quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 5) IV


Cavatina
(Palavras ditas entre bastidores a uma corista)

Tenho ideias confusas e geladas
Sobre a escala do amor onde resplende
Lá,  nesse vivo sol, que mais se acende
Ralentando as promessas calculadas.

A gama dos suspiros não atende,
É de mau tom possuir lindas manadas
Diamantes, que se afinam nas ciladas
Das pausas, que o desejo não entende.

Algumas joias quis com ar guapo
E a compasso dos negros agiotas
Outras requer num pródigo – da capo.

Morre-se – diz o adágio – d'alegria
Portanto se eu pagasse em boas  notas
Expirávamos ambos d'harmonia.

No Teatro Anatômico

Sobre a mesa de mármore luxuosa
Descana cintilante formosura
D'uma criança esbelta, uma pintura,
Que parece dormir silenciosa.

As alvas romãs, que a virtude esposa
São como alegre ninho de candura;
Tão fresca, tão sentida e melindrosa,
Causa pena entrega-la á sepultura.

Os estudantes em pródiga algarvia
Retalhando o cadáver delicado
Jogam chufas de sórdida alegria.

Mais tarde o esqueleto dissecado
Assiste ás preleções d'anatomia
À escuta com ar petrificado.

Epitáfio

Meu coração aqui jaz, erma ruína
Onde habita a ironia, o vil fantasma
Golfão anacoreta entre o miasma
Perseguido pela brisa cristalina.

O lírio, o trevo ri junto á bonina,
Só de raiva a minha alma abdica, pasma
Porque a tristeza famulenta traz-ma
Nas duras garras d'ave de rapina.

Meu coração aqui, sob esta alfombra
Dos pálidos desdéns, justos ciúmes
Adora morto e frio a tua sombra.

Até que emfim - oh céus!- os meus queixumes
Te despertam o choro, que me assombra
Envolvendo o cadáver em perfumes!

Aquarela

Acorda a sombra tácita do lago,
Do rouxinol a cândida volata;
A lua em chispas tremulas de prata
Imprime ao lesto amor um tom presago.

O vento raro e brando com afago
O tredo esquife languido arrebata
E o transporta sutil, como um pirata,
Dando asas ao terror ignoto, vago.

Suspira na floresta a morna aragem,
As 'strellas trocam beijos delirantes,
Que mais excitam castelã e pajem,

Eis brilha uma couraça junto á margem
E a flecha sibilando alguns instantes
Acaba num só golpe os dois amantes.

Testamento

Lego uma trança do cabelo dela
Para atar um cavalo á manjedoura
E as cartas da flácida impostora
Para embrulhar açúcar e canela.

Ao crédulo rival, deixo, leitora,
A licença de entrar pela janela;
Outrossim deixo as ligas e a fivela
Que cingiram a perna encantadora:

Os beijos que me deu ficam comigo
E a memória das noites palpitantes
Há de caber também no meu jazigo.

O seu retrato irá ao lupanar
Pra assistir à luxuria das bacantes
Já que a dona não vai em seu lugar.

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Jardim de Versos II


Orlando Lovecchio
Santos/SP

Soneto da Eletricidade

De tudo, ao meu computador, serei atento,
antes e com tal zelo, e sempre, e de modo tão terno
que mesmo em face de um modelo mais moderno
dele serei sempre o tiete mais sedento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
e em seu louvor hei de pagar as contas da Light
que alimenta seus megabytes
sem nenhum pesar ou descontentamento.

E assim, quando mais tarde, num outro dia,
quem sabe a assistência técnica, angústia de quem vive,
pedir pelo seu conserto uns 800 paus,

eu possa dizer do computador que tive:
Que não seja imortal, posto que é fabricado em Manaus,
mas que seja infinito enquanto dure (a garantia)
_____________________________

Alfredo dos Santos Mendes
Lagos/Portugal

O Dilema

A concepção da vida, é um poema…
Que se compõe, sem nunca se escrever!
É um bailado a dois, que irá fazer,
Um musical de amor…um sonho…um tema!

Um tema transformado num dilema,
Que terão de enfrentar, de resolver!
Mais uma personagem vai haver,
Há que pôr no guião, mais uma cena!

Um corpo de mulher em movimento.
Um cântico de amor. Um nascimento.
Atores desempenhando um novo lema!

Vai ter mais um compasso, a melodia.
Vai ter mais uma estrofe, a poesia.
Mas tem final feliz, este dilema!
_____________________________

Alma Welt
Novo Hamburgo/RS (1972 – 2007)

A Travessia

 "O mundo é um moinho... " (Cartola) 

Todos nós temos corda onde agarrar,
A vida nos dá sempre uma saída
Que nos evite o risco de abismar
No medo natural da própria vida.

Por certo cada um pega o que pode:
Um amor, uma paixão ou mesmo um vício;
Um poema, um soneto ou uma ode,
Um portal com a cruz no frontispício,

Ou então, o que é pior, com um convite
Para entrar mas deixando a Esperança, 
Última paz que o mundo nos permite... 

Mas pra saíres vivo do moinho,
Não como Don Quixote e Sancho Pança,
Terás que atravessar a ti sozinho...
_____________________________

Antônio Manoel Abreu Sardenberg 
São Fidélis/RJ

Alforria

Rompi o elo que me atava a vida,
Dei alforria à falsa liberdade,
Curei a chaga cruel e dolorida,
Joguei no lixo o resto da saudade.

Deixei meus sonhos ao sabor do vento
Vagando solto pelo mundo afora,
Livrei do peito todos os momentos
Que eu guardava comigo até agora.

Livre do laço, então, lanço-me ao léu,
Busco o abrigo que queria tanto,
Não quero mais provar do amargo fel!

Liberto, assim, de todas as correntes,
E já despido do pesado manto,
Busco outro amor sempre seguindo em frente...
_____________________________

Francisca Júlia
Xiririca (atual Eldorado Paulista)/SP (1871 - 1920) São Paulo/SP

Noturno

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.
_____________________________

Henrique do Cerro Azul
Fortaleza/CE

Contraste

Longe de ti, eu te imagino perto:
Vejo esse teu sorriso a todo instante;
Qual se te visse, o coração amante
É um doce ninho ao teu amor aberto.

Perto de ti, te julgo tão distante…
Nem mesmo vejo o teu sorriso incerto;
Com saudade de ti o peito aperto
Relembrando o fulgor do teu semblante.

Também tu és como eu:- os teus sentidos
Se enganam, como os meus, pelos caminhos…
E assim passamos desapercebidos

Do erro de nossos múltiplos carinhos:
- Quanto mais longe tanto mais unidos,
- Quanto mais juntos tanto mais sozinhos !
_____________________________

Maria Helena Oliveira Costa
Ponta Grossa/PR

Os grãos do teu rosário

Tratas da terra e nos provês a mesa,
ó tu, simples e rude brasileiro,
que entregas teu vigor à enorme empresa
de fazer do país um bom celeiro!
.
De mãos calosas e coluna tesa,
pões no roçado teu suor inteiro…
E o teu empenho faz da natureza
um promissor e salutar viveiro!
.
No chão bendito jaz um relicário:
dormem sementes já por ti plantadas!
O dia finda e à oração convida…
.
Rezas, por fim… E os grãos do teu rosário
são como contas bem manuseadas
que têm no bojo uma explosão de vida!
_____________________________

Miguel Russowsky
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

Joia maior!…

Começo por supor, nos ares, o desenho
De um verso magistral procurando agasalho.
Cabe a mim (sou poeta) encontrar um atalho
Para vê-lo nascer nos recursos que tenho.

Com as rimas gentis nas estrofes, me empenho
Em ser original, (Poucas vezes eu falho),
Já nem ouso explicar se é prazer ou trabalho
Exibir ao leitor as farturas do engenho.

O esmeril dá-lhe o brilho e lhe poda as arestas…
Assim é que se faz um soneto bonito,
Para ser declamado em saraus ou em festas.

Ninguém pode dizer o valor de uma joia,
Se polida não foi pela mão do perito.
É na lapidação que a beleza se apoia.
_____________________________

Vicente de Carvalho
Santos/SP (1866 – 1924)

Inteiramente Louco

Senhora minha, pois que tão senhora
Sois, e tão pouco minha, eu bem entendo
Que sorrindo negais quanto, gemendo,
Amor com os olhos rasos d'água implora.

Meu coração, coitado, não ignora
Que num sonho bem vão todo o dispendo
E é sem destino que assim vai correndo
Cansadamente pela vida afora.

Dizeis do meu amor que é coisa absurda,
E ele, teimando, faz ouvido mouco;
Nem há razão que o desvaneça ou aturda.

Não o escutais? Nem ele a vós tampouco.
Que, se sois surda, inteiramente surda,
Amor é louco, inteiramente louco.

Franz Kafka (O exame)


Sou um criado, mas não há trabalho para mim. Sou medroso e não me ponho em evidência; nem sequer me coloco em fila com os outros, mas isto é apenas uma das causas de minha falta de ocupação; também é possível que minha falta de ocupação nada tenha a ver com isso; o mais importante é, em todo caso, que não sou chamado a prestar serviço; outros foram chamados e não fizeram mais gestões que eu, e talvez nem mesmo tenham tido alguma vez o desejo de serem chamados, enquanto que eu o senti, às vezes, muito intensamente. 

Assim permaneço, pois, no catre, no quarto de criados, o olhar fixo nas vigas do teto, durmo, desperto e, em seguida, torno a adormecer. Às vezes cruzo até a taverna onde servem cerveja azeda; algumas vezes por desfastio emborquei um copo, mas depois volto a beber. Gosto de sentar-me ali por que, atrás da pequena janela fechada e sem que ninguém me descubra, posso olhar as janelas de nossa casa. Não se vê grande coisa; sobre a rua, dão, segundo creio, apenas as janelas dos corredores, e além do mais, não daqueles que conduzem aos aposentos dos senhores; é possível também que eu me engane; alguém o sustentou certa vez, sem que eu lhe perguntasse, e a impressão geral da fachada o confirma. Apenas de vez em quando são abertas as janelas, e quando isso acontece, o faz um criado, o qual, então, se inclina também sobre o parapeito para olhar para baixo um instantinho. São, pois, corredores onde não se pode ser surpreendido. Além do mais não conheço esses criados; os que são ocupados permanentemente na parte de cima, dormem em outro lugar; não em meu quarto. 

Uma vez, ao chegar à hospedaria, um hóspede ocupava já o meu posto de observação; não me atrevi a olhar diretamente para onde estava e quis voltar-me na porta para sair em seguida. Mas o hóspede me chamou e, assim, então, percebi que era também um criado ao qual eu tinha visto alguma vez e em alguma parte, embora sem ter falado nunca com ele até aquele dia. 

- Por que queres fugir? Senta-te aqui e bebe. Eu pago. 

Sentei-me, pois. Perguntou-me algo, mas não pude responder-lhe; não compreendia sequer as perguntas. Pelo menos eu disse: 

- Talvez agora te aborreça o fato de ter-me convidado. Vou-me, pois. 

E quis erguer-me. Mas ele estendeu a mão por cima da mesa e me manteve em meu lugar. 

- Fica-te! - disse - Isto era somente um exame. Aquele que não respondesse às perguntas está aprovado no exame.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

I Ciranda de Trovas Usando a Palavra Sono (Participe!!!)


TROVA CLÁSSICA é uma composição poética de quatro versos de 7 silabas, rimando o 1º verso com o 3º e o 2º verso com o 4º rima ABAB. Expressando um pensamento completo.

Participe com 1 ou mais trovas

Enviar para 
Clara da Costa <clarapipa@yahoo.com.br>
António Zumaia <antoniozumaia@gmail.com>


Trovas Enviadas até 17 Setembro 

01. 
O que determina o sono
não é a maciez de uma cama
nem o tempo inverno – outono.
Sua mente é que declama.
Mifori 
São José dos Campos – SP

 02. 
Quase sempre eu me emociono
quando eu sonho com você;
e acordo feliz do sono,
tão feliz! Será por que? 
Amilton Maciel Monteiro 
São José dos Campos – SP

03. 
Ao desafeto abandono
e durmo feliz assim:
pois não vou perder o sono
por quem não gosta de mim.
Edweine Loureiro 
Saitama - Japão

04. 
O sono é suave estrada,
macia como veludo...
que, embora não tenhas nada, 
um sonho te dará tudo!
Carolina Ramos 
Santos – SP

05. 
Pelos laços de família,
que enternece o coração,
é no sono, ou na vigília,
que me vem a inspiração!
Nei Garcez 
Curitiba - PR

06. 
Um anjo vela meu sono
é zeloso e grande amigo;
quando rezo, me emociono
sei que está sempre comigo!
Nadir Giovanelli 
São José dos Campos – SP

07. 
Toda vez que ele se ausenta
o meu sono vai se embora;
nessa noite é só tormenta,
pois a insônia me devora.
Mifori 
São José dos Campos – SP

08. 
Pai! Sou grato pela vida,
conselho e sono velado;
parceiro, bom de corrida,
amigo, sempre ao meu lado!
Nadir Giovanelli 
São José dos Campos – SP

09. 
Esta noite eu tive um sonho
que me deixou assustado,
nele eu era tão medonho,
sem  dinheiro e desprezado!
Amilton Maciel Monteiro 
São José dos Campos – SP

10. 
Quando meu sono é tranquilo,
tenho sonho realizado;
nele não existe “grilo”,
dá pra sonhar acordado!
Glória Tabet Marson 
São José dos Campos – SP

11. 
Mãe! Se tu velas meu sono,
se me abençoas, no adeus,
dou-me ao luxo do abandono:
fico mais perto de Deus!
Myrthes Masiero 
São José dos Campos – SP

12. 
O bom sono é necessário,
pra saúde preservar!
Nunca ninguém foi contrário
essa norma conservar!
Lourice Saliba 
São José dos Campos – SP

13. 
Ao despertar de um bom sono,
eis o elixir da beleza:
na pele nota-se um tono
de maciez e leveza!
Glória Tabet Marson 
São José dos Campos - SP

14. 
Eu durmo um sono tranquilo,
mergulho em bons sonhos meus;
todas mágoas aniquilo,
deito nos braços de Deus!
Myrthes Masiero 
São José dos Campos – SP

15. 
Quando o ciúme se apresenta
todo o sono vai se embora,
mas a insonia se afugenta,
se seu beijo a 'bota' fora.
Irofim 
Mogi das Cruzes - SP

16. 
Eu sei que durante o sono
meu espírito se ausenta.
Ao retorno, me emociono
com lições que me acrescenta.
Ógui Lourenço Mauri 
Catanduva – SP

Fonte: Mifori

domingo, 16 de setembro de 2018

Odenir Follador (195 Anos - Salve Ponta Grossa, Princesa dos Campos Gerais)

(Aniversário da cidade: 15 de setembro)

Salve, salve, oh! Querida Ponta Grossa,
Princesa encantada dos Campos Gerais!
Das verde campinas és a alma nossa.
Brancas asas, o início... esquecer jamais...

De seus prédios e casarões alvissareiros,
das ruas seminuas no entorno da praça.
Onde havia até transporte de passageiros;
a Estação Saudades e a Maria Fumaça!

Havia também outro meio de transporte:
quatro linhas de ônibus no Ponto Azul
que ligava todos os bairros dando suporte,
num irrequieto vai e vem, de Norte a Sul.

E muito próximos, com porte magistral:
a fonte da Praça Barão do Rio Branco,
o Coreto e a nossa imponente Catedral;
magia dourada de um momento franco.

Indústrias Wagner com chaminé altaneiro,
da Cia. Adriática e da cerveja Original!
Nas ruas: cavalos, carroças e carroceiro
movendo e agitando o centro comercial.

As muitas lojas, comerciais e industriais
foram demolidas, sequer preservadas!
Só lembranças... Hoje não existem mais!
Pela moderna construção, foram trocadas.

Oh! Querida Princesa dos Campos Gerais;
que saudades... Recordação e Nostalgia!
Lembranças que não apagarão jamais,
da candura e doçura que tivemos um dia.

Fonte: Facebook

Isabel Furini (Os Portões)


Pegou um gladíolo que sobressaía entre as flores que sua irmã havia espalhado sobre o túmulo e colocou-o no vaso de cerâmica azul com desenhos bucólicos. Depois foi a vez de arrumar os cravos brancos, logo as calêndulas junto com folhas verdes. Sempre gostou de ramalhetes, até fez cursos de ikebana, por isso, nessa tarde de domingo, quando sua irmã Cacilda, sempre impaciente, espalhou as flores sobre o túmulo, rezou uma rápida prece e disse tchau Maria, vou para casa de mamãe, ela nem se preocupou.

Quando terminou de arrumar as flores, o Sol já estava caindo e faltava pouco para que o guarda-noturno do cemitério fechasse os portões. Deveria ter saído com Cacilda em vez de dizer tchau e continuar arrumando as flores.  Por que eu não fiz isso? Por que sou tão detalhista? Pensava enquanto caminhava entre as cruzes e os túmulos em busca de uma saída.

O sol começava a cair e ela, receosa, acelerou o passo. Olhou para os lados. O cemitério ficou deserto e ela lá, sozinha. Começou a sentir um friozinho na barriga. Deu para perceber o formigamento nas mãos, sempre que se assusta tem essa sensação desagradável. Acelerou ainda mais o passo, tentou correr. Não conseguiu. Sempre que sentia medo acontecia a mesma coisa, suas pernas não obedeciam a seu comando. Essas cruzes. Oh! não!..  errei o caminho.  Estava na parte detrás do cemitério, só via um muro pintado de branco. Só isso. Voltou sobre seus passos, túmulos enfileirados e mais túmulos...Seria essa a rua certa? Sentiu medo.

Queria sair e rápido. O sol se escondia no horizonte. Cacilda estava apressada, disse tchau Maria, podia ter me esperado - mas não, nunca me espera, desde criança ela gosta de deixar-me para trás. Ela, por ser a mais velha, sempre teve mais liberdade.  Para onde estou indo? Estou perdida.  Calma, Maria, calma, você conhece este cemitério, já veio aqui várias vezes. Calma, calma. Avançou entre os mausoléus. Ah! Já estava perto de um portão, que sorte!... Queria sair imediatamente dali. Não conseguia correr, mas conseguia caminhar, ao menos isso. Seus pés pareciam presos a terra, seu passo não era tão rápido quanto ela queria e suas pernas tremiam, mas estava indo para frente enquanto as sombras avançavam. Com desespero, viu o muro branco e os portões fechados. Não conseguiria sair. Onde estará o guarda- noturno?

 As sombras se espalharam sobre os túmulos dando ao cemitério um aspecto fantasmagórico. Os mortos eram isso mesmo, mortos. Nada poderiam fazer contra ela, mas mesmo assim ela sentia medo. Devia ter saído com sua irmã. Cacilda sempre fazia visitas rápidas apenas para colocar as flores de qualquer maneira, sem nenhuma arte e rezar uma Ave Maria.

Devia reconhecer a verdade, não sabia o caminho para o portão principal do cemitério e estava anoitecendo. Anoitecendo depressa. As sombras se estenderam e ela aí, caminhando sem cessar. Tentando sair. E o vigia? Olhou suas roupas novas. Nem lembrava quando as havia comprado. Estava tão estressada que nem conseguia lembrar quando ou em que loja comprara essas roupas.  Pena que não tinha o celular com ela. Ela havia esquecido o celular em casa!... Seguramente na mesa de jantar ou talvez no criado mudo. Não tinha nem um espelho. Queria olhar-se no espelho. Que ridículo! Pensou. Querer olhar-se no espelho em um momento desses.  

Aquele mausoléu de mármore branco!.. Desse mausoléu lembrava bem, estava à esquerda do portão principal. Que sorte! O guarda estará lá. Ele abrirá o portão. Que bom. Ele abrirá o portão. Apressou o passo e lá estava o portão.  Suspirou aliviada.

Sob os últimos raios do sol e a lua cheia que começava a aparecer no horizonte, viu o portão, mas ninguém por perto. E o guarda? Avançou até o portão e olhou para os lados. A solução é escalar, pensou. E, determinada, começou a escalar o portão, primeiro colocou um pé na barra inferior da grade e ergueu os braços para segurar na parte superior. Conseguiu elevar-se um pouco. Esforçou-se mais, ergueu os braços novamente e segurou uma das barras horizontais. Já estou perto do topo, que sorte! Mais um esforço e... tocou a barra superior do portão, um pé no ar e o outro pé escorregou antes de poder segurar com as mãos e caiu de costas. Sentou-se rapidamente no chão, não estava machucada,  mas devia iniciar de novo a subida.   O guarda-noturno estará perto? Olhou para os lados. Ninguém. Ficaria aí, agarrada ao portão. Alguém passaria a qualquer momento e a ajudaria. Suas mãos se aferraram às grades altas. Quando criança já havia tocado essas grades, foi no enterro da avó e sempre lhe pareceram muito frias. Mas agora não. Nem sentia a temperatura, ela estava tão fria quanto o portão. As mãos frias e morrendo de medo.

De repente, sons de passos. Um jovem de cabelo loiro transitava pela rua, vinha do bairro em direção ao ponto de ônibus.  No desespero por chamar a atenção do rapaz sacudiu o portão e gritou, gritou com todas suas forças. Viu o rapaz parar em frente do portão, com os olhos arregalados por um segundo, e sair correndo apavorado.

-  Idiota!..  Volte!... Ajude-me a sair daqui.

-  O que foi moça? - perguntou alguém atrás dela.

Graças a Deus, o guarda do cemitério a escutara. Voltou-se. O que viu a deixou confusa. Havia inúmeras pessoas atrás dela, homens, mulheres, velhos, jovens, adultos, crianças. Todos olhando o portão. Alguns com tristeza, outros com desespero e outros ainda, com raiva.

Um velho aproximou-se dela.

-  Você deve ser nova aqui e não conhece as regras. Só podemos olhar para fora, mas não podemos sair. Não podemos sair. Só os vivos podem, só os vivos.
_________________
Menção Honrosa no Concurso de Porto Seguro, em 2009.

Fonte:

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 2


ESPORAS 

Sob as esporas do desejo, o tempo corre...
O tempo escorre como grãos por entre os dedos,
O sal da lágrima... de mel... nos lábios morre,
numa saudade que eterniza alguns segredos.

Nas asas leves do sonho, uma ansiedade,
que não invade, apenas acaricia
a fantasia de se amar em liberdade,
numa vontade que embevece e extasia.

Do vendaval mais sedutor, ninguém recua
e a pele nua sempre pede algum afeto,
o dialeto sensual deixa que flua
a emoção feliz de um sonho predileto.

Sob a carícia do amor, o enlevo voa, 
a alma boa é uma pétala no ar... 
a voz macia se dilui... jamais ecoa
e a luz melhor sempre ilumina um doce olhar.

Quem tem o dom de transformar as cicatrizes
na experiência, observa mais que fala, 
cura as tristezas com sorrisos mais felizes
e deixa livre a esperança que o embala.

Da calmaria, resta alguma correnteza.
Por natureza, só quem consegue sonhar, 
sabe que amar, bem mais que um gesto de nobreza, 
é a certeza de poder se libertar.

FILOSOFOME

Quem filosofa sobre a fome, não conhece
A verdadeira dimensão do sofrimento,
Só fotografa a visão que o apetece,
E só registra o instantâneo de um momento.

Quem sente a fome no instante em que observa
Um infeliz morrendo à míngua, abandonado,
Sabe que a dor do desamor é que conserva
A solidão em seu olhar desesperado.

Certas pessoas se alimentam de vaidade,
De arrogância,covardia e falsidade,
E o poeta mostra...em sua poesia...

Que os indigentes infelizes passam fome
E o egoísta é um bicho que só come
A sua própria solidão... e hipocrisia.

FLUTU...ÂNSIAS

Quando parto sem partir, estou sonhando...
... ou sofrendo solidões compartilhadas
com olhares cujas luzes apagadas 
sempre tentam me dizer que estão... me amando.

Quando volto sem nem ir, esbarro em mim... 
... mas sou outro vendo as pedras da estrada, 
meu olhar tropeça em bocas tão caladas...
. ..que meu sonho recomeça... pelo fim.

Sou assim: um ser que só se observa 
num espelho aleatório à abstração. 
Meu sorriso - teimoso - só se conserva, 
no momento em que a razão perde a... razão.

Minha lágrima insiste... eu a desfaço, 
entretanto não disfarço a minha dor, 
camuflar o sofrimento é um erro crasso, 
mesmo assim, eu mudo o tom, falo de amor.

Ah... no instante em que eu retorno dos enleios
e te olho... minha amada invulgar, 
não preciso me iludir com outro olhar
porque volto a me soltar nos devaneios.

Já não parto... me reparto e me diluo
nos teus olhos onde encontro um doce afeto. 
Se meu sonho é meu brinquedo predileto, 
quando brinco com teus sonhos... eu... flu... tu.. o.

MOSAICO

Tu me inventas no vazio do teu peito,
Com teu jeito de sonhar com os pés no chão;
Quando acordas, tu nem mais sabes direito
De que lado fica o teu coração.

Tu me ajeitas no teu quadro sem moldura,
Com ternura, tentas reconstituir
Os momentos de amor, mas a loucura
Só te faz, estranhamente... desistir.

Num mosaico de emoções, tu me produzes,
Tuas luzes reprojetam meu desenho,
Na miragem do que vês, tu te seduzes,
Tu me tens  e eu... simplesmente... não te tenho.

Quando, então, percebes que não me criaste,
E me vês sumir  no ar que se evapora,
O anseio vão do amor que cativaste
Fica em ti... e a imagem... vai embora.

Estilhaças teu mosaico colorido
Sem sentido... e cada peça arremessada,
Surreal é como um pássaro ferido
Esquecido na poeira de uma estrada.

Tua lágrima escorre e a maquiagem
Se dissolve em tua face abandonada
Nos espelhos que só mostram tua imagem
Que te fita mas que não te diz.... mais nada.

VELAS E VENTOS

Se navegar é dar velas ao vento,
voar é descobrir asas e penas.
assim, quando se quer águas serenas,
mister é se buscar o firmamento.

Amar é se soltar na correnteza,
voar é dar ao ser a dimensão
do amor dentro do próprio coração
e ter... na emoção... luz e leveza.

Assim, quando se ama de verdade,
percebe-se que é na felicidade
que o coração encontra o paraíso

E para se sentir feliz e leve
é só compreender que a vida é breve,
por isso é que sonhar sempre é preciso.

VELHAS PORTAS SEMPRE NOVAS 

Caminhos velhos nunca são velhos caminhos,
seres antigos respeitam portas fechadas,
porque eles sabem construir seus próprios ninhos 
e não se enganam com a beleza das fachadas.

Se nelas batem e o futuro lhes atende,
eles entendem que o presente é tão fugaz,
que toda vez que uma lâmpada se acende,
a escuridão se rende e fica para trás.

Pessoas velhas nunca são velhas pessoas,
que embora vivam mergulhadas no passado,
sempre conseguem descobrir que as coisas boas 
podem às vezes rebrotar do lado errado.

Quem as liberta da tristeza é a alegria
de mergulhar no tempo e ver que as coisas sãs
eram sementes de uma doce rebeldia
que os fazia construir novas manhãs.

Sem a saudade dos momentos mais felizes, 
elas seriam como os jovens complicados
que nunca sabem distinguir, como aprendizes,
se os caminhos que se dão, estão errados.

E ficam tristes quando alguém que nem viveu,
os ignora, e fala sobre o que nem viu,
filosofando sobre o que não percorreu, 
e sobre portas ele mesmo nem abriu.

Por isso mesmo, quando estão mais inaudíveis,
quando ninguém quer mais ouvir a sua história,
eles conversam com saudades invisíveis
e se abrigam num cantinho da memória.

As suas portas são tantas... tantos caminhos, 
que eles podem escolher o que trilhar...
...e adormecem... escolhendo entre os carinhos
mais indeléveis... um que os possa... consolar.