quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

James Joyce (Ulysses)

    Ulisses (Ulysses no original), é um romance do escritor irlandês James Joyce. Foi composto entre 1914 e 1921 em Trieste (Itália), Zurique (Suíça) e Paris (França) e publicado no ano seguinte nesta cidade. Por descrever, em diversos pontos, aspectos da fisiologia humana então considerados impublicáveis, o livro foi censurado em diversos países, como nos Estados Unidos e no Reino Unido.

    Ulisses adapta a Odisséia de Homero, condensando a viagem de Odisseu (na pessoa do agente de publicidade Leopold Bloom) em 18 horas, no dia 16 de junho de 1904 e início da madrugada do dia seguinte.

Estrutura


    Joyce dividiu Ulisses em 18 episódios. À primeira vista, grande parte do livro pode parecer desestruturada e caótica; Joyce disse uma vez que "colocara nele tantos enigmas e quebra-cabeças que irão manter os professores ocupados durante séculos discutindo sobre o que eu quis dizer", o que levaria à imortalidade do romance. Os dois esquemas de análise que Stuart Gilbert e Herbert Gorman publicaram após o lançamento de Ulisses para ilibar Joyce das acusações de obscenidade tornaram claras as ligações à Odisséia, e explicaram também a estrutura interna da obra.

    Cada episódio de Ulisses tem um tema, uma técnica e uma correspondência entre os seus personagens e os da Odisséia. O texto original não tinha estes títulos de episódios e as correspondências; tiveram origem nos esquemas de análise de Linati e de Gilbert. Joyce referia-se aos episódios pelos seus títulos homéricos nas suas cartas. Ele tomou a atribuição idiossincrática de alguns dos títulos, p.e. "Nausícaa" e "Telemaquia", da obra "Les Phéniciens et l'Odyssée" de Victor Bérard, que consultou em 1918 na Biblioteca Central de Zurique.

Telemaquia

    Os três primeiros episódios de Ulisses correspondem à Telemaquia da Odisséia e fazem a ligação entre Retrato do Artista quando Jovem e as aventuras de Leopold Bloom no dia 16 de Junho de 1904, o que foi esclarecido pelo esquema que o próprio James Joyce elaborou em 1920 para ajudar o seu amigo Carlo Linati na leitura da obra, o qual desde então se designa por Esquema Linati para Ulisses.

Episódio 1 (Telêmaco)


    São 8.00 horas e Buck Mulligan, um estudante de medicina turbulento, chama Stephen Dedalus (um jovem escritor que aparece como o tema principal de Retrato do Artista quando Jovem) para subir ao telhado da Torre Sandycove Martello onde ambos residem. Há tensão entre Stephen e Mulligan, decorrente de uma observação cruel que Stephen ouviu de Mulligan sobre a morte de sua mãe, May Dedalus, (Oh, é apenas o Dedalus cuja mãe bateu a bota, como uma besta), e pelo fato de Mulligan ter convidado um estudante inglês, Haines, para morar com eles. Os três homens tomam o pequeno-almoço e caminham até a praia, onde Mulligan pede a Stephen a chave da torre e algum dinheiro. Ao partir, Stephen decide que não voltará à torre naquela noite, porque Mulligan, o "usurpador", tomou conta dela.

    De acordo com o Esquema Linati, este primeiro episódio decorre entre as 8.00 e as 9.00 horas, tem como técnicas o Diálogo de duas, três e quatro pessoas, a Narração e o Solilóquio, tem como temas principais Hamlet, Irlanda e Catolicismo, como Ciência/Arte a Teologia, e as cores são dourado, branco e verde.

Episódio 2 (Nestor)

    Stephen está a dar uma aula de história sobre as vitórias de Pirro no Epiro. Os alunos estão visivelmente aborrecidos, ignorantes da matéria e indisciplinados. Antes de saírem da classe, Stephen conta um enigma complicado sobre uma raposa que enterra a sua avó debaixo de um azevinho. No fim da aula, um dos alunos, Cyril Sargent, fica para trás para que Stephen lhe explique a resolução de problemas aritméticos. Stephen fica agradado, mas observa-o fixando a sua aparência pouco atraente e tenta imaginar o amor da mãe dele. A seguir, Stephen encontra Garrett Deasy, o diretor anti-semita da escola, de quem recebe o salário e uma carta que deverá levar aos editores do jornal, a fim de ser publicada. Deasy discorre sobre a satisfação de ganhar dinheiro através do trabalho e a importância da gestão eficiente de poupança. Repele a visão parcial que o Deasy tem sobre os eventos passados, que usa para justificar os seus preconceitos. No final do episódio, Deasy faz outra observação incendiária contra os judeus, dizendo que a Irlanda nunca teve de perseguir os judeus, porque nunca os deixou entrar. Esta cena contem algumas das frases mais famosas do romance, como as que Dedalus diz que "A história é um pesadelo do qual estou a tentar acordar" e que Deus é "Um grito na rua".

    De acordo com o Esquema Linati, este segundo episódio decorre entre as 9.00 e as 10.00 horas, tem lugar na Escola, tem como técnicas o Diálogo de duas pessoas, a Narração e o Solilóquio, tem como temas principais Ulster, Mulher, Antissemitismo e o "sentido prático da vida", como símbolo o Cavalo, como Ciência/Arte a História, e a cor o castanho.

Episódio 3 (Proteu)

Praia de Sandymount vendo-se a Baía de Dublin com a península de Howth ao fundo Stephen dirige-se para a praia de Sandymount e deambula nela por algum tempo, refletindo sobre vários conceitos filosóficos e sobre a sua família, a sua vida de estudante em Paris, e, de novo, a morte da sua mãe. Enquanto relembra e medita, Stephen deita-se sobre pedras e observa um casal que passeia com um cão. Escreve algumas ideias para a poesia, e no fim, de forma prosaica, "depositou cuidadosamente o ranho seco tirado de uma narina no gume de uma rocha", porque não tem lenço. Este capítulo é caracterizado por um estilo narrativo de Fluxo de consciência mudando incessantemente de temas. A formação de Stephen é refletida nas muitas referências obscuras e frases estranhas que se encontram neste episódio, que lhe deram a reputação de ser um dos capítulos mais difíceis do livro.

    Algumas frases:

    "Estas pesadas areias são linguagem que a maré e o vento sedimentaram aqui."
    "Achas as minhas palavras obscuras. A obscuridade está nas nossas almas, não achas? As nossas almas feridas de vergonha pelos nossos pecados, unem-se a nós ainda mais, uma mulher agarrando-se ao amante, mais e mais".


    Seguindo o Esquema Linati, e segundo Palma-Ferreira, o terceiro episódio, dito de Proteu, ocorre entre as 10.00 e as 11.00 horas na praia perto da Torre Martello onde vive Stephen, tendo como técnicas a Narração e principalmente o Monólogo. O símbolo é o mar, a cor é o verde e a Ciência/Arte é a Filologia, devido ao uso determinado do virtuosismo de linguagem. Quase não tem ação sendo totalmente preenchido pelos pensamentos de Stephen. Tem semelhanças não formais com o episódio da captura de Proteu por Menelau relatado no Livro/Canto IV da Odisséia.

Episódio 4 (Calipso)

    A narrativa muda abruptamente. Voltam a ser 8 da manhã e a ação transpõe-se para a residência num dos bairros de Dublin e centra-se no segundo (e principal) protagonista do livro, Leopold Bloom, um publicitário judeu que vive no número 7 da rua Eccles (inexistente actualmente) e que está a preparar o pequeno-almoço (tal como Mulligan na torre, no primeiro episódio), para si e para a sua mulher Molly Bloom que ainda está deitada. Entretanto vai ao talho para comprar rim de porco que depois cozinha e, já em casa, leva a bandeja da comida e uma carta (do organizador de concertos Blazes Boylan) à mulher, cujo verdadeiro nome é Marion. Antes lê uma carta que também recebeu da sua filha Milly. O capítulo termina com a ida de Bloom no quintal onde defeca enquanto lê uma história de um jornal.

    Seguindo o Esquema Linati, Palma-Ferreira refere que este quarto episódio, apelidado de Calipso, decorre entre as 8.00 e as 9.00 horas, predominantemente em casa dos protagonistas, tem como técnicas o Diálogo de duas pessoas, a Narração e o Solilóquio, tem como temas principais Exílio, Mitologia e Israel, como órgão o Rim, como Ciência/Arte a Economia (criação de gado, plantação silvestre), e a cor o laranja. O drama de Bloom e Marion começa a ser aludido com a chegada da carta de Boylan.

    Frases:
    "Ela entregou-lhe uma moeda, sorrindo, atrevida, com o espesso punho estendido";
    "Metempsicose,- disse ele - é como os gregos antigos lhe chamavam. Costumavam crer que te podias transformar num animal, ou numa árvore, por exemplo. O que chamavam ninfas por exemplo".

Episódio 5 (Lotófagos)
    Bloom prossegue a sua jornada dirigindo-se à estação de correio (tomando intencionalmente um trajeto mais longo), onde levanta uma carta de amor de "Marta Clifford" dirigida ao seu pseudônimo, "Henry Flower". Compra um jornal diário e encontra um conhecido, M'Coy (personagem que vem de Dubliners). Enquanto conversam, Bloom procura desfrutar da breve visão das meias de uma mulher a subir para uma carruagem, mas a passagem de um elétrico obsta a esse voyeurismo.

    A seguir, numa rua pouco movimentada, lê a carta e destrói o envelope em pedaços ("Os pedaços de papel esvoaçaram, tombaram no ar úmido: um branco esvoaçar, depois todos se abateram"). Entra depois numa igreja católica e enquanto decorre a missa divaga sobre teologia. O padre tem nas costas a sigla I.N.R.I., ou IHS, e Bloom lembra-se da explicação inventada por Molly para estas iniciais. Entra depois numa drogaria para aviar um pedido de Molly, e como a receita não está ainda disponível sai de lá com um sabonete de limão, encontrando Bantam Lyons (outra personagem que vem de Dubliners), que lhe pede para consultar o jornal sobre apostas na corridas de cavalos de Ascot, e que percebendo erroneamente uma frase de Bloom, "deitar fora ("throw away") o jornal", irá apostar no cavalo Throwaway.

    Finalmente, Bloom dirige-se à "mesquita dos banhos", terminando o episódio na antevisão de "pêlo flutuante da corrente em torno do flácido pai de milhares, lânguida flor flutuante".

    Usando o Esquema Linati, o quinto episódio, dito dos Lotófagos por comparação com a Odisséia, decorre entre as 9.00 e as 10.00 horas, ocorre na rua, numa igreja, numa drogaria e finalmente num estabelecimento de banhos públicos, tem como técnicas o Diálogo, a Oração e o Monólogo, tem como temas principais flores, Mulher, Religião, Corpo humano, como símbolo a Eucaristia, como Ciência/Arte a Química/Botânica, e a cor o castanho escuro.

Episódio 6 (Hades)

    O episódio começa numa carruagem puxada a cavalos do cortejo fúnebre do funeral de Paddy Dignam que leva quatro passageiro entre eles Bloom e o pai de Stephen Dedalus, Simon, cortejo que atravessa Dublin até ao cemitério Glasvenin. No percurso, a carruagem passa por Stephen Dedalus e Blazes Boylan, entretendo-se os viajantes a conversar sobre vários assuntos, designadamente sobre as distintas formas de morte e de funeral, e vindo à memória de Bloom a morte do seu filho Rudy e o suicídio do seu pai. Assistem depois numa capela à missa e acompanham a carreta com o ataúde até ao enterro do falecido. Bloom prossegue a meditação sobre a morte, mas quase ao final do episódio expulsa os pensamentos mórbidos "Ainda há muito para ver, para ouvir, para sentir....vida quente cheia de sangue". Por fim, os conhecidos, aliviados, despedem-se nos portões: "Que grandes estamos esta manhã!" Fica-se a conhecer a profissão de Bloom: "Ele é um angariador de anúncios".

    Frases:
    "Uma manada solta de reses marcadas a ferro passava pelas janelas, mugindo, caminhando de cabeça caída, sobre cascos almofadados, espanando com as caudas, lentamente, as ossudas e enlameadas garupas";
    "As rodas de metal esmagaram o saibro com um áspero e dissonante clamor e o grupo de botas seguiu o carrinho ao longo de uma alameda de sepulcros".

    Com o apoio do Esquema Linati, o episódio Seis, dito de Hades, decorre entre as 11.00 e as 12.00 horas, e ocorre a caminho e no cemitério, tendo como técnicas o Diálogo e a Narração. Os temas principais são Religião, Mulher, Saúde, o órgão é o Coração, como Ciência/Arte a Religião, e a cor o branco e negro. As personagens que acompanham Bloom no trem foram utilizadas por Joyce noutras obras e no trajeto aludem ainda a episódios da história irlandesa, a personagens míticas, cumprindo o ritual dos funerais.

Episódio 7 (Éolo)

    O sétimo episódio, dito de Éolo por associação à Odisséia, retrata o ambiente alvoroçado da redação de um jornal tendo Joyce escolhido o Freeman´s Journal and National Press. Bloom dirigiu-se lá para colocar um anúncio que apesar do incentivo inicial do director, Myles Crawford, não se concretizará. Stephen chega com a carta de Deasy (2º episódio) sobre a febre aftosa, mas não se cruza com Bloom. Stephen desafia Crawford e os outros a ir um bar, e no caminho conta-lhes uma anedota sobre "duas vestais de Dublin". O episódio está fragmentado em pequenas secções, cada uma com um título em estilo jornalístico, caracterizando-se pela abundância de figuras e técnicas de retórica: metonímia, metáfora, anáfora, entimema, onomatopeia, apóstrofe, apócope, síncope, etc., o que se presta à leitura.

    Seguindo o Esquema Linati e as notas do Tradutor, este episódio, dito de Éolo, ocorre às 12.00 horas, tem como temas máquinas, vento, fama, papagaios de papel, destinos falhados, imprensa, mutabilidade, e como técnica o Silogismo. O órgão é o pulmão, a Ciência/Arte a Retórica, e a cor o vermelho.

    Frases:

    "O sucesso para nós é a morte do intelecto e da imaginação. Nunca fomos leais aos que tiveram êxito";
    Acerca do Moisés de Michelangelo: "Essa pétrea efígie em música gelada, com cornos e terrível, da humana forma divina, esse símbolo eterno de sabedoria e de profecia que se algo há, transfigurado pela alma e transfigurador da alma, que a imaginação ou a mão do escultor tenha talhado em mármore para o fazer merecer viver, merece viver".

Episódio 8 (Lestrigões)

    Seguindo o Esquema Linati, o episódio 8 é dito dos Lestrigões porque enquanto na Odisséia Ulisses chega à ilha destes seres antropófagos, neste episódio Bloom irá almoçar, mas antes, durante e depois da refeição, irá divagar sobre muitos assuntos, para além de comida. Encontra um amor antigo, Josie Breen, que lhe conta o difícil do trabalho de parto de Mina Purefoy, amiga de Molly, que já dura há três dias. Entra no restaurante do hotel Burton, donde sai com asco ao ver pessoas a comer como animais. "O fedor prendeu-lhe a respiração fremente: penetrante molho de carne, imundície de verduras. Ver alimentar os animais". Dirige-se a seguir ao bar de Davy Byrne, onde encontra Nosey Flinn. Come uma sanduíche de queijo gorgonzola e uma taça de borgonha, e reflete sobre a fase inicial da sua relação com Molly e como o relacionamento se deteriorou: "Beijava, e ela beijava-me. A mim. E eu agora." Quando Bloom abandona o restaurante, Nosey Flynn fala com Davy Byrne sobre o caráter sóbrio de Bloom sugerindo que é maçônico. Este, ao sair do bar, pensa no que deusas e deuses comem e bebem e pondera se as estátuas das deusas gregas no Museu Nacional da Irlanda têm ânus como o comum dos mortais. Caminha para o museu, mas ao ver Boylan, o amante de Molly, no outro lado da rua, e levado pelo pânico de o encontrar, entra apressado no museu.

    Seguindo o Esquema Linati e as notas do Tradutor, este episódio que decorre entre as 13.00 e as 14.00 horas, dito dos Lestrigões, tem como temas base Sacrifício humano, alimento e vergonha e sempre a religião. O órgão é o esôfago e a técnica fundamenta-se nos processos de nutrição, movimentos peristálticos ou contrações musculares que impelem a matéria nutritiva pelos canais em que circula, ou seja uma prosa peristáltica.

    Frases:

    "E se tu estás a olhar para o nada põem-se logo vinte à tua volta. Não há quem não queira meter o bedelho. As mulheres também. Curiosidade. Estátua de sal".
    "Dizem que foi uma freira que inventou o arame farpado".
    "A natureza abomina o vazio".
    "Dizem que davam sopa às crianças pobres para as fazer protestantes, na época da falta de batatas. Mais além a sociedade onde ia o papá para a conversão de judeus pobres".


Episódio 9 (Cila e Caríbdis)


    Na Biblioteca Nacional, Stephen explica a vários estudantes a sua teoria biográfica sobre as obras de Shakespeare, especialmente sobre Hamlet que, segundo aquele, se baseia em grande parte no suposto adultério da mulher do dramaturgo, Anne Hathaway. "A sua opinião é, então, a de que ela não foi fiel ao poeta?" Bloom vai à Biblioteca Nacional para procurar num jornal de província do ano anterior (1903) um anúncio da casa Keyes que ele pretende colocar de novo no Freeman´s, não se encontrando com Stephen quando da discussão deste sobre Shakespeare, nem no final do episódio quando ambos saem da Biblioteca.

    Seguindo o Esquema Linati e as notas do Tradutor, o episódio nono, correspondente ao de Cila e Caríbdis da Odisséia, tem por cenário a Biblioteca, decorre entre as 14.00 e as 15.00 horas, o órgão fundamental é o cérebro, a arte dominante é a literatura, designadamente com a discussão sobre Shakespeare, e a técnica usada é a dialética.

    O tema da paternidade é central neste episódio, havendo referências ao mistério da Trindade que tem sido causa de más interpretações e de dissensões no cristianismo, sendo este episódio o mais sutil e difícil de extrair entre os dezoito episódios de Ulisses, segundo Stuart Gilbert, citado pelo Tradutor.

    De acordo com os críticos de Joyce, existem constantes referências aos temas isabelinos e aos que ao longo do tempo tentaram imitar Shakespeare, havendo contrastes consecutivos entre gravidade e pantomina, entre metafísica e calão. A discussão é tão absorvente que os presentes ignoram Bloom, no que Gilbert encontra uma semelhança com a Odisseia quando Telémaco (Stephen) ignora ou não reconhece Odisseus (Bloom).

    Frases:

    "Os movimentos que as revoluções produzem no mundo nascem dos sonhos e visões no coração de um camponês, numa colina".
    "Um homem de gênio não comete erros. Os seus erros são voluntários e são os pórticos da descoberta".
    "A necessidade é aquilo em virtude do qual é impossível que uma coisa possa ser de outro modo. Ergo, um chapéu é um chapéu".
    "Caminhamos através de nós próprios e encontramos ladrões, fantasmas, gigantes, velhos, jovens, esposas, viúvas, cunhados, mas acabamos sempre por a nós próprios nos encontramos".

Episódio 10 (Rochas Errantes)

    O episódio ocorre às três da tarde, o órgão do corpo humano é o sangue, a arte é a mecânica, e a técnica é labiríntica. O episódio apresenta uma estrutura única no Ulisses com dezoito cenas curtas e sucessivas de deslocações de várias personagens pelas ruas de Dublin terminando com um coda, ou parte final, que é a passagem do cortejo do vice-rei, William Humble, segundo conde de Dudley, em que ele avista ou é avistado, por vezes vertiginosamente, por vários personagens já referenciados antes no romance. De certo modo, o episódio parece funcionar como uma miniatura do próprio romance.

    A figura deambulante inicial, o padre John Conmee, reitor jesuíta de colégio católico, faz a ligação com Retrato do Artista quando Jovem, citando do seu breviário a passagem 161 do Salmo 119, Principes persecuti sunt me gratis: et a verbis tuis formidavit cor meum, Salmo com o qual, na estrutura, o episódio tem semelhanças.

    A mecânica, consubstanciada nos sucessivos eventos que engrenam como rodas dentadas, é sublinhada por um invento irônico que permite a um diretor de cena de espetáculos musicais conhecer os números das cenas já passadas e o daquela que está a decorrer.

    Permitindo estabelecer o paralelismo com o correspondente episódio da Odisséia, as personagens deste episódio são vítimas de ilusão óptica, do erro de identificação ou de pouca atenção. Além disso, pelo rio Liffey continua a vogar, qual miniatura de Argo, o panfleto Elias vem aí, que Bloom lançara anteriormente às gaivotas.

    Frase:

    Shakespeare é o feliz conto de caça de todos os espíritos que perderam o equilíbrio.

Episódio 11 (Sereias)

    Este episódio que decorre a partir das 4 da tarde é dominado por motivos musicais. O episódio parece refletir o interesse dos dublinenses, no início do século XX, por todo o tipo de música, em especial música com cantores e as variedades operacionais.

    De acordo com Stuart Gilbert, o episódio inicia-se com curtas e enigmáticas frases que são pequenos fragmentos do episódio que se segue. As frases parece não terem sentido, podendo considerar-se como a abertura das óperas, ou operetas, para preparar os leitores para o que se segue. Reaparecem mais tarde no texto dando a sensação de déjà vu. Quando James Joyce o enviou da Suíça, onde vivia, para a Inglaterra, para a primeira edição do romance, decorrendo a I Guerra Mundial, o episódio foi retido por suspeitas de encobrir alguma mensagem secreta, contando-se que foi entregue a dois escritores famosos que nele não viram mais do que uma excentricidade literária bastante invulgar.

    Em termos de enredo, Bloom toma uma refeição com o tio de Stephen Dedalus, Richie Goulding, no Hotel Ormond, enquanto que Blazes Boylan, o amante de Molly Bloom, sai do hotel e se dirige de carruagem ao encontro com ela. Durante a refeição, Bloom observa as sedutoras baristas Lydia Douce e Mina Kennedy enquanto ouve o pai de Stephen, Simon Dedalus, e outros a cantar.

    Frase:

    "O sensato Bloom observou um cartaz na porta, uma sereia meneante a fumar entre belas ondas. Sereias, fumai, a lufada mais fresca de todas".

Episódio 12 (Ciclopes)

    Este capítulo segundo o quadro de Stuary Gilbert corresponde ao episódio dos Cíclopes da Odisséia e decorre num bar de Dublin, a loja de bebidas de Barney Kiernan, célebre no início do século XX e situado próximo do Tribunal que estava então em Green Street. Era frequentado por pessoas de algum modo relacionadas com assuntos legais.

    O episódio é narrado por um habitante anônimo de Dublin que se dirige a um bar, onde encontra um personagem referido como o "cidadão". Quando Leopold Bloom entra no bar é criticado pelo cidadão que é ferozmente Feniano/nacionalista e anti-semita. O episódio termina com Bloom lembrando ao cidadão que o seu Salvador era judeu. (Mendelssohn era judeu, e Karl Marx, e Marcadante, e Espinoza. E o Salvador era judeu e o seu pai era judeu. O seu Deus.) Quando Bloom sai do bar, o cidadão irado atira um pote de biscoitos contra a cabeça de Bloom, mas falha. O capítulo é constituido por extensas histórias paralelas às frases do narrador: hipérboles de jargão jurídico, passagens bíblicas e elementos da mitologia irlandesa, etc.

    Frase:

    "Sinn Féin!, - diz o cidadão. - Sinn Féin ambain! Os amigos que amamos estão ao nosso lado e os inimigos que odiamos diante de nós."

Episódio 13 (Nausícaa)

    O décimo terceiro episódio de Ulisses tem como cenário as rochas, correspondendo na Odisséia ao episódio em que Nausícaa, filha de Alcino, encontrou Ulisses depois de um naufrágio. Ocorre às 20 horas, e segundo Stuart Gilbert, o órgão é o nariz, a arte é a pintura, as cores são o cinzento e o azul, o símbolo é a virgem. A tranquilidade chega por fim ao atormentado Bloom num cenário onde Stephen Dedalus já passara no início da obra.

    A ação do episódio ocorre nas rochas de Sandymount Strand, uma área costeira a sudeste do centro de Dublin. Uma jovem chamada Gerty MacDowell está sentada nas rochas com duas amigas, Cissy Caffrey e Edy Boardman. As jovens estão a cuidar de três crianças, um bebê e dois gêmeos de quatro anos chamados Tommy e Jacky. Gerty medita sobre o amor, o casamento e a feminilidade à medida que a noite cai. O leitor vai ficando gradualmente ciente de que Bloom a observa de longe. Gerty provoca-o expondo as pernas e a roupa interior, e Bloom, por sua vez, masturba-se. O clímax masturbatório de Bloom coincide com o fogo de artifício no bazar próximo. Quando Gerty se afasta, Bloom percebe que ela coxeia de uma perna e pensa que essa é a razão para ter sido "deixada na prateleira". Após várias digressões de pensamento, ele decide visitar Mina Purefoy na maternidade. É incerto quanto do episódio são pensamentos de Gerty, e quanto é a fantasia sexual de Bloom. Alguns consideram que o episódio está dividido em duas partes: a primeira é o ponto de vista altamente romantizado de Gerty e a segunda é a do mais velho e mais realista Bloom. O próprio Joyce disse, no entanto, que "nada aconteceu entre Gerty e Bloom. Tudo ocorreu na imaginação de Bloom". Nausicaa atraiu imensa notoriedade quando o livro foi publicado em folhetins. O estilo da primeira metade do episódio copiou e parodiou as novelas românticas em folhetins.

    Frase:

    "As suas palavras retiniram claramente cristalinas, mais musicais do que o arrulhar do pombo torcaz, mas cortaram o silêncio como gelo".

Episódio 14 (Bois de Hélio, ou O Gado do Sol)

    O décimo quarto episódio de Ulisses é um dos mais complexos do romance, ocorrendo às dez horas da noite e tendo por cenário o hospital-maternidade. O órgão do corpo humano que domina o episódio é o ventre, a arte é a medicina, a cor o branco e a técnica, conforme Joyce, é a do desenvolvimento embrionário.

    Bloom visita o hospital maternidade onde Mina Purefoy está em trabalho de parto, e encontra finalmente Stephen Dedalus, que tem estado a beber com amigos estudantes de medicina e está a aguardar a chegada prometida de Buck Mulligan. Sendo o único pai do grupo de homens, Bloom está preocupado com Mina Purefoy. Começa a pensar sobre a sua esposa e o nascimento dos seus dois filhos e também sobre a perda do seu único "herdeiro", Rudy. O grupo de jovens fica agitado e falam sobre temas como fertilidade, contracepção e aborto. Há também uma sugestão de que Milly, a filha de Bloom, se tem encontrado com um dos jovens, Bannon. A seguir ao nascimento normal do filho de Mina Purefoy, o grupo dirige-se ao bar e Burke.

    Este capítulo é notável pelo jogo de palavras de Joyce, que, entre outras coisas, recapitula toda a história da língua inglesa. Após um breve encantamento inicial, o episódio começa com a prosa aliterativa anglo-saxônica, e prossegue através de paródias de, entre outros, Malory, a Bíblia do Rei Jaime, Bunyan, Defoe, Sterne, Walpole, Gibbon, Dickens, e Carlyle, antes de concluir numa névoa de calão quase incompreensível. Considera-se que o desenvolvimento da língua inglesa no episódio corresponda ao período de gestação de nove meses do feto humano.

    Frase:

    "Ruborizava-o a compaixão, o amor o impelia com o desejo de vaguear, pesaroso de partir".

Episódio 15 (Circe)

    Circe deixando cair a taça e fugindo de Ulisses, pintura num vaso de cerâmica de figuras vermelhas da Grécia Antiga (c. 440 a.C.). O célebre décimo quinto episódio de Ulisses decorre num bordel, à meia noite, para onde Stephen se dirigem já muito inebriados. A arte é a da magia, o símbolo do episódio é a prostituição e a técnica da narrativa é a da alucinação.

    O Episódio 15 está escrito como uma peça de teatro, incluindo as correspondentes instruções de encenação. O enredo é frequentemente interrompido por "alucinações" tidas por Stephen e Bloom que são manifestações fantásticas dos medos e paixões dos dois personagens. Stephen e Lynch vão para Nighttown, a zona de meretrício de Dublin e Bloom vai à procura deles e acaba por os encontrar no bordel de Bella Cohen, onde, na companhia das mulheres, incluindo Zoe Higgins, Florry Talbot e Kitty Ricketts, tem uma série de alucinações relativas aos seus fetiches, fantasias e transgressões sexuais. Bloom vai ter de responder a acusações por várias mulheres sádicas e inquisitivas, incluindo Yelverton Barry, Bellingham e Mervyn Talboys. Quando detecta que Stephen está a pagar exageradamente pelos serviços recebidos, Bloom decide manter o resto do dinheiro de Stephen por segurança. Stephen tem a alucinação de que o cadáver em decomposição de sua mãe se levantou do chão para o acusar. Aterrorizado, Stephen espatifa um candelabro com a sua bengala e depois foge. Bloom paga de imediato a Bella pelo dano, e depois corre atrás de Stephen. Bloom encontra Stephen envolvido numa discussão acalorada com um soldado inglês que, após o que entende como um insulto ao rei, dá um murro a Stephen. A polícia chega e a multidão dispersa. Enquanto ampara Stephen, Bloom tem uma alucinação de Rudy, o seu filho falecido.

    Segundo Gilbert, este episódio é o mais teatral de Ulisses sendo constituido por uma série de cenas em mutação, visões sem sentido produzidas pela fantasia, embriaguês e esgotamento dos personagens.

    Frase:

    Macilenta, a mãe de Stephen levanta-se rígida do chão, vestida de cinzento lepra com uma grinalda de murchas flores de laranja e um véu de noiva rasgado, o rosto desgastado e sem nariz, verde do bolor, sepulcral.

Nostos

Episódio 16 (Eumeu)


    O décimo sexto episódio de Ulisses tem por cenário o albergue do cocheiro e ocorre à uma da madrugada. A arte é a da navegação, o símbolo do episódio são os marinheiros e a técnica da escrita é da narrativa.

    Os acompanhantes de Stephen abandonaram-no tendo ficado com o apoio apenas de Bloom. Enquanto caminham para o albergue, este profere uma catilinária contra os perigos da vida nocturna e do vício. Entretanto encontram Corley (personagem que aparece em Dublinenses) e no albergue encontram Fitzharris, que pertence provavelmente ao grupo revolucionário os Invencíveis. No albergue, um marinheiro bêbado chamado Murphy refere uma série de contos semi-populares, e fala-se de patriotismo

    O estilo errante e laborioso da narrativa deste episódio reflete o cansaço e o nervosismo dos dois protagonistas. Eumeu, uma narrativa de velho, contrapõe-se a Telémaco, do primeiro episódio, que é uma narrativa de jovem. O albergue simboliza o curral de Eumeu para onde Ulisses se dirige no regresso a Ítaca.

    Frase:

    "O cocheiro não disse uma única palavra, boa, má ou indiferente, mas apenas olhou as duas figuras, "enquanto permanecia sentado no seu carro de baixo encosto", ambas negras, uma cheia, outra magra, a caminhar para a ponte do caminho de ferro, "para que os casasse o Padre Maher".
Episódio 17 (Ítaca)

    Bloom regressa a casa com Stephen, faz-lhe uma xícara de cacau, discutem diferenças culturais e linguísticas entre eles, consideram a possibilidade de publicar as histórias de parábolas de Stephen e oferece-lhe um lugar para pernoitar. Stephen rejeita a oferta de Bloom e é ambíguo em resposta à sugestão da Bloom de futuras reuniões. Stephen despede-se após o que vagueia pela noite. E Bloom vai deitar-se, estando Molly a dormir. Ela acorda e questiona-o sobre como passou o dia.

    O episódio está escrito sob a forma de um catecismo "matemático" de 329 perguntas e respostas rigidamente organizadas, sendo o episódio favorito de Joyce. As descrições pormenorizadas vão desde questões de astronomia até à trajetória da micção e incluem uma famosa lista de 25 homens percebidos como amantes de Molly (aparentemente correspondendo aos pretendentes mortos em Ítaca por Ulisses e Telêmaco na Odisseia), incluindo Boylan, e a reação psicológica de Bloom à sua indicação. Descrevendo eventos aparentemente escolhidos ao acaso em termos matemáticos ou científicos ostensivamente precisos, o episódio é abundante em erros cometidos pelo narrador indefinido, muitos ou a maioria dos quais propositadamente por Joyce.

    O décimo sétimo episódio de Ulisses tem por cenário a casa de Bloom e ocorre às duas da madrugada. A arte é a ciência , o símbolo do episódio são os cometas e a técnica da escrita é a do catecismo impessoal. Joyce despojou este episódio de qualquer sentimento, reduzindo ao mínimo as figuras de estilo. Elaborou como que um inventário de objetos, com a sua descrição meticulosa, quase técnica, como se fossem fenómenos naturais. Gilbert compara-o aos inventários das casas de leilões, ou a inventários de bens de herança. O catecismo impessoal deste episódio contrapõe-se ao catecismo pessoal de Nestor. Sendo o capítulo preferido de Joyce, lembra a Summa theologiae e, de novo conforme Gilbert, é tão cruel quanto uma inquisição teológica.

    O episódio de Ítaca não apresenta qualquer pretensão de sedução e recorre permanentemente a alusões laterais à última aventura da Odisséia. A ação já decorre no dia 17 de junho, sexta-feira, dia da matança em Dublin, que corresponde à matança dos pretendentes a casar com Penélope na Odisséia. E à semelhança de Ulisses que entrou no seu palácio pelas traseiras, assim Bloom, por se ter esquecido da chave, entrou em casa pela porta da cozinha, podendo Boylan ser a transposição do pretendente Eurímaco.

    Frase:

    "Que programa de dedicações intelectuais era simultaneamente possível? Fotografia instantânea, estudo comparativo das religiões, folclore relacionado com diversas práticas amatórias e supersticiosas, contemplação das constelações celestes."
Episódio 18 (Penélope)

    O décimo oitavo e último episódio de Ulisses tem por cenário a casa de Bloom e decorre na madrugada. O órgão é a carne, o símbolo do episódio é a Terra-Mãe e a técnica da escrita é o monólogo interior feminino.

    O episódio final consiste nos pensamentos de Molly Bloom enquanto está na cama ao lado do marido. O episódio usa uma técnica de fluxo de consciência em oito frases sem pontuação. Molly pensa sobre Boylan, um casca-grossa viril e astuto, e Bloom, o marido gasto mas ao qual a prende uma certa amizade, sobre os seus admiradores do passado, incluindo o tenente Stanley G. Gardner, sobre os acontecimentos do dia, sobre a infância em Gibraltar e sobre a sua carreira curta de cantora. Ela também sugere uma relação homossexual, na juventude, com uma amiga de infância chamada Hester Stanhope. Esses pensamentos são ocasionalmente interrompidos por distrações, como um apito de um comboio ou a necessidade de urinar. O episódio conclui com a famosa lembrança por Molly da proposta de casamento de Bloom e da aceitação dela:

    "E como ele me beijou debaixo da muralha mourisca e eu pensei tanto faz ele como outro e depois pedi-lhe com os olhos para pedir outra vez e depois ele pediu-me se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro pus os braços à volta dele sim e puxei-o para baixo para mim para que pudesse sentir os meus seios todos perfume sim e o coração batia-lhe como louco e sim eu disse sim eu quero Sim."

    Neste episódio, o do monólogo de Marion Bloom, Joyce atingiu o auge da sua arte extraordinária. Arnold Bennett, em the Outlook, referiu que nunca lera nada que o superasse e duvidava que jamais se voltasse a escrever algo que o igualasse. Segundo Palma-Ferreira, que citou o anterior, este monólogo é uma obra-prima da ficção moderna e um marco inultrapassável na história da narrativa em prosa.

    Molly revela-se um caráter inconstante o que não anula a sua clara identificação com Penélope. Segundo Stuart Gilbert, apoiando-se em Samuel Butler, Authoress of the Odyssey, não há na Odisséia de Homero referência à fidelidade absoluta de Penélope, havendo outras referências mitológicas de várias ligações de Penélope, para além de outras semelhanças entre as duas personagens, como ser Penélope filha de um espartano e Molly de um militar em Gibraltar.

    Conclui Palma-Ferreira que o tom do monólogo é completa e exaustivamente anti-literário, sendo um feixe de pensamentos unidos sutilmente por associação, decorrentes de movimentos mentais só aparentemente caprichosos, crendo-se que possui uma estrutura extraordinariamente bem gizada, conforme a interpretação de Stuart Gilbert.

Apreciação

    Ulisses é a obra prima de James Joyce. Através da descrição pormenorizada de um dia na vida de um grupo de pessoas, no limitado ambiente de Dublin de 1904 como enquadramento, Joyce pretende apresentar um microcosmo de toda a experiência humana. O "herói", Leopold Bloom, um judeu irlandês, é na visão de Joyce um Ulisses moderno ou Um Qualquer, fraco e forte, cauteloso e precipitado, herói e covarde, englobando os múltiplos aspectos de cada ser humano e de toda a humanidade.

    Muitos consideram Bloom o grande herói trágico da literatura moderna. Ulysses foi um livro revolucionário no estilo e na concepção. O aspecto mais revolucionário foi a técnica de narração de fluxo de consciência por meio da qual a consciência de um personagem é transmitida directamente. E também porque não havia qualquer separação entre esta narrativa e a descrição, ou ação, estrita, e muitas vezes sem o nome do personagem ser indicado. Além deste método, que confunde o leitor habituado a um estilo mais direto de escrita, o espaço de referência da narrativa torna-se muito complexo por meio de numerosas alusões à literatura grega, a Shakespeare, à Bíblia e a muitas outras. Não é um livro adequado para quem se queira iniciar na literatura.

    Ultrapassando a tentação simbólico-labiríntica que parece ter dominado a escrita de Ulisses, existirá uma razão oculta para a alteração de estilos conforme os episódios. Segundo Arnold Goldman, Ulisses não é apenas a história de Bloom e Stephen, é também um exemplo do quase infinito número de modos em que a história poderia ser contada, tendo Joyce concebido o livro à semelhança das epopeias de Homero e Virgílio com algo de "sagrado", encerrando uma sabedoria oculta e até uma profecia própria.

    Na revisão sobre Ulisses na revista The Dial, T. S. Eliot considerou: "Eu considero este livro como a expressão mais importante da época atual; é um livro do qual todos somos devedores e de que ninguém pode escapar". Ele prosseguiu afirmando que Joyce não tinha a culpa de haver pessoas que não o entendem: "A geração seguinte é responsável pela sua própria alma; um homem de gênio é responsável perante os seus pares, mas não perante um anfiteatro cheio de janotas incultos e indisciplinados".
    O livro foi também objeto de críticas contundentes. Virginia Woolf afirmou que "Ulisses foi uma catástrofe memorável; imenso em atrevimento, terrível como um desastre". Karl Radek considerou Ulisses como "Um monte de esterco, remexido por vermes, fotografado por uma câmara de filmar através de um microscópio". Shane Leslie descreveu Ulisses como "bolchevismo literário... experimental, anti-convencional, anti-cristão, caótico, totalmente imoral".

    Um jornalista afirmou que continha "esgotos de vícios secretos...canalizados através do fluxo de pensamentos, imagens e palavras pornográficas inimagináveis" e "blasfêmias revoltantes" que "degradam e pervertem o dom nobre da imaginação e do entendimento e o domínio da língua".

    Opiniões semelhantes sobre o papel adequado da literatura foram expressas por um juiz de apelação no caso judicial sobre a obscenidade do livro nos EUA, que concluiu que o livro não era obsceno. Após sugerir que Joyce era dado a "pensamentos obscenos ou luxuriosos" e que "[não tinha] um Guia", o juiz afirmou que a literatura deveria servir a necessidade das pessoas de "um padrão moral", de ser "nobre e apelativa", e "animar, consolar, purificar e enobrecer a vida das pessoas".

    "O que é tão assustador em Ulisses é o fato de, atrás de mil véus, nada ficar escondido; de não estar virado nem para a mente nem para o mundo, mas, tão frio quanto a lua vista do espaço cósmico, permite que o drama do crescimento, do ser e da decadência siga o seu curso." — Carl Jung

    Ulisses foi referido como "o marco mais proeminente da literatura modernista", uma obra em que as complexidades da vida são retratadas com "virtuosismo linguístico e estilístico sem precedentes e inigualado". Esse estilo tem sido indicado como o melhor exemplo do uso do fluxo de consciência na ficção moderna, tendo o autor, mais do que qualquer outro romancista, aprofundado o uso do monólogo interior. Esta técnica tem sido elogiada pela sua representação fiel do fluxo de pensamento, de sentimento, de reflexão mental e de mudanças de humor. O crítico Edmund Wilson observou que Ulisses tenta tornar "tão precisamente e tão diretamente quanto é possível fazer em palavras, como é a nossa participação na vida, ou melhor, como ela nos parece em cada momento que vamos vivendo."

    Stuart Gilbert afirmou que as personagens de Ulisses não são fictícias, que "essas pessoas são como elas devem ser; elas agem, constatamos, de acordo com alguma lex eterna, uma condição inelutável de sua própria existência". Através dessas personagens Joyce "alcança uma interpretação coerente e integral da vida". Joyce usa metáforas, símbolos, ambiguidades e conhecimentos que se ligam gradualmente entre si para formar uma rede de conexões ligando toda a obra. T. S. Eliot descreveu este sistema como o "método mítico": "uma maneira de controlar, de ordenar, de dar uma forma e um significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea".

Sobre a sexualidade

    Num livro decisivo para a análise de alguns aspectos de Ulisses, Richard Brown refere a perversidade sexual que é comum apontar a Joyce. Também Tony Tanner, referindo-se ao Episódio 13, bem como a outros, diz estarmos perante textos nos quais a perversidade sexual e as perversões linguísticas "coexistem como parte de um enorme colapso das relações pessoais e linguísticas associadas à decadência da sociedade burguesa".

    Outros críticos, como Colin MacCabe, na linha de R. Brown, descrevem o modo peculiar de escrita de Joyce como uma forma quase forçada de apresentar a sexualidade sob um ponto de vista perverso. No episódio de Circe, por exemplo, Joyce procura talvez deliberadamente através de uma prosa sombria e teatralizada uma apresentação anômala das relações sexuais, enquanto que noutros episódios, Cila e Caribdes, por exemplo, há alusões ambíguas à homosexualidade de Shakespeare.

    Joyce tinha na sua biblioteca textos sobre a sexualidade como À Rebours de Joris-Karl Huysmans e O Imoralista de André Gide que representavam dois exemplos do interesse literário do fim do século XIX pelos prazeres exóticos, por vezes degradantes e depravados. Joyce também leu Freud, constando deste na sua biblioteca A psicopatologia da vida quotidiana e o ensaio sobre as Memórias de infância de Leonardo da Vinci.

Traduções em português

    Traduzir o romance de Joyce é uma tarefa considerada de extrema dificuldade, devido à presença de diversos trocadilhos, jogos de palavras, citações, neologismos, referências históricas e literárias. Além disso, o autor se utiliza de estilos variados, transformando o texto num intricado quebra-cabeça literário, com um vocabulário de mais de 30.000 palavras.

    No Brasil, a primeira tradução foi feita por Antônio Houaiss e publicada em 1966. Uma segunda versão, por Bernardina da Silva Pinheiro, foi publicada em 2005. A terceira edição (com o título de Ulysses), assinada por Caetano Galindo, foi publicada em 2012, pela Penguin-Companhia, e recebeu alguns dos principais prêmios de tradução no país, como o APCA, ABL e Prêmio Jabuti.

    A primeira edição da obra em Portugal, em 1983, pela Difel, foi uma adaptação do texto de Houaiss, com alteração apenas ortográfica. Em 1989 foi publicada uma tradução portuguesa, assinada por João Palma-Ferreira[40], na editora Livros do Brasil. Antes disso, já António Augusto de Souza-PInto, Mário-Henrique Leiria e Jorge de Sena tinham iniciado traduções. Em finais de 2013, a editora Relógio d'Água, publicou nova tradução da obra, agora por conta de Jorge Vaz de Carvalho.

Bloomsday

    O culto ao livro de Joyce levou à criação do Bloomsday, comemoração celebrada na Irlanda e em várias outras partes do mundo no dia 16 de junho. Em Dublin, os fãs da obra refazem o percurso dos personagens Stephen Dedalus e Leopold Bloom pelas ruas da cidade conforme descritas por Joyce.

    No Brasil, o Bloomsday é comemorado desde 1994 em várias cidades, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Natal, Brasília, Florianópolis, Porto Alegre e Santa Maria (Rio Grande do Sul).

Fonte:
Wikipedia

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Jardim de Trovas n.1

Imagem de Fundo: Libreria Fogolla Pisa
Sinto Deus em toda escala...
Na vida, nos pensamentos,
no cheiro que a terra exala
entre a chuva e o próprio vento!
Nei Garcez
Curitiba/PR

 

Una sonrisa sincera
siembra en tu bello vergel
y estará, por donde quiera,
multiplicándose en él.
Carlos Rodriguez Sanchez
Venezuela


De estrelas toda bordada,
porta aberta para a rua,
a tapera abandonada
abriga os raios da lua.
Sônia Sobreira
Rio de Janeiro/RJ


A minha alma não se cansa,
- embora desiludida,
de acalentar a esperança,
que é o acalanto da vida.
Anis Murad Lamar
Rio de Janeiro (1904 – 1962)


Em toda Mulher se vê:
o charme, o encanto, a alegria
e em todas elas há um quê
da doçura de Maria!
Maria Calil Zambon
Novo Horizonte/SP (1935 – 2012) Bandeirantes/PR


Melhor idade?… Bobagem…
lorota antiga… falácia…
– Velhice só traz vantagem
para o dono da farmácia!
A. A. de Assis
Maringá/PR


A noiva diz que "ele aceita"
e vai se casar feliz,
porque está bem satisfeita:
achou o noivo que quis!
Amilton Maciel Monteiro
São José dos Campos/SP


Sobre um fio, numa  rua,
brincavam gato e criança,
sob  a  luz do Sol  ou  Lua,
fantasiados de esperança!
Delcy Canalles
Porto Alegre/RS


Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se,
mas não engana a si mesmo.
Francisco José Pessoa
Fortaleza/CE


Buscar a verdade, perto,
olho a olho, frente a frente,
parece o jeito mais certo
de se falar com quem mente.
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN (1934 - 2015) Natal/RN


Aos  ritos do amor se entrega
um casal apaixonado,
que até nos olhos carrega
o silêncio do pecado!
Prof. Garcia
Caicó/RN


Não sei se todos ponderam
a troca que o livro traz…
Grandes homens o fizeram,
grandes homens ele faz!
Lucília A. Trindade Decarli
Bandeirantes/PR


Felicidade?… É a que eu tenho
quando na vida ajo assim:
– Quero alguém feliz… me empenho…
e esqueço um pouco de mim.
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP


Palabras aún en distancia
son vida para quien ama,
pueden saciarnos el ansia
amándonos con su llama.
Maria Cristina Fervier
Argentina


Felicidade! – Eu te estudo
e não decifro a “charada”:
– Uns – infelizes com tudo…
– Outros – felizes sem nada!!!
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ


Para ter felicidade
e ser, de fato, feliz,
aprenda a simplicidade
de São Francisco de Assis!
José Antonio de Freitas
Pitangui/MG


Em busca do meu futuro,
descobri o seu coração.
Este amor, tão prematuro,
tirou-me da solidão.
Jennifer Caroline Correia
Bandeirantes/PR


Não se compra, tendo em vista
que não se vende alegria;
felicidade é conquista
que se faz no dia a dia.
Dáguima Verônica de Oliveira
Santa Juliana/MG

___________________________________

TROVAS PARA OS "ANTIGOS"

Olivaldo Junior
Mogi-Guaçu/SP


Nas "histórias da vovó",
o netinho embala os sonhos,
embalando, sem ter dó,
seus enredos mais risonhos.

Cada estrela na calçada,
logo após a noite fria,
se disfarça de alvorada
no clarão do novo dia.

As meninas contam flores
no jardim de nunca mais;
cada flor tem muitas cores,
mas a roxa tinge os "ais".

Solidão ficou velhinha,
nunca mais saiu de casa;
certa noite, na cozinha,
pôs-se em pé e criou asa.

Entre as faces que já tive,
uma delas me entristece:
a que finge que inda vive
neste rosto que envelhece.

Nilto Maciel (Aníbal e os Livros)

Bárbara fez uma fogueira de todos os livros de Aníbal, apesar da oposição dos filhos. Melhor vendê-los aos sebos. Doá-los a bibliotecas públicas. Fazer um leilão. Bárbara ainda leu os títulos de alguns livros, antes de lançá-los ao fogo. Talvez descobrisse a causa essencial, primeira, da tragédia de seu marido, nas letras das capas. Ou nos desenhos. Ou nos nomes dos autores. Não, não adiantava descobrir nada. E deu início ao lento esforço de empilhar os volumes no quintal da casa: On The Origin of Species, Charles Darwin; Animal Sharpshooters, Anthony D. Fredericks; The Cannibal, John Hawkes; La Bãete du Gâevaudan: l'innocence des loups, Michel Louis; Cannibal, Terese Svoboda; Viagem ao Brasil, Hans Staden ...

Quando se conheceram, ele já lia livros desse tipo? Bárbara nunca havia se interessado pelas leituras de Aníbal. Se lia romances policiais, biografias de santos, enciclopédias, a Bíblia, o Alcorão, poesias, não sabia. Ler ele lia, e muito, todo dia. E escrever? Não, ele não escrevia nada, a não ser cartas a parentes distantes. Mentia: ultimamente Aníbal andava escrevendo nuns cadernos. Aníbal pode ser considerado um erudito? Talvez sim. Pois conhecia toda a História, as primeiras grandes civilizações, Grécia, Roma, todos os séculos, reis, dinastias, guerras, descobrimentos, invenções, mitologias. Porém, a mania de ler essas coisas de índios, de povos primitivos, de antropofagia, canibalismo é muito recente. Primeiro voltou a se interessar pela História do Brasil, relembrando os tempos de estudante. Lia os livros didáticos dos filhos. Participava ativamente das atividades escolares deles. Principalmente da matéria História. Entusiasmava-se, lia em voz alta trechos dos livros. Lia com prazer o capítulo do naufrágio do navio que conduzia o Bispo Sardinha de volta a Portugal e a consequente devoração dos náufragos pelos índios caetés. Anotassem o nome completo do apóstolo: Pero Fernandes Sardinha. "Pai, por que os peixes não comeram o bispo Sardinha, tendo ele nome de peixe?" Ria, contava outras histórias, fazia teatro. "Vamos estudar os caetés." Na pressa de ler tudo, adquiriu um Caetés, de Graciliano Ramos. "Na verdade, não gosto muito de romances. Prefiro a verdade dos compêndios de História. O título do livro de Graciliano me enganou. Mas não tanto assim. Há semelhança entre os caetés e João Valério. Ambos devoravam seus semelhantes. Os índios devoravam a carne de outros homens. O personagem de Graciliano devorou, ou supôs devorar, as vidas, os sonhos de seus próximos. O narrador confessa ao final do romance: "Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes." Os filhos cresciam, já não pediam o auxílio do pai para os deveres de casa. Aníbal, no entanto, continuava devorando livros, lendo em voz alta, atrapalhando a vida escolar dos filhos. "Homem, deixe os meninos em paz."

Baribal ainda teve tempo de ler alguns trechos dos livros do pai, assim como os cadernos deixados por ele. "Livros não enlouquecem ninguém. A loucura vem de outras fontes." Não, não concordava com a opinião da mãe. O pai até podia estar louco, porém a sua loucura não havia surgido da leitura dos livros, mesmo daqueles que tratam mais diretamente de canibalismo. Se não falava de outro assunto, se discutia em defesa de suas opiniões, se se irritava com facilidade, se brigava com a mulher e os filhos, se todo dia contava um sonho esquisito, se a toda hora falava de seus medos – nada disso se devia aos livros. O princípio de todos os problemas do pai podia estar no próprio nome: "Aníbal" está dentro de "canibal", faz parte da palavra, embora as origens de uma e de outra sejam bem diversas. Vissem bem os nomes dos filhos, dados por ele e não pela mãe: Baribal e Aníbara. Ambos formados de pedaços dos nomes Aníbal e Bárbara. E quem seria mais canibal? Quanto à mania de ler, tudo deve ter começado pela curiosidade de conhecer as origens do próprio nome. Ao descobrir o primeiro grande Aníbal da História, passou a fazer mais e mais pesquisas, leituras. Afundou na História de Roma, perdeu-se no passado. Quando descobriu Aníbal Barca só faltou ficar doido. Sentiu-se o próprio guerreiro antigo. Copiou em grandes letras um trecho em latim e o expôs na sala de casa: "Missus Hannibal in Hispaniam primo statim adventu omnem exercitum in se convertit. Hamilcarem iuvenem redditum sibi veteres milites credere; eumdem vigorem in vultu, vimque in oculis, habitum oris lineamentaque intueri. Dein brevi effecit ut pater in se minimum momentum ad favorem conciliandum esset. Tito Lívio, Ab Urbe Condita Libri."

A discórdia na família de Aníbal vinha de muitos anos. Bárbara nunca gostou dos nomes dos filhos e sempre se queixou disso. Queria nomes mais comuns, como Aniceto, Anacleto, Ana, Anastácia. O menino chorava quando os colegas o chamavam de Bari, Bariba, Barbal e outros apelidos. Aníbara chorava mais ainda, porque a chamavam de Víbora ou Níbra. E, adolescente, passou a responsabilizar o pai por todos os seus infortúnios. Não conseguia namorado. As colegas fugiam dela.

Bárbara acusava Aníbal de ter trazido a loucura para dentro de casa desde o batizado dos filhos. Ao misturar os nomes Aníbal e Bárbara, para da mistura formar os nomes dos filhos, deu início à própria crise, à própria loucura, ao canibalismo de letras, sons e palavras. E o pior de tudo: não havia solução para aquilo. "Nome dado é nome moldado, ferrão em rês, marca. Para sempre." A pobre menina morreria Aníbara, metade Aníbal, metade Bárbara. E Aníbara, tresloucada, se desgrenhava, arrancava cabelos, babava, rolava no chão.

Leonardo Jaguaribe lamentava o final infeliz do amigo Aníbal. Conheciam-se havia muitos anos. Quantas noites juntos nos bares, falando de política, futebol, crime, cinema, música, literatura. Porém, nos últimos tempos Aníbal havia se tornado insuportável. Não parava mais de falar, não deixava ninguém abrir a boca. E, pior, o mesmo assunto. Sim, Aníbal não passava um dia sem falar em livros. Porém, dos livros passava aos sonhos, ao futuro, delirava, voava. Então a loucura de Aníbal vinha dos livros. Não, não via nos livros a causa principal da demência do amigo. Tudo vinha da bebida, do álcool. Daí os sonhos estapafúrdios, os delírios intermináveis. Quantas vezes contou histórias de auto-devoração. Sentia fome e vontade de comer o próprio corpo. Partia dos dedos das mãos, passava aos braços, descia aos pés, às pernas, ao pênis. Sonhava devorando Bárbara. Esquartejava-a, jogava à panela os pedaços. Convidava amigos para a grande ceia. Os filhos perguntavam pela mãe. Ele mentia e os obrigava a se alimentarem da carne da própria mãe. Contava isso como se contasse uma história banal, sem nenhuma cerimônia, porém sem riso de deboche.

Felismina, mulher de Leonardo, também frequentava a casa de Aníbal e Bárbara. Conhecia Baribal e Aníbara desde pequenos. Conversava horas a fio com Bárbara. Com Aníbal não conversava tanto. Não entendia bem as palavras dele. Não gostava dos assuntos por ele tratados. E ultimamente sentia arrepios e até enjoos quando ele se punha a falar. Porém, não via loucura nenhuma nele. Aníbal não passava de um homem estranho, esquisito. "Posso dizer excêntrico?" Talvez nem fosse isso. Possivelmente se fazia assim, se mostrava assim, por exibicionismo. Qualquer pessoa pode ler livros sobre canibais. Qualquer pessoa pode ter sonhos absurdos. Inventaram a loucura de Aníbal. Os objetivos desses "inventores" seriam os mais diversos. Bárbara talvez quisesse se livrar do marido. Viviam brigando. Separação inevitável e necessária. Segundo Bárbara, o marido não a amava mais. Passava dias, semanas, meses sem se aproximar dela. Sentava-se, abria um livro sobre canibais e dormia no sofá. Um dos livros preferidos dele era Viagem ao Brasil. As páginas mais anotadas foram as que descrevem cenas de antropofagia: "Quando trazem para casa os seus inimigos, as mulheres e as crianças os esbofeteiam. Enfeitam-nos depois com penas pardas; cortam-lhes as sobrancelhas; dançam em roda deles, amarrando-os bem, para que não fujam. Dão-lhes uma mulher para os guardar e também Ter relações com eles. Se ela concebe, educam a criança até ficar grande; e depois, quando melhor lhes parece, matam-na a esta e a devoram."

Mesmo quando ia para a cama, levava um livro. Ficava até de madrugada lendo, dormia, acordava assustado, aos gritos. Bárbara também se assustava. "Eles já iam me devorar vivo." Baribal e Aníbara podem ter sido influenciados pela mãe. Leonardo queria afastar Aníbal do álcool.

Havia algum tempo Aníbal vinha tendo dificuldades de relacionamento com os colegas de trabalho. Os primeiros problemas surgiram quando passou a ler durante o expediente. O chefe chamou-lhe a atenção diversas vezes. Além de ler, Aníbal falava muito enquanto trabalhava, ou parava de fazer as tarefas para falar dos livros, de seus sonhos e delírios. A qualquer hora abria um de seus livros raros e se punha a ler em voz alta, em inglês, latim e até idiomas menos conhecidos aqui, como a língua d'oc. Às vezes fazia pose, pedia silêncio, atenção, e relia trechos de obras científicas.       

 Alguns colegas dele riam e, sem que ele ouvisse, chamavam-no de maluco. Outros não lhe davam mais ouvidos, irritavam-se, faziam reclamações ao chefe. Os mais amigos pediram paciência. Aníbal precisava de ajuda médica. César, o chefe, gritou: nada de maluquice, nada de necessidade de tratamento médico. E socou a mesa: preguiça, malandragem, eis o nome da doença desse falso canibal. No entanto, uma funcionária procurou o médico da repartição. E convenceu Aníbal a ir ao consultório do doutor Osvaldo Cruzado. Atônito, o marido de Bárbara se dirigiu ao clínico. Falou durante mais de uma hora: canibais, relatos de cenas de canibalismo, sonhos estapafúrdios. Osvaldo em nenhum momento deixou de mirar as palavras cruzadas e outros passatempos espalhados sobre a mesa. Súbito quis saber se Aníbal gostava de História. E se pôs a falar das Cruzadas. Império Bizantino, papa Urbano II, Deus vult, Deus assim deseja, libertação de Jerusalém, Terra Santa, Guerra Santa. O paciente passou imediatamente a falar de Amílcar Barca e de seu famoso filho. Ainda pequeno, na presença do pai, Aníbal jurou eterno ódio aos romanos. O médico parecia embasbacado. Tomou veneno, para não se entregar aos inimigos. O médico coçou o queixo. O fato se deu no ano 183 a. C. Ao fim da consulta, encaminhou Aníbal a um psiquiatra.

Recebido com euforia pelo doutor Sigismundo Freudungo, o paciente se manteve calado durante alguns minutos. Talvez a origem da doença estivesse na sua infância. Pode ter presenciado cenas de canibalismo entre animais. Cobra engolindo cobra, rato devorando rato. Como se o médico estivesse ali apenas para ouvi-lo, pôs-se a dizer frases desordenadas, como se colhidas aqui e ali, numa colagem babélica: "Os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas rituais; algumas tribos comiam os inimigos, outras os parentes e amigos." Abriu a pasta cheia de livros e cadernos, meteu a mão e retirou um calhamaço: "Nem nos deve admirar a barbaridade destes povos, quando sabemos que dos descendentes de Tubal e de outras nações políticas com que se povoou Portugal se reduziram muitos dos seus descendentes a tanta brutalidade que matavam e comiam aos que dos povos vizinhos apanhavam ou em guerra ou em ciladas."

Bárbara fez uma fogueira de todos os livros de Aníbal. Nunca mais queria ver livros à sua frente. Por causa deles o coitado do Aníbal havia enlouquecido. Agora a miséria, a vergonha, todos os vexames sociais. Por onde passa ouve um zunzunzum: olha a mulher do doido; tanto orgulho e agora isso...

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Renata Paccola (Trovas)


A força de uma nação
começa com a caneta...
Um a mais na educação:
um a menos na sarjeta!

Alerta a todo machista:
nova era se avizinha...
Será uma grande conquista
ver os homens na cozinha!

A maré desce e descansa
enquanto a onda passeia,
acariciando a criança
e seus castelos de areia...

Ao deitar na rede, o Guido
morreu de uma forma tétrica,
porque, de tão distraído,
deitara na rede elétrica!

Ao ver a joia de Alice,
a amiga pergunta a esmo:
– É diamante? - E a outra ri-se:
– Não, é do marido, mesmo!

Ao ver a praça... o coreto...
lembro você ao meu lado,
e o meu mundo branco em preto
ganha as cores do passado!

As graças que sempre faço
têm o poder de encobrir
a tristeza que o palhaço
faz de conta não sentir...

Casamento traz enganos,
pois seu muso inspirador
pode virar, depois de anos,
o seu museu roncador!

Conquistar novos espaços...
eis a semente da guerra.
Tantas vidas em pedaços
por um pedaço de terra!

Contra a vontade do amado,
nada faça... e se conforme.
Dizia o velho ditado:
"Quando um não quer... o outro dorme".

Deu chilique no garoto
ao saborear seu prato,
e o tempero “Ajinomoto”
bem depressa “agiu no mato!”

É na busca pela paz
e o conhecimento novo
que tantas vezes se faz
a identidade de um povo!

É um arquivo de desmandos
a memória do poeta:
desobedece aos comandos
quando a paixão não deleta...

Eu que fui grão escolhido
nos trigais da mocidade,
hoje sou pão ressequido
nas migalhas da saudade...

Eu só julgo que mereço
a fortuna que amealho
se ela tiver seu começo
no suor do meu trabalho!

Fraternidade é sentir
uma comunhão tão alta
que nos leva a dividir
até mesmo o que nos falta…

Insensatez... Causa? Efeito?
Sentimento ou atitude?
Para quem pensa, é defeito;
para quem sonha, é virtude!

Jamais aceite um convite
para o amor, em tempo errado.
Desperta mais apetite
o prato mais esperado!

Já não há nenhum prazer
que em público a lei permita:
quem quer fumar ou beber
tem que virar eremita!

Meu caminho é tão confuso,
que muitas vezes me sinto
como se fosse um intruso
vagando num labirinto...

Meu coração machucado
foi o pior professor,
ao me deixar reprovado
nas tantas provas de amor!

Meu verso reflete a dor
de um coração solitário,
que escreve cartas de amor,
sem qualquer destinatário...

Nacionalismo é sentir
uma comunhão tão alta
que nos leva a repartir
até mesmo o que nos falta.

Na inspiração oportuna
pode o poeta buscar,
mais do que criar fortuna,
a fortuna de criar.

Não há bicho que não deixe
suas marcas na Julinha:
no pé tem olho de peixe;
no olho, tem pé de galinha!

Não pode existir quem negue
que em apenas quatro versos
a trova sempre consegue
conter vários universos!

Não quero a vida vazia
com práticas e horas certas,
mas polvilhar cada dia
de pequenas descobertas...

No meu sótão de memórias,
vivem lembranças sem fim,
num velho baú de histórias
vividas dentro de mim...

Nosso tempo de criança...
Os velhos sonhos de outrora...
A saudade é uma lembrança
que se esqueceu de ir embora!

Nossos momentos felizes
semeados na memória,
fazem crescer as raízes
que sustentam nossa história!

Num casório aconteceu
engano quanto à pessoa,
e então um homem ateu
casou com a mulher à toa!

O desejo, por instinto,
e a carícia, por encanto,
vêm criar o amor que eu sinto
e inspirar o amor que eu canto!

O futuro, eu mesmo faço
nas sementes que eu espalho,
transformando meu cansaço
nos frutos do meu trabalho.

Os cobradores levados
aos males e às tentações,
tentam pagar os pecados
em suaves prestações!

Pra cortar alho e limão
sem misturar azedumes,
eu lanço, em primeira mão,
a faca de dois legumes!

Para o furacão filmar,
a TV saiu-se bem:
a matéria foi ao ar
e o repórter foi também!

Por tantas vezes perdido
nas vertentes do destino,
segue em busca de um sentido
o meu sonho peregrino...

Quando as mangas arregaço
para cumprir meu dever,
se bate à porta o cansaço,
eu me recuso a atender.

Quem dera a justiça cega
pudesse ver, tão somente,
a falsa prova que entrega
e condena um inocente!

Quem divide os próprios dias
ajudando a quem precisa,
multiplica as alegrias
e as tristezas, suaviza.

Que os rumos de meus irmãos
não se percam nas estradas
e as vias de duas mãos
sejam vias de mãos dadas!

Rico cinquentão? Coitado!
Quisera que fosse assim!
Ele anda mais apertado
que pasta dental no fim!

Ser careca ele detesta.
Não suporta usar peruca.
Então, puxou para a testa
o que restava na nuca...

Sinto a dor de quem confessa
que minha vida pequena
foi o ensaio de uma peça
que jamais entrou em cena...

Solteira por convicção 
só quero um "galho" inconstante:
quem gosta de amarração
é corda,fita e barbante!

Teve um chilique tão forte
que logo tomou vacina,
e se mandou para o Norte
temendo a gripe sulina...

Uma lágrima que escorre
traz mais brilho à própria face,
se a cada sonho que morre
há um novo sonho que nasce!

Um sorriso de criança
inocente, doce e aberto
é uma chuva de esperança
em meu caminho deserto!

Malba Tahan (Minha Vida Querida)

Na última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encarnecidos que vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibet. O sol, já perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas preces com que os lamas (1) imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão (2).

A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor.

    Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação (3).

O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li.

Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino.

— Han-Ru, ó gênio desapiedado! — exclamou. — Que procuras aqui, quase à sombra da casa da encantadora Li-Tsen-li? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte.

Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado do Eterno:

— A tua inquietação é legitima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a tua noiva Li-Tsen-li. Chegou, pela determinação do Destino, o termo de sua existência neste mundo. Li-Tsen-li vai morrer!

— Piedade, Han-Ru! Piedade! —- implorou Te-ha-tá. — Ela é tão jovem, e tão prendada! Pelo amor de Maia Devi (4) deixa viver Li-Tsen-li!

O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse:

— Muito fácil será, para aquele (e é esse o teu caso!) que tem o amparo de Maia Devi, prolongar a vida de Li-Tsen-li. Sei que tens direito a uma vida longa e tranquila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver. Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante! Aceitas essa proposta?
   
A sombra de um vulto surgia, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação.
   
As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto, não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da própria vida?

— A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e orientaram na vida?

— Farei como pedes, meu amigo — respondeu o Anjo da Morte. — Até o findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final. Deveras voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do amanhecer.
* * *
   
Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada?

O primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram mais apreciados do que os olhos negros das Apsaras que enchem de encanto o céu de Indra (5).
   
Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá:

— A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível Han-Ru.

O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles.

Ao ouvir a consulta do jovem, Niansi não se conteve:

— É uma loucura, Te-ha-tá! Onde se viu um moço, rico e cheio de saúde, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo mundo, milhões e milhões de mulheres lindas, muitas com as sete ou talvez, com as oito perfeições indicadas no Livro Sagrado (6). Aqui mesmo (no Tibet) poderás topar, em qualquer aldeia, com centenas de meninas, algumas das quais nada ficariam a dever, julgadas pelos seus predicados de graça e beleza, à tua noiva Li-Tsen-li! Desgraçada a ideia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o sacrifício de vinte e tantos anos de.tua vida! E quem poderá prever o futuro? Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão e deslembrada do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá viver, nos braços de outro, a vida que é a tua própria vida! Que farás, então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de tua existência? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.
* * *
   
A divergência entre os dois amigos mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-tá.

— Vou ouvir — pensou o jovem — a opinião do prudente Kin-Sã. Só ele poderá indicar-me o caminho a seguir.

Kin-Sã, citado no Tibet como um estudioso das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo:

— Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma condição. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, poderá ser retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranquilidade garantida no caso de uma infidelidade de tua futura esposa. Se ela, por qualquer  motivo, não se mostrar  digna de teu sacrifício,  perderá o direito ao resto da vida que lhe cabia viver! Fora dessa condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de irremediável loucura!

E concluiu o seu conselho com estas palavras:

— Fizeste bem em hesitar. A Hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam.
* * *
   
Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável a proposta sugerida pelo douto Kin-Sã, e levou-a sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte.

Han-Ru aceitou a condição imposta pelo noivo:

— Está bem, Te-ha-tá. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai viver os vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém, dada, mas sim “emprestada”.

* * *
   
Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-tá, e os dois eram citados como os esposos mais felizes do Tibet. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocábulo que significa “minha vida querida”.

Um dia, afinal, Te-ha-tá foi obrigado a fazer uma longa viagem para além das fronteiras de sua terra. Deixou “Minha vida querida” e seu filhinho, que já contava algumas semanas, em companhia de seus pais.

Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus três amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoação.

— Onde está “Minha vida querida”? — perguntou, ansioso, aos amigos. — Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à “Minha vida querida”?

Disse um dos amigos:

— Enche de ânimo e de coragem o teu coração, ó Te-ha-tá! Uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre a tua vida!

— Desgraça? — repetiu, aflito, Te-ha-tá. — É horrível esta angústia! Vamos! Quero saber a verdade! Onde está “Minha vida querida”?

— Morreu!

— Morreu! — gritou Te-ha-tá, desesperado. — Não é possível! Não podia morrer! Eu sacrifiquei por ela, metade de minha vida!

E Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o céu; rolava, por vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador.

Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o infeliz Te-ha-tá dar plena expansão à indizível angústia que lhe esmagava o coração.

Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.

— Han-Ru! — bradou, num tom de incontido rancor. — Faltaste com a tua palavra. Que fizeste de “Minha vida querida”?

— Escuta, Te-ha-tá — respondeu Han-Ru. — Preciso dizer-te a verdade, para que não continues a blasfemar desse modo. A tua esposa deveria viver vinte e três anos. Um dia, porém, o seu filhinho adoeceu gravemente. O pequenino ia morrer. Que fez a tua esposa? Pediu, em preces, que a sua vida fosse dada ao filhinho enfermo para que ele pudesse viver! Salvou-se o teu filho, mas tua esposa morreu!

E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu:

— E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida, ela mãe extremosa, não hesitou um segundo em dar, pelo filhinho, a vida inteira!
__________________________
Notas:
1- Lamas — Sacerdotes budistas entre Mongóis e Tibetanos. O chefe supremo é o grande Lama ou Dalai-Lama.
2- Senhor da Compaixão - Deus.
3- Han-Ru — Na complicada mitologia hindu figuram nada menos de 17 deuses. Os três primeiros, Brama (o principio criador), Vishnu (o principio conservador) e Siva o principio destruidor), formam a celebre trindade hindu. Além dos 17 deuses, os hindus incluíram entre as divindades os planetas, alguns rios (o Ganges, por exemplo, é adorado sob a forma de uma deusa) e certos animais. Siva, cuja esposa é Maia Devi ou Bhavâni, tem vários auxiliares. Han-Ru é um dos gênios que se encarregam de cumprir as determinações do Deus da Destruição.
4- Maia Devi — também denominada Bhavâni. É a esposa de Siva, terceiro deus da trindade hindu. Essa deusa é, em geral, representada sob a forma de uma linda mulher, em atitude ameaçadora, montada num tigre.
5- Céu de Indra — Da multiplicidade de deuses que são apontados na Mitologia Hindu decorre a crença, geralmente aceita, de que existem vários céus. O céu de Indra parece ser o mais notável. Erguem-se, nessa região divina, palácios de ouro ornados de pedras preciosas, grutas, jardins prodigiosos cujas flores exalam cem mil perfumes diferentes. Um foco luminoso — mais intenso do que o sol — derrama uma claridade sobre todos os recantos do paraíso hindu. O céu de Indra é povoado por uma infinidade de ninfas encantadoras denominadas Apsaras.
6 - Livro Sagrado — A religião dos hindus é, em parte, explicada nos Vedas, que não passam, afinal, de uma coleção de hinos, preces e conceitos morais. O Livro Sagrado a que se refere o herói do conto deve ser, naturalmente, o Código de Manu, cuja origem é anterior ao IX ante-século.
     Todos os conceitos e princípios religiosos no livro de Manu aparecem, aliás, citados nos Vedas.
     Há quatro Vedas, sendo cada um deles dividido em duas ou três partes. O primeiro é constituído exclusivamente por vários hinos religiosos e preces; o segundo estuda os princípios religiosos e analisa as controvérsias teológicas; o terceiro discute certos pontos obscuros de Teologia. O quarto Veda não é, em geral, aceito pelos doutores hindus.
     Os Vedas não podem ser atribuídos a um único autor; em cada um deles colaboram vários personagens de épocas diversas. Os diversos escritos foram reunidos sob a forma atual no século XVI, antes de Cristo.


Fonte: Malba Tahan. Minha Vida Querida.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

João Batista Xavier Oliveira (Trovas de Natal)


Dezembro... mês de euforia,
planos: compras de Natal.
No centro: mercadoria
e de lado o PRINCIPAL

É natal nos condomínios,
nas prisões e nas favelas...
mas as faces dos fascínios
mudam conforme as janelas.

Lá no morro, vinte e cinco
é um dia não diferente,
mas mesmo em teto de zinco
quem tem amor tem presente.

Mesmo com todo esse clima
de convulsão social
os fluidos que vêm de cima
purificam o Natal.

Nestes tempos tão modernos
Natal está precisando
de muitos gestos fraternos
e mais tempo vez em quando.

No Natal eu gostaria
de abraçar toda cidade;
ver gente na correria
"comprando" felicidade.

Os apelos aos ouvintes
em paz "artificial"
são verdadeiros acintes
às mensagens do Natal.

Quantos sapatos vazios...
janelas... -portais dos sonhos-
por onde olhinhos sombrios
veem o Natal tão tristonhos.

Fonte: O trovador

Nilto Maciel (Trem-fantasma)

O maquinista, logo após o desastre, deu um grito, levou as mãos à cabeça, pôs-se a chorar e recostou-se a um canto da parede, sentando-se. Descuido? Imprudência? A locomotiva partiu da estação primeira já em alta velocidade e, num segundo, alcançou a segunda, a terceira, feito bala, apitando, sem parar em nenhuma estação. Quando o maquinista percebeu o perigo, não havia mais tempo para frear o trem. O precipício abria-se à sua frente, profundo, mortal. O homenzinho fez careta, arregalou os olhos: os vagões resvalaram, despedaçando-se no fundo do abismo. "Ó meu Deus!" Porém, havia um consolo: nenhum passageiro havia subido aos vagonetes. E ajudantes ele nunca teve. Assim, nada de vítimas. Mais sossegado, enxugou as lágrimas e engatinhou até o primeiro pedaço do trem. Pôs-se a juntar um a um os restos do veículo. Olhou para cima, para a grande mesa da sala, onde o desastre teve início.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte.

domingo, 24 de dezembro de 2017

Olivaldo Junior (Buquê de Trovas sobre o amor... e sem motivo nenhum)

Cada amor que desfolhei
desfolhou-me a solidão;
para o espelho, já mudei;
só não muda o coração...

- Cada lágrima que eu guardo
nesse peito, o meu Saara,
vira a chama em que me ardo
quando o amor é joia rara...

Com a cal do esquecimento,
recobrimos nosso amor;
mas, o tempo, com o vento,
fez romper da pedra flor...

Da poeira do meu quarto,
de mil livros nunca lidos,
nasce a trova que reparto
com amores não vividos...

Das estrelas que acendi
numa noite enluarada,
a do amor jamais perdi
ao achar a madrugada.

Entre as letras da canção
que eu cantava por amor,
desfolhou-se um coração
que 'batia' em seu louvor...

- Esse amor de quem amou,
tal e qual o cravo branco,
nasce donde alguém chorou
e se firma num barranco.

Este amor que eu alimento
co'as sementes da ilusão
bica em fúria o sentimento
que me escava o coração...

Fina estrela em teu olhar
vira a láctea de uma via
que persigo ao caminhar
com você, amor, poesia...

Grande amor, pequeno embora,
foste grande ao vão poeta
que se encontra à luz da aurora
mas jamais em linha reta...

Grande fado, mar ao lado!...
Mas a lágrima de oliva
rola aos lábios do coitado,
a rogar, silente: - Viva!

Mal o dia em nós raiou,
meu amor se pôs a arfar;
foi meu beijo que tirou
de quem amo todo o ar...

Meu amor jamais foi meu,
disso eu tenho consciência;
no balcão, sobrou Romeu,
numa eterna adolescência...

- Na sanfona que suspira
pelo amor no carrossel,
fica o choro que conspira
pra essa lua ser de mel...

Na varanda de minh'alma,
sob as dálias e o jasmim,
este cravo é branca palma
de uma rosa sem jardim...

No florir dos dissabores,
num bilhete desprezado,
fica o cheiro dos amores
que ficaram no passado...

Ó, guitarra portuguesa,
voz irmã de um trovador,
faz do amor a natureza
de quem busca lua e flor!

Todo o amor que tu me tinhas,
e lhe tinha amor demais...
Mas, na vida, as "cirandinhas",
volta e meia, são jamais.

Um perdão que nunca vem
vem matar quem o quisera,
mas massacra quem o tem
sem o dar a quem o espera...

Fonte: O Autor

Carlos Leite Ribeiro (O Sonho de Sofia)

(Conto de Natal dedicado à minha querida netinha Ana Sofia)
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- Mamã, não tenho sono e quero ir para a tua cama.

Antes de ter autorização para ir para a cama dos pais, a pequenina Sofia saltou para o meio e deitou-se entre ambos.

- Porque não consegues dormir, Bebê ? – perguntou-lhe a mãe.

- Sabes, a Barbie, a boneca da mana, esteve a falar comigo e não me deixou dormir…

- Não acredito que a boneca tivesse falado contigo! E o que te disse ela?

- Disse-me as prendas que o Pai Natal me vai dar amanhã …

- Ah, sim ?!!! não estou a acreditar e o papá está a rir-se.

- É verdade, papás ! Disse-me que me ia dar uma saia comprida como a mamã e a mana tem, uma linda t-shirt, meias, botas altas e um boné de pala.

- Marido, estás a ouvir esta nossa filha ? Não sei não …

- E ainda mais, papás, um telemóvel (celular) como o mano tem, uma mesa para eu escrever, um cocas (sapo) e um boneco muito grande como a mana tem e …

- Olha que talvez o Pai Natal não te possa dar tudo isso. Este ano, ele está com muita falta de dinheiro. Então um boneco grande está fora de causa, pois o vosso quarto é pequenino.

- O boneco da mana, como já é velho, pode ficar na garagem. E como o Pai Natal está pobrezinho, o papá podia dar-lhe uns dinheiritos … Também quando chegar o Pai Natal, quero ir falar com ele, para lhe dar um beijinho…

O pai, muito divertido, levantou-se da cama, dizendo-lhe:

- Olha Bebê, vai para a tua caminha que o papá amanhã vai escrever ao Pai Natal a fazer o teu pedido. O papá vai-te por na tua caminha.

A criança agarrou-se ao pescoço do pai que a foi pô-la na caminha. De regresso ao seu quarto, a esposa muito divertida, disse-lhe:

- Parece-me que esta nossa filhinha vai ser uma “contadora de histórias” como o avô …

Fonte: O Autor

sábado, 23 de dezembro de 2017

Trova 277 (Renata Paccola)


Carlos Leite Ribeiro (O Boneco de Trapos)

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Era uma vez um boneco de trapos...

O Natal estava à porta e, numa casa modesta, a mãe viúva e as suas duas filhas, trabalhavam afincadamente na confecção de bonecos de trapos.

O último boneco da última série saiu defeituoso: uma perna mais curta, um braço mais comprido e até o olhar era vesgo.

- Não vamos mandar este boneco para a loja, pois, está muito defeituoso - disse-lhe uma das filhas.

- É um fato, este boneco ficou com muitos defeitos - concordou a mãe, que continuou - mas talvez passe e não seja devolvido. Nós precisamos tanto de dinheiro...

- Sendo assim, minha mãe, vamos então mandar também o "aleijadinho".

E o Boneco de Trapos, com uma perna mais curta, um braço mais comprido e com o olhar vesgo, lá foi para a loja...

Em outra casa modesta, outra mãe falava a sua filha mais nova:

- Tu minha filha, queres oferecer uma prenda de Natal àquela menina que mora além, naqueles prédios novos, mas nós somos pobres e não podemos oferecer nenhum brinquedo caro.

- Podemos comprar qualquer coisa barata, uma simples lembrança - disse-lhe a criança - para mais, ela deu-nos umas roupinhas que nos fizeram muito arranjo.

- Pronto, não insistas mais. Vai à loja e compra um brinquedo que seja barato.

E foi assim que, o Boneco de Trapos, defeituoso, com uma perna mais curta, um braço mais comprido e o olhar vesgo, bem embrulhado e com um laço colorido, foi parar a uma casa menos modesta, onde habitava uma menina, que tinha muitos brinquedos caros e bonitos...

- A tua amiguinha ali de baixo, a que no outro dia deste aquelas roupas, trouxe-te esta prenda.

- Ah, mas que boneco tão imperfeito, mamã! que hei de de fazer com ele? É tão feio?!

- Brinca com ele - retorqui-lhe a mãe - Talvez depois o consideres bonito.

Pouco convencida, a menina não arranjou outra brincadeira que não fosse colocar o Boneco de Trapos, no centro do alvo dos dardos, e, com uma precisão quase matemática, começou a espetá-lo. Pouco a pouco o boneco foi-se desfazendo, e, assim, quase desfeito, foi parar na manhã da véspera de Natal, a um contentor de lixo...

Nessa manhã, uma mãe levava sua filha pela mão e, ao passar por um contentor de lixo, a criança exclamou:

- Mãe, olha aquele boneco de trapos. É tão bonito, deixa-me levá-lo?

- É um boneco tão imperfeito, já desventrado, para que tu o queres? Só servia para sujar a casa.

- Mãe, eu nunca tive um boneco, e este, até é coxinho como eu. Tu, minha mãe, até podias arranjá-lo, para mais, o Pai Natal nunca se lembrou de mim!

E a criança lá levou o boneco para casa, que à noite já estava consertado e com os defeitos corrigidos. Até parecia outro...
 
Quando nessa noite, foi para a cama, a menina aleijadinha, orgulhosamente, deitou o Boneco de Trapos a seu lado, e disse à mãe:

- Mãe, tu que és tão habilidosa, que consertaste tão bem este boneco, não podias consertar também e minha perninha, para eu ficar tão bonita como ele?

Comovida, a mãe limpou uma lágrima que, teimosamente lhe caia pela face abaixo, e, tristemente, respondeu-lhe:

- Infelizmente não posso, minha filha. Mas confiemos em Deus e na boa vontade dos Homens. Talvez para o ano que vem, possas ser curada...

E um ano passou...

A menina aleijadinha, depois de fazer algumas operações e de ser bem tratada, recuperou do seu defeito físico.

- Mais um ano em que não podemos fazer uma festinha nesta noite. Nem sequer um brinquedo te posso dar, minha filha - lamentava-se a mãe.

- Não te preocupes, mãe, eu já recebi uma grande prenda, pois, estou completamente curada e, para mais, tenho o Boneco de Trapos, que sempre me acompanhou. Ele é tão bonito, não é, mamã?!

O frio lá fora era intenso e talvez nevasse...

Aquela mãe, depois de aconchegar os cobertores a sua filha e ao seu Boneco de Trapos, olhou-o com mais atenção, e, teve a sensação que este lhe sorria e lhe dizia:

- Obrigado, mãe, vai descansar, pois eu velarei pela nossa menina...

E será mesmo que... Nessa Noite em que dizem que os animais falam, os Bonecos de Trapos, também falam?

Fonte:
O Autor

L. P. Baçan (A História do Terceiro Velho e do Pescador)

          Senhor, havia um pescador tão velho e tão pobre que mal podia sustentar sua esposa e três filhos. Saia pescar muito cedo diariamente e havia estabelecido uma regra para si: jamais lançar sua rede mais do que quatro vezes. Ele partiu uma certa manhã, ainda à luz da lua, e foi para a beira do mar. Ele se despiu e lançou a rede. Quando a estava puxando para o banco de areia, sentiu um grande peso. Imaginando ter pegado um grande peixe, ficou muito contente. Mas, no momento seguinte, viu em sua rede, ao invés de um grande peixe, a carcaça de um asno. Ele ficou muito desapontado.

          Aborrecido com tal pescaria, ele consertou a rede que a carcaça do asno havia arrebentado em vários pontos. Em seguida, atirou novamente a rede ao mar pela segunda vez. Ao puxar, ele novamente sentiu um grande peso, de forma que pensou que ela estava cheia de peixe. Mas ele só achou uma enorme cesta cheia de lixo. Ele ficou ainda mais aborrecido.

          — Ó, sorte! — ele clamou. — Não faça troça comigo, um pobre pescador que não pode sustentar sua família!

          Dizendo isso, ele jogou fora o lixo, e lavou a rede, limpando-a de toda sujeita. Novamente ele a lançou ao mar, pela terceira vez agora. Dessa vez, só pegou pedras, conchas e lama. Ele estava à beira do desespero. Então ele lançou a rede pela quarta vez. Quando pensou ele nada pescara, ele a puxou com muito dificuldade. Não havia peixes, mas ele achou um pote amarelo, que pelo seu peso parecia conter alguma coisa. Ele notou que estava fechado e lacrado com um selo. Ficou encantado.

          — Eu o venderei ao fundidor e, com o dinheiro que conseguir, comprarei uma medida de trigo.

          Ele examinou o jarro por todos os lados, depois o chacoalhou para ouvir algum ruído, mas nada ouviu. Analisando o selo na tampa, ele pensou que, mesmo assim, poderia haver alguma coisa lá dentro. Usando sua faca, com um pouco de dificuldade ele conseguiu soltar a tampa. Virou o pote de cabeça para baixo, mas nada saiu dali. Levantou o objeto à altura dos olhos e estava olhando seu interior, tentando ver alguma coisa, quando saiu dali uma fumaça espessa, fazendo-o recuar alguns passos. Essa fumaça se levantou até as nuvens e estendeu-se para cima do mar e da orla, formando um nevoeiro que muito surpreendeu o pescador. Quando toda a fumaça estava fora do pote, ela se concentrou numa massa enorme, na qual apareceu um gênio duas vezes maior que um gigante. Quando viu aquele monstro terrível olhando para ele, o pescador ficou tão aterrorizado que não conseguiu dar um passo para fugir.

          — Grande rei dos gênios! — exclamou o monstro. — Jamais voltarei a desobedece-lo!

          Estas palavras levaram coragem ao pescador.

          — O que você está dizendo, grande gênio? Conte-me sua história e como acabou encerrado nesse vaso.

          O gênio olhou o pescador com arrogância.

          — Dirija-se a mim com cortesia, antes que eu o mate!

          — Ai! Por que você deveria me matar? — indagou o pescador. — Eu o libertei, já se esqueceu?

          — Não! — respondeu o gênio. — Isso não me impedirá de matar você. Mas vou lhe conceder um favor: escolha como quer morrer!

          — Mas o que fiz eu a você? — insistiu o pescador.

          — Eu não o posso tratar de qualquer outro modo — disse o gênio. — Se quiser saber o motivo, escute a minha história. Eu me rebelei contra o rei dos gênios. Para me castigar, ele me encerrou neste vaso de cobre, lacrando-o com um selo de chumbo, que é o único encanto capaz de me deter e me impedir de sair. Em seguida ele jogou o vaso no mar. Durante o meu cativeiro, jurei que se qualquer um me libertasse antes de cem anos, eu o faria rico até mesmo depois da morte. Aquele século passou e ninguém me livrou. No segundo século, prometi que daria todos os tesouros do mundo para meu libertador, mas ele nunca veio. No terceiro século, eu prometi fazer de meu salvador um rei, sempre estar perto dele e lhe conceder diariamente três desejos. Mas aquele século também se passou e eu permaneci na mesma prisão. Finalmente, fiquei furioso por ter permanecido cativo por tão longo e prometi que se alguém me soltasse, eu o mataria imediatamente e só lhe permitiria escolher de que maneira ele deveria morrer. Como vê,

          O pescador estava muito infeliz.

          — É isso que um homem azarado como eu ganha por ter salvado você. Eu lhe imploro que poupe minha vida.

          — Já lhe disse! — tornou o gênio. — Sejamos breves. Escolha, você está desperdiçando meu tempo!

          O pescador teve uma ideia repentina.

          — Considerando que eu tenho que morrer — falou ele, — antes de eu escolha a maneira de minha morte, eu suplico por sua honra que me diga se estava realmente dentro do vaso!

          — Sim, eu estava — respondeu o gênio.

          — Eu realmente não posso acreditar nisso — afirmou o pescador. Aquele vaso pequeno mal pode conter um de seus pés, quanto mais o corpo inteiro. Eu não posso acreditar nisso, a menos que eu o veja fazer isso.

          — Pois vou lhe mostrar como! — falou o gênio, com desprezo.

          Então ele começou a se transformar em fumaça que, como antes, esparramou-se para cima do mar e da orla, depois foi se juntando e começando a entrar lentamente no vaso, até que nada restasse do lado de fora. Uma vez saiu do vaso, indagando:

          — Bem, pescador descrente, aqui estou eu, dentro do vaso. Acredita em mim agora?

          O pescador, em vez de responder, apanhou a tampa de chumbo e fechou depressa no vaso.

          — Agora, ó gênio do mal — exclamou o pescador. — Peça perdão a mim e escolhe de que morte morrerá! Mas não, será melhor que eu o lance ao mar e que construa uma casa na praia para avisar a todos os pescadores que aqui vêm lançar suas redes para que se previnam de pescar um gênio tão mau como você, que jura matar o homem que o libertar.

          A estas palavras, o gênio fez tudo que pôde para sair, mas não podia, por causa do encanto da tampa.

          — Se me ajudar, eu o farei o homem mais sábio do mundo todo, capaz de desafiar gênios, seduzir fadas e conquistar reinos.

          — Se eu confiar em você, nada me garantirá que serei tratado com justiça. Além disso, se minha astúcia superou a de um gênio, estou certo de que poderei vencer pela astúcia qualquer outro que aparecer no meu caminho — disse o velho.

          — Poderá ter tudo que jamais teve em sua miserável vida! — continuou o gênio.

          — Vou fazer melhor! Vou correr o mundo, levando você para ensinar as pessoas a enfrentarem a maldade — finalizou o velho, encarando agora o gênio que queria tirar a vida do pobre e desesperado comerciante.

          — Devo confessar que sua história é a mais surpreendente e maravilhosa de todas as outras — afirmou o gênio, realmente surpreso, olhando de rabo de olho para o pote que o velho tinha nas mãos. — Por isso eu lhe dou a terceira parte do castigo do comerciante. Ele deve agradecer todos os três pelo empenho demonstrado em salvá-lo. Se não fossem vocês, ele já teria partido desta vida.

          Dizendo assim, ele desapareceu, para grande alegria do comerciante e de seus companheiros. Ele não soube como agradecer seus amigos e fez tudo que estava ao seu alcance para demonstrar sua gratidão.

          Convidou a todos para irem morar na casa dele, mas os viajantes agradeceram e cada um tomou seu rumo. O comerciante voltou para sua esposa e para seus filhos, passando o resto de sua vida feliz com eles.

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

L. P. Baçan (A História do Segundo Velho e dos Cachorros Pretos)

   
       Grande Príncipe do Gênios, você tem que saber que nós somos três irmãos, estes dois cachorros pretos e eu. Nosso pai morreu e deixou mil cequim para cada um de nós. Com essa quantia, resolvemos ter a mesma profissão e nos tornamos comerciantes. Pouco tempo depois que abrimos nossas lojas, meu irmão primogênito, um destes dois cachorros, resolveu visitar países estrangeiros para vender mercadorias. Com essa intenção, ele vendeu tudo que tinha e comprou para novas mercadorias para a viagem que estava a ponto de fazer. Ele partiu e se passou um ano inteiro. Ao término deste tempo, um mendigo veio a minha loja.

          — Bom-dia! — eu disse.

          — Bom-dia! — respondeu ele. — É possível que você não me reconheça?

          Então eu o olhei bem de perto e vi que era meu irmão. Eu o fiz entrar em minha casa e lhe perguntei o que ocorrera com o empreendimento dele.

          — Não me questione! — ele me respondeu. — Veja, você vê tudo o que sobrou do que eu tinha. Sinto dificuldade em contar os infortúnios que me aconteceram nesse ano e que me deixaram assim.

          Eu fechei minha loja e lhe dei toda a minha atenção. Levei-o ao banho, dando-lhe uma de minhas batas mais bonitas. Eu fiz minhas contas e descobri que tinha dobrado meu capital. Entreguei a metade ao meu irmão, dizendo:

          — Agora, irmão, você pode esquecer suas perdas.

          Ele os aceitou com alegria, e vivemos juntos como vivíamos antes. Algum tempo depois, meu segundo irmão também desejou fazer a viagem de negócios dele. Meu irmão primogênito e eu fizemos tudo que pudemos para dissuadi-lo, mas foi inútil. Ele se juntou a uma caravana e partiu, para retornar ao término de um ano, no mesmo estado que nosso irmão mais velho.

          Tomei conta dele e, como eu tinha mil cequim para repartir, eu os dei a ele e ele reabriu sua loja.

          Um dia, meus dois irmãos vieram até mim para propor que nós viajássemos para vender mercadorias. No princípio eu recusei.

          — Vocês viajaram e o que ganharam com isso? — indaguei.

          Eles não desistiram e vieram repetidamente a mim e, depois de insistirem durante cinco anos, eu acabei cedendo. Finalmente, quando eles tinham feito os preparativos deles e começaram a comprar as mercadorias que iríamos vender, perceberam que haviam gastado todo o dinheiro que eu lhes havia dado. Eu não os repreendi e dividi minha fortuna, no total de seis mil cequim, da seguinte forma. Deu mil a cada um deles, guardei mil para mim e enterrei os outros três mil em um canto de minha casa. Nós compramos mercadoria, carregamos um navio com elas e partimos com um vento favorável.

          Depois da navegar dois meses, chegamos a um porto onde desembarcamos e fizemos excelentes negócios. Então nós compramos mercadorias do país e nos preparamos para velejar mais uma vez. Eu estava no barco, parado na praia calma, quando uma linda mas pobremente vestida mulher subiu a rampa e veio até mim, beijou minha mão e me implorou que me casasse com ela e a levasse a bordo. No princípio eu recusei, mas ela implorou tanto, prometendo ser uma boa esposa, que eu, afinal, consenti. Eu comprei alguns vestidos bonitos e, depois de termos nos casado, embarcamos e fixamos a vela. Durante a viagem, descobri tantas qualidades boas em minha esposa que comecei a amá-la cada vez. Mas meus irmãos começaram a ter ciúmes de minha prosperidade e resolveram conspirar contra minha vida. Uma noite, quando nós estávamos dormindo, eles nos jogaram no mar. Porém, minha esposa era uma fada e não me deixou afogar, transportando-me para uma ilha. Quando o dia amanheceu, ela disse a mim:

          — Quando eu o vi naquela praia, fiquei encantada com você e desejei testar sua natureza para ver se era boa, por isso me apresentei na forma em que me viu. Agora eu o recompensei, salvando sua vida. Mas estou muito brava com seus irmãos e não descansarei até levar as vidas deles.

          Eu agradeci à fada tudo que ela tinha feito para mim, mas supliquei para não matar meus irmãos. Tanto fiz que consegui aplacar sua ira. Num momento, então, ela me transportou da ilha onde estávamos para o telhado de minha casa, desaparecendo em seguida. Eu desci, abri as portas e desenterrei os três mil cequim que eu tinha enterrado. Eu foi para o lugar onde minha loja estava localizada e abri-a, recebendo as boas-vindas de meus companheiros comerciantes pelo meu retorno. Quando eu fui para casa, vi dois cachorros pretos que vieram humildemente ao meu encontro, como me conhecessem. Fiquei surpreso, mas a fada reapareceu e disse:

          — Não fique surpreso com esses cachorros. Eles são seus dois irmãos, condenados a permanecer durante dez anos nessa forma.

          E entes que eu pudesse falar alguma coisa, ela desapareceu. Os dez anos já quase se passaram e eu estou viajando a procura dela. Quando passava por aqui, vi esse comerciante e o velho com a corça e fiquei com eles.

          — Realmente! — disse o gênio. — Sua história é maravilhosa e por isso eu lhe concederei um do castigo do comerciante.

          Então o terceiro velho fez para o gênio o mesmo pedido que os outros dois haviam feito, e o gênio lhe prometeu o último terço do castigo do comerciante se a história dele ultrapassasse as outras.

          Assim ele contou a história dele ao gênio.

continua...

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

L. P. Baçan (A História do Velho e da Corça)

   
       Esta corça que você vê comigo é minha esposa. Nós não tínhamos nenhum filho nosso, então adotei o filho de meu escravo favorito e determinei fazê-lo meu herdeiro. Minha esposa, porém, sentia uma grande antipatia pela mãe e pela criança, fato que me escondeu até que fosse tarde demais. Quando meu filho adotivo tinha aproximadamente dez anos, fui obrigado a sair em viagem. Antes de ir, confiei a minha esposa a criança e a mão dela, implorando que cuidasse delas durante minha ausência, que durou um ano inteiro. Durante este tempo, ela se dedicou ao estudo das artes mágicas para levar a cabo seus planos maléficos. Quando adquiriu conhecimento e poderes suficientes, levou meu filho e a mãe para um lugar distante, transformando-os num bezerro e numa vaca. Depois pediu a meu mordomo que cuidasse dos dois como se fossem animais que ela havia comprado. Por fim, tratou de dar fim no meu escravo.

          Quando voltei, perguntei por meu escravo e pela criança.

          — Seu escravo está morto — disse ela. — Quando ao seu filho, eu não o vejo há dois meses e não sei onde ele está.

          Eu lamentei ao ouvir falar do morte de meu escravo, mas como meu filho havia apenas desaparecido, eu pensei que logo haveria de encontrá-lo. Porém, oito meses se passaram, sem nenhuma novidades dele. Então chegou a época das festas de Bairam.

          Para celebrar isso, ordenei que meu mordomo trouxesse uma vaca gorda para sacrificar. Ele assim fez. A vaca que ele trouxe era minha escrava, a mãe de meu filho. Quando eu estava a ponto de mata-la, ela começou a mugir baixinho, como se suplicasse por sua vida. Eu vi, então, que os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Tomado de piedade, ordenei o mordomo para levá-la e trazer um outro. Minha esposa, que estava presente, ridicularizou a minha compaixão, dizendo maliciosamente:

          — O que está fazendo você? Mate esta vaca. É a melhor que nós temos para sacrificar.

          Tentei agradá-la, mas novamente o animal mugiu e suas lágrimas me desarmaram.

          — Leve-a embora! — ordenei ao mordomo. — Mate-a você, eu não posso fazer isso.

          O mordomo, cumprindo minhas ordens, a matou. Ao esfolada, porém, descobriu que ela não tinha nada além de ossos, embora aparentasse ter muita gordura. Fiquei consternado.

          — Fique com ela! — disse ao mordomo. — E se tiver um bezerro gordo, traga-o no lugar dela!

          Em pouco tempo ele trouxe um bezerro gordo que, embora eu não o reconhecesse, era meu filho. Tentou arduamente partir sua corda e vir até mim. Lançou-se a meus pés, com sua cabeça no solo, como se desejasse despertar minha piedade, implorando-me para não lhe tirar a vida.

          Eu fiquei ainda mais surpreso com essa ação do que fiquei com as lágrimas da vaca.

          — Vá — ordenei ao mordomo. — Leve de volta este bezerro, com bastante cuidado, e traga imediatamente outro em seu lugar.

          Assim que minha esposa me ouviu falar isso, indagou:

          — O que está fazendo você, marido? Não sacrifique nenhum outro bezerro senão este!

          — Esposa! — eu respondi. — Não sacrificarei este bezerro!

          Rebati todos os argumentos dela e permaneci firme. Matei um outro bezerro e libertei o primeiro. No dia seguinte, o mordomo me procurou e pediu para falar em particular.

          — Eu vim lhe contar uma notícia que eu o penso que irá gostar de ouvir. Eu tenho uma filha que conhece magia. Ontem, quando libertei o bezerro que você recusou sacrificar, eu contei a ela e ela sorriu. Imediatamente depois começou a chorar. Eu lhe perguntei por que ela estava fazendo aquilo.

          — Pai! — ela respondeu. — Este bezerro é o filho de mestre. Eu sorri de alegria ao vê-lo ainda vivo, mas lamentei ao lembrar que a mãe dele foi sacrificada. Essas transformações foram forjadas pela esposa de nosso mestre, que odiava o filho adotado.

          Ao ouvir essas palavras do mordomo, mal podem imaginar a minha surpresa. Pedi ao mordomo que trouxesse a filha dele e fui para o estábulo ver meu filho, que respondeu a seu modo a todo o meu carinho. Quando a filha do mordomo apareceu, eu lhe perguntei se ela poderia fazer meu filho voltar a sua forma natural.

          — Sim, eu posso — ela respondeu, — sob duas condições. A primeira é que ele me seja dado como marido. A segunda, é que o mestre me deixe castigar a mulher que o transformou em bezerro.

          — Com a primeira condição — respondi, — eu concordo de todo meu coração e ainda lhes darei um generoso dote. Quanto à segunda condição, também concordo, mas eu só lhe imploro que poupe a vida dela.

          — Assim será! — disse ela. — Será tratada como tratou o filho.

          Então ela apanhou uma vasilha de água e pronunciou sobre ela algumas palavras incompreensíveis. Depois, lançou essa água sobre o bezerro, que tomou imediatamente a forma de um homem jovem e belo.

          — Meu filho, meu querido filho! — exclamei, — beijando-o cheio de alegria. Esta linda jovem o salvou do terrível encanto terrível. Estou certo que, não apenas por gratidão, mas também por amor, você concorda em se casar com ela.

          Ele consentiu cheio de alegria, mas antes que eles estivessem casados, a jovem transformou minha esposa em uma corça, e é ela quem vê você aqui, ao meu lado. Eu desejei que ela tivesse esta forma, ao invés de a de um animal mais estranho, de forma que ninguém a olhasse com repugnância. Deixei meu filho cuidando de meus negócios e vivo viajando. Como não queria confiar minha esposa aos cuidados de ninguém, eu a levo comigo aonde for.

          E então, o que achou de minha história?

          — Realmente, é uma história maravilhosa e surpreendente — afirmou o gênio. — Por causa disso, eu concedo a você um terço do castigo desse comerciante.

          Quando o primeiro velho terminou de agradecer, o segundo, que estava conduzindo os dois cachorros pretos, disse ao gênio:

          — Eu gostaria de lhe contar o que aconteceu a mim e estou certo que achará minha história até mesmo mais surpreendente que a que acabou de ouvir. Mas quando eu terminar, também vai me garantir a terceira parte do castigo do comerciante.

          — Sim — respondeu o gênio. — Contanto que sua história seja mais surpreendente que a história da corça.

          Com este acordo feito, o segundo velho começou a narrar sua história.

continua...

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com