois minutos e cinquenta e oito segundos. Não bateu o recorde mundial da maratona, mas, pelo menos, deixara a polícia para trás.

Joaquim Carlos Trovador

Ela era uma costureira da alta sociedade. Ele era um famoso alfaiate. Ambos se amavam e se odiavam. Às vezes, por causa da rivalidade, perdiam a linha, mas entre uma alfinetada e outra eles se costuravam!

Mylena Oliveira

Vestiu seu vestido floral, arrumou o cabelo delicadamente, colocou os sonhos no bolso junto com seu RG onde ainda via escrito “Paulo Borges de Souza”. Foi trabalhar. Sua maior aventura era voltar viva pra casa.

Carolina Santos

Lutou incansavelmente por cada braça até receber do latifundiário os sete palmos que lhe eram de direito.

Edweine Loureiro

O casal vivia responsabilizando o Governo por todos os problemas que tinham. Até serem expulsos do Paraíso.

Mariana Carolo

A novidade brotando na barriga. Quanto mais cheia, mais vazia se sentia.

Aparecida Gianello

Teve um filho, escreveu um livro, plantou uma árvore. O filho cresceu, o livro não vendeu e a árvore agora era sua única esperança… Saiu pra comprar a corda.

Welington Moraes

O vaso quebrado. A cinta na mão. Um osso quebrado. Um olho vazado. O sangue no chão. Os anos de mocidade abreviados. A prisão. O choro. A mãe. O abandono. O caixão. O filho se vai. O pai fica. O resto é amargura e silêncio…

João Paulo Hergesel

A mãe vivia dizendo: “Bota, menino, uma cinta nessa calça! Coisa feia, a cueca aparecendo”.
Mas a mãe não entendia nada do que as meninas gostavam. Mãe nunca foi menina…

Laurel Cantuária

O espantalho comandava o governo. Afirmava proteger os milhos, mas vivia com os corvos sobre os ombros.

Carolina Santos

Um grupo de células se rebelaram contra o governo. Ao receber o resultado do exame descobriu em lágrimas que teria apenas alguns meses de vida.

Regina Ruth Rincon Caires

Com passos trôpegos, caminha pela areia. Fora levado a conhecer o mar. Novidade tardia. Fitando o horizonte, no encontro de céu e água, sente os olhos marejados. No peito, o mesmo encanto de quando conheceu um rio, lá atrás, na primeira pescaria com o pai.

Edweine Loureiro

Quando Yukiko mostrou pela primeira vez aquela cinta-liga vermelha sob o quimono, Hiro, seu namorado, não pôde conter-se: comprando logo, para ele, uma cinta do mesmo tipo.

Thadeu Melo

Cruza enfim a linha de chegada, vitorioso! Foi uma árdua maratona. O alívio vem ao subir o topo do pódio. Gozará agora de um longo repouso. Ouve-se um som de beep contínuo.
—Doutor, venha ver.
—Céus…
—Devo avisar os familiares?
—Não, não. Eu cuido disso. Apenas desligue os aparelhos.
—Sim, senhor.

Claudia Jeveaux Fim

Entrava em tubos, picos e até marolas…
A prancha de surfe na parede, o levava ao Secret Point, mesmo preso às máquinas.

Luiz Antonio Caldas Filho

— Alguém aqui sabe o que é puberdade?
— É quando o menino e a menina começam a ver aqueles videos?
— Qué isso, Pedrinho? Que vídeos?
— Do Bolsonaro, professora!

Clara Gianni

Urgente! Aos 27 anos, morre a famosa artista pop La… CLIQUE AQUI PARA MAIS INFORMAÇÕES

Cristian X Baek

Rita, trinta e um tombo. Em nove anos de coma viveu inesquecíveis cem vidas, de pó a pó. Desperta agora em eterno déjà-vu, presa e livre. Nostalgia instantânea, um presente com gosto de passado. Futuro não há. Sem medos ou anseios, pois hoje o tempo é não-linear. Nada como o mesmo dia após o outro.

Luiz Antonio Caldas Filho

Encontrara a solução para sua nostalgia. Uma forma de viajar 100 anos no passado. Para azar de todos, não era cientista; apenas presidente.

Laurel Cantuária

Entre um clique e outro, Suzanna fotografou o casamento do homem com quem viveria pelo resto da vida.

Iolandinha Pinheiro

Foram cinco cliques, um para cada membro da família, e em poucos segundos era o herdeiro universal.

Jefferson Lemos

Imediatamente sentiu falta de casa, e ali, sozinho, a nostalgia era sua única companhia. Quão triste era o último homem da terra, preso na lua, vendo seu planeta se dissolver numa bola de fogo colossal.
Não tinha muito o que fazer; chorou.

Carolina Santos

Meu nome? Staphanie Granada. O que eu faço? Ah, eu pratico surfe de trem. Medo? Não tenho medo não. É no “back-side” do metal que toda parada acontece, agora se tomar a “vaca”, aí mano, já era, vira comida de trilho.

Aldenor Pimentel

Enfadado de lugares-comuns, o poeta refugiou-se nas montanhas. Do topo, mergulhou no mar de palavras já ditas. Encharcado delas, caminhou até a praia e as deixou cair na areia. Com a ponta dos dedos, enterrou-as no chão e viu brotarem neologismos. Para ele, reinventar o antigo não era novidade.

Thadeu Melo

 Nosso herói parte em sua busca pelo totem perdido. Escala montanhas, navega em águas turvas, atravessa pântanos, desertos… devasta vilas e castelos…
— Achou o grampeador?
— Ah… sim, sim.
— Certo. Às 6 quero aquele relatório.
O herói segue em sua aventura rumo à morte do tédio no dia-a-dia…

Junior Alves

Sem conseguir furtar nada, ele saiu da casa aos trancos e barrancos, quebrando tudo que pôde.
– Seja homem e saia já dessa árvore! – Berrou o velho em seu encalço, bufando ao ver para onde ele se refugiara.
– Meu bem… – Uma senhora gritou da porta – Deixe esse esquilo em paz e volte para dentro!

Gina Eugênio Girão

“Por destino, uma Parca fiandeira – porém, corto, do vestido, a anágua”, declamou ela, costureira de si mesma, tecituras ao tempo da maturidade. E arrematou: “Necessário, também, bordar e pintar, tricotar, bricolar, rasgar e remendar!”

Natalia Vale

Linha a linha, ponto a ponto, nó a nó, a obra nasce. A costureira olha-a, embevecida, como se de um filho se tratasse. Mas, tristemente, perde-lhe o rasto. Resta-lhe a memória, que também se vai desvanecendo.
Letra a letra, o livro surgiu. Perdeu-se, igualmente, no tempo.

Denise Andressa Gonsalez Santos

Pimenta no copo, feijão na garrafa e chita na braça, assim eram vendidas as coisas no armazém do Seu Tião. O velho coronel media e precificava bicho, coisa e gente com a exatidão dos próprios critérios. O trinta e oito e alguns jagunços garantiam isso.

Regina Ruth Rincon Caires

Como podia, um homem tão miúdo, ser respeitado por dizer: “óia” a cinta?! E era… Como era! Nunca desferiu uma lambada. O corretivo ficava na competência da mãe. Nas mãos dela, o couro comia…

Rita Zuim Lavoyer

Romântico, Enzo sonhou uma liberdade utópica. Fugiu para a natureza. Com ela identificou-se. Fixou-se ali. Fez parte dela. Viu-se árvore. Debaixo dela fez o balanço da sua existência. Regresso, concluiu: há sonhos possíveis. Agora, lança sementes. Quer ser árvore e sombra para quem dele precisar.

Nilo Paraná

Procurou pelos confins do universo, mas foi no seu planeta natal que ele encontrou a árvore da vida. Quase seca, morrendo, assim como seu desértico mundo. Cada folha que caia era mais uma galáxia destruída. O fim dos tempos chegara. Abriu sua cova e deitou-se. A última folha veio cobri-lo.

Tatiana Alves

Manter o governo daquela embarcação era quase impossível. A prudência já o abandonara havia muito tempo. A obsessão por aquela baleia controlava seu coração e, desde então, seus atos adernavam tanto quanto o navio em dia de tempestade.

Carolina Santos

 A aventura era diária. Às cinco da manhã equilibrava a criança no ônibus cheio, escalava a escada para limpar vidros de elite, abdominais que lustravam o chão, percorria trilhas de desgostos sorrindo. À noite, em sonho, subia a mais alta montanha e respirava liberdade.

Junior Alves

 Já destemido ele nasceu. Um só frio na barriga, jamais sofreu. Segunda enfrentava dragões, terça demônios exorcizava, quarta estudava os males e quinta os experimentava. Sexta matava inimigos, sábado os carregava e domingo, as moças ele cortejava. E só quando morreu, o que era aventura ele entendeu.

João Paulo Hergesel

Maria segurava o envelope com a novidade em uma das mãos; com a outra, alisava a barriga. Quando o marido chegou, abraçaram-se e derramaram algumas lágrimas. Depois de nove meses, o câncer intestinal a levou.

Romeu Martins

— Que estresse este trabalho sobre sistemas de medidas!
— Por que, amor?
— Olha essa tal de braça, usada no campo: “comprimento de dois braços abertos, como num abraço”. Seria como usar a duração de um beijo pra medir o tempo! Que tipo de mundo usa abraços e beijos como padrão?
— Um mundo melhor?

Regina Ruth Rincon Caires

 Audacioso?! Não, isso Nicanor nunca foi. Mas, quando descansou os olhos naquele rosto aformoseado pelo véu preto, na missa de domingo, perdeu o juízo. Estonteado, jogou-se na aventura. Não sabia que era a mulher do açougueiro. Hoje, Nicanor figura na estatística dos desaparecidos.

Claudio Antonio Mendes

Quando alguém pediu para a costureira uma mortalha, ela não imaginava que seria para si mesma. Alguns babados do passado ficaram sem arremates.

Thadeu Melo

Enquanto isso, na vila:
– Braça! Você não sabe o que é braça? — pergunta Seu Barriga.
— É a mulher do braço? — responde Chaves.
(Ah não, Thadeu! É esse o microconto? Tu fazes melhor que isso!)
Exausto e cego pelo nevoeiro, desistiu e afogou-se à distância de uma braça da baía.
(Agora sim!)

Emerson Conto

A mãe fingia não entender como Danilo, educado para ser um bom cristão, tornara-se um assassino. Já o rapaz atribuía seu comportamento justamente à criação que tivera:
- A cinta do pai foi minha igreja - balbuciou diante do homem enforcado pela moral de couro que lhe sustentava as calças.

Fonte:

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Domingos Freire Cardoso (Depois do Circo já ter ido embora)


João do Rio (Os tatuadores)

- Quer marcar?

Era um petiz de doze anos talvez. A roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de dignidade na pergunta. O interlocutor, um rapazola louro, com uma dourada carne de adolescente, sentado a uma porta, indagou:

- Por quanto?

- É conforme, continuou o petiz. É inicial ou coroa?

- É um coração!

- Com nome dentro?

O rapaz hesitou. Depois:

- Sim, com nome: Maria Josefina.

- Fica tudo por uns seis mil réis.

Houve um momento em que se discutiu o preço, e o petiz estava inflexível, quando vindo do quiosque da esquina um outro se acercou.

- Ó moço, faço eu; não escute embromações!

- Pagará o que quiser, moço.

O rapazola sorria. Afinal resignou-se, arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do braço. O petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o trabalho. Era na Rua Clapp, perto do cais, no século XX... A tatuagem! Será então verdade a frase de Gautier: “o mais bruto homem sente que o ornamento traça uma linha indelével de separação entre ele e o animal, e quando não pode enfeitar as próprias roupas recama a pele”?

A palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Loocks que a introduziu no ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de tatou ou de tahou, desenho. Muitos dizem mesmo que a palavra surgiu no ruído perceptível da agulha da pele: tac, tac. Mas como é ela antiga! O primeiro homem, decerto, ao perder o pelo, descobriu a tatuagem.

Desde os mais remotos tempos vê-mo-la a transformar-se: distintivo honorífico entre uns homens, ferrete de ignomínia entre outros, meio de assustar o adversário para os bretões, marca de uma classe para selvagens das ilhas Marquesas, vestimenta moralizadora para os íncolas da Oceania, sinal de amor, de desprezo, de ódio, bárbara tortura do Oriente, baixa usança do Ocidente. Na Nova Zelândia é um enfeite; a Inglaterra universaliza o adorno dos selvagens que colhem o phormium tenax para lhe aumentar a renda, e Eduardo com a âncora e o dragão no braço esquerdo é só por si um problema de psicologia e de atavismo.

Da tatuagem no Rio faz-se o mais variado estudo da crendice. Por ele se reconstrói a vida amorosa e social de toda a classe humilde, a classe dos ganhadores, dos viciados, das prostitutas de porta aberta, cuja alegria e cujas dores se desdobram no estreito espaço das alfurjas (ruelas) e das chombergas (casinhas). Suas tragédias de amor morrem nos cochicholos sem ar, numa praga que se faz de lágrimas. A tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história das paixões. Esses riscos nas peles dos homens e das mulheres dizem as suas aspirações, as suas horas de ócio e a fantasia da sua arte e a crença na eternidade dos sentimentos - são a exteriorização da alma de quem os traz.

Há três casos de tatuagem no Rio completamente diversos na sua significação moral: os negros, os turcos com o fundo religioso e o bando das meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por ociosidade. Os negros guardam a forma fetiche; além dos golpes sarados com o pó preservativo do mau olhado, usam figuras complicadas. Alguns, como o Romão da Rua do Hospício, têm tatuagens feitas há cerca de vinte anos, que se conservam nítidas, apesar da sua cor - com que se confunde a tinta empregada.

Quase todos os negros têm um crucificado. O feiticeiro Ononenê, morador à Rua do Alcântara, tem do lado esquerdo do peito as armas de Xangô, e Felismina de Oxum a figura complicada da santa d’água doce.

Esses negros explicam ingenuamente a razão das tatuagens. Na coroa imperial hesitam, coçam a carapinha e murmuram, num arranco de toda a raça, num arranco mil vezes secular de servilismo inconsciente:

- Eh! Eh! Pedro II não era o dono?

E não se fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas marcas simbólicas.

Os turcos são muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus, e nestas religiões diversas não há gente mais cheia de abusões, de receios, de medos. Nas casas da Rua da Alfândega, Núncio e Senhor dos Passos, existem, sob o soalho, feitiçarias estranhas, e a tatuagem forra a pele dos homens como amuletos. Os maronitas pintam iniciais, corações; os cismáticos têm verdadeiros “eikones” primitivos nos peitos e nos braços; os outros trazem para o corpo pedaços de paramentos sagrados. É por exemplo muito comum turco com as mãos franjadas de azul, cinco franjas nas costas da mão, correspondendo aos cinco dedos. Essas cinco franjas são a simbolização das franjas da taleth (manto), vestimenta dos Khasan, nas quais está entrançado a fio de ouro o grande nome de Jeová.

A outra camada é a mais numerosa, é toda a classe baixa do Rio - os vendedores ambulantes, os operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes. Para marcar tanta gente a tatuagem tornou-se uma indústria com chefes, subchefes e praticantes.

Quase sempre as primeiras lições vieram das horas de inatividade na cadeia, na penitenciária e nos quartéis; mas eu contei só na Rua Barão de S. Félix, perto do Arsenal de Marinha, e nas ruelas da Saúde, cerca de trinta marcadores. Há pequenos de dez, doze anos, que saem de manhã para o trabalho, encontram os carregadores, os doceiros sentados nos portais.

- Quer marcar? - perguntam; e tiram logo do bolso um vidro de tinta e três agulhas.

Muitos portugueses, cujos braços musculosos guardam coroas da sua terra e o seu nome por extenso, deixaram-se marcar porque não tinham que fazer.

- Que quer V.S.? - O pequeno estava a arreliar. - Marca, moço, marca! – E tanto pediu que pôs pra aí os risquinhos.

Os pequenos, os outros marcadores ambulantes, têm um chefe, o Madruga, que só no mês de abril deste ano fez trezentas e dezenove marcações.

Madruga é o exemplo da versatilidade e da significação inumerável da tatuagem. Tem estado na cadeia várias vezes por questões e barulhos, vive nas Ruas da Conceição e S. Jorge, tem amantes, compõe modinhas satíricas e é poeta. É dele este primor, que julga verso:

- Venha quanto antes d. Elisa / Enquanto o Chico Passos não atiça / Fogo na cidade...

Homem tão interessante guarda no corpo a síntese dos emblemas das marcações - um Cristo no peito, uma cobra na perna, o signo de Salomão, as cinco chagas, a sereia, e no braço esquerdo o campo das próprias conquistas. Esse braço é o prolongamento ideográfico do seu monte de Vênus onde a quiromancia vê as batalhas do amor. Quando a mulher lhe desagrada e acaba com a chelpa, Madruga emprega leite de mulher e sal de azedas, fura de novo a pele, fica com o braço inchado, mas arranca de lá a cor do nome.

Enquanto andou a fornecer-me o seu profundo saber, Madruga teve três dessas senhoras - a Jandira, a Josefa e a Maria. A primeira a figurar debaixo de um coração foi a Jandira. Um belo dia a Jandira desaparecia, dando lugar à Josefa, que triunfava em cima, entre as chamas. Um mês depois a letra J sumira-se e um M dominava no meio do coração.

Os marcadores têm uma tabela especial, o preço fixo do trabalho. As cinco chagas custam 1$000, uma rosa 2$000, o signo de Salomão,o mais comum e o menos compreendido porque nem um só dos que interroguei o soube explicar, 3$000, as armas da Monarquia e da República 6$ a 8$, e há Cristos para todos os preços.

Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.

Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra - a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada - tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que a influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.

Andei com o Madruga três longos meses pelos meios mais primitivos, entre os atrasados morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente, os carroceiros, os carregadores, os filhos dos carroceiros deixaram-se tatuar porque era bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer crime. A outra, a perdida, a maior, o oceano da malandragem e da prostituição é que me proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar na abafada atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação do amor, do desprezo, do amuleto, da posse, do preservativo, das ideias patrióticas do indivíduo, da sua qualidade primordial.

Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador cinco sinais que significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma bofetada com a mão assim marcada.

O marinheiro Joaquim tem um Senhor crucificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza: quando sofre castigos os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-lo.

- Parece que estão dando em Jesus!

A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza na água, a âncora e a estrela, o homem do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.

Os lugares preferidos são as costas, as pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado de um regimento de cavalaria: “viva o marechal de ferro!...”, desenhos sensuais, corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de luxúria ou de religião.

Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.

- No peito não! - cuspiu o mulato - no peito eu quero Nossa Senhora!

A sociedade, obedecendo à corrente das modernas ideias criminalistas, olha com desconfiança a tatuagem. O curioso é que - e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados – o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime.

Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu reconhecimento? Isso com os da polícia talvez.

Mas mesmo com pessoas, cujos intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.

Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas.

A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.

As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis ideias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.

– Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.

É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher...

Há ainda a vaidade imitativa. As barregãs das vielas baratas têm sempre um sinalzinho azul na face. É a pacholice, o “grain de beauté”, a gracinha, principalmente para as mulatas e as negras fulas que o consideram o seu maior atrativo. Quando envelhecem, as pobres mulheres mandam apagar os sinais – porque querem ir limpas para o outro mundo, e a Florinda, há pouco falecida, que rolara quarenta anos nos bordéis de S. Jorge e da Conceição, dizia-me antes de morrer:

– Ai, meu senhor, isto é para os homens! Quando se fica velho arranca-se, porque a terra não vê e Deus não perdoa.

Grande parte desses homens e dessas mulheres tem o delírio mais sensual, fazem os nomes queridos em partes melindrosas, marcam os membros delicados com punhais, lâmpadas e outros símbolos. Neste caso eu tenho o Antônio Doceiro, um lindo rapazito que foi bombeiro depois de ter rolado pelo mundo, e a Anita Pau. Ambos têm desenhos curiosos por todo o corpo, e a pobre Anita mostra no calcanhar por extenso o nome do pai seus filhos e traz em cada seio a inicial dos dois pequenos como numa oferenda – a sua única oferenda de mãe aos desgraçados perdidos...

Num meio de tão fraca ilusão, onde as miçangas substituem os “pendentifs d’arte” e a vida ruge entre o desejo e o crime, depois de muito os pobres entes marcados como uma cavalhada – a cavalhada da luxúria e do assassínio, – começa a gente a sentir uma concentrada emoção. E a imaginar com inveja o prazer humano, o prazer carnal, que eles terão ao sentir um nome e uma figura debaixo da pele, inalteráveis e para todo o sempre.

Aquele pequeno impressionou-me de novo na sua profissão estranha. Indaguei:

– Quanto fizeste hoje?

– Hoje fiz doze mil réis.

E eu compreendi que afinal tatuador deve ser uma profissão muito mais interessante que a de amanuense de secretaria...

 Fonte:
RIO, João do. A Alma Encantada das Ruas.