quinta-feira, 26 de abril de 2018

Cecy Barbosa Campos (Poesias Seletas)


VERDADE 

Não quero ser
da verdade, a dona.
Ela é tão incerta
que sendo minha hoje,
pode ser de outrem
mais tarde.
Aquilo em que acredito
pode transformar-se em mentira
num próximo amanhã.
__________________________
PASSADO

Meus fantasmas errantes
buscam 
ilusões perdidas
e sonhos
que ficaram para trás,
perdidos
em tempos idos.
__________________________
BUSCA

Virando-me pelo avesso
tento captar todos os espaços
e abraçar o infinito
atingindo recantos escondidos
na descoberta de universos
até então
indecifráveis.
__________________________
RETRIBUIÇÃO

Quem faz o mal, tem em troca,
maldades a receber
pois em mão dupla caminha
o mal que ele quer fazer.
Com força retornará
e vai em dobro atingir
a quem com ferro ferir.
__________________________
INDIFERENÇA

Colecionamos mortes
em nossas vidas.
Perdemos amigos,
pai, mãe, parentes queridos
e até aqueles que não são tanto.
A morte chega, estendendo os braços,
vai envolvendo com seus tentáculos
a quem quiser, sem perguntar,
sem consultar a nossa vontade
nem dizer quando
estará presente,
se a curto ou a longo prazo.
__________________________
PERCURSOS

Lágrimas
dançam 
com estranhas coreografias
percorrendo sulcos
escritos pelo tempo.
Seguindo compassos
inaudíveis,
marcados por atabaques
que esmigalham gemidos
nos lamentos de um soul,
sou o que sou 
com os restos
que habitam em mim.
__________________________
CANÇÃO DO MEU EXÍLIO

A casa da minha avó
tinha um extenso quintal,
tinha flores, tinha frutas
e perfume sem igual.
Os passarinhos cantavam
numa árvore frondosa
enfeitada de amarelo
de carambolas maduras
que dançavam suavemente,
ao sabor de doce brisa
que amenizava o calor.
Jabuticabas redondas,
abraçadas, bem juntinhas,
cobriam troncos e galhos
aguardando o seu destino.
Bocas gulosas se abriam
e na suculenta explosão
o doce caldo escorria.
As crianças com alegria
lambiam com sofreguidão
as pontas dos dedos melados
e riam, com satisfação.
Ao relembrar com saudade
a casa da minha avó,
sinto cheiros, tenho sonhos,
com aquilo que eu tinha lá.
Queria voltar no tempo,
a tudo poder retornar,
chupar as jabuticabas
e os pássaros escutar.
Foi-se tudo, só lembranças
trazem de volta os primores
que não mais encontro eu cá.
__________________________
SUSSURROS

A brisa
sussurra primaveras
aos meus ouvidos.
Esqueço do outono
e sinto meu corpo
incendiar-se de verão.
Quase não percebo
que o inverno
vem chegando,
de mansinho.
Inexorável.
__________________________
IDA E VOLTA

Um bilhete 
de passagem pelo mundo
recebi.
Agora,
na fila de espera
aguardo a entrega
da minha passagem de volta.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. In...versos. 
Rio de Janeiro/RJ: ZMF, 2015.

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 61 a 64

61 — TIBICUERA, CRIA JUÍZO!

Relendo agora o que escrevi, vejo que minhas aventuras foram uma sucessão de guerras, revoltas, cenas doidas, conspirações, correrias e brutalidade.

Confesso que gostei de tudo isso e que sempre lutei com o maior prazer. Hoje sou um homem civilizado e sereno que não gosta de ver sangue, que não pratica a violência e que procura ter boa vontade, tolerância e compreensão para com o próximo.

Uma coisa que devo dizer. Enquanto eu andava dando tiros como um desesperado nos campos do Paraguai, nas coxilhas do Rio Grande e nos arredores de Montevidéu — havia em outras partes do mundo homens silenciosos e calmos que, metidos em seus laboratórios ou gabinetes, faziam maravilhosas excursões pelo país da Matemática, da Física, da Química, da Astronomia, da Biologia... Enquanto eu empunhava o fuzil eles manejavam o microscópio ou o telescópio. Minha espada cortava para matar; mas o bisturi dos médicos rasgava para salvar. Minha atenção estava concentrada nas máquinas de destruição; mas os homens calmos e silenciosos dos laboratórios estavam inventando máquinas não para destruir mas sim para construir. Em fins do século XVIII, enquanto eu olhava para as estrelas sem saber que fazer com minha vida, Pasteur, químico francês, lutava com os micróbios. Era uma guerra desigual: um homem contra bilhões de inimigos invisíveis a olho nu. Mas esse homem lutou e venceu. Em 1877 eu andava trocando pernas à toa pelas ruas do Rio, ouvindo os discursos dos republicanos e esperando notícias de novas revoltas contra o Império. Pois nesse mesmo ano, nos Estados Unidos, Thomas Alva Edison inventa o fonógrafo.

Voltando aos livros, tive ocasião de ler a vida dos grandes vultos da História: santos, inventores, descobridores, artistas... Tomei nota da data dos inventos e descobertas mais importantes da humanidade. Procurei me lembrar de minha situação nessas datas. O resultado quase sempre me foi desfavorável. É verdade que defendi muita causa justa, estive muitas vezes do lado do que era bom e decente. Mas devo confessar que estudando o quadro que aparece no capítulo seguinte, achei no fim um grande saldo contra mim.

E resolvi tomar juízo.

62 – PARALELO ENTRE OS GRANDES INVENTOS E MINHAS AVENTURAS

1439 – 1450
Johannes Gutemberg, na Alemanha, inventa a imprensa. 

Não tinha nascido, mas seus avós já corriam por Pindorama, caçando, pescando, dançando, guerreando e comendo  os inimigos.

1560 – 1603
William Gilbert,  na Inglaterra, descobre  o fenômeno elétrico.

Explode o último reduto dos invasores franceses no Rio de Janeiro (1560).  
Até 1603:  mistério da vida do herói.

1621
Lord Dudley, na Inglaterra, inventa o forno de ferro.

Nada fez de importante neste ano. Só conhecia o forno de barro.

1630
David Ramseye, na Inglaterra, descobre a maneira de utilizar o vapor.

Guerreia os holandeses como soldado de Matias de Albuquerque. Não tem  a menor ideia de existência  do vapor.

1643
Torricelli, na  Itália, inventa o barômetro.

Cuida  dos cavalos de Nassau. Só conhece dois barômetros: os burros e seus cabelos  (dele, herói).  Quando os primeiros se espojam no chão e os segundos se  eriçam,  a chuva é certa.

1709
Fahrenheit, em Dantzig, inventa o termômetro.

Toma parte em várias bandeiras. Época das explorações e das conquistas.  A invenção do termômetro é muito oportuna.

1725
William Ged, na Escócia, inventa a estereotipia.

Este ano nada faz que se aproveite. Não tem notícia da existência da Escócia e muito menos do inventor Ged.

1752
Benjamin Franklin, nos Estados Unidos, inventa o para-raios

Um jequitibá da floresta, derrubado por um raio. Chegaste tarde, Benjamin!

1762
James Watt, na Escócia, inventa a máquina a vapor.

Os espanhóis jogam peteca com a Colônia do Sacramento. Tibicuera não faz absolutamente nada que preste.

1783
Os irmãos Montgolfier, na França, inventaram o balão a gás.

Continua impassível e inútil. Mas tem a glória de ter visto em 1709 as experiências feitas com aeróstato por Frei Bartolomeu de Gusmão, brasileiro nascido  em Santos. 74 anos antes dos Montgolfier, Gusmão  fez subir ao ar uma máquina aerostática!

1785
James Cartwright, na Inglaterra, inventa o tear mecânico.

Sempre a vagabundear. Não acredita em teares, porque ainda não se habituou bem ao uso de roupas...

1786
John Fitch, nos Estados Unidos, faz as primeiras experiências com um barco a vapor no Hudson.

Uma viagem de canoa pelo São Francisco. Rema, sua, esfalfa-se. Oh! Se Fitch tivesse chegado dez anos antes!

1787
Oliver Evans,  nos Estados Unidos, inventa um veículo a vapor que pode  ser considerado o tataravô do automóvel.

Entra em  Vila Rica montado num burro e não chama a atenção. Provocaria escândalo se entrasse guiando a  máquina  de Evans... Corre  o mundo.

1794
Eli Whitney,  nos Estados Unidos, inventa um descaroçador de algodão, o “cottongin”.

Trabalha num algodoal e descaroça algodão com as mesmas mãos com que empunhou a espada. Sempre atrasados, esses inventores!

1803
Wise, na Inglaterra, inventa a pena de aço.

Não sabe escrever.  Mas os que sabem escrevem com pena de pato.

1804
Richard Trevithick, na Inglaterra, inventa  a locomotiva  a vapor.

Vida  de Tibicuera. Ele caminhava a pé. Como tudo lhe seria mais fácil se já trafegassem as locomotivas a vapor!

1807
Robert Fulton, nos Estados Unidos, faz experiências com o barco a vapor.  Desta vez com resultados satisfatórios.

Veleiros na Baía de  Guanabara, Tibicuera (sempre vagabundeando!) nem sonha com o  barco  a vapor...

1810
Frederick Koenig, na Alemanha, inventa a máquina impressora de cilindro giratório.

Vê como se imprime um jornal na “Imprensa Régia”. Acha as máquinas maravilhosas. Imaginem se ele visse a de Koenig...

1812
J. B. Ritter, na Alemanha, inventa o acumulador.

Criado de D. João VI. O Brasil pode  ser comparado a um acumulador elétrico que se está preparando para a grande descarga da Independência.

1814
Sir Humphry Davy, na  Inglaterra, inventa  uma lâmpada de segurança para  os mineiros.

Não inventa coisa alguma. Continua a acompanhar D. Carlota em seus passeios.

1816
Brunel, na Inglaterra, inventa a máquina de costura.

Continua  no Paço. Vê as costureiras da Rainha trabalhando ativamente com as  agulhas. Coitadinhas!

1822
P.  Force, nos  Estados Unidos, inventa a  impressão em  cores. 
Charles Babbage, na Inglaterra, inventa a máquina de calcular.

Ouve o “Independência ou Morte!”. E se a máquina de Force já fosse empregada no Brasil, os jornais poderiam dar edições em duas cores: verde e amarelo.

1827
John Walker,  nos Estados Unidos, inventa o fósforo de atrito.

Está entregue de corpo e alma aos livros. Ao saber da nova invenção, lembra-se  do tempo que perdeu a esfregar pauzinhos para conseguir fogo.

1828
William Church, nos Estados Unidos, inventa uma máquina para compor e fundir tipos.

Continua mergulhado  na leitura  e  nem imagina o bem que a invenção de  Church  vai trazer para os livros em geral.

1831
G. J. Guthrie, na Escócia, inventa o clorofórmio.

Foge  do  Rio. (Mais  tarde, durante a Guerra dos Farrapos, vê médicos improvisados fazendo dolorosas operações cirúrgicas  sem anestesia;  o paciente tomava alguns goles de cachaça  para resistir melhor à dor.  O clorofórmio veio resolver  o problema.)

1833 – 1839
J. Nicéphore Niepce inventa (1833)  a fotografia, aperfeiçoada em 1839 por Charles Daguerre,  na França.

Tibicuera caminha para o Sul. De 1835 a 1839  combate as  tropas legalistas  ao lado  dos Farroupilhas.

1843
Charles Thurber,  nos Estados Unidos, inventa a máquina de escrever.

Sempre guerreando nas coxilhas do Sul. Toda  a  gente continua escrevendo  a mão...

1844
Samuel Morse,  nos Estados Unidos, inventa um  aparelho prático  de telegrafia elétrica.

Convalesce dum ferimento,  no hospital  de Caçapava. Quanto serviço o telégrafo  teria prestado  na guerra...  se tivesse  sido inventado  dez anos antes!

1846 
Schonbein, na  Alemanha, inventa  o algodão– pólvora.

Passa este ano no hospício. Mas a verdade é que nenhum daqueles loucos jamais  sonhou com  a possibilidade de transformar  o algodão  em explosivo...

1847
Sobrero, na  Escócia, inventa  a nitroglicerina.

Continua  no hospício. Como os  hóspedes desta  casa gostariam  de brincar  com nitroglicerina!

1851
Page, nos Estados Unidos, inventa a  locomotiva elétrica.

Como soldado do Exército Brasileiro,  luta contra as tropas de Oribe.

1855
Ernest Michaux,  na França, inventa a bicicleta.

Cria galinhas e planta milho, nos arredores  do Rio.  Seus passeios,  à cidade  seriam mais fáceis se ele tivesse uma bicicleta.

1868
A.  Nobel, na  Suécia, inventa  a dinamite.

Luta em Lomas Valentinas. Teria feito o diabo se pudesse  dispor duma dúzia de bombas  de dinamite...

1875
Woodruf, nos  Estados Unidos, inventa a máquina de fazer gelo.

Descansa  da Guerra  do Paraguai. Continua a não fazer nada de excepcional.

1876
Alexandre Graham  Bell, nos  Estados Unidos, inventa o telefone.

Espera  novas oportunidades para aventuras. Mas nota que os tempos  estão mudando.  A notícia  da invenção  do telefone  fá-lo lembrar  os tambores  da taba, meio de comunicação  a distância usado pelos indígenas.

1877
Thomas A. Edison,  nos Estados Unidos, inventa o fonógrafo.

Interessado  na propaganda  da República.

1878
Thomas A. Edison,  nos Estados Unidos, inventa a  lâmpada elétrica.

Continua  a frequentar comícios, ansioso por um motim.

1884 
Ottmar Mergenthaler, nos Estados Unidos, inventa o linotipo.

Escreve  artigos sobre  a abolição. Os artigos  são publicados  em jornais  cuja composição tipográfica  é feita a mão.

1894
O Pe. Roberto Landell  de Moura consegue, com seu rudimentar aparelho, transmitir  e receber,  sem fio, a palavra humana.

Descobre  que não  tem  feito nada  de  útil ultimamente.

1895
W.  C. Roentgen,  na Alemanha descobre  os raios X.

Olha  para  o passado  e resolve  tomar juízo!

Alguns anos mais tarde, a essa lista gloriosa de inventores se juntava um nome brasileiro — o de Santos Dumont, o pioneiro da navegação aérea.

63 — VOLTO DE NOVO AOS LIVROS

Procurei um emprego decente e voltei para a companhia agradável dos livros. Eu dizia cá comigo mesmo: “Temos a República. Vida nova. Gente moça no governo. Agora vamos ter ordem e progresso como diz o lema de nossa bandeira.”

Havia progresso, sim. A população aumentava. Surgiam homens notáveis: estadistas, cientistas, escritores, artistas. Os nossos portos ganhavam movimento. Nossas cidades cresciam. Construíam-se novas estradas de ferro. O comércio prosperava. As redes telegráficas se ramificavam pelo Brasil, como um sistema de vasos sanguíneos. (Como no princípio deste livro eu comparei o formato do nosso País com o de uma perna de porco, a comparação entre as linhas telegráficas aos vasos sanguíneos fica mais exata ainda.)

Estudei Literatura. Aprendi muita coisa interessante. Todos aqueles escritores de que falei a vocês no capítulo intitulado “Eu e os Livros” pertenciam (aprendi) a um período de nossa literatura chamado Classicismo, que foi de 1500 a 1836.

De 1836 a 1875 tivemos o Romantismo. Li os principais autores deste período. Gostaria de dar a vocês o nome de todos e um comentário de suas obras mais notáveis. Mas isto simplesmente não é possível, pois não quero transformar esta narrativa numa enciclopédia de conhecimentos gerais. Não deixarei, entretanto, de citar alguns nomes.

Na poesia tivemos Araújo Porto Alegre, autor do poema Colombo. Castro Alves, um dos maiores poetas da língua portuguesa, autor de Espumas Flutuantes e do Poema dos Escravos. Gonçalves Dias, que escreveu Primeiros Cantos; Segundos Cantos, Terceiros Cantos e Timbiras. Casimiro de Abreu (quem não o conhece?) que nos deixou Primaveras e Canções do Exílio. Fagundes Varela, o homem que concebeu 0 Evangelho nas Selvas. Álvares de Azevedo, autor de A lira dos Vinte Anos.

E os romancistas? Confesso que os adorei. Lendo o Guarani de José de Alencar eu me revi no índio Peri, herói da história. Quando li As Minas de Prata e Iracema, do mesmo autor, senti uma vaga saudade da minha vida de aventuras. Em O Moço Louro e na Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo, encontrei já emoções diferentes. As Memórias dum Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida me proporcionaram algumas horas de leitura agradável. Gostei da Escrava Isaura e de Garimpeiro de Bernardo Guimarães. Devo confessar que chorei lendo Inocência de Alfredo d’Escragnolle Taunay.

Eram estes os romancistas que eu mais admirava.

Tivemos no período do Romantismo nomes ilustres na oratória, nas ciências, no teatro e no jornalismo. Durante a propaganda republicana conheci um poeta estranho e impressionante. Era preso e se chamava Cruz e Souza. Seu livro principal se chama Evocações e Broquéis. Morreu nove anos depois da proclamação da República.

Um conselho: Procurem ler um bom compêndio de Literatura. Porque eu vou voltar agora às minhas aventuras. Mas... merecerão o nome de “aventuras” os episódios sem graça da minha vida nova?

64 — NUVENS NO CÉU DA REPÚBLICA

Tudo parecia deslizar suavemente no melhor dos mundos, quando um dia espalhou-se pela cidade a notícia de que a esquadra se havia revoltado. Pelo calafrio que me correu pelo corpo, senti que não estava de todo curado do vício da aventura, do amor à ação militar Não me contive. Fui para a rua catar boatos. 

Vou descrever a situação em dois traços. Deodoro estava na Presidência da República; o Mal. Floriano Peixoto na Vice-Presidência. A oposição tinha maioria no Congresso Nacional. A conselho de seu ministro Barão de Lucena, Deodoro manda dissolvê-lo! Agora o levante do “Riachuelo” era um protesto contra esse ato do governo.

Diante da anarquia, o Mal. Deodoro, não querendo provocar a guerra civil, passa o governo ao vice-presidente. Período de agitação. Foram depostos os governadores das Províncias que tinham concordado com o movimento revolucionário iniciado pela esquadra. Protestos. Motins. Debates. Mas Floriano Peixoto se mantém. 

No Rio Grande dois partidos políticos disputam o poder: Republicanos e Federalistas. Em 1893 estoura a revolução. Os dois partidos vão guerrear-se nas coxilhas. Nesse mesmo ano, nova revolta da armada no Rio, comandada pelo Cel. Alm. Custódio de Melo. Roncou o canhão. Os navios atiravam. As fortalezas respondiam. Duelo tremendo. Tremiam as vidraças das janelas das casas mais próximas do mar. Tremiam minhas vísceras. De medo ou de vontade de brigar? Os revoltosos do mar se correspondem com os revoltosos de terra, no sul do País. O governo corre perigo. Mas Floriano Peixoto arma uma esquadra e faz os rebeldes abandonarem suas posições. Chamaram-na “esquadra de papelão”... 

Aproxima-se o fim do período governamental. Faz-se a eleição do novo presidente. E a todas essas acontecia uma coisa assombrosa: eu me mantinha recolhido no meu canto, apegado aos meus livros. Tinha no meu quarto retratos de Edison, Pasteur, Newton. Estava resolvido a abandonar definitivamente a carreira das armas.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937. 

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Trova 295 - Jerson Brito (Porto Velho/RO)

Fonte: Facebook (Bonde Trova)

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) I

BALADA DA NEVE

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine

“A Vicente Arnoso”

Batem leve, levemente
Como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim...

É talvez a ventania;
Mas há pouco, há pouquinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...

Quem bate assim levemente
Com tão estranha leveza
Que mal se ouve, mal se sente?...
Não é chuva, nem é gente,
Nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
Do azul cinzento do céu
Branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e quando passa
Os passos imprime e traça
Na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
Da pobre gente que avança
E noto, por entre os mais,
Os traços miniaturais
Duns pezinhos de criança...

E descalços, doloridos...
A neve deixa inda vê-los
Primeiro bem definidos,
-Depois em sulcos compridos,
Porque não podia ergue-los!...

Que quem já é pecador
Sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
Porque lhes dás tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza
Uma funda turvação
Entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza...
– E cai no meu coração.

TOADA PARA AS MÃES ACALENTAREM OS FILHOS

“À Bertha Cayolla Gil Vianna”, minha sobrinha

Oh Desgraça! vai-te embora,
Que esta linda criancinha
Andou no meu ventre e agora
Trago-a nos braços. É minha!...

Do berço, segue-me os passos;
Onde eu vou, seus olhos vão...
E quando a aperto nos braços
-Abraço o meu coração.

Quando o seu choro receio,
Embalo-a, faço que aceite
A alegria do meu seio
Na brancura do meu leite...

E quando assim não descansa,
Que tristezas me consomem!
– Mas antes chore em criança
Que depois, quando for homem...

Se ao da-lo ao mundo sofri
Tormentos, ânsias mortais,
Desgraça, vai-te d'aqui,
O que pretendes tu mais?!

Bate as asas, mas ao voares,
Não me apagues esta estrela.
Se alguém d'aqui precisares,
– Aqui me tens, em vez dela!

Tocam ás ave-marias.
Foi-se o sol. Não vem a lua.
Luzinha que me alumias,
Que sorte será a tua?...

Riquezas tenhas tão grandes,
E tal bondade também,
Que ao redor d'onde tu andes
Não fique pobre ninguém.

Que a todos chegue a ventura:
Toda a boca tenha pão,
Toda a nudez cobertura,
Toda a dor, consolação...

Mas se o ouro é mau caminho,
– Antes tu venhas a ser
O pobre mais pobrezinho
De quantos pobres houver.

Iremos por esses montes
Altos e azuis, como os céus...
Que onde há frutos e onde há fontes,
– Está a mesa de Deus!

E, quando a neve cair
E as seivas adormecerem,
Iremos então pedir...
(Aceitar o que nos derem!)

Andaremos á mercê
Dos gênios bons, e dos falsos,
Léguas e léguas a pé,
Rotinhos, magros, descalços...

E onde houver urzes e tojos*,
Pedras que rasgam a pele,
Porei o corpo de rojos**
– Passarás por cima dele!

Dorme, dorme, meu menino,
Foi-se o sol. Nasceu a lua.
Qual será o teu destino?
Que sorte será a tua?...

Se um crime tens de fazer,
Antes fique vago um trono,
Antes um palácio a arder,
– Do que uma enxada sem dono...

Se, porém, no teu destino,
Há tão cruentos sinais,
Dorme, dorme, meu menino,
– Não tornes a acordar mais!
______________________________
NOTA:
* Urzes e Tojos = tipos de arbustos
** Rojos = de rastos
___________________

O PASSEIO DE SANTO ANTÔNIO
“A Columbano”

     La fleur des traditions nationales est flétrie. Mais libre a tous
     de puiser, dans l'herbier cosmopolite des legendes, les admirables
     pretextes à fiction qu'il recèle.
    (Litterature à Tout á L'Heure.)

Saíra Santo Antônio do convento,
A dar o seu passeio acostumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando...

E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo...

O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica d'água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,*
Ele trazia... o coração no peito.

Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O menino, porém, ouviu e disse:
– Oh Frei Antônio, o que foi aquilo?...

O santo, erguendo a manga de burel**
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
– Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada...

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou com timbres d'ouro no caminho.
– Ouviste, Frei Antônio? Ouviste agora?
– Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho...

– Tu não estás com a cabeça boa...
Um passarinho a cantar assim!...
E o pobre Santo Antônio de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
– Se o Menino Jesus pergunta mais,
...Queixo-me á sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: Jesus,
São horas... -E abalaram pro convento.
________________
Nota:
* Cantarinha: espécie de cântaro bastante bojudo e com boca de grande diâmetro.
** Burel: tecido grosseiro de lã, geralmente pardo, marrom ou preto, usado na vestimenta de alguns religiosos.

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. Lisboa: A Lanterna, 1909

terça-feira, 24 de abril de 2018

Nemésio Prata (Reflexões sobre a vida...)


Arnaldo Forte (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 2) I

A VIDA É UMA VALSA...

Naquela valsa que dançamos, lenta e linda,
Num baile onde, ao acaso, um dia te encontrei,
Sem qu'rer, fiz-te chorar. Eu lembro-me ainda!
Foi toda a minha vida... a valsa que dancei!

Senti a tua alma entrar dentro da minha;
E ouvi teu coração falar muito baixinho.
E ainda pressenti que a tua alma tinha
Anseios de contar soluços de carinho.

Sentindo as tuas mãos nas minhas a queimar,
Eu disse-te orações... e ouvi-te murmurar
Palavras que de cor meu peito diz ainda!

Vejo-te assim; juntinha a mim, d'olhos fechados...
Eu sinto que nós dois andamos abraçados,
Dançando devagar, aquela valsa linda!

FRIA

Qu'importa o teu olhar seja tão lindo,
E tenha a cor da luz que tem o dia?
Qu'importa o teu sorriso doce, infindo,
Se és fria, como a pedra, fria, fria!

Qu'importa esse teu corpo, se não sente!?
A alvura do teu colo sempre a arfar,
Se não tem o calor que dá á gente,
A força p'ra viver e para amar?!

Amor, no teu olhar eu tenho lido aos poucos,
Anseios esquisitos, sonhos loucos...
E és fria como a lousa em cemitério!

Envolta nesse manto de Beleza,
Quando olho dos teus olhos a frieza,
Eu quedo-me a cismar nesse mistério!

TEUS OLHOS FALAM MÁGOAS...

Os teus olhos magoados dizem tanto!
Aos meus olhos, sem qu'rer, têm contado
As mágoas, os sorrisos, mais o pranto,
Que teus olhos magoados tem chorado.

Teus olhos magoados vão no berço
Do meu peito, e dormem de mansinho.
Teus olhos,-Padre-Nossos– são d'um terço,
Contas d'Amor, que eu rezo tão baixinho...

Teus olhos magoados são dois beijos.
São promessas, sonhos, são desejos...
E eu trago os olhos teus no coração.

São a luz da minh'alma entristecida;
Teus olhos magoados são a Vida,
E o sol da minha vida também são!

VIOLETAS ROXAS

Inda tenho as florzinhas inquietas,
Que beijaram teus seios pequeninos,
Através d'essas rendas indiscretas,
Sob entremeios brancos e tão finos!

Flor's que dos teus lábios coralinos
Ouviram confidências tão secretas,
E que teus dedos brancos, peregrinos,
Deitaram fora... Pobres Violetas!

Perdidas pela sala e desatadas,
Encontrei-as, as pobres, requeimadas,
Ainda cheias desse teu encanto!

Mas lá 'stão inquietas e viçosas,
As que olharam teus seios vergonhosas...
Reviveram nas águas do meu pranto.

A MINHA ALMA JÁ MORREU...

Eu não te disse, Amor? Minh'alma já morreu
Cansada de esperar teus olhos num anseio!
Cansada de rezar baixinho o nome teu.
A noite era tão linda! E o teu olhar não veio!

E o teu olhar não trouxe a sombra dum carinho
Á minha pobre alma exausta de sofrer!
Luar! Tanto Luar havia no caminho...
E a luz do teu olhar não quis vê-la morrer!

O teu olhar matou-a! E não quiseste vir
Trazer-lhe uma grinalda branca do teu rir.
Ao menos murmurar baixinho uma oração!

Amor, sempre julguei que as tuas mãos pequenas,
Branquinhas como duas açucenas,
Viessem ajeitar minh'alma no caixão!

VENDIDA

Vendeste a tua boca, aquela que beijara
Purinha e a sorrir, meus versos a chorar.
Vendeste as tuas mãos, febris que eu apertara,
E outr'ora já por mim se ergueram a rezar.

Vendeste o teu olhar, e o corpo airoso e lindo,
Enlevo do meu sonho, a luz do meu viver.
Vendeste o teu sorrir, sorriso doce, infindo...
Que fora para mim alívio de sofrer!

E nem sequer tens pena! És d'el' que te comprou!
Vender's a tua boca, aquela que beijou
Meus versos a chorar por ti n'uma paixão!

És minha? És d'ele? És minha á luz do sentimento!
Tu vives d'este amor. É meu teu pensamento.
És minha! Não vendeste ainda o coração.

UM PECADO

Silhuete do Amor, corpinho d'anfora, esguia!
Olhar sonhando a rir, promessas e desejos.
Brasa a queimar, a arder, acesa á luz do dia...
Boca tão linda... e boca virgem dos meus beijos!

És a esfinge da Graça! O sonho do Noivado!
Uma oração trazida á Terra, pela Virgem!
E és também ainda um misto do Pecado...
A figura do Amor na tela da Vertigem!

Tu sabes quem eu sou; e crê, quando te vejo,
Eu tenho a impressão do que seria um beijo,
Em frente do Senhor, á luz do coração!

Mas tu, sorris, e ris... e eu quedo-me a cismar,
Como seria bela a vida a recordar,
Um longo beijo teu – Pecado, e Oração!

Fonte:
Arnaldo Forte. 13 Sonetos. Lisboa: Edição do Autor, 1921