quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Nilto Maciel (Aníbal e os Livros)

Bárbara fez uma fogueira de todos os livros de Aníbal, apesar da oposição dos filhos. Melhor vendê-los aos sebos. Doá-los a bibliotecas públicas. Fazer um leilão. Bárbara ainda leu os títulos de alguns livros, antes de lançá-los ao fogo. Talvez descobrisse a causa essencial, primeira, da tragédia de seu marido, nas letras das capas. Ou nos desenhos. Ou nos nomes dos autores. Não, não adiantava descobrir nada. E deu início ao lento esforço de empilhar os volumes no quintal da casa: On The Origin of Species, Charles Darwin; Animal Sharpshooters, Anthony D. Fredericks; The Cannibal, John Hawkes; La Bãete du Gâevaudan: l'innocence des loups, Michel Louis; Cannibal, Terese Svoboda; Viagem ao Brasil, Hans Staden ...

Quando se conheceram, ele já lia livros desse tipo? Bárbara nunca havia se interessado pelas leituras de Aníbal. Se lia romances policiais, biografias de santos, enciclopédias, a Bíblia, o Alcorão, poesias, não sabia. Ler ele lia, e muito, todo dia. E escrever? Não, ele não escrevia nada, a não ser cartas a parentes distantes. Mentia: ultimamente Aníbal andava escrevendo nuns cadernos. Aníbal pode ser considerado um erudito? Talvez sim. Pois conhecia toda a História, as primeiras grandes civilizações, Grécia, Roma, todos os séculos, reis, dinastias, guerras, descobrimentos, invenções, mitologias. Porém, a mania de ler essas coisas de índios, de povos primitivos, de antropofagia, canibalismo é muito recente. Primeiro voltou a se interessar pela História do Brasil, relembrando os tempos de estudante. Lia os livros didáticos dos filhos. Participava ativamente das atividades escolares deles. Principalmente da matéria História. Entusiasmava-se, lia em voz alta trechos dos livros. Lia com prazer o capítulo do naufrágio do navio que conduzia o Bispo Sardinha de volta a Portugal e a consequente devoração dos náufragos pelos índios caetés. Anotassem o nome completo do apóstolo: Pero Fernandes Sardinha. "Pai, por que os peixes não comeram o bispo Sardinha, tendo ele nome de peixe?" Ria, contava outras histórias, fazia teatro. "Vamos estudar os caetés." Na pressa de ler tudo, adquiriu um Caetés, de Graciliano Ramos. "Na verdade, não gosto muito de romances. Prefiro a verdade dos compêndios de História. O título do livro de Graciliano me enganou. Mas não tanto assim. Há semelhança entre os caetés e João Valério. Ambos devoravam seus semelhantes. Os índios devoravam a carne de outros homens. O personagem de Graciliano devorou, ou supôs devorar, as vidas, os sonhos de seus próximos. O narrador confessa ao final do romance: "Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes." Os filhos cresciam, já não pediam o auxílio do pai para os deveres de casa. Aníbal, no entanto, continuava devorando livros, lendo em voz alta, atrapalhando a vida escolar dos filhos. "Homem, deixe os meninos em paz."

Baribal ainda teve tempo de ler alguns trechos dos livros do pai, assim como os cadernos deixados por ele. "Livros não enlouquecem ninguém. A loucura vem de outras fontes." Não, não concordava com a opinião da mãe. O pai até podia estar louco, porém a sua loucura não havia surgido da leitura dos livros, mesmo daqueles que tratam mais diretamente de canibalismo. Se não falava de outro assunto, se discutia em defesa de suas opiniões, se se irritava com facilidade, se brigava com a mulher e os filhos, se todo dia contava um sonho esquisito, se a toda hora falava de seus medos – nada disso se devia aos livros. O princípio de todos os problemas do pai podia estar no próprio nome: "Aníbal" está dentro de "canibal", faz parte da palavra, embora as origens de uma e de outra sejam bem diversas. Vissem bem os nomes dos filhos, dados por ele e não pela mãe: Baribal e Aníbara. Ambos formados de pedaços dos nomes Aníbal e Bárbara. E quem seria mais canibal? Quanto à mania de ler, tudo deve ter começado pela curiosidade de conhecer as origens do próprio nome. Ao descobrir o primeiro grande Aníbal da História, passou a fazer mais e mais pesquisas, leituras. Afundou na História de Roma, perdeu-se no passado. Quando descobriu Aníbal Barca só faltou ficar doido. Sentiu-se o próprio guerreiro antigo. Copiou em grandes letras um trecho em latim e o expôs na sala de casa: "Missus Hannibal in Hispaniam primo statim adventu omnem exercitum in se convertit. Hamilcarem iuvenem redditum sibi veteres milites credere; eumdem vigorem in vultu, vimque in oculis, habitum oris lineamentaque intueri. Dein brevi effecit ut pater in se minimum momentum ad favorem conciliandum esset. Tito Lívio, Ab Urbe Condita Libri."

A discórdia na família de Aníbal vinha de muitos anos. Bárbara nunca gostou dos nomes dos filhos e sempre se queixou disso. Queria nomes mais comuns, como Aniceto, Anacleto, Ana, Anastácia. O menino chorava quando os colegas o chamavam de Bari, Bariba, Barbal e outros apelidos. Aníbara chorava mais ainda, porque a chamavam de Víbora ou Níbra. E, adolescente, passou a responsabilizar o pai por todos os seus infortúnios. Não conseguia namorado. As colegas fugiam dela.

Bárbara acusava Aníbal de ter trazido a loucura para dentro de casa desde o batizado dos filhos. Ao misturar os nomes Aníbal e Bárbara, para da mistura formar os nomes dos filhos, deu início à própria crise, à própria loucura, ao canibalismo de letras, sons e palavras. E o pior de tudo: não havia solução para aquilo. "Nome dado é nome moldado, ferrão em rês, marca. Para sempre." A pobre menina morreria Aníbara, metade Aníbal, metade Bárbara. E Aníbara, tresloucada, se desgrenhava, arrancava cabelos, babava, rolava no chão.

Leonardo Jaguaribe lamentava o final infeliz do amigo Aníbal. Conheciam-se havia muitos anos. Quantas noites juntos nos bares, falando de política, futebol, crime, cinema, música, literatura. Porém, nos últimos tempos Aníbal havia se tornado insuportável. Não parava mais de falar, não deixava ninguém abrir a boca. E, pior, o mesmo assunto. Sim, Aníbal não passava um dia sem falar em livros. Porém, dos livros passava aos sonhos, ao futuro, delirava, voava. Então a loucura de Aníbal vinha dos livros. Não, não via nos livros a causa principal da demência do amigo. Tudo vinha da bebida, do álcool. Daí os sonhos estapafúrdios, os delírios intermináveis. Quantas vezes contou histórias de auto-devoração. Sentia fome e vontade de comer o próprio corpo. Partia dos dedos das mãos, passava aos braços, descia aos pés, às pernas, ao pênis. Sonhava devorando Bárbara. Esquartejava-a, jogava à panela os pedaços. Convidava amigos para a grande ceia. Os filhos perguntavam pela mãe. Ele mentia e os obrigava a se alimentarem da carne da própria mãe. Contava isso como se contasse uma história banal, sem nenhuma cerimônia, porém sem riso de deboche.

Felismina, mulher de Leonardo, também frequentava a casa de Aníbal e Bárbara. Conhecia Baribal e Aníbara desde pequenos. Conversava horas a fio com Bárbara. Com Aníbal não conversava tanto. Não entendia bem as palavras dele. Não gostava dos assuntos por ele tratados. E ultimamente sentia arrepios e até enjoos quando ele se punha a falar. Porém, não via loucura nenhuma nele. Aníbal não passava de um homem estranho, esquisito. "Posso dizer excêntrico?" Talvez nem fosse isso. Possivelmente se fazia assim, se mostrava assim, por exibicionismo. Qualquer pessoa pode ler livros sobre canibais. Qualquer pessoa pode ter sonhos absurdos. Inventaram a loucura de Aníbal. Os objetivos desses "inventores" seriam os mais diversos. Bárbara talvez quisesse se livrar do marido. Viviam brigando. Separação inevitável e necessária. Segundo Bárbara, o marido não a amava mais. Passava dias, semanas, meses sem se aproximar dela. Sentava-se, abria um livro sobre canibais e dormia no sofá. Um dos livros preferidos dele era Viagem ao Brasil. As páginas mais anotadas foram as que descrevem cenas de antropofagia: "Quando trazem para casa os seus inimigos, as mulheres e as crianças os esbofeteiam. Enfeitam-nos depois com penas pardas; cortam-lhes as sobrancelhas; dançam em roda deles, amarrando-os bem, para que não fujam. Dão-lhes uma mulher para os guardar e também Ter relações com eles. Se ela concebe, educam a criança até ficar grande; e depois, quando melhor lhes parece, matam-na a esta e a devoram."

Mesmo quando ia para a cama, levava um livro. Ficava até de madrugada lendo, dormia, acordava assustado, aos gritos. Bárbara também se assustava. "Eles já iam me devorar vivo." Baribal e Aníbara podem ter sido influenciados pela mãe. Leonardo queria afastar Aníbal do álcool.

Havia algum tempo Aníbal vinha tendo dificuldades de relacionamento com os colegas de trabalho. Os primeiros problemas surgiram quando passou a ler durante o expediente. O chefe chamou-lhe a atenção diversas vezes. Além de ler, Aníbal falava muito enquanto trabalhava, ou parava de fazer as tarefas para falar dos livros, de seus sonhos e delírios. A qualquer hora abria um de seus livros raros e se punha a ler em voz alta, em inglês, latim e até idiomas menos conhecidos aqui, como a língua d'oc. Às vezes fazia pose, pedia silêncio, atenção, e relia trechos de obras científicas.       

 Alguns colegas dele riam e, sem que ele ouvisse, chamavam-no de maluco. Outros não lhe davam mais ouvidos, irritavam-se, faziam reclamações ao chefe. Os mais amigos pediram paciência. Aníbal precisava de ajuda médica. César, o chefe, gritou: nada de maluquice, nada de necessidade de tratamento médico. E socou a mesa: preguiça, malandragem, eis o nome da doença desse falso canibal. No entanto, uma funcionária procurou o médico da repartição. E convenceu Aníbal a ir ao consultório do doutor Osvaldo Cruzado. Atônito, o marido de Bárbara se dirigiu ao clínico. Falou durante mais de uma hora: canibais, relatos de cenas de canibalismo, sonhos estapafúrdios. Osvaldo em nenhum momento deixou de mirar as palavras cruzadas e outros passatempos espalhados sobre a mesa. Súbito quis saber se Aníbal gostava de História. E se pôs a falar das Cruzadas. Império Bizantino, papa Urbano II, Deus vult, Deus assim deseja, libertação de Jerusalém, Terra Santa, Guerra Santa. O paciente passou imediatamente a falar de Amílcar Barca e de seu famoso filho. Ainda pequeno, na presença do pai, Aníbal jurou eterno ódio aos romanos. O médico parecia embasbacado. Tomou veneno, para não se entregar aos inimigos. O médico coçou o queixo. O fato se deu no ano 183 a. C. Ao fim da consulta, encaminhou Aníbal a um psiquiatra.

Recebido com euforia pelo doutor Sigismundo Freudungo, o paciente se manteve calado durante alguns minutos. Talvez a origem da doença estivesse na sua infância. Pode ter presenciado cenas de canibalismo entre animais. Cobra engolindo cobra, rato devorando rato. Como se o médico estivesse ali apenas para ouvi-lo, pôs-se a dizer frases desordenadas, como se colhidas aqui e ali, numa colagem babélica: "Os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas rituais; algumas tribos comiam os inimigos, outras os parentes e amigos." Abriu a pasta cheia de livros e cadernos, meteu a mão e retirou um calhamaço: "Nem nos deve admirar a barbaridade destes povos, quando sabemos que dos descendentes de Tubal e de outras nações políticas com que se povoou Portugal se reduziram muitos dos seus descendentes a tanta brutalidade que matavam e comiam aos que dos povos vizinhos apanhavam ou em guerra ou em ciladas."

Bárbara fez uma fogueira de todos os livros de Aníbal. Nunca mais queria ver livros à sua frente. Por causa deles o coitado do Aníbal havia enlouquecido. Agora a miséria, a vergonha, todos os vexames sociais. Por onde passa ouve um zunzunzum: olha a mulher do doido; tanto orgulho e agora isso...

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Renata Paccola (Trovas)


A força de uma nação
começa com a caneta...
Um a mais na educação:
um a menos na sarjeta!

Alerta a todo machista:
nova era se avizinha...
Será uma grande conquista
ver os homens na cozinha!

A maré desce e descansa
enquanto a onda passeia,
acariciando a criança
e seus castelos de areia...

Ao deitar na rede, o Guido
morreu de uma forma tétrica,
porque, de tão distraído,
deitara na rede elétrica!

Ao ver a joia de Alice,
a amiga pergunta a esmo:
– É diamante? - E a outra ri-se:
– Não, é do marido, mesmo!

Ao ver a praça... o coreto...
lembro você ao meu lado,
e o meu mundo branco em preto
ganha as cores do passado!

As graças que sempre faço
têm o poder de encobrir
a tristeza que o palhaço
faz de conta não sentir...

Casamento traz enganos,
pois seu muso inspirador
pode virar, depois de anos,
o seu museu roncador!

Conquistar novos espaços...
eis a semente da guerra.
Tantas vidas em pedaços
por um pedaço de terra!

Contra a vontade do amado,
nada faça... e se conforme.
Dizia o velho ditado:
"Quando um não quer... o outro dorme".

Deu chilique no garoto
ao saborear seu prato,
e o tempero “Ajinomoto”
bem depressa “agiu no mato!”

É na busca pela paz
e o conhecimento novo
que tantas vezes se faz
a identidade de um povo!

É um arquivo de desmandos
a memória do poeta:
desobedece aos comandos
quando a paixão não deleta...

Eu que fui grão escolhido
nos trigais da mocidade,
hoje sou pão ressequido
nas migalhas da saudade...

Eu só julgo que mereço
a fortuna que amealho
se ela tiver seu começo
no suor do meu trabalho!

Fraternidade é sentir
uma comunhão tão alta
que nos leva a dividir
até mesmo o que nos falta…

Insensatez... Causa? Efeito?
Sentimento ou atitude?
Para quem pensa, é defeito;
para quem sonha, é virtude!

Jamais aceite um convite
para o amor, em tempo errado.
Desperta mais apetite
o prato mais esperado!

Já não há nenhum prazer
que em público a lei permita:
quem quer fumar ou beber
tem que virar eremita!

Meu caminho é tão confuso,
que muitas vezes me sinto
como se fosse um intruso
vagando num labirinto...

Meu coração machucado
foi o pior professor,
ao me deixar reprovado
nas tantas provas de amor!

Meu verso reflete a dor
de um coração solitário,
que escreve cartas de amor,
sem qualquer destinatário...

Nacionalismo é sentir
uma comunhão tão alta
que nos leva a repartir
até mesmo o que nos falta.

Na inspiração oportuna
pode o poeta buscar,
mais do que criar fortuna,
a fortuna de criar.

Não há bicho que não deixe
suas marcas na Julinha:
no pé tem olho de peixe;
no olho, tem pé de galinha!

Não pode existir quem negue
que em apenas quatro versos
a trova sempre consegue
conter vários universos!

Não quero a vida vazia
com práticas e horas certas,
mas polvilhar cada dia
de pequenas descobertas...

No meu sótão de memórias,
vivem lembranças sem fim,
num velho baú de histórias
vividas dentro de mim...

Nosso tempo de criança...
Os velhos sonhos de outrora...
A saudade é uma lembrança
que se esqueceu de ir embora!

Nossos momentos felizes
semeados na memória,
fazem crescer as raízes
que sustentam nossa história!

Num casório aconteceu
engano quanto à pessoa,
e então um homem ateu
casou com a mulher à toa!

O desejo, por instinto,
e a carícia, por encanto,
vêm criar o amor que eu sinto
e inspirar o amor que eu canto!

O futuro, eu mesmo faço
nas sementes que eu espalho,
transformando meu cansaço
nos frutos do meu trabalho.

Os cobradores levados
aos males e às tentações,
tentam pagar os pecados
em suaves prestações!

Pra cortar alho e limão
sem misturar azedumes,
eu lanço, em primeira mão,
a faca de dois legumes!

Para o furacão filmar,
a TV saiu-se bem:
a matéria foi ao ar
e o repórter foi também!

Por tantas vezes perdido
nas vertentes do destino,
segue em busca de um sentido
o meu sonho peregrino...

Quando as mangas arregaço
para cumprir meu dever,
se bate à porta o cansaço,
eu me recuso a atender.

Quem dera a justiça cega
pudesse ver, tão somente,
a falsa prova que entrega
e condena um inocente!

Quem divide os próprios dias
ajudando a quem precisa,
multiplica as alegrias
e as tristezas, suaviza.

Que os rumos de meus irmãos
não se percam nas estradas
e as vias de duas mãos
sejam vias de mãos dadas!

Rico cinquentão? Coitado!
Quisera que fosse assim!
Ele anda mais apertado
que pasta dental no fim!

Ser careca ele detesta.
Não suporta usar peruca.
Então, puxou para a testa
o que restava na nuca...

Sinto a dor de quem confessa
que minha vida pequena
foi o ensaio de uma peça
que jamais entrou em cena...

Solteira por convicção 
só quero um "galho" inconstante:
quem gosta de amarração
é corda,fita e barbante!

Teve um chilique tão forte
que logo tomou vacina,
e se mandou para o Norte
temendo a gripe sulina...

Uma lágrima que escorre
traz mais brilho à própria face,
se a cada sonho que morre
há um novo sonho que nasce!

Um sorriso de criança
inocente, doce e aberto
é uma chuva de esperança
em meu caminho deserto!

Malba Tahan (Minha Vida Querida)

Na última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encarnecidos que vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibet. O sol, já perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas preces com que os lamas (1) imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão (2).

A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor.

    Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação (3).

O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li.

Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino.

— Han-Ru, ó gênio desapiedado! — exclamou. — Que procuras aqui, quase à sombra da casa da encantadora Li-Tsen-li? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte.

Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado do Eterno:

— A tua inquietação é legitima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a tua noiva Li-Tsen-li. Chegou, pela determinação do Destino, o termo de sua existência neste mundo. Li-Tsen-li vai morrer!

— Piedade, Han-Ru! Piedade! —- implorou Te-ha-tá. — Ela é tão jovem, e tão prendada! Pelo amor de Maia Devi (4) deixa viver Li-Tsen-li!

O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse:

— Muito fácil será, para aquele (e é esse o teu caso!) que tem o amparo de Maia Devi, prolongar a vida de Li-Tsen-li. Sei que tens direito a uma vida longa e tranquila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver. Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante! Aceitas essa proposta?
   
A sombra de um vulto surgia, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação.
   
As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto, não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da própria vida?

— A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e orientaram na vida?

— Farei como pedes, meu amigo — respondeu o Anjo da Morte. — Até o findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final. Deveras voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do amanhecer.
* * *
   
Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada?

O primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram mais apreciados do que os olhos negros das Apsaras que enchem de encanto o céu de Indra (5).
   
Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá:

— A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível Han-Ru.

O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles.

Ao ouvir a consulta do jovem, Niansi não se conteve:

— É uma loucura, Te-ha-tá! Onde se viu um moço, rico e cheio de saúde, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo mundo, milhões e milhões de mulheres lindas, muitas com as sete ou talvez, com as oito perfeições indicadas no Livro Sagrado (6). Aqui mesmo (no Tibet) poderás topar, em qualquer aldeia, com centenas de meninas, algumas das quais nada ficariam a dever, julgadas pelos seus predicados de graça e beleza, à tua noiva Li-Tsen-li! Desgraçada a ideia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o sacrifício de vinte e tantos anos de.tua vida! E quem poderá prever o futuro? Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão e deslembrada do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá viver, nos braços de outro, a vida que é a tua própria vida! Que farás, então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de tua existência? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.
* * *
   
A divergência entre os dois amigos mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-tá.

— Vou ouvir — pensou o jovem — a opinião do prudente Kin-Sã. Só ele poderá indicar-me o caminho a seguir.

Kin-Sã, citado no Tibet como um estudioso das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo:

— Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma condição. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, poderá ser retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranquilidade garantida no caso de uma infidelidade de tua futura esposa. Se ela, por qualquer  motivo, não se mostrar  digna de teu sacrifício,  perderá o direito ao resto da vida que lhe cabia viver! Fora dessa condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de irremediável loucura!

E concluiu o seu conselho com estas palavras:

— Fizeste bem em hesitar. A Hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam.
* * *
   
Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável a proposta sugerida pelo douto Kin-Sã, e levou-a sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte.

Han-Ru aceitou a condição imposta pelo noivo:

— Está bem, Te-ha-tá. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai viver os vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém, dada, mas sim “emprestada”.

* * *
   
Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-tá, e os dois eram citados como os esposos mais felizes do Tibet. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocábulo que significa “minha vida querida”.

Um dia, afinal, Te-ha-tá foi obrigado a fazer uma longa viagem para além das fronteiras de sua terra. Deixou “Minha vida querida” e seu filhinho, que já contava algumas semanas, em companhia de seus pais.

Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus três amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoação.

— Onde está “Minha vida querida”? — perguntou, ansioso, aos amigos. — Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à “Minha vida querida”?

Disse um dos amigos:

— Enche de ânimo e de coragem o teu coração, ó Te-ha-tá! Uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre a tua vida!

— Desgraça? — repetiu, aflito, Te-ha-tá. — É horrível esta angústia! Vamos! Quero saber a verdade! Onde está “Minha vida querida”?

— Morreu!

— Morreu! — gritou Te-ha-tá, desesperado. — Não é possível! Não podia morrer! Eu sacrifiquei por ela, metade de minha vida!

E Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o céu; rolava, por vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador.

Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o infeliz Te-ha-tá dar plena expansão à indizível angústia que lhe esmagava o coração.

Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.

— Han-Ru! — bradou, num tom de incontido rancor. — Faltaste com a tua palavra. Que fizeste de “Minha vida querida”?

— Escuta, Te-ha-tá — respondeu Han-Ru. — Preciso dizer-te a verdade, para que não continues a blasfemar desse modo. A tua esposa deveria viver vinte e três anos. Um dia, porém, o seu filhinho adoeceu gravemente. O pequenino ia morrer. Que fez a tua esposa? Pediu, em preces, que a sua vida fosse dada ao filhinho enfermo para que ele pudesse viver! Salvou-se o teu filho, mas tua esposa morreu!

E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu:

— E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida, ela mãe extremosa, não hesitou um segundo em dar, pelo filhinho, a vida inteira!
__________________________
Notas:
1- Lamas — Sacerdotes budistas entre Mongóis e Tibetanos. O chefe supremo é o grande Lama ou Dalai-Lama.
2- Senhor da Compaixão - Deus.
3- Han-Ru — Na complicada mitologia hindu figuram nada menos de 17 deuses. Os três primeiros, Brama (o principio criador), Vishnu (o principio conservador) e Siva o principio destruidor), formam a celebre trindade hindu. Além dos 17 deuses, os hindus incluíram entre as divindades os planetas, alguns rios (o Ganges, por exemplo, é adorado sob a forma de uma deusa) e certos animais. Siva, cuja esposa é Maia Devi ou Bhavâni, tem vários auxiliares. Han-Ru é um dos gênios que se encarregam de cumprir as determinações do Deus da Destruição.
4- Maia Devi — também denominada Bhavâni. É a esposa de Siva, terceiro deus da trindade hindu. Essa deusa é, em geral, representada sob a forma de uma linda mulher, em atitude ameaçadora, montada num tigre.
5- Céu de Indra — Da multiplicidade de deuses que são apontados na Mitologia Hindu decorre a crença, geralmente aceita, de que existem vários céus. O céu de Indra parece ser o mais notável. Erguem-se, nessa região divina, palácios de ouro ornados de pedras preciosas, grutas, jardins prodigiosos cujas flores exalam cem mil perfumes diferentes. Um foco luminoso — mais intenso do que o sol — derrama uma claridade sobre todos os recantos do paraíso hindu. O céu de Indra é povoado por uma infinidade de ninfas encantadoras denominadas Apsaras.
6 - Livro Sagrado — A religião dos hindus é, em parte, explicada nos Vedas, que não passam, afinal, de uma coleção de hinos, preces e conceitos morais. O Livro Sagrado a que se refere o herói do conto deve ser, naturalmente, o Código de Manu, cuja origem é anterior ao IX ante-século.
     Todos os conceitos e princípios religiosos no livro de Manu aparecem, aliás, citados nos Vedas.
     Há quatro Vedas, sendo cada um deles dividido em duas ou três partes. O primeiro é constituído exclusivamente por vários hinos religiosos e preces; o segundo estuda os princípios religiosos e analisa as controvérsias teológicas; o terceiro discute certos pontos obscuros de Teologia. O quarto Veda não é, em geral, aceito pelos doutores hindus.
     Os Vedas não podem ser atribuídos a um único autor; em cada um deles colaboram vários personagens de épocas diversas. Os diversos escritos foram reunidos sob a forma atual no século XVI, antes de Cristo.


Fonte: Malba Tahan. Minha Vida Querida.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

João Batista Xavier Oliveira (Trovas de Natal)


Dezembro... mês de euforia,
planos: compras de Natal.
No centro: mercadoria
e de lado o PRINCIPAL

É natal nos condomínios,
nas prisões e nas favelas...
mas as faces dos fascínios
mudam conforme as janelas.

Lá no morro, vinte e cinco
é um dia não diferente,
mas mesmo em teto de zinco
quem tem amor tem presente.

Mesmo com todo esse clima
de convulsão social
os fluidos que vêm de cima
purificam o Natal.

Nestes tempos tão modernos
Natal está precisando
de muitos gestos fraternos
e mais tempo vez em quando.

No Natal eu gostaria
de abraçar toda cidade;
ver gente na correria
"comprando" felicidade.

Os apelos aos ouvintes
em paz "artificial"
são verdadeiros acintes
às mensagens do Natal.

Quantos sapatos vazios...
janelas... -portais dos sonhos-
por onde olhinhos sombrios
veem o Natal tão tristonhos.

Fonte: O trovador

Nilto Maciel (Trem-fantasma)

O maquinista, logo após o desastre, deu um grito, levou as mãos à cabeça, pôs-se a chorar e recostou-se a um canto da parede, sentando-se. Descuido? Imprudência? A locomotiva partiu da estação primeira já em alta velocidade e, num segundo, alcançou a segunda, a terceira, feito bala, apitando, sem parar em nenhuma estação. Quando o maquinista percebeu o perigo, não havia mais tempo para frear o trem. O precipício abria-se à sua frente, profundo, mortal. O homenzinho fez careta, arregalou os olhos: os vagões resvalaram, despedaçando-se no fundo do abismo. "Ó meu Deus!" Porém, havia um consolo: nenhum passageiro havia subido aos vagonetes. E ajudantes ele nunca teve. Assim, nada de vítimas. Mais sossegado, enxugou as lágrimas e engatinhou até o primeiro pedaço do trem. Pôs-se a juntar um a um os restos do veículo. Olhou para cima, para a grande mesa da sala, onde o desastre teve início.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte.

domingo, 24 de dezembro de 2017

Olivaldo Junior (Buquê de Trovas sobre o amor... e sem motivo nenhum)

Cada amor que desfolhei
desfolhou-me a solidão;
para o espelho, já mudei;
só não muda o coração...

- Cada lágrima que eu guardo
nesse peito, o meu Saara,
vira a chama em que me ardo
quando o amor é joia rara...

Com a cal do esquecimento,
recobrimos nosso amor;
mas, o tempo, com o vento,
fez romper da pedra flor...

Da poeira do meu quarto,
de mil livros nunca lidos,
nasce a trova que reparto
com amores não vividos...

Das estrelas que acendi
numa noite enluarada,
a do amor jamais perdi
ao achar a madrugada.

Entre as letras da canção
que eu cantava por amor,
desfolhou-se um coração
que 'batia' em seu louvor...

- Esse amor de quem amou,
tal e qual o cravo branco,
nasce donde alguém chorou
e se firma num barranco.

Este amor que eu alimento
co'as sementes da ilusão
bica em fúria o sentimento
que me escava o coração...

Fina estrela em teu olhar
vira a láctea de uma via
que persigo ao caminhar
com você, amor, poesia...

Grande amor, pequeno embora,
foste grande ao vão poeta
que se encontra à luz da aurora
mas jamais em linha reta...

Grande fado, mar ao lado!...
Mas a lágrima de oliva
rola aos lábios do coitado,
a rogar, silente: - Viva!

Mal o dia em nós raiou,
meu amor se pôs a arfar;
foi meu beijo que tirou
de quem amo todo o ar...

Meu amor jamais foi meu,
disso eu tenho consciência;
no balcão, sobrou Romeu,
numa eterna adolescência...

- Na sanfona que suspira
pelo amor no carrossel,
fica o choro que conspira
pra essa lua ser de mel...

Na varanda de minh'alma,
sob as dálias e o jasmim,
este cravo é branca palma
de uma rosa sem jardim...

No florir dos dissabores,
num bilhete desprezado,
fica o cheiro dos amores
que ficaram no passado...

Ó, guitarra portuguesa,
voz irmã de um trovador,
faz do amor a natureza
de quem busca lua e flor!

Todo o amor que tu me tinhas,
e lhe tinha amor demais...
Mas, na vida, as "cirandinhas",
volta e meia, são jamais.

Um perdão que nunca vem
vem matar quem o quisera,
mas massacra quem o tem
sem o dar a quem o espera...

Fonte: O Autor

Carlos Leite Ribeiro (O Sonho de Sofia)

(Conto de Natal dedicado à minha querida netinha Ana Sofia)
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- Mamã, não tenho sono e quero ir para a tua cama.

Antes de ter autorização para ir para a cama dos pais, a pequenina Sofia saltou para o meio e deitou-se entre ambos.

- Porque não consegues dormir, Bebê ? – perguntou-lhe a mãe.

- Sabes, a Barbie, a boneca da mana, esteve a falar comigo e não me deixou dormir…

- Não acredito que a boneca tivesse falado contigo! E o que te disse ela?

- Disse-me as prendas que o Pai Natal me vai dar amanhã …

- Ah, sim ?!!! não estou a acreditar e o papá está a rir-se.

- É verdade, papás ! Disse-me que me ia dar uma saia comprida como a mamã e a mana tem, uma linda t-shirt, meias, botas altas e um boné de pala.

- Marido, estás a ouvir esta nossa filha ? Não sei não …

- E ainda mais, papás, um telemóvel (celular) como o mano tem, uma mesa para eu escrever, um cocas (sapo) e um boneco muito grande como a mana tem e …

- Olha que talvez o Pai Natal não te possa dar tudo isso. Este ano, ele está com muita falta de dinheiro. Então um boneco grande está fora de causa, pois o vosso quarto é pequenino.

- O boneco da mana, como já é velho, pode ficar na garagem. E como o Pai Natal está pobrezinho, o papá podia dar-lhe uns dinheiritos … Também quando chegar o Pai Natal, quero ir falar com ele, para lhe dar um beijinho…

O pai, muito divertido, levantou-se da cama, dizendo-lhe:

- Olha Bebê, vai para a tua caminha que o papá amanhã vai escrever ao Pai Natal a fazer o teu pedido. O papá vai-te por na tua caminha.

A criança agarrou-se ao pescoço do pai que a foi pô-la na caminha. De regresso ao seu quarto, a esposa muito divertida, disse-lhe:

- Parece-me que esta nossa filhinha vai ser uma “contadora de histórias” como o avô …

Fonte: O Autor

sábado, 23 de dezembro de 2017

Trova 277 (Renata Paccola)


Carlos Leite Ribeiro (O Boneco de Trapos)

https://br.pinterest.com
Era uma vez um boneco de trapos...

O Natal estava à porta e, numa casa modesta, a mãe viúva e as suas duas filhas, trabalhavam afincadamente na confecção de bonecos de trapos.

O último boneco da última série saiu defeituoso: uma perna mais curta, um braço mais comprido e até o olhar era vesgo.

- Não vamos mandar este boneco para a loja, pois, está muito defeituoso - disse-lhe uma das filhas.

- É um fato, este boneco ficou com muitos defeitos - concordou a mãe, que continuou - mas talvez passe e não seja devolvido. Nós precisamos tanto de dinheiro...

- Sendo assim, minha mãe, vamos então mandar também o "aleijadinho".

E o Boneco de Trapos, com uma perna mais curta, um braço mais comprido e com o olhar vesgo, lá foi para a loja...

Em outra casa modesta, outra mãe falava a sua filha mais nova:

- Tu minha filha, queres oferecer uma prenda de Natal àquela menina que mora além, naqueles prédios novos, mas nós somos pobres e não podemos oferecer nenhum brinquedo caro.

- Podemos comprar qualquer coisa barata, uma simples lembrança - disse-lhe a criança - para mais, ela deu-nos umas roupinhas que nos fizeram muito arranjo.

- Pronto, não insistas mais. Vai à loja e compra um brinquedo que seja barato.

E foi assim que, o Boneco de Trapos, defeituoso, com uma perna mais curta, um braço mais comprido e o olhar vesgo, bem embrulhado e com um laço colorido, foi parar a uma casa menos modesta, onde habitava uma menina, que tinha muitos brinquedos caros e bonitos...

- A tua amiguinha ali de baixo, a que no outro dia deste aquelas roupas, trouxe-te esta prenda.

- Ah, mas que boneco tão imperfeito, mamã! que hei de de fazer com ele? É tão feio?!

- Brinca com ele - retorqui-lhe a mãe - Talvez depois o consideres bonito.

Pouco convencida, a menina não arranjou outra brincadeira que não fosse colocar o Boneco de Trapos, no centro do alvo dos dardos, e, com uma precisão quase matemática, começou a espetá-lo. Pouco a pouco o boneco foi-se desfazendo, e, assim, quase desfeito, foi parar na manhã da véspera de Natal, a um contentor de lixo...

Nessa manhã, uma mãe levava sua filha pela mão e, ao passar por um contentor de lixo, a criança exclamou:

- Mãe, olha aquele boneco de trapos. É tão bonito, deixa-me levá-lo?

- É um boneco tão imperfeito, já desventrado, para que tu o queres? Só servia para sujar a casa.

- Mãe, eu nunca tive um boneco, e este, até é coxinho como eu. Tu, minha mãe, até podias arranjá-lo, para mais, o Pai Natal nunca se lembrou de mim!

E a criança lá levou o boneco para casa, que à noite já estava consertado e com os defeitos corrigidos. Até parecia outro...
 
Quando nessa noite, foi para a cama, a menina aleijadinha, orgulhosamente, deitou o Boneco de Trapos a seu lado, e disse à mãe:

- Mãe, tu que és tão habilidosa, que consertaste tão bem este boneco, não podias consertar também e minha perninha, para eu ficar tão bonita como ele?

Comovida, a mãe limpou uma lágrima que, teimosamente lhe caia pela face abaixo, e, tristemente, respondeu-lhe:

- Infelizmente não posso, minha filha. Mas confiemos em Deus e na boa vontade dos Homens. Talvez para o ano que vem, possas ser curada...

E um ano passou...

A menina aleijadinha, depois de fazer algumas operações e de ser bem tratada, recuperou do seu defeito físico.

- Mais um ano em que não podemos fazer uma festinha nesta noite. Nem sequer um brinquedo te posso dar, minha filha - lamentava-se a mãe.

- Não te preocupes, mãe, eu já recebi uma grande prenda, pois, estou completamente curada e, para mais, tenho o Boneco de Trapos, que sempre me acompanhou. Ele é tão bonito, não é, mamã?!

O frio lá fora era intenso e talvez nevasse...

Aquela mãe, depois de aconchegar os cobertores a sua filha e ao seu Boneco de Trapos, olhou-o com mais atenção, e, teve a sensação que este lhe sorria e lhe dizia:

- Obrigado, mãe, vai descansar, pois eu velarei pela nossa menina...

E será mesmo que... Nessa Noite em que dizem que os animais falam, os Bonecos de Trapos, também falam?

Fonte:
O Autor

L. P. Baçan (A História do Terceiro Velho e do Pescador)

          Senhor, havia um pescador tão velho e tão pobre que mal podia sustentar sua esposa e três filhos. Saia pescar muito cedo diariamente e havia estabelecido uma regra para si: jamais lançar sua rede mais do que quatro vezes. Ele partiu uma certa manhã, ainda à luz da lua, e foi para a beira do mar. Ele se despiu e lançou a rede. Quando a estava puxando para o banco de areia, sentiu um grande peso. Imaginando ter pegado um grande peixe, ficou muito contente. Mas, no momento seguinte, viu em sua rede, ao invés de um grande peixe, a carcaça de um asno. Ele ficou muito desapontado.

          Aborrecido com tal pescaria, ele consertou a rede que a carcaça do asno havia arrebentado em vários pontos. Em seguida, atirou novamente a rede ao mar pela segunda vez. Ao puxar, ele novamente sentiu um grande peso, de forma que pensou que ela estava cheia de peixe. Mas ele só achou uma enorme cesta cheia de lixo. Ele ficou ainda mais aborrecido.

          — Ó, sorte! — ele clamou. — Não faça troça comigo, um pobre pescador que não pode sustentar sua família!

          Dizendo isso, ele jogou fora o lixo, e lavou a rede, limpando-a de toda sujeita. Novamente ele a lançou ao mar, pela terceira vez agora. Dessa vez, só pegou pedras, conchas e lama. Ele estava à beira do desespero. Então ele lançou a rede pela quarta vez. Quando pensou ele nada pescara, ele a puxou com muito dificuldade. Não havia peixes, mas ele achou um pote amarelo, que pelo seu peso parecia conter alguma coisa. Ele notou que estava fechado e lacrado com um selo. Ficou encantado.

          — Eu o venderei ao fundidor e, com o dinheiro que conseguir, comprarei uma medida de trigo.

          Ele examinou o jarro por todos os lados, depois o chacoalhou para ouvir algum ruído, mas nada ouviu. Analisando o selo na tampa, ele pensou que, mesmo assim, poderia haver alguma coisa lá dentro. Usando sua faca, com um pouco de dificuldade ele conseguiu soltar a tampa. Virou o pote de cabeça para baixo, mas nada saiu dali. Levantou o objeto à altura dos olhos e estava olhando seu interior, tentando ver alguma coisa, quando saiu dali uma fumaça espessa, fazendo-o recuar alguns passos. Essa fumaça se levantou até as nuvens e estendeu-se para cima do mar e da orla, formando um nevoeiro que muito surpreendeu o pescador. Quando toda a fumaça estava fora do pote, ela se concentrou numa massa enorme, na qual apareceu um gênio duas vezes maior que um gigante. Quando viu aquele monstro terrível olhando para ele, o pescador ficou tão aterrorizado que não conseguiu dar um passo para fugir.

          — Grande rei dos gênios! — exclamou o monstro. — Jamais voltarei a desobedece-lo!

          Estas palavras levaram coragem ao pescador.

          — O que você está dizendo, grande gênio? Conte-me sua história e como acabou encerrado nesse vaso.

          O gênio olhou o pescador com arrogância.

          — Dirija-se a mim com cortesia, antes que eu o mate!

          — Ai! Por que você deveria me matar? — indagou o pescador. — Eu o libertei, já se esqueceu?

          — Não! — respondeu o gênio. — Isso não me impedirá de matar você. Mas vou lhe conceder um favor: escolha como quer morrer!

          — Mas o que fiz eu a você? — insistiu o pescador.

          — Eu não o posso tratar de qualquer outro modo — disse o gênio. — Se quiser saber o motivo, escute a minha história. Eu me rebelei contra o rei dos gênios. Para me castigar, ele me encerrou neste vaso de cobre, lacrando-o com um selo de chumbo, que é o único encanto capaz de me deter e me impedir de sair. Em seguida ele jogou o vaso no mar. Durante o meu cativeiro, jurei que se qualquer um me libertasse antes de cem anos, eu o faria rico até mesmo depois da morte. Aquele século passou e ninguém me livrou. No segundo século, prometi que daria todos os tesouros do mundo para meu libertador, mas ele nunca veio. No terceiro século, eu prometi fazer de meu salvador um rei, sempre estar perto dele e lhe conceder diariamente três desejos. Mas aquele século também se passou e eu permaneci na mesma prisão. Finalmente, fiquei furioso por ter permanecido cativo por tão longo e prometi que se alguém me soltasse, eu o mataria imediatamente e só lhe permitiria escolher de que maneira ele deveria morrer. Como vê,

          O pescador estava muito infeliz.

          — É isso que um homem azarado como eu ganha por ter salvado você. Eu lhe imploro que poupe minha vida.

          — Já lhe disse! — tornou o gênio. — Sejamos breves. Escolha, você está desperdiçando meu tempo!

          O pescador teve uma ideia repentina.

          — Considerando que eu tenho que morrer — falou ele, — antes de eu escolha a maneira de minha morte, eu suplico por sua honra que me diga se estava realmente dentro do vaso!

          — Sim, eu estava — respondeu o gênio.

          — Eu realmente não posso acreditar nisso — afirmou o pescador. Aquele vaso pequeno mal pode conter um de seus pés, quanto mais o corpo inteiro. Eu não posso acreditar nisso, a menos que eu o veja fazer isso.

          — Pois vou lhe mostrar como! — falou o gênio, com desprezo.

          Então ele começou a se transformar em fumaça que, como antes, esparramou-se para cima do mar e da orla, depois foi se juntando e começando a entrar lentamente no vaso, até que nada restasse do lado de fora. Uma vez saiu do vaso, indagando:

          — Bem, pescador descrente, aqui estou eu, dentro do vaso. Acredita em mim agora?

          O pescador, em vez de responder, apanhou a tampa de chumbo e fechou depressa no vaso.

          — Agora, ó gênio do mal — exclamou o pescador. — Peça perdão a mim e escolhe de que morte morrerá! Mas não, será melhor que eu o lance ao mar e que construa uma casa na praia para avisar a todos os pescadores que aqui vêm lançar suas redes para que se previnam de pescar um gênio tão mau como você, que jura matar o homem que o libertar.

          A estas palavras, o gênio fez tudo que pôde para sair, mas não podia, por causa do encanto da tampa.

          — Se me ajudar, eu o farei o homem mais sábio do mundo todo, capaz de desafiar gênios, seduzir fadas e conquistar reinos.

          — Se eu confiar em você, nada me garantirá que serei tratado com justiça. Além disso, se minha astúcia superou a de um gênio, estou certo de que poderei vencer pela astúcia qualquer outro que aparecer no meu caminho — disse o velho.

          — Poderá ter tudo que jamais teve em sua miserável vida! — continuou o gênio.

          — Vou fazer melhor! Vou correr o mundo, levando você para ensinar as pessoas a enfrentarem a maldade — finalizou o velho, encarando agora o gênio que queria tirar a vida do pobre e desesperado comerciante.

          — Devo confessar que sua história é a mais surpreendente e maravilhosa de todas as outras — afirmou o gênio, realmente surpreso, olhando de rabo de olho para o pote que o velho tinha nas mãos. — Por isso eu lhe dou a terceira parte do castigo do comerciante. Ele deve agradecer todos os três pelo empenho demonstrado em salvá-lo. Se não fossem vocês, ele já teria partido desta vida.

          Dizendo assim, ele desapareceu, para grande alegria do comerciante e de seus companheiros. Ele não soube como agradecer seus amigos e fez tudo que estava ao seu alcance para demonstrar sua gratidão.

          Convidou a todos para irem morar na casa dele, mas os viajantes agradeceram e cada um tomou seu rumo. O comerciante voltou para sua esposa e para seus filhos, passando o resto de sua vida feliz com eles.

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com