domingo, 10 de junho de 2018

Malba Tahan (Homens extraordinários)

Na gloriosa cidade de Bagdá — a pérola do Islã — vivia a jovem Arusa, uma menina que, na opinião dos poetas de seu tempo, era mais linda e mais encantadora do que a quarta lua do mês de Ramadã.

    Raras vezes saiu Arusa do grande serralho do pai, onde vivia como prisioneira, vigiada por eunucos impiedosos, de rostos macilentos e olhos empapuçados. Graças, porém, aos bons ofícios de uma velha intrigante — que a pretexto de negociar em véus se metia em todos os haréns — a formosa menina travou relações com um jovem bagdali chamado Chafik e com ele mantinha constante e secreta correspondência.

    O pai de Arusa, na ignorância completa das inclinações amorosas da filha, resolveu dá-la em casamento a um rico cheique chamado Hamed Khamil, homem generoso e nobre, que oferecera pela mão da graciosa menina um dote de vinte camelos e dez mil dinares.

    Quando Arusa foi informada de que o pai, movido por odiosa ambição, pretendia casá-la com outro homem — separando-a para sempre do seu apaixonado Chafik — tamanho desespero a invadiu que chegou a desmaiar. Muitos dias passou fechada em seus aposentos, triste e abatida, sem subir ao terraço em que à tarde galeava as suas graças para encanto de todos os olhares. Com o indispensável auxílio da ardilosa anciã, conseguiu a jovem encontrar-se, em rápida entrevista, com o seu namorado, a quem contou a desventura que os ameaçava se, na verdade, o Gênio da Separação estendesse sobre eles a sua asa negra, partindo-lhes o laço de tão pura afeição.

    Não vale a pena descrever o eloquente desespero do nosso herói bagdali, ao saber que pretendiam atirar a sua Arusa para os braços de um muçulmano rico, velho amigo do cádi e homem cheio de prestígio na corte do califa Harum al-Raschid.

    — Que infeliz que sou! — deplorava o mancebo. — Como poderei arrancar-te impunemente das garras desse homem que tem o ouro e o poder nas mãos?

    — Não te preocupes com a minha sorte — disse-lhe, carinhosamente, a linda menina, procurando consolá-lo. — Nem tudo está perdido. Allah é grande! No dia do meu casamento fugirei da casa de meu marido e juntos iremos para onde ninguém nos possa encontrar.

    Diante de tal promessa, acalmou-se o arrebatado Chafik, vendo desanuviar-se o seu sonho de amor, e esperou o dia em que Arusa deveria desposar o seu invencível rival.

    Alguns meses depois, com inexcedível pompa, realizou-se o brilhante casamento da formosa Arusa com o rico Hamed Khamil. O suntuoso palácio encheu-se de convivas e tão grande foi a concorrência de amigos, parentes e admiradores que a noiva rodeada sempre pelas esposas e companheiras, não encontrou ensejo para a almejada fuga.

    Já bem adiantada ia a noite, quando o último convidado deixou o palácio dos recém-casados. Hamed Khamil tomou delicadamente a esposa pela mão e conduziu-a aos seus luxuosos aposentos; aí, pediu-lhe que erguesse o véu e o deixasse ver, pela primeira vez, o rosto em que as graças se esmeraram em profusos dons.

    Quando Arusa retirou o véu, Hamed Khamil ficou deslumbrado. Não poderia imaginar que a esposa fosse tão linda, tão sedutora. Louvado seja Allah, o Exaltado, que soube reunir tantas graças em dois fúlgidos olhos, tanta beleza e harmonia na curvatura dos lábios rubros!

    Grande, porém, foi a surpresa do rico Khamil, quando notou que Arusa parecia muito triste e dominada por infinito desgosto. E como no peito se lhe acendesse, desde logo, grande paixão pela jovem, ficou apreensivo por vê-la tão acabrunhada e perguntou-lhe:

    — Por que estás tão pesarosa? Não foi por tua vontade que casaste comigo? Vamos, conta-me, ó Flor do Islã, o motivo da mágoa que de tão quentes lágrimas enche os teus lindos olhos!

    Arusa, sem poder já reprimir os seus sentimentos, contou àquele que acabava de ser seu esposo toda a verdade, sobre o seu antigo namoro, e relatou-lhe, minuciosamente, a combinação estranha que fizera com seu apaixonado, para fugir daquela casa, no próprio dia das núpcias.

    — Desgraçadamente, porém — soluçava a jovem — não me foi possível efetuar qualquer plano de fuga e vou, por isso, deixar de cumprir a palavra que dei ao noivo de meu coração.

    — Pelo manto do Profeta! — exclamou o marido. — Não seja isto motivo para tão grande mágoa. Não quero servir de empecilho à realização de teus projetos e não posso obrigar-te a quebrar um juramento. Já que prometeste, vais cumprir fielmente a tua louca promessa!

    E o rico Khamil, com grande serenidade, tomou novamente pela mão a linda esposa, levou-a através de longos corredores até à porta que dava saída para um lanço deserto da rua e disse-lhe, delicadamente:

    — És livre, completamente livre, ó filha de meu tio. Podes partir. Irás para a companhia de teu namorado e com ele poderás ficar o tempo que quiseres. Se algum dia te arrependeres do passo que hoje dás, poderás voltar sem receio para a minha companhia, pois és, pela vontade de Allah, a minha esposa legítima e inspiras-me grande e puro amor!

    A jovem noiva mal podia disfarçar o espanto que a dominava. Custava-lhe acreditar na sinceridade do marido. A princípio julgou que o nobre Khamil estivesse a gracejar. Depressa, porém, se convenceu de que o rico cheique nunca falara tão sério e lhe concedia estranha e inteira liberdade, permitindo que ela fosse, naquela mesma noite, para onde muito bem lhe aprouvesse.

    Depois de agradecer a generosidade do esposo, a apaixonada Arusa partiu, apressada, pela rua escura e silenciosa, no fim da qual ficava a casa do namorado.

    Diz, porém, o velho provérbio árabe, que tem passado de geração em geração, através dos séculos: “A imprudência é irmã do arrependimento”.

    Mal a jovem se havia afastado da casa do marido, foi surpreendida por audacioso ladrão, que, oculto num vão de muro, esperava certamente pelo momento propício a algum ataque.

    — Pelas barbas de Omar! — murmurou o beduíno. — Parece-me que vejo, ali sozinha, uma mulher ricamente trajada! Se não me iludo, ela traz muitas joias! Positivamente estou hoje muito feliz!

    E o salteador, que era um desses terríveis nômades do deserto, surgindo pela frente de Arusa, intimou-a a parar imediatamente,  e ameaçando-a  com um punhal, ia despojá-la das ricas joias de noivado quando notou que a mulher que assaltava era uma encantadora menina, linda como uma das quarenta mil huris que povoam o Céu de Allah!

    — Que ventura a minha — pensou o ousado beduíno. — Encontrar uma formosa donzela coberta de preciosos adornos! Vou raptá-la e levá-la sem perda de tempo para a minha tenda no deserto.

    Veio-lhe, entretanto, o desejo de saber por que motivo se encontrava aquela deidade perdida em hora tão tardia, a caminhar sozinha pelas ruas mais perigosas da cidade.

    Interrogada pelo facínora, a jovem contou-lhe o que havia ocorrido, o seu plano de fuga, o seu desespero, repetindo-lhe finalmente as palavras de seu generoso marido.

    — Por Allah! — exclamou o ladrão — posso garantir que o teu marido é um homem extraordinário! Não é possível admitir-se que haja no mundo outro filho de Adão capaz de proceder do mesmo modo na noite do casamento!

    Depois de pequena pausa, o beduíno ajuntou:

    — Eu, porém, quero provar, de modo expressivo, que sou um homem mais extraordinário ainda do que o teu espantoso marido. Sabes por que? Poderia, neste momento, entregue e abandonada, como estás, ao meu capricho, poderia, repito, despojar-te de tuas riquíssimas joias e raptar-te, levando-te para a minha tenda. Tal, porém, não será a minha forma de proceder. Ao contrário. Vou conduzir-te, com toda segurança, até a casa de teu namorado. Não quero que continues sozinha o teu percurso, pois algum sacripanta ou aventureiro sem alma poderia fazer-te grande mal!

    E, isto dizendo, o ladrão acompanhou a jovem até à casa de Chafik, e só se afastou depois de a ter visto entrar na residência do namorado.

    Seria difícil, senão impossível, descrever todas as mostras de alegria, todo o arrebatamento do apaixonado Chafik ao ver chegar a sua amada, em exato cumprimento de tão bela promessa de amor.

    — Louvado seja Allah, o Clemente! — exclamou, abraçando a jovem. — Conseguiste, enfim, iludir o teu ciumento marido? Conta-me tudo o que se passou, pois estou ansioso por conhecer as peripécias de tua fuga!

    — Muito te enganas, ó Chafik — retorquiu a jovem. — Não iludi meu marido e não seria possível ludibriar um homem tão generoso e inteligente. Se aqui vim ter a esta hora, foi unicamente porque ele próprio assim o quis!

    E a encantadora Arusa relatou ao namorado tudo o que se passara, repetindo-lhe fielmente as palavras do marido, e narrando-lhe também, sem nada ocultar, a singular aventura ocorrida com o beduíno ladrão que a surpreendera sozinha em rua deserta e escura.

    — Quero crer, minha querida, que o teu marido é um homem extraordinário — confessou Chafik. — Estou certo de que não haverá no mundo de Allah outro marido que proceda como ele procedeu! É evidente, porém, que o ladrão que encontraste casualmente no caminho é ainda mais extraordinário do que o teu marido! Quero, entretanto, provar que sou um homem mil vezes mais extraordinário do que ambos!

    E, como a jovem o fitasse surpreendida, sem compreender o sentido de tais palavras, Chafik prosseguiu:

    — Bem sabes quanto te amo. Bem conheces a ansiedade com que, há mais de dois anos, eu contava os dias à espera deste dia venturoso! Bem podes avaliar o meu tormento, vendo-te casada com outro! Pois bem: apesar de tudo, vou levar-te, agora mesmo, à casa de teu marido e entregar-te àquele meu odiento rival!

    E isto dizendo, tomou-a nos braços fortes e, carregando-a como a uma criança, encaminhou-se pela rua extensa que ia ter ao palácio do rico cheique Hamed Khamil...

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

Caldeirão Poético 7


Meus oito anos

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino de amor!

Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado de estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!


O Remédio

A Amelinha está doente, 
Chora, tem febre, delira; 
Em casa, está toda gente 
Aflita, e geme, e suspira. 

Chega o médico e a examina. 
Tocando a fronte abrasada, 
E o pulso da pequenina, 
Diz alegre: “Não é nada! 

Vou lhe dar uma receita. 
Amanhã, o mais tardar, 
Já de saúde perfeita 
Há de sorrir e brincar.” 

Vem o remédio. Amelinha 
grita, faz manha, esperneia: 
– “Não quero!” O pai se avizinha, 
Mostrando-lhe a colher cheia: 

“Toma o remédio, querida! 
Dar-te-hei como recompensa, 
uma boneca vestida 
De seda e rendas, imensa…” 

– “Não quero!” Chega a titia: 
“Amélia é boa, não é? 
Se fosse boa, teria 
Toda uma arca de Noé…” 

– “Não quero!” Prometem tudo: 
Livros de figuras cheios, 
Um vestido de veludo, 
Brinquedos, jóias, passeios… 

Teima Amelinha. faz manha. 
E diz o pai, já com tédio: 
-” Menina! você apanha, 
Se não toma este remédio!” 

E nada! a menina grita, 
Sem querer obedecer. 
Mas nisto, a mamãe aflita, 
Põe-se a chorar e gemer. 

Logo Amelinha, calada, 
Mansa, a colher segurando, 
Sem já se queixar de nada, 
Vai o remédio tomando. 

– “Então? mau gosto sentiste?” 
Diz o pai… E ela, apressada: 
– “Para não ver mamãe triste, 
Não sinto mau gosto em nada!”


A Órfã na Costura

Ela lhe ensinou a levantar suas mãos puras  e inocentes para o céu, a dirigir seus primeiros  olhares a seu Criador. 
Flechier

Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era todo o meu amor. 
Seu cabelo era tão louro, 
Que nem uma fita de ouro 
Tinha tamanho esplendor.

Suas madeixas lúcidas 
Lhe caíam tão compridas, 
Que vinham-lhe os pés beijar. 
Quando ouvia as minhas queixas, 
Em suas áureas madeixas 
Ela vinha me embrulhar.

Também quando toda fria 
A minha alma estremecia, 
Quando ausente estava o sol, 
Os seus cabelos compridos, 
Como fios aquecidos, 
Serviam-me de lençol.

Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era todo o meu amor. 
Seus olhos eram suaves, 
Como o gorjeio das aves 
Sobre a choça do pastor.

Minha mãe era mui bela, 
— Eu me lembro tanto dela, 
De tudo quanto era seu! 
Tenho em meu peito guardadas 
Suas palavras sagradas 
Co'os risos que ela me deu.

Os meus passos vacilantes 
Foram por largos instantes, 
Ensinados pêlos seus. 
Os meus lábios mudos, quedos 
Abertos pêlos seus dedos, 
Pronunciaram-me: — Deus!

Mais tarde — quando acordava 
Quando a aurora despontava, 
Erguia-me sua mão. 
Falando pela voz dela, 
Eu repetia singela 
Uma formosa oração.

Minha mãe era mui bela, 
— Eu me lembro tanto dela, 
De tudo quanto era seu l 
Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era tudo e tudo meu.

Este pontos que eu imprimo, 
Estas quadrinhas que eu rimo, 
Foi ela que me ensinou. 
As vozes que eu pronuncio, 
Os cantos que eu balbucio, 
Foi ela quem mos formou.

Minha mãe'. — diz-me esta vida, 
Diz-me também esta lida, 
Este retroz, esta lã. 
Minha mãe! — diz-me este canto, 
Minha mãel — diz-me este pranto, 
— Tudo me diz: — minha mãe! —

Minha mãe era mui bela, 
— Eu me lembro tanto dela, 
De tudo quanto era seu! 
Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era tudo e tudo meu

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Trova 304 - Cipriano F. Gomes (São Paulo)

Trova obtida no Facebook (Meus Irmãos Trovadores)

Faustino da Fonseca Junior (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 4) III


TEMPESTADE E BONANÇA

Soprava rijamente o vento Norte
E caía um terrível aguaceiro;
Enorme escuridão, lembrava a morte...
Mas não descria o rude marinheiro!

Rugia o mar e ao sofrer o corte
Da proa revoltava-se altaneiro,
Varria o tombadilho. Sempre forte
Ia o vapor correndo audaz, ligeiro.

Ecoava o trovão. Mas de repente
Ao vendaval sucede-se a bonança,
O nevoeiro esvai-se lentamente,

A chuva para, o oceano amansa;
O sol mostra seu disco reluzente,
Nos rostos pairam os sorrires d'esp'rança.

AS ESTRELAS

Da minha alegre janela
Vejo uma nesga do céu;
É noite serena, bela,
Espaireço o olhar meu,

A contemplar as estrelas
Que cintilam diamantinas,
Recorda-me sempre ao vê-las
Tuas graças peregrinas.

Que queres, pois se te não vejo,
Como outrora, na varanda
Trocando frases amantes?

Por isso mando-te um beijo
Na briza suave, branda,
Fitando os astros brilhantes.

CEMITÉRIO

No cemitério alvejam mausoléus
De pedras rendilhadas e custosas;
Elegantes, guindados coruchos;
Epitáfios, legendas caprichosas.

Ali jazem os ricos. Nas pomposas
Inscrições se vai ler os nomes seus.
Em outras campas só se veem rosas,
Goivos, martírios, contemplando os céus.

A jazida dos pobres. Trabalhando
Morreram e ali estão alimentando
A terra onde essas flores se vão nutrir.

Em quanto os outros distraídos, fúteis,
Viveram ociosos, sempre inúteis,
E nem sequer d'estrume vão servir!

A PROSTITUTA

A rua é miserável, suja, estreita,
Como um terrível antro criminoso,
E duma porta a prostituta espreita
O transeunte lubrico, cioso.

É repelente, quanto mais enfeita
O cabelo postiço e untuoso.
Teve ilusões, quem sabe, hoje desfeita,
A graça desse rosto alvar oleoso,

Veio cair naquele lodaçal
Onde se espoja torpe, embriagada,
Até ir decompor-se no hospital

Se o amante que tem a desgraçada
Não lhe der caridoso, bestial,
O descanso pra sempre á navalhada.

AMOROSO

Eu amo-te, amo-te tanto
Talvez não saibas o quanto
Meu coração fazes pulsar;
Talvez não saibas, ó linda,
Como a tua graça infinda
Me faz viver para amar.

Amo-te a face formosa,
Amo-te a boca de rosa,
Amo-te o negro cabelo,
Amo-te o gesto mavioso,
O sorrir casto e bondoso,
O olhar gracioso e belo.

Adoro-te a singeleza
Que é engaste da beleza,
Amo-te o lindo rubor
Com que te purpurizaste,
Quando tremula escutaste
As juras do nosso amor.

Encontrei-te, o meu coração
Satisfez a aspiração
E tenho um novo viver.
Acho mais belos os prados,
Os tons do sol mais dourados,
Em tudo o amor julgo ver.

Oh! se o teu amor assim
For tão ardente por mim,
Não haverá nada igual
Á pura felicidade
Dos dias da mocidade,
Ao meu risonho ideal.

A CARIDADE

I

Caridade, quem és! Quem te inventou?
Para que serves, quais os meios teus,
A tua agencia, assim, quem t'a arranjou,
Para que vens falar-nos sempre em Deus!

Em Deus! Quando o universo ele criou
Legou a alguém riquezas ou troféus!
Quais foram os brasões, que bens doou?
Venderia indulgencias lá dos ceos?

Mentes, que nunca fez separações,
Nem fez a fome nem as privações,
O mundo concedeu á humanidade.

Mas como é que ha então ricos e pobres?
Como é que existem os plebeus e os nobres?
Que significas pois, ó caridade?

II

Rebanhos a pastarem nas campinas,
As aves a cruzarem-se no ar,
O serpear das águas argentinas,
Os frutos a dourarem no pomar;

A pureza das auras matutinas,
Os dias que o bom sol nos vem dourar,
As flores acetinadas, purpurinas,
As poéticas noites de luar;

Os campos no sorrir da primavera,
A selva, as fragas onde vive a fera,
O universo em toda a imensidade,

Nunca foi concedido por herança.
Era pra humanidade a esperança
De um dia conquistar a felicidade.

III

Os maus, porém, puderam com presteza
Empolgar o que a todos pertencia.
O sangue era direito a uns -Nobreza -
E aos d'hoje o dinheiro - A burguesia - 

E foi assim que os bens da natureza,
Que o criador a todos concedia,
Se viram disputados com fereza,
Se viram empolgar com ousadia.

E apareceu a fome. Então aos pobres
Os ricos atirando com uns cobres
Inventaram um Deus de caridade.

Mas haverem lutar, embora custe,
Depor de todo a Caridade-embuste.
Hastear a bandeira da Igualdade!

Fonte:
Faustino da Fonseca Júnior. Lyra da mocidade Primeiros versos. 
Angra do Heroísmo/Portugal, 1892

Nilto Maciel (As Pontas da Estrela)

Os bêbados de Palma ainda diziam besteiras em torno do parto feliz e inesperado da Beata, quando no bar de Pedro Mateiro entrou, correndo, a figura agitada e esvoaçante de Bemtevi, suado e assustado.

– Que aconteceu, homem de Deus? Alguma desgraça?

– Diga logo: caiu alguma igreja?

O novidadeiro encostou-se na parede, acocorou-se e sentou-se no chão sujo de cusparadas e cinzas de cigarro. Deu três suspiros e se disse curado da carreira. Abriu a boca para contar as esperanças dos outros. Nenhuma palavra disse, como a deixar que as badaladas da meia-noite penetrassem no seu assombro. Os grandes relógios das igrejas e os cucos dos sobrados mais uma vez se confundiam na babel do tempo.

Nem bem o alto-falante irradiou o cântico da ave-maria, o sol aquela poça de sangue medonha em cima da serra, a notícia do parto da Beata encheu de luto as ladeiras de Palma. Depois, um ventinho frio inundou o ar de pedaços de bilhetes comprometedores, cartas amorosas e outras fúteis anotações, a anunciar a Pedro Mateiro mais uma rodada.

– O menino nasceu...

– De novo?

As garrafas gargalharam nas prateleiras e o polvo de Palma despertou, com seus mil braços a agitarem-se nas janelas.

– Nasceu com uma ...

– Cabeça?

– Não, uma estrela.

Pedro saltou o balcão e se uniu aos bêbados. E todos beberam e pediram cigarros a Pedro. Bem perto e bem longe do bar, janelas e portas se abriram, de repente. Alvoroçavam-se as ruelas de Palma, escura e misteriosa.

– Deixe de doidice, rapaz.

– É verdade, uma estrela bem na testa.

Nenhuma mentira durava mais de um dia na cidade e o padre toda madrugada gritava endemoninhado contra os luxuriosos e levantadores de falso. As velhinhas tremiam sobre os sofridos joelhos e desmaiavam.

Não podia ser. Explicasse a coisa direito. Quem já tinha visto nascer uma pessoa com uma estrela na testa?

– Dizem que é uma estrela de cinco pontas.

– E é ruim?

Como podia saber uma coisa daquelas? Por acaso se chamava Camões ou Cego Aderaldo? Além do mais, não tinha certeza do número exato de pontas. Uns falavam em cinco, outros em seis.

A cada palavra, mais se complicava o narrador. Quiseram saber então qual a pior das estrelas, se a de cinco ou a de seis pontas.

Também isso não sabia explicar Bemtevi. Além do mais, a cada hora nascia mais uma ponta. Sim, pela última informação, já eram dez.

– O que será isso, meu Deus?

– Não sei. Só sei que, quanto mais se contam as pontas, mais elas são.

Abandonaram os copos os bebedores, persignaram-se todos e, ajoelhados, rezaram aos pés do balcão.

– Maldição!

– Obra do Capiroto.

Na calçada, Bicudo dormia desde a boca da noite. A primeira notícia abateu-se sobre sua embriaguez como uma marretada: mais duas talagadas e a baba escorreu e os olhos se cerraram. De novo tombou sobre si mesmo, a maldizer-se. A meia-noite despertou-o do sonho de amor. E ouviu estrelas e retomou o fio perdido da meada.

– É o filho de Efigênia?

– E do gringo.

– Podia ser do padre, do padre podia ser. Ou do sacristão, de algum cristão. Ou era filho do cão?

– Homem, não diga isso.

Lembraram-se do fenômeno da estrela na testa. Como podia ser essa tal estrela? Cheia de pontas, brilhante, rosário de contas, cintilante?

Um dedo apontou para o Cruzeiro do Sul e todos os olhos bêbados dançaram no céu estrelado.

– Amarela?

Não se sabia bem a cor. Falou-se primeiro na cor do ouro. Outras cores do arco-íris, porém, já andavam de boca em boca.

– Então não é uma estrela.

Quem ali sabia os mistérios do céu?

– É muito pequena?

– Do tamanho de uma testinha?

Se nada sabia Bemtevi, por que jurava ser uma estrela aquilo que podia ser uma lágrima, talvez um pingo d’água, insignificante grão de areia? Deixasse então de mistérios, ou não dissesse mais nada.

E Bicudo propôs fossem ver o menino.

Não podiam. A casa permanecia fechada a quatro chaves. Do lado de dentro, só a Beata e a parteira, e o menino com sua estrela.

Pedro coçou a cabeça, contou seus bêbados e olhou para a rua por cada uma das portas.

– Você viu o menino?

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Trova 303 - Jorge Fregadolli (Maringá/PR)


Gislaine Canales (Glosas Diversas) 5


VIVE O SONHO

MOTE:
Se a vida é sonho fugaz,
vive o sonho bem vivido,
que o remorso vem atrás
de cada instante perdido.
Carolina Ramos

GLOSA:
Se a vida é sonho fugaz,
vive e sonha essa alegria,
inventa outro sonho e faz
mais feliz teu dia-a-dia!

Ao romper de cada aurora,
vive o sonho bem vivido,
não lamentes teu outrora...
que ele não volta, é sabido!

Sonhando, tu saberás
que, viver bem, é preciso,
que o remorso vem atrás
de um só momento indeciso!

E colhe os frutos da estrada,
volta, mesmo sem ter ido,
pra não te sentir culpada
de cada instante perdido.
_________________________

VELHINHO SORTUDO

MOTE:
A cabecinha de prata,
do velhinho quedo e mudo,
de amores de longa data
no seu silêncio diz tudo.
Alceu Gouveia

GLOSA:
A cabecinha de prata,
de um prateado tão bonito,
parece que nos relata
seus anseios de infinito!

No pensamento reluz,
do velhinho quedo e mudo,
a mocidade, que em luz,
ele relembra a miúdo.

E essa lembrança desata
as mil histórias sem fim
de amores de longa data
que um dia viveu, enfim...

E num sorriso matreiro
esse velhinho sortudo
sem falar, segue faceiro...
no seu silêncio diz tudo.
_______________________________

BATEU-ME À PORTA

MOTE:
Ternura bateu-me à porta,
com simplicidade entrou
e aquela ilusão já morta,
aos poucos, ressuscitou!
Beatriz Castro

GLOSA:
Ternura bateu-me à porta,
com grande delicadeza...
A ternura nos conforta,
põe fim a nossa tristeza!

Ao ver a porta se abrindo
com simplicidade entrou.
Na taça do amor, eu brindo,
e acariciá-la, então, vou.

Muito amor ela transporta
recarregando a emoção,
e aquela ilusão já morta,
revive no coração!

Nos sonhos que dormitavam,
em silêncio se instalou,
e um por um, dos que lá estavam,
aos poucos, ressuscitou!
___________________________________

CASCALHOS

MOTE:
Pisei cascalhos e espinhos...
mas firme, em minhas andanças,
com as pedras dos caminhos
fiz castelos de esperanças.
Edmar Japiassú Maia

GLOSA:
Pisei cascalhos e espinhos...
vi sangrarem os meus pés
seguindo nos descaminhos,
transpondo triste revés...

Continuei minha jornada,
mas firme, em minhas andanças
procurei encher meu nada
com minhas simples lembranças!

Lapidei com meus carinhos,
o que antes era cascalho,
com as pedras dos caminhos
eu construí meu atalho!

Segui, adiante... risonho...
E renovando as alianças,
para a prisão do meu sonho
fiz castelos de esperanças.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas VI. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. 
http://www.portalcen.org. abril de 2003.